Resumo
Este artigo discute a estética teatral da autora austríaca Elfriede Jelinek e algumas de suas mudanças mais relevantes ao longo das décadas. A discussão parte de três ensaios da própria autora sobre teatro, Ich schlage sozusagen mit der Axt drein (1984), Sinn egal. Körper zwecklos (1997), e Textflächen, (2013), e de estudos teóricos sobre sua obra (JANKE 2013; HASS 2013). Em seguida, este estudo examina as peças Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften (2018), escrito em 1979, e Schatten (Eurydike sagt) (2013), com o objetivo de analisar como os diferentes procedimentos sublinhados pela autora em seus ensaios são trabalhados nessas duas peças.
Palavras-chave:
Elfriede Jelinek; estética teatral; literatura austríaca; teatro de língua alemã
Abstract
This paper discusses the theatrical aesthetics of the Austrian author Elfriede Jelinek and its changes over the decades. For this, we start with the reading of the author’s essays on theater, namely: Ich schlage sozusagen mit der Axt drein (1984), Sinn egal. Körper zwecklos (1997); and Textflächen (2013), and the studies by Pia Janke (2013) and Ulrike Hass (2013). Then, we discuss the plays Was geschach nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften (2018), written in 1979, and Schatten (Eurydike sagt) (2013), aiming to understand how the different procedures underlined by Jelinek in her essays are crafted in the two plays.
Keywords:
Elfriede Jelinek, theater aesthetics; Austrian literature; German language theater
1 Elfriede Jelinek e o dramático3
Na edição de outubro de 2018 da revista Die deutsche Bühne, dedicada à obra de Elfriede Jelinek, o ator Sebastian Rudolph (2018: 52-53) declara o seguinte sobre a experiência de ler e interpretar a autora: “Na maioria das vezes, seus textos são bons. Às vezes, também são ruins (mas não admito isso para mim mesmo, já que se trata de Elfriede Jelinek), eles me cativam, às vezes me aborrecem, então, logo após de não ter entendido nada, dou risada.”4 Esta sua afirmação parece se assemelhar ao que muitos leitores experimentam diante dos textos da autora. Por um lado, eles impõem inúmeras barreiras à legibilidade; por outro, exercem uma espécie de fascínio que nos impele a continuar lendo e a enfrentar o estranhamento inicial. Tal fascínio pode ser uma das explicações possíveis para o fato de que, das mais antigas às mais recentes, as peças de Jelinek continuam a ser encenadas nos palcos dos países de língua alemã, passando pelas mãos de encenadores de diferentes gerações e linguagens artísticas. Ainda na mesma edição da revista, em artigo que comenta diferentes montagens de peças da autora em Bonn, Lübeck, Mülheim e Paderborn, o crítico Jens Fischer destaca que um dos motivos do interesse de encenadores e grandes teatros por Jelinek é a flexibilidade e criatividade que as superfícies textuais polifônicas da autora provocam:
Desafiadas pela arte da escrita, florescem as possibilidades estéticas da direção contemporânea. Porque as fluidas superfícies textuais, polifônicas do ponto de vista dramático, estão abertas a tudo, já que se abstêm de qualquer atribuição: nada de parágrafos, cenas, diálogos, personagens, didascálicas, fragmentos de enredo. Em vez disso, há um meandro maníaco entre a banalidade e o existencial, uma reviravolta risonha entre o sentido e o absurdo, uma digressão constante de um pensamento aleatório ritmada por repetições, piadas de cabaré e gags de comédia5 (FISCHER 2018: 65).
Noutras palavras, poderíamos dizer que o estilo de escrita de Jelinek favorece - e até exige - o Regietheater, uma prática bastante presente nos teatros de língua alemã, em que os encenadores são dotados de grande liberdade frente ao texto dramático e a partir da qual muitas vezes ganham importância maior do que o dramaturgo na percepção do público e da crítica, sendo vistos como uma espécie de coautores (cf. BLANK, 2020). Esse tipo de avaliação do teatro jelinekiano é corroborado pela argumentação de Karen Juers- Munby e Artur Pelka no artigo “Postdramatik?: Zur aktuellen Forschungssituation mit Blick auf Elfriede Jelinek” (2015). Diante da pergunta: “por que encenadores escolhem montar Jelinek?”, os autores respondem: “Justamente por ser uma autora muito distante da indústria teatral e, por exemplo, por nunca ter dirigido, ela desafia o Regietheater com textos cada vez mais abertos, ao mesmo tempo em que necessita dele como coadjuvante e antagonista6” (JUERS-MUNBY; PELKA, 2015: 12). Tal constatação indica que, ao abdicar de algumas convenções formais do gênero dramático, a autora torna seus textos mais permeáveis às diferentes visões artísticas dos encenadores, permitindo a eles maior liberdade em face do material linguístico. Essa vinculação com o Regietheater é um dos motivos que garante a Jelinek um status privilegiado na cena teatral de língua alemã. A isso soma-se ainda a busca contínua da autora por se manter presente no debate contemporâneo através dos textos que publica em seu site https://original.elfriedejelinek.com/, sejam eles indicados para o teatro (“Für das Theater”) - como Strahlende Verfolger [Perseguidores iluminados] (JELINEK, 2015), que gira em torno da emigração alemã para países como a Romênia ou o Brasil - ou reflexões sobre o teatro (“Über das Theater”) - como o ensaio Die unendliche Batterie: Für Salman Rushdie (A bateria infinita: Para Salman Rushdie) (JELINEK, 2022), escrito por ocasião do ataque contra o escritor em 2022.
No que diz respeito especificamente a seus textos ensaísticos, nota-se que eles abrangem uma gama relativamente diversa de temas, que vão desde a situação política global e seus atores à carreira de diferentes figuras da tradição literária de língua alemã, passando pelo próprio fazer poético da autora7. Em sua colaboração para o Jelinek-Handbuch,Monika Szczepaniak (2013: 237) aponta que o corpus ensaístico da austríaca era composto de mais de quinhentos textos. Hoje, esse número deve ser ainda mais alto. Segundo Szczepaniak (2013: 238), o ensaio constitui uma das principais formas de engajamento político e de envolvimento no debate público escolhida por Jelinek, tendo em vista a dificuldade que esta tem para sair fisicamente de casa devido a um severo transtorno de ansiedade. No entanto, Szczepaniak (2013: 238) nos lembra que, quando se trata da escritora austríaca, o que se entende por “ensaio” compreende vários gêneros textuais: além de ensaios no sentido estrito, encontram-se discursos de premiações, palestras, folhetos, apelos eleitorais, cartas abertas, cartas ao editor, respostas a perguntas e estudos, breves declarações, prefácios e comentários. Diante de tal heterogeneidade, o que favorece um enquadramento único sob o termo “ensaio” é, segundo Szczepaniak, a ausência de fronteiras e marcadores tipológicos claros entre os diferentes textos, somada ao próprio caráter “herético” do gênero ensaístico, conforme entendido por Theodor Adorno (apudSZCZEPANIAK, 2013: 237). Observa-se, nesse sentido, que Jelinek se vale de um mesmo arsenal de recursos formais e estilísticos nos diferentes tipos de texto, rejeitando as convenções tradicionais para definir gêneros textuais como ocasiões distintas de elocução. Entre esses recursos, alguns dos que tornaram a autora mais conhecida foram: a mistura entre o registro “poético” e o cotidiano, entre o sublime e o trivial e/ou profano (tanto temática quanto linguisticamente); os jogos linguísticos e brincadeiras com a construção morfológica das palavras; assim como o uso de inúmeras vozes e de citações retiradas das mais diversas fontes.
Além disso, é possível notar que muitos de seus escritos coincidem no esforço por entrelaçar o gesto poético e o crítico. Nesse empreendimento, o questionamento e a colocação de si no texto, tanto enquanto autora biográfica quanto como instância autoral, são uma marca registrada. Isso costuma aparecer em textos teatrais e ensaísticos, normalmente como uma interrupção do fluxo do texto, delimitada às vezes pelo uso de parênteses, mas não necessariamente. Em tais ocasiões, nota-se com frequência um movimento de “ida e volta” nas frases: uma afirmação seguida de sua negativa ou de uma hesitação. Com isso, Jelinek anuncia sua presença no texto e, ao mesmo tempo, se dirige ao leitor de forma casual.
No âmbito deste artigo, interessam-nos, no entanto, não o ensaísmo jelinekiano como um todo - e as maneiras como poderíamos compreendê-lo à luz de uma “teoria do ensaio” -, mas aqueles textos escritos sobre o teatro, nos quais a autora discute sua própria escrita e estética teatral, considerando também como eles se relacionam com os textos que a autora escreveu para o teatro. É preciso salientar que as proposições de Jelinek para o teatro dialogam não apenas com a tradição literária de língua alemã e o teatro de vanguarda austríaca, mas também com a tradição filosófica do pensamento ocidental e com o debate que transcorre ao longo do século XX - principalmente na Europa - em torno das funções sociais e possibilidades críticas e estéticas do teatro. Nesse sentido, são notórias as influências do pensamento marxista, da obra de Roland Barthes (sobretudo de seu estudo sobre os mitos triviais Mitologias (2001) - “Mythologies” -, lançado em francês em 1957) e da teoria teatral de Bertolt Brecht na obra de Jelinek (cf. DEGNER, 2013; MEISTER, 2013). Frequentemente, seus textos teatrais são associados também ao teatro pós-dramático (cf. LEHMANN, 2007). No entanto, não é objetivo deste artigo abordar uma vez mais essas influências ou defender um enquadramento de Jelinek no paradigma teatro pós-dramático, nem tampouco discutir a viabilidade desse conceito. Deixamos registrado apenas que concordamos com a opinião defendida por Karen Juers-Munby e Artur Pelka (2015: 2) segundo a qual é possível lidar com o polêmico livro de Lehmann (2007) não como uma proposta teórica normativa, mas como uma “nova perspectiva” que se dá enquanto “work in progress”.
Partindo do exposto, tratamos a seguir do modo como a estética teatral de Jelinek é formulada por ela mesma, lançando mão de algumas observações sobre o teatro brechtiano e o teatro pós-dramático, conforme entendido por Lehmann. Assim, entendemos que algumas passagens da autora, que podem fechar-se à compreensão numa primeira leitura (conforme apontado pelo ator Sebastian Rudolph), abrem-se quando lidas à luz de uma tradição de pensamento sobre o teatro.
2 Estética teatral em Elfriede Jelinek
Cronologicamente o primeiro dos três ensaios de Jelinek aqui tratados, Ich schlage sozusagen mit der Axt drein (“De certa maneira, eu golpeio com o machado”), de 1984, foi publicado no período inicial da produção da autora. Nele, são estabelecidas algumas das principais propostas que nortearam o começo de sua escrita dramatúrgica, quando Jelinek ainda trabalhava com personagens bem demarcados, inscritos em uma dinâmica de diálogo e propensos a algum tipo de ação em cena; desse modo, seguindo, aparentemente, um modelo próprio do teatro dramático. Algumas dessas características foram mantidas em peças posteriores, tendo sido aprofundadas e mais bem esclarecidas em textos críticos publicados nas décadas seguintes; algumas delas, contudo, serão abandonadas.
No que concerne à forma inicial de seu teatro, ainda que nas primeiras peças - por exemplo, em Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften; Burgtheater; Krankheit oder Moderne Frauen; Clara S. (JELINEK, 2018) - tenhamos personagens per se, em Ich schlage sozusagen mit der Axt drein (1984: 14), a autora esclarece que os concebe não como personagens no sentido de sujeitos- psicológicos agentes (psychologisch agierende Personen) que se revelam em suas particularidades e intenções através de ações e falas, mas como fantoches, portadores de sentidos (Bedeutungsträger), através dos quais algo é declarado. As ações dos personagens não são motivadas conforme a perspectiva aristotélica-hegeliana sobre eles, de modo que muitas vezes agem, à primeira vista, de maneira despropositada e/ou incoerente. Assim, seguindo o caminho aberto por Brecht - mas inovando-o -, Jelinek abre uma fratura entre o que a personagem encena e a unidade psicológica que a precede. Ou antes, a autora propõe que essa unidade é inexistente enquanto subjetividade que age sobre o mundo e exerce controle sobre si mesma. Operada esta quebra, as personagens tornam-se portadoras de falas de outros, falas já ditas que circulam na cultura; não sendo mais um Eu aquele que diz, mas é a própria língua que se revela enquanto tal, enquanto dito:
Meu jeito de trabalhar dá certo quando consigo deixar a língua falar, através da montagem de frases, que coloca diferentes línguas8 em confronto, mas também através da modificação de palavras ou letras, que expõe enunciados encobertos no idioma. No palco, não me interessam personagens com a aura de “indivíduos”, mas antes, protótipos. Meu processo permanece visível e transparente. Não há enigma nem no autor, nem nas personagens. As figuras no palco estão no lugar de outra coisa, para mim, elas são ferramentas com as quais eu quero produzir minha fala, porque acredito no teatro como meio político9 (JELINEK 1984: 16).
Logo observamos que o modo de concepção da personagem aqui em questão se define em oposição radical ao modelo da personagem psicológica segundo o drama tradicional. Jelinek desconfia da noção de um sujeito cartesiano, cuja consciência seria livre e transcendente, capaz de dominar e atribuir significado aos objetos do mundo sensível. O que vemos nos primeiros textos teatrais da autora são, assim, figuras das quais as palavras brotam no fluxo de uma associação livre. Essa associação não está calcada em nenhum tipo de experiência individual, ligada a um sujeito singular, mas aparece como produto da cultura, no imbricamento de diferentes discursos sociais e recalques compartilhados. Nesse sentido, ela tem como base aquilo que poderíamos chamar de inconsciente coletivo. O que constitui as falas é o que se encontra na língua. A língua diz- se. As personagens são os corpos pelos quais a língua se expressa, na medida em que não têm controle nem autoria daquilo que é dito.
Na contramão de qualquer pretensão realista, Jelinek opta pela radicalização do princípio do determinismo. Elevadas a caricaturas prototípicas, movidas como fantoches por forças estranhas, as personagens estão continuamente alienadas de si, mas ao mesmo tempo, por não dizerem de si, por não serem sujeitos, também são completamente dessensibilizadas. Aqui, a ausência de nuances psicológicas, caracterizada pela autora como uma Holzschnitttechnik, uma técnica de xilogravura em que a imagem é construída a partir do contraste absoluto com o fundo contra o qual é pintada, torna-se marca definidora daquilo que ouvimos no palco. É disso que emerge o sentido da frase “Ich schlage sozusagen mit der Axt drein”: a autora corta o mato com um machado para que não cresça nada entre o qual as personagens possam se esconder, se disfarçar. As personagens tornam-se completamente planas (no sentido de não terem complexidade psíquica10), representam-se exatamente como aquilo que declaram, são superficiais: aquilo que falam é o que são, não havendo motivos e desejos ocultos. No entanto, na medida em que suas falas são sempre um amálgama de material heterogêneo, elas nunca se deixam apreender como um todo coerente. Quase de maneira paródica, elas verbalizam aquilo que é recalcado na cultura, de modo a denunciar aspectos perversos, contraditórios ou ridículos desses discursos e a se apresentarem como meros porta-vozes deles.
Ao reconhecer esse propósito, nos deparamos com a filiação de Jelinek ao didatismo brechtiano, ao qual ela mesma se reporta e do qual o objetivo central seria o de desmascarar as estruturas sociais e relações de poder que constroem a sociedade. Particularmente nas peças jelinekianas, podemos observar que operam no sentido desse desmascaramento recursos que se assemelham ao distanciamento de Brecht; prática na qual a distância entre aquilo que está em cena e o que está na realidade é colocada em questão, rompendo com a expectativa mimética nas relações entre realidade e teatro, ator e personagem. Em Jelinek, por exemplo, as personagens apresentam a si mesmas, em vez de se mostrarem naturalmente no decorrer da fábula, como seria corrente no modelo dramático tradicional. Elas narram a si mesmas e dessa forma evidenciam a própria construção narrativa do teatro e seu estatuto ficcional. Nesse caso, como em outros, no entanto, não estamos diante de uma adoção passiva de uma normativa preestabelecida por Brecht, mas de uma reinvenção daquilo que por ele fora iniciado.
Cabe notar que o universo teatral da autora possui ainda mais autonomia com relação à realidade do que aquele de Brecht; seu esforço representativo é menor, assim como sua pretensão de uma ordenação plenamente coerente. Por essa razão, as peças jelinekianas dificilmente poderiam ser consideradas “didáticas” no mesmo sentido que as de Brecht, não só porque não oferecem nenhuma resposta ou sugestão de solução para os problemas sociais que são colocados no palco, mas também porque não se entregam com facilidade a uma lógica organizadora do drama, que estabeleceria causas e consequências entre eventos da fábula. O “desmascaramento” de discursos no palco feito por Jelinek não fornece uma história concisa e coesa do mundo, à semelhança de um desemaranhar de fios, mas justamente apresenta o mundo enquanto emaranhado. Por esse motivo, talvez, possamos falar, conforme propõe Lehmann (2007: 51), de uma implosão da “ênfase do racional” do teatro brechtiano no teatro de Jelinek.
Indissociável do intuito de “desmascaramento”, ao qual se deve o modo de conceber as personagens, notamos uma particular técnica de montagem (Montagetechnik), que diz respeito ao encontro de diferentes discursos e “níveis de linguagem” (Sprachebenen). O que observamos nessa técnica é uma incorporação, ao texto, de material estranho (“fremdes” Material) que, retirado das mais diversas fontes, da cultura pop a textos canônicos da tradição judaico-cristã, é essencialmente constituído de falas já ditas por outros - ou seja, falas não originais. A maneira como Jelinek realiza esse encontro, no entanto, não obedece a uma organização argumentativa; não se trata de um “debate”, mas, antes, da justaposição de diferentes enunciados11. O resultado produzido possui quase sempre um potencial cômico e não raro cheio de uma ironia da qual, muitas vezes à maneira da ironia trágica, os personagens não se dão conta e que apenas nós concretizamos na medida em que capturamos os múltiplos sentidos de uma palavra e sua relação com o mundo extratextual ou com o que já sabemos do enredo. Com frequência, o riso é também fruto do nonsense que liga as diferentes falas, das associações que parecem a princípio despropositadas e da falta de “senso comum” ou “bom senso” dos personagens.
Outros recursos que Jelinek usa para revelar intenções mascaradas de determinado discurso são jogos linguísticos e neologismos que, em alguns casos, funcionam como espécies de atos falhos, à maneira freudiana. Nesses casos, o efeito produzido também é cômico, tem uma comicidade que contraria o que seria socialmente aceitável ser dito. Por exemplo, no ensaio Ich schlage sozusagen mit der Axt drein, a autora menciona a troca consonantal de “Zauberflöte” (flauta mágica) para “Saubertöte” (assassinato limpo) que teria utilizado na peça Burgtheater para aludir ao envolvimento de vários atores dessa instituição com o nazismo (JELINEK, 1984: 16).
Nota-se ainda que na medida em que pressupõe um distanciamento, a concepção das personagens jelinekianas acarreta necessariamente uma “estética da atuação” (Schauspielästhetik) (HASS, 2013: 63). No ensaio de 1984, essa estética performática não é referida diretamente, mas em Sinn egal. Körper zwecklos (1997), ela se torna o eixo central de reflexão. Nesse segundo ensaio, cujo título poderíamos traduzir livremente por “Sentido indiferente. Corpo inútil”, Jelinek entende que a atuação tradicional dentro do drama prevê que o/a ator/atriz se transforme em um outro por um breve momento, isto é, sem que essa transformação seja tal que desestabilize a identidade anterior do sujeito que atua. Na sua concepção de uma estética de atuação, no entanto, os atores não devem almejar representar nem ser um outro (ohne sie darzustellen und ohne sie sein zu wollen) (JELINEK, 1997); não devem adotar nenhuma identidade, mas, antes, devem funcionar como um filtro12 pelo qual virão a passar as falas dos outros - os inúmeros discursos, retirados dos mais distintos lugares, que se encontram no tecido das peças. Contudo, para Jelinek, essas múltiplas vozes não são apenas o material que dá forma ao texto teatral, elas também são o material que constitui e determina os indivíduos; os atores, portanto, não podem querer ser outros quando atuam, porque já são fundamentalmente constituídos por eles. Reforçando o que já se delineava no ensaio da década anterior, Jelinek aqui entende que os atores são as vozes que os constituem13 e as revelam na medida em que eles se despem de si mesmos, dando lugar para que um “muro babilônico” se erga sobre o palco: “Os atores SÃO a fala, eles não falam”14, afirma a autora (JELINEK, 1997).
O ator, desse modo, não é entendido como um agente do encenador, mas como alguém que produz sentido dentro da experiência teatral em pé de igualdade com ele. Nisso, podemos identificar o que seria para Lehmann (2007: 50) a “perda da instância original de um discurso” no teatro. Encenador e atores constroem o sentido do texto e da encenação em pé de igualdade com o autor. Jelinek nota, não sem algum conflito, como esses diferentes sujeitos contribuem para a produção do que ocorre em cena. Em Sinn Egal. Köper zwecklos (JELINEK, 1997: n.p), ela afirma que o ator deve saber ouvir suas exigências, as exigências que, como autora, ela imprime no texto, mas também observa que ele deve ser capaz de rejeitá-las e de fazer as suas próprias exigências15. Desse modo, o que as personagens se tornam no palco é sempre algo diferente daquilo que tinha sido imaginado pela autora; como um trem descarrilhado, as personagens saem do texto e caem na floresta, para então reaparecerem radicalmente modificadas16. Mas, quando emergem no palco, é também como algo diferente daquilo que fora imaginado pelo próprio ator, pois este tampouco representa aquilo que imagina estar representando, antes, ele cria um outro - que não é ele e não é ninguém, nem tampouco algo “inteiro”17.
A esse respeito, notamos na produção jelinekiana que o aprofundamento da reflexão sobre a presença do ator em cena marca um ponto de virada no qual muitas peças passam a dispensar as noções de figuração e fabulação. Ainda que exista uma evidente vinculação entre o que temos chamado, com pouca precisão, de um primeiro período de sua obra e um segundo iniciado nos anos noventa com textos como Unruhiges Wohnen (JELINEK, 1998), há mudanças claras entre esses dois. A maioria delas é a emergência das Sprachflächen ou Textflächen (“superfícies linguísticas”), textos que são propostos como teatrais, mas que não possuem qualquer uma das convenções do gênero dramático - indicações de personagens, didascálicas, cenário, fábula -, se assemelhando mais a um extenso fluxo de pensamento cuja mancha na página é a de um bloco contínuo e sem parágrafos.
O ensaio Textflächen (JELINEK, 2013b), é uma das primeiras tentativas da autora de esclarecer tal prática. Mas, enquanto tentativa de explicação, ele é também a performance daquilo que pretende dizer. Esse modo de escrita que performa a si mesma - que, cabe notar, bebe na tradição pós-estruturalista - foi identificado por Isolde Charim (2011: 80 apudSZCZEPANIAK, 2013: 246) como o caráter simultaneamente performativo e propositivo dos textos ensaísticos da autora: por um lado, eles apresentam ao leitor várias de suas posições frente à arte, por outro, eles encarnam e efetivam tais posições. Essa duplicidade faz com que a fronteira entre os diferentes gêneros textuais de Jelinek se dilua ainda mais com a emergência das chamadas superfícies.
Logo no início do ensaio, Jelinek afirma que essas superfícies (Flächen) são “tapetes textuais” (Textteppich), desovas textuais de caráter monstruoso (Textausgeburt), que foram rejeitadas por todos, principalmente pelos poetas aclamados e laureados, sendo, antes mesmo de existirem, motivo de desprezo18. Por meio dessas metáforas, a autora faz referência às críticas que recebeu ao longo dos anos e à maneira pouco ortodoxa com a qual ela própria lidou com uma diversidade de “materiais estranhos” em seus textos. Além disso, a imagem do tapete também aponta o modo como a linguagem parece emergir de forma quase autônoma sobre o papel, como um jorro linguístico que independe de uma instância enunciadora e que se forma no próprio movimento da escrita como se os significantes puxassem uns aos outros. Lehmann (2007: 20) associa tal autonomização à pintura moderna, assim descrevendo “no lugar da ilusão do espaço tridimensional, a superficialidade da imagem, sua realidade bidimensional e a realidade das corres passam a ser ‘encenadas’ como qualidade autônoma” (LEHMANN, 2007: 20). A linguagem, assim, a um só tempo, diz e performa o que é dito, numa operação que visa embaralhar nossa percepção de haver uma instância autoral única no texto.
Segundo a autora, suas superfícies textuais formam uma manta de retalhos dentro da qual não é possível discernir aquilo que provém de si e aquilo que veio de outros. Tampouco o que vem de fora corresponde ao que alguém quis dizer num primeiro momento, já é outra coisa, ou seja, o que ela acreditou que fora dito; e mesmo essa sua interpretação também já não pode ser resgatada. Ela está lá, na manta, mas não pode ser achada. Retornando ao que já foi discutido a respeito de Ich schlage sozusagen mit der Axt drein (JELINEK, 1984), trata-se menos de uma intencionalidade - característica do sujeito - do que de sua exposição. Menos da vontade consciente do que do desejo, menos do “eu” do que do “sujeito do inconsciente.” Aquele que diz “eu” no texto não é, portanto, um sujeito Uno, e aquilo que é dito, assim como ocorre no fluxo de pensamento ao qual uma sessão de análise dá voz, não segue necessariamente um ordenamento racional. Diferentes associações puxam umas às outras, fios soltos são deixados pelo caminho, frases que a princípio não se relacionam com as anteriores brotam de supetão e diferentes linhas de raciocínio convivem umas com as outras, ora sumindo, ora retornando. Utilizando-se de outras metáforas para refletir sobre esse procedimento de escrita, Barbara Mariacher (2018) observa que as superfícies textuais da autora também podem ser entendidas a partir de uma outra referência espacial: como uma espécie de movimento de placas tectônicas na crosta da linguagem (Sprachkruste). A alusão ao campo da geografia, aqui, é reforçada por Mariacher quando esta retoma a seguinte fala de Jelinek na estreia da peça Stecken, Stab und Stangl19: “Por favor, aqui vocês veem uma paisagem plana, na qual repousam fossas afundadas, lagoas escavadas e montes de terra, uma planície que se afasta de si mesma com indiferença! Está vazia e, no entanto, não está, dá para ver isso, não é?20” (JELINEK, 1996 apudMARIACHER, 2018: 48). Também no primeiro trecho de Textflächen (JELINEK, 2013b), outra metáfora que se ancora em referências espaciais é utilizada para descrever o “fenômeno das superfícies”: elas seriam como “raquetes de neve”21, com os quais é possível caminhar sobre a neve sem afundar. Noutro momento, ela afirma que esses calçados, suas superfícies, a permitem remexer um pouco a neve sem cair. Aqui, o sentido de superfície se expande para pensar um estilo de escrita que permitiria a autora caminhar sobre uma série de assuntos, sem ir “muito a fundo” neles. Noutro excerto22, ela se questiona se, com suas superfícies, poderia chegar às profundezas do conhecimento. A pergunta, no entanto, permanece suspensa, já que na sequência a autora declara que em certo sentido elas (as superfícies) podem desencadear uma avalanche, ainda que não a levem (Jelinek) consigo.
Com frequência, a autora se questiona: quem precisa de profundidade? Podemos especular se, com essa pergunta, ela não estaria emulando o gesto de quem nega no sentido do conceito freudiano de Verneinung. Afinal, Jelinek insiste que as raquetes apenas reviram (aufwühlen) a neve e se reviram enquanto textos, mas não vão a lugar algum. Em outra ocasião, afirma: “A profundidade não foi feita para mim, até tenho medo dela quando nado, por isso que não o faço.”23 (JELINEK, 2013b: n.p). Enquanto movimento de recusa a ir além, observamos que em muitos momentos do ensaio Textflächen (2013b) a autora se aproxima de um assunto e logo na sequência o encerra como um “assunto para outra hora”. Diante disso, se lembrarmos o modo como, em diversos textos, Jelinek utiliza trechos e conceitos de filósofos alemães como fontes para suas colagens (p. ex. Heidegger, Hegel e Kant), a recusa de uma “reflexão profunda” pode ser entendida também como uma rejeição irônica à tradição de pensamento na qual esses autores se inserem; uma tradição que se ocupa dos grandes problemas ontológicos e das “grandes verdades” que deveriam ser desvendadas - uma tradição que, além disso, é vista por ela como aquela que forneceu a matriz ideológica do patriarcado, do nazismo e do colonialismo. Assim, podemos pensar que o que Jelinek diz é justamente que seus textos não nos oferecem respostas, não se propõem a ser uma investigação que conduz a um fim, que pretende revelar um sentido oculto e dar uma resposta transcendente. Em vez disso, eles nos convidariam justamente a revirar as perguntas e os assuntos.
Tratando especificamente do texto teatral, a partir da metáfora das superfícies, Jelinek o compreende como algo que não é inventado, no sentido romântico de valorização da originalidade e do novo, mas retirado de um lugar e posto em um outro, forjando a ilusão de que há uma criação autoral. Assim, as superfícies correspondem também ao aspecto geométrico dos blocos de texto e das pequenas citações, que podem ser movidas de um lugar para outro, de um texto para outro. Contudo, o lugar de onde as citações - diretas ou indiretas - foram retiradas não pode ser facilmente encontrado, ele se confunde com as variadas vozes que se sobrepõem. Parece ser nesse sentido que a autora entende que o texto (“original”), de onde algo foi retirado, não deve fazer reivindicações dentro de seu próprio texto que é algo novo, uma colagem, não deve se fazer reconhecível. Fica evidente o processo de colagem e montagem do qual a autora já falava em 1984. Entretanto, se em peças como Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften, a primeira peça escrita por Jelinek em 1979, discursos distintos podem aparecer na boca de personagens distintos, em textos posteriores a autora coaduna diferentes discursos e os intercala indistintamente numa tecitura polifônica que não permite identificar falantes individualizados. Na estrutura sem interrupções e sem parágrafos24, as vozes se esbarram umas nas outras. Às vezes, é possível identificar uma voz, por exemplo, quando a autora se identifica como mulher, introduzindo um discurso depreciativo25; na maior parte dos momentos, porém, o emaranhado é mais sutil. Um dos objetivos da autora é eliminar a existência de um Eu falante, sujeito do discurso, e assim desafiar as noções tradicionais de autoria, em diálogo direto com a crítica empreendida por Roland Barthes, em A morte do Autor (2004). A esse respeito, podemos destacar um trecho em que, por meio de um jogo de palavras que utiliza o vocabulário marxista sobre a dominação, ela afirma não desejar exercer autoridade ou domínio (Herrschaft) sobre o próprio trabalho, porque esses dois não poderiam conviver em uma mesma pessoa:
Mas eu, eu apenas piso por aqui, não repiso em nada, ainda que eu, não, não eu como sujeito, não o sou, sou só uma mulher que escreve, que nunca vai poder ser um sujeito (risos de escárnio, escárnio sem compromisso, ah, nós já sabemos disso!), pareça repisar na minha opinião? Talvez, essa é uma bela posição feminina dentro da qual eu até conseguiria me encolher, por isso piso aqui e repiso na minha opinião, mas sem domínio sobre o meu trabalho, porque trabalho e domínio andam juntos, mas por favor não numa só pessoa!26 (JELINEK, 2013b: n.p).
No trecho citado, ao apontar o fato de que as mulheres não foram e não são reconhecidas como sujeitos enunciadores, Jelinek abre uma nova pergunta a partir do que vinha falando anteriormente sobre a morte do autor. Enquanto sujeitos que escrevem, as mulheres já estariam “mortas”, já teriam sua posição negada. Diante disso, pensar a questão da autoria feminina implica primeiro reivindicar o direito de poder escrever e ser reconhecida por isso. Mas essa reivindicação, conforme indica a autora, não pode retroceder ao discurso tradicional que concebe o autor como unidade organizadora de todo o sentido do texto. Tem-se então a questão: como repisar na própria opinião, se afirmar, sem exercer domínio? Esse caso pode ser lido como uma demonstração de um encontro sutil entre diferentes discursos sociais em seus textos. Aqui, especificamente, teríamos um ligado à crítica feminista, outro ao pós-estruturalismo e ainda outro ao marxismo. Não se trata, evidentemente, do retrato de um “embate” entre os três, mas de sua sobreposição. Assim, a nenhuma das questões que o excerto sugere - a atuação feminina na literatura ou a autoria como detenção do significado de uma obra, por exemplo - é apresentada uma resposta. Como a própria autora afirma ironicamente: ela não sabe nada27 e, por isso, não pode oferecer soluções (JELINEK, 2013b: n.p).
Há ainda um aspecto a ser considerado, o que diz respeito à possibilidade de levar adiante o significado de Fläche. Se, por um lado, Fläche pode designar uma superfície geométrica no espaço; por outro, pela semelhança morfológica, a palavra convoca o adjetivo flach para o jogo interpretativo, trazendo à tona um campo semântico que remonta ao superficial e banal. Não querer ir até o “fundo” das coisas pode conotar, aqui, uma recusa à psicologização dos personagens. Nesse sentido, conforme coloca Hass (2013: 66), as personagens aparecem chatas como o texto na folha. Novamente, então, nos deparamos com a Holzschnittechnik da autora, reformulada. Observada de outro ângulo, a noção de banal também se relaciona ao tratamento que Jelinek dá aos mais diversos assuntos da cultura. Tudo se sujeita a ser tematizado em seus textos: aquilo que seria “elevado” e o que é caracterizado como “baixo” convivem no mesmo nível - da filosofia alemã à música clássica, passando por propagandas atuais, pequenas notícias e assuntos de moda e beleza. Isso nos permite pensar em uma trivialização dos “assuntos elevados” e numa elevação dos “assuntos banais”, o que não deixa de constituir também um dos jogos irônicos e provocações da autora.
3 Nora e Eurídice: dois paradigmas?
O primeiro dos textos teatrais escritos por Jelinek, Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften, de 1979, traduzida e publicada no Brasil como O que aconteceu após Nora deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das Sociedades (2023), incita a imaginação sobre o que teria acontecido após a cena final da peça A Casa de Bonecas de Henrik Ibsen (1976), quando sua protagonista, Nora, deixa o marido, os filhos e a vida que tinha com eles. Além disso, Pilares da Sociedade, outra peça do dramaturgo norueguês (IBSEN, 2008) é retomada aqui por Jelinek. Nesse caso, porém, a referência ou o jogo intertextual não é construído a partir de uma sugestão para o enredo, mas da recuperação de uma personagem e de um motivo, respectivamente: o avarento Cônsul Bernick (que muda de nome e se chama agora de Weygang) e a especulação imobiliária na construção das sociedades capitalistas - e as tramoias que, por baixo dos panos, ditam seu curso. No diálogo com essas duas obras, o texto de Jelinek nos apresenta Nora na busca por um emprego em uma fábrica e por tornar-se sujeito - do leitor ou espectador é esperado entender que, na condição de esposa e dona de casa em que se encontrava no drama de Ibsen, ela seria objeto das figuras masculinas que a cercavam, sem liberdade para tomar as próprias decisões, pois sua vida era condicionada pelos desejos e necessidades do marido e dos filhos. No desenrolar da peça, contudo, as decisões de Nora a reconduzem constantemente à mesma posição de objeto. Ao envolver- se num conflito amoroso com o Cônsul Weygang, Nora cai não apenas em um relacionamento que em muitos aspectos se assemelha àquele que tinha com seu marido na peça de Ibsen, mas também num conflito econômico em torno de um terreno, do qual, de um lado, encontra-se o grupo econômico de Weygang e, de outro, seu ex-marido, Torvad Helmer, principal acionista de um banco que tem a posse da propriedade. Sob a pena pessimista de Jelinek, esse conflito leva a personagem principal a casar-se novamente com o ex-marido e a voltar para a casa da qual inicialmente fugira, após ser descartada por Weygang e usada na negociação pela propriedade.
Ao contrário de textos teatrais posteriores, em Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften (JELINEK, 2018) encontramos várias das estruturas tradicionais que compõem um drama. Além das convenções formais como as didascálicas com indicações cênicas e descrições do estado do espírito dos personagens, há aqui “fábula”, personagens e desenvolvimento de uma ação a partir de diálogos. Entretanto, na leitura da peça percebemos que as estruturas dramáticas são tensionadas pelos procedimentos propostos pela autora em Ich schlage sozusagen mit der Axt drein, dentro dos quais se destacam aqueles de filiação brechtiana. Em mais de uma ocasião, por exemplo, Nora ou outros personagens fazem alusão à peça de Ibsen, instaurando um jogo metateatral que suspende o que seria a ilusão de realidade do teatro dramático, ao trazer para o primeiro plano a intertextualidade da peça. Um desses casos se dá na sexta cena da peça, quando o seguinte diálogo transcorre entre Nora e Weygang: “Weygang: Como você se chama? Nora: Nora. Weygang: Como a protagonista da peça de Ibsen? Nora: Que culto... E o senhor é tão forte!”28 (JELINEK, 2023: 73). Ao longo da peça, Weygang ainda se refere à amada por meio das mesmas palavras que Helmer no drama ibseniano utilizava em alemão, “meine kleine, übermütige Hummel”; nas traduções para o português, minha pequena cotovia. Em tais ocorrências, fica em evidência o fato de Nora ser uma personagem e de Weygang conhecê-la a partir do drama a que pertence. Porém, não se trata aqui de uma figura que escapa do mundo das personagens e que, pelo poder da fantasia, se transporta para a realidade, mas de uma figura que salta de um texto para o outro - lembrando-nos explicitamente do estatuto ficcional das diferentes peças em jogo.
Operando ainda no domínio do distanciamento, na mesma cena, são várias as ocasiões em que Nora “sai de si mesma” e descreve o que ocorre no palco ou seu estado de espírito, como no trecho seguinte: “Nora: Essas palavras me causam uma fraqueza aguda em todo meu corpo. Sem querer, preciso me curvar para trás até minha cabeça quase tocar o chão. (Faz isso) [...] Dou uma estrelinha e, para terminar, faço um espacate. Levanto, gemendo, cansada, mas feliz”29 (JELINEK, 2023: 75). Aqui, como em Brecht, a interrupção desloca a personagem do ato encenado produzindo uma fratura entre o tempo representado e o tempo real, o que é favorecido pela não identificação entre ator e personagem - algo retomado por Jelinek em Sinn Egal. Körper zwecklos (1997). Na cena nove, com Nora e Weygang, ocorre o mesmo tipo de interrupção por meio da citação do gesto em cena: “Nora: Ooooh, meio chateada, bato o pé no chão e giro em torno do meu eixo longitudinal, olhando para você aqui de baixo, toda travessa, para mostrar que não estou levando isso tão a sério quanto parece.”30 (JELINEK, 2018: 97). A quantidade expressiva de interrupções nessas duas cenas em particular não é ocasional. Em ambas, Jelinek nos coloca diante de uma dinâmica de sedução estereotípica, na qual não há qualquer atmosfera sensual, mas um espírito paródico, em que - ao modo brechtiano - os gestos e falas são mais citados do que encenados. Para isso, contribuem as interrupções, mas também que as personagens falem aquilo que se quer ocultar em um discurso. Assim, se uma dinâmica de flerte implica, numa acepção mais comum, o ocultamento parcial das intenções e expectativas dos envolvidos; em Jelinek, esse mistério é esgarçado quando, por exemplo, Nora declara na sétima cena: “Quem é o senhor? [...] Sinto que não está interessado apenas no meu corpo, mas também na minha alma. Percebi na hora. Faz tempo que ninguém se interessa pela minha alma” (JELINEK, 2023: 71), e: “Eis que de repente está me olhando com uma mente um tanto poluída, mas eu não rejeito esse olhar como de costume, ele me arrepia. Algo novo tomou conta de mim”31 (JELINEK, 2023: 72). Em ambos os exemplos é possível ver como o recurso da interrupção/citação do que ocorre em cena é uma estratégia para denunciar um certo discurso ou prática. Aqui, o que está em questão é uma denúncia do modo como uma “típica linguagem do amor”, verbal e gestual, opera em nossas relações interpessoais de modo prescrito, como roteiro cliché a ser cumprido. A mesma observação é válida para a nona cena, em que se destaca a maneira infantil como Nora age. Tanto o exagero, como recurso humorístico, quanto o processo de citar os gestos em cena contribuem para que toda a interação entre mulher e amante nos pareça ridícula. Por meio do ridículo, tais recursos provocam o público (ou o leitor) a ver os próprios gestos sob outro olhar e, assim, a reconhecer neles práticas sociais cristalizadas que repetimos sem muita reflexão.
Ainda no que diz respeito ao entrelaçamento do princípio de distanciamento, à busca por desmascarar discursos e práticas sociais, é preciso destacar que em seu ensaio Ich schlage sozusagen mit der Axt drein Jelinek já mencionava Weygang. Na ocasião, ela constatava: “Ele não só fala a língua capitalista, como a denuncia ao mesmo tempo, dizendo aquilo que a língua de seus iguais, de outro modo, apenas sugere e evita dizer. Ele não fala como alguém já falou antes32” (JELINEK, 1984: 14). Conforme a sua afirmação, o discurso a ser “desmascarado” através de Weygang seria aquele do empresariado capitalista. Apesar disso, observamos também que durante a peça ele se alterna com e se imiscui ao que seria um discurso patriarcal sobre as mulheres. Isso é especialmente evidente nas ocasiões em que Weygang e o ministro falam de Nora, valendo-se de um vocabulário utilizado para trocas comerciais:
Cônsul Weygang: No que diz respeito às mulheres, partindo do pressuposto de que são um produto perecível, para mim o que importa é qualidade, e não quantidade. / Ministro: Mas, considerando o quão rápido o senhor troca ou renova seu estoque, a conta fecha numa quantidade considerável33 (JELINEK, 2023: 85).
Na mesma cena, Weygang fala de Nora como seu bem mais valioso (kostbarster Besitz), uma expressão comum cujas aparições no discurso amoroso não são incomuns. À luz das falas anteriores que utilizam explicitamente uma linguagem de negócios para se referir às mulheres, a noção de bem, aqui, reforça a ideia de que as mulheres são percebidas na cultura como posses dos homens e, consequentemente, que essa percepção está de alguma forma amarrada aos usos e expressões linguísticas cotidianas. Na sequência, os homens continuam a falar de Nora como uma espécie de mercadoria cujos atributos lhe tornariam um bom investimento: “Weygang: Ela não tem apenas um rosto e um corpo, mas também uma educação geral considerável. Ministro: O senhor é um ótimo homem de negócios, Fritz, não dá para negar. Sabe como vender”34 (JELINEK, 2023: 87- 88). A isso ainda se soma o modo como, posteriormente, descobrimos que Nora é tratada tal qual um produto, que é oferecido a Torvald Helmer em troca do terreno da fábrica. Tendo isso em vista, os jogos linguísticos que enquadram Nora como um bem funcionam à maneira da ironia trágica de Sófocles, anunciando no duplo sentido das palavras aquilo que se confirmará no plano da fábula. A proposição contida nesse arremate parece ser evidente: às custas da opressão feminina, alguns poucos podem lucrar, uma vez que os interesses do capital sobrepor-se-iam ao valor atribuído à vida humana.
Quanto à técnica de montagem à qual nos reportamos na seção anterior, nota-se que em diferentes momentos os personagens citam passagens de outros textos; às vezes incluindo sua autoria, outras vezes não. O resultado dessa colagem de vozes produz uma quebra do princípio dialógico do drama; os personagens não parecem conversar, mas falar sozinhos, como se se desligassem da situação em que se encontram. Desse modo, Jelinek provoca outra forma de distanciamento que se traduz para nós na sensação de que algo está fora do lugar, como podemos ver a partir desse excerto retirado da cena quinze:
Nora: Quando ouço vocês falarem desse jeito me dá vontade de pôr fogo em tudo./ Operária: Você está louca, Nora./ Operária: E deformada, Nora./ Operária: E desumana, Nora./ Operária (Balançando a cabeça): Botar fogo naquilo que um dia nos libertou: a máquina./ Nora: No momento em que uma mulher opera uma máquina, ela instantaneamente perde sua feminilidade, castra o homem e, ao humilhá-lo, rouba-lhe o pão da boca. Mussolini. / Operária: Mas aqui não existe fascismo!35 (JELINEK, 2023: 153).
Evidentemente, a inserção de uma fala de Mussolini não é aleatória; enquanto leitores/espectadores, nós conseguimos depreender o fio condutor da conversa. No entanto, à semelhança do recurso discutido anteriormente, aqui conversa-se como ninguém já conversou antes, no sentido de que as personagens não só falam o que muitas vezes é silenciado, como também forjam associações inesperadas - que, no entanto, revelam algo sobre as bases ocultas daquilo que muitas vezes é dito também fora do palco. Anteriormente na cena, as operárias conversavam sobre a perda de seus empregos na fábrica (já que ela fora vendida) e a condição das mulheres na sociedade, mas as falas de Nora na ocasião vinham “assustando” as colegas em virtude do “radicalismo” de suas posições, algo que a tornaria espécie de uma deformidade dentro do grupo, tornando-a mais “feia”36. Esse radicalismo de Nora, é preciso sublinhar, nada mais era do que sustentar que ela seria “dona de si mesma” e não apenas parte de um coletivo de mulheres. Dentro desse contexto, a citação de Mussolini funciona como uma espécie de metacomentário ao que ocorre em cena, que nos obriga a perceber as ideias conservadoras sustentadas pelas demais personagens femininas. Todavia, o modo súbito como ocorre a alusão produz inevitavelmente uma espécie de dissonância: a fala é, afinal, estranha a Nora e foi injetada em cena como um material estranho. Nesse sentido, o estranhamento advém tanto de um aspecto desconjuntado da conversa quanto da constatação de que aquilo que é expresso por Nora não parece corresponder ao que nós supomos que ela pense. Isto é, aquilo que a personagem fala não se coloca como expressão de uma consciência individual. Nisso, vemos a realização do que seriam os personagens “fantoches” de Jelinek, portadores de sentido em vez de serem sujeitos psicológicos agentes: Nora fala compreensivelmente e expõe ideias; contudo, na medida em que aquilo que declara se apresenta como algo estranho a ela mesma, a personagem não se deixa apreender como um Eu coerente.
Se em Was geschach, nachdem Nora... podemos ver tais discursos na fala de personagens distintos - criando determinados efeitos de humor e distanciamento, por exemplo -, muito diferente é o modo como opera a colagem de diferentes vozes nas peças posteriores, com a emergência das superfícies textuais. Poderíamos ainda dizer a esse respeito que a estrutura das superfícies textuais acaba implodindo os recursos que Jelinek lista no primeiro ensaio, Ich schlage sozusagen mit der Axt drein, e a estrutura dramática do texto como um todo, embora resquícios de ambos sejam conservados. Essas comparações são nossa base para pensar a obra analisada na sequência, a peça Schatten (Eurydike sagt) - “Sombra (Eurídice diz)” - de 2013.
Assim como no caso da obra discutida acima, a peça Schatten parte de um material anterior a ela, o mito de Orfeu e Eurídice. Nessa versão moderna da história, que busca dar voz à perspectiva de Eurídice, o mitológico filho de Apolo é um cantor teen de música pop e Eurídice, escritora e sua esposa. O texto pode ser lido como um monólogo interno de Eurídice, que se inicia com sua entrada no reino dos mortos, após ter sido mordida por uma serpente. Contrariando nossas expectativas, Eurídice se percebe confortável nesse novo lugar: transformada em sombra, ela se vê livre de sua “condição de objeto” e da presença opressora de seu marido. Sem a imposição de ter que ser alguém e sem querer ser alguém37, não ter corpo nem voz é, paradoxalmente, uma forma de liberdade - uma vez que na terra ela já se sentia calada e refém dos desejos, necessidades e imposições que ter um corpo lhe rendia. Ao mesmo tempo, esse novo estado é perturbado pela tentativa de Orfeu - a quem se refere como “o cantor” - de resgatá-la do mundo dos mortos. Eurídice assiste, então, aquilo que tinha para si como condição permanente, a morte, escapar-lhe. Na subida para o mundo dos vivos, enquanto seu corpo tenta alcançar Orfeu, andando por conta própria, Eurídice se vê retornar à outra forma de não existência, à sombra do marido.
O texto da peça não possui qualquer indicação cênica ou intervenção de outros enunciadores, tudo o que sabemos nos é transmitido pela fala de Eurídice, que alterna entre o passado, a rememoração de sua vida pregressa com Orfeu, e o presente, no mundo das sombras. Essa alternância não é demarcada com clareza, pois aquilo que “factualmente” acontece ou aconteceu está costurado às diversas divagações que compõem o texto. Em certos momentos, é difícil distinguir o estatuto daquilo que é colocado, se se trata de algo que ocorre ou de algo que é pensado. Também contribui para isso a referência a outras vozes no texto, sobre a qual falaremos mais adiante. Primeiramente, é preciso considerar como os diferentes “tempos” do texto se entrelaçam. Nos primeiros momentos da peça, antes de Orfeu descer ao submundo, o passado irrompe com frequência no discurso, sempre de um modo súbito, como uma espécie de “flash” de um episódio, o que desencadeia uma nova digressão. Exemplo disso é o regresso ao momento da morte de Eurídice, introduzido num momento em que ela reflete sobre como não precisaria mais de suas roupas:
Sei lá. Agora eu mesma virei uma espécie de vestido, debaixo do qual está escorrendo alguma coisa. Eu sou aquilo que viveu apenas por um instante, deixando menos rastro do que a cobra que me deu o bote, de que me serve agora minha pele de roupa, minha ninhada de roupa, meu reduto nunca bem-sucedido? [...] Como gostaria de voltar para a beira da floresta, onde tudo aconteceu. Minhas amigas já se foram. São, elas próprias, chamadas de emergência, choram, cavoucam em busca de seus celulares, querendo um salvamento que não existe. De novo, choradeira em todo lugar, por toda parte. E eu, que sou tão sensível a ruído, ah, agora está bom, quase não ouço mais. Então já estou nas águas terminais, não, não nas águas termais, está pensando o quê. Não existe mais nada lá38 (BOHUNOVSKY; BACHMANN, 2020: 266-267).
O presente, de modo similar, surge em outras frases que indicam o que Eurídice sente ou faz no momento de enunciação, indicações quase sempre vagas. Logo no início do texto, nós a vemos afirmar que “emissários” vêm discutir com ela seu futuro no mundo dos mortos39, encontro sobre o qual não recebemos mais detalhes. No decorrer do texto, a imprecisão permanece como uma marca das referências ao que “ocorre” em “cena” e normalmente é acompanhada por frases intercaladas de afirmação e dúvida - como se a enunciadora ponderasse a veracidade daquilo que constata. O futuro é igualmente endereçado com alguma frequência, por meio de previsões que Eurídice faz acerca de como Orfeu irá se comportar diante de sua morte - das quais, cabe notar, a maioria se confirma. Além disso, observamos que, em alguns casos, Eurídice utiliza o tempo presente para descrever situações cuja localização temporal desconhecemos, isto é, que não sabemos se foram vistas por ela (como um evento único, ocorrido no passado), se são cenários imaginados ou se trata de algo que ela vê no presente do submundo. Nesse entrelaçamento de diferentes temporalidades, podemos perceber a quebra total com a prescrição de “unidade de tempo” presente no modelo dramático aristotélico-hegeliano. O modo como essas idas e vindas aparecerão no palco depende das escolhas feitas pelos encenadores. Evidentemente, toda montagem, seja ela de um texto clássico ou contemporâneo, pode tomar inúmeras liberdades diante do texto. Destacamos aqui que diferentemente de peças tradicionais, a própria feitura do texto jelinekiano provoca e obriga os encenadores a explicitarem essas liberdades. Conforme tentamos esclarecer na seção anterior, os textos de Jelinek inscrevem em si mesmos uma nova concepção de fazer teatro que leva em conta, sempre, a atuação dos diferentes agentes evolvidos na produção teatral. A própria Eurídice, a quem atribuímos a enunciação do texto não é necessariamente uma personagem, mas antes uma instância enunciativa que poderia, portanto, ser distribuída entre diferentes atores em cena40.
É preciso ainda considerar que a própria definição de “cena” nesse caso parece instável, motivo pelo qual usamos aspas algumas vezes. Não há ação dramática stricto sensu, nós podemos apenas distinguir o que pode estar ocorrendo dentro e fora da consciência de Eurídice. Ainda assim, como a própria “personagem” declara, sendo uma sombra ela não pode ser propriamente dotada de uma consciência (Bewusstsein), mas apenas existir numa inconsciência (Unbewußte) já que não tem mais certeza sobre o que ou quem é41. Diante de tal comentário, somos levados novamente a questionar a fatualidade daquilo que nos é contado. Afinal, a assunção de que ela opera a partir de um “estado inconsciente” parece induzir que não devemos levar sua palavra (e a palavra de ninguém, se estendêssemos a provocação) ao pé da letra. Além disso, o comentário ainda deixa transparecer o modo como o inconsciente coletivo emerge em suas palavras e nos diferentes jogos da linguagem que o texto traz, fazendo com que o discurso de Eurídice diga mais do que o pretendido. O que extraímos desses momentos de dúvida é a total desestabilização da noção de ação dramática.
Feitas tais ressalvas, se ainda considerarmos que há efetivamente um “dentro” e um “fora” da consciência, notamos que as ocorrências especificamente no mundo exterior, as atitudes que Orfeu toma com relação à morte de Eurídice nos são informadas, com recorrência, por meio de uma hipótese ou de uma previsão que na sequência podem ser postas em dúvida, como no seguinte caso: “Pois é, um você tá vendo, mas não sei não, não, eu sei sim, quem é, mas não sei mesmo se é realmente verdade aquilo que o cantor canta. De qualquer forma, eu acho que por hora ele tá quietinho.”42 (JELINEK, 2013a: n.p). Diante de colocações como esta, mais uma vez se atesta como o estatuto da cena e da ação é abalado. A consequência teatral dessa desestabilização é fazer com que qualquer passagem para o palco dependa de múltiplas escolhas dos agentes criativos envolvidos. Nesse sentido, pode-se dizer que a recepção do texto é fundamentalmente determinada pelo gesto de enquadrar determinado objeto sob determinado rótulo, aqui, “peça”.
Em relação a Eurídice, narradora do monólogo, ela não é uma personagem psicologizante, mas um resultado da técnica de xilogravura que Jelinek aplica, já mencionada acima: enunciadora superficial de um discurso, que diz exatamente aquilo que pensa, mesmo quando este dizer não é socialmente aceitável. Assim, Eurídice se desnuda no ressentimento que nutre por Orfeu - com análises meticulosas do comportamento deste, sempre avaliado negativamente -, no ódio que tem por suas fãs - a quem se refere com frequência com nomes ofensivos43 - e nos hábitos fúteis (segundo ela mesma) que cultivara. No caso em particular das fãs, a radicalização desse princípio de “falar exatamente aquilo que se quer dizer” faz com que o modo como Eurídice condena o comportamento das jovens meninas soe, para uma geração contemporânea de mulheres, até mesmo antifeminista, se aproximando do “slutshaming”. No trecho abaixo, podemos observar como há uma total dessensibilização por parte da enunciadora para com as jovens, a quem se refere como portadoras de “fendas traiçoeiras” que engoliriam a qualquer um e a todos, de uma só vez:
[...] mas o que o cantor vai fazer com aquelas que ficam tirando para fora suas genitálias e abrindo bem na cara dele, e a genitália feminina está simplesmente por toda parte, mesmo na sua fase mais precoce, podemos olhar para onde quisermos, está simplesmente em toda parte, as meninas com suas fendas traiçoeiras, são como montes de areia, bancos de areia, buracos de areia movediça, engolem qualquer um, não devolvem ninguém, estão prontas para alguém que não seja ninguém ou para ninguém que seja alguém, não importa quem seja, se for um grupo, melhor ainda, muitos de uma única vez!44 (BOHUNOVSKY; BACHMANN, 2013: n.p).
Esse excerto mostra efetivamente um modo de falar que não seria ouvido fora dos palcos, uma forma que ninguém ousaria falar. No entanto, como não há conversas, não há diálogo, o efeito que recebemos é diferente. A forma do monólogo interno, mesmo escrito numa linguagem artificial, faz com que tenhamos a sensação de acesso direto ao que pensa Eurídice, tudo aquilo que dela sabemos chega então como uma espécie de confidência, ou melhor, como se nunca tivesse sido dito, mas apenas pensado. Ainda que em diferentes montagens isso possa ser levado ao público de diferentes formas, tomando apenas a estrutura do texto, observamos que a ausência do espaço compartilhado, que todo diálogo pressupõe, faz com que aquilo que Eurídice diz não pareça de modo algum fora do lugar. Pelo contrário, tendo em vista o que constatamos em nossa própria intimidade, é de se esperar que alguém tenha opiniões impronunciáveis sobre os outros.
É preciso ainda sublinhar que Eurídice é concebida como um sujeito relativamente coerente. Nós conseguimos entender seus motivos, e suas ideias não nos parecem despropositadas - o que não significa, claro, que tudo sobre ela nos seja explicado. Acontece o oposto, muito não nos é informado: por exemplo, a razão por ela estar com o marido, como eles se conheceram e como era sua vida antes de conhecê-lo. Aquilo que Eurídice fala aparece como expressão de uma consciência; porém, não se trata de um retorno a uma ingenuidade cartesiana. O texto tenta emular o modo como uma pessoa qualquer articula uma fala em “tempo real”, incluindo as diversas repetições a que tendemos e o modo como coisas ditas anteriormente são ponderadas e desditas. De modo algum Eurídice parece ter controle total sobre o que pensa. O discurso da enunciadora é projetado como um fluxo de palavras e raciocínios que engatam uns nos outros de maneira espontânea, fazendo com que, sem querer, aquilo que se queria deixar escondido escape. As coisas “impensáveis” que Eurídice diz podem assim ser interpretadas como deslizes de uma consciência que não consegue se conter e deixa os mais cruéis pensamentos serem expostos.
Além disso, podemos ver como sua fala é perpassada por ecos que vêm de diferentes lugares - o que seria a tessitura polifônica das superfícies textuais de Jelinek. O próprio ódio que sente pelas fãs pode ser visto como irrupção de um discurso conservador sobre o corpo feminino e sobre estereótipos negativos do comportamento juvenil. É preciso destacar que, ao contrário do que observamos na peça anterior, não parece haver aqui uma denúncia clara contra tal discurso que julgaríamos conservador. O motivo para essa omissão pode estar no fato de que não se espera que haja uma condenação nem a aceitação completa das posições e pensamentos de Eurídice por parte dos leitores/espectadores. A “peça” não visa prover juízos fechados e definitivos sobre determinados comportamentos sociais, mas sim incitar o público a pensar a respeito de tais comportamentos, provocando-o constantemente por meio das declarações incisivas da enunciadora.
Quanto à polifonia, nas ocasiões em que Eurídice reporta aquilo que falariam sobre ela, observamos como se delineia uma espécie de confusão de vozes, que se traduz para os leitores em uma sensação de desnorteamento. A causa da perturbação é o modo como tais momentos surgem como ocorrências presentes, simultâneas à enunciação: não sendo precedidos pela descrição de uma cena que os introduza, demoramos algumas linhas para entender a alternância das falas. Além da maneira abrupta como tais inserções são feitas, contribuem para a “confusão” o ritmo frenético do texto e a quase completa eliminação de paragrafação. O aspecto confuso não é acidental, parece derivar da já mencionada tentativa de emular o modo como as falas cotidianas se constroem espontaneamente.
4 Considerações finais
Conforme já foi destacado por diversos teóricos, a emergência das Textflächen na obra de Elfriede Jelinek rompe com a estrutura dramática anteriormente adotada pela autora, de modo que parece ser possível dividir a produção teatral jelinekiana em duas fases - sem esquecer que qualquer categorização não exclui a possibilidade de se haver outras. As preocupações temáticas e políticas da autora são similares em ambas as peças aqui estudadas, especialmente no que tange ao lugar social reservado à mulher. O foco em um número limitado de assuntos gerais, abordados repetidamente (economia, patriarcado, lugar da mulher, nazismo, corpo, moda, música, esporte e mídia), parece contribuir para uma certa unidade temática na obra da autora, ainda que os recursos formais - como a técnica de montagem, os meios de distanciamento, a Holzschnittechnik e a incorporação de material estranho - assumam configurações muito diferentes. Sem poder chegar a conclusões definitivas com os casos aqui comparados, tudo indica que não podemos falar de uma ruptura completa, uma vez que resquícios das diferentes técnicas definidas em Ich schlage sozusagen mit der Axt drein ainda subsistem no texto de Schatten (Eurydike sagt). Entretanto, tal constatação não é suficiente para traçar um julgamento acerca da totalidade da obra da autora, podendo apenas contribuir pontualmente com o debate.
Acrescentamos que outros estudos podem e devem ser feitos no Brasil para analisar com maior aprofundamento as vinculações da obra jelinekiana com o Regietheater e a possibilidade de utilização do termo “pós-dramático” para qualificá-la. Infelizmente, são poucas as obras da autora traduzidas no país e pequena a sua recepção em nossos palcos. Nesse cenário, pesquisas como esta também têm em vista a possibilidade de suscitar o interesse por Jelinek entre os que apreciam literatura ou teatro - sejam eles leitores e espectadores especializados ou não, sejam poucos ou um grande número de pessoas.
Referências bibliográficas
- BARTHES, Roland. A morte do Autor: In: BARTHES, Roland . O Rumor da Língua Tradução: Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 57-64.
- BARTHES, Roland . Mitologias Tradução: Rita Buongermino; Pedro Souza. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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1
Universidade Federal do Paraná, Departamento de Polonês, Alemão e Letras Clássicas, Rua XV de Novembro, 1299, Curitiba, PR, 80060-000, Brasil. E-Mail: helenan.maia@gmail.com. ORCID: 0000-0002-7019-1127.
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2
Universidade Federal do Paraná, Departamento de Polonês, Alemão e Letras Clássicas, Rua XV de Novembro, 1299, Curitiba, PR, 80060-000, Brasil. E-Mail: ruth.bohunovsky@gmail.com. ORCID: 0000-0003-4412-2678.
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3
O presente artigo foi realizado com apoio do CNPq (bolsa de Produtividade em Pesquisa PQ2, processo 303794/2023-2) no âmbito do projeto de pesquisa "A tradução para o teatro como dramaturgismo: Elfriede Jelinek e outros dramaturgos austríacos em versão brasileira"
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No original em alemão: “Oft sind ihre Texte gut. Kurz danach auch schlecht (was ich mir aber nicht eingestehe, denn es ist ja Elfriede Jelinek), sie fesseln mich, manchmal langweilen sie mich, dann lache ich, kurz nachdem ich eigentlich schon nichts mehr verstanden hatte”.Esta, assim como as demais traduções presentes neste artigo, foram elaboradas pelas autoras deste texto e têm caráter provisório. Nos casos em que já havia uma tradução publicada, optamos pelo texto publicado, devidamente listado nas referências.
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“Herausgefordert von der Schreibkunst erblühen die ästhetischen Möglichkeiten zeitgenössischer Regiekunst. Denn die dramatisch vielstimmigen Fließtextflächen sind offen für alles, da sie sich jedweder Zuschreibung enthalten: keine Absätze, Szenen, Dialoge, Figurensubjekte, Regieanweisungen, Handlungsfragmente. Stattdessen ein manisch zwischen Banalität und Existenziellem mäanderndes, lausbübinnenhaft Sinn und Unsinn verdrehendes, immer wieder abschweifendes Drauflosdenken, das durch Wiederholungen, Kabarettpointen und Comedygags rhythmisiert wird.”
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“Gerade weil sie eine Autorin mit viel Abstand zum Theaterbetrieb ist und zum Beispiel nie selbst Regie geführt hat, fordert sie mit ihren zunehmend offeneren Texten ein starkes Regietheater heraus und braucht es ihrerseits wiederum als Mit- und Gegenspieler.”
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7
Szczepaniak (2013) lista a preferência da autora pelos seguintes temas: sua experiência pessoal e biográfica; política e sociedade; história e memória (principalmente, da Áustria, mas também da Europa, de maneira mais ampla); feminismo e crítica ao patriarcado; crítica da linguagem e reflexão sobre os movimentos do pensamento; estética teatral; produção e recepção da arte.
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8
Nossa opção pelo termo “línguas” aqui foi motivada pelo registro coloquial que Jelinek usa nessa citação, no entanto, cabe notar que a autora parece se referir, aqui, à noção de discursos sociais, como discutido mais adiante neste artigo.
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“Meine Arbeitsweise funktioniert, wenn es mir gelingt, die Sprache zum Sprechen zu bringen, durch Montage von Sätzen, die verschiedene Sprachen miteinander konfrontiert, aber auch durch Veränderung von Worten oder Buchstaben, die im Idiom verhüllte Aussagen entlarvt. Auf der Bühne interessieren mich nicht Charaktere mit dem Nimbus von "Persönlichkeit", sondern Prototypen. Mein Verfahren bleibt sichtbar und durchsichtig. Weder Autor noch Personen sind Geheimnisträger. Die Figuren auf der Bühne stehen für etwas, sie sind für mich Werkzeuge, mit denen ich meine Aussage machen will, denn ich glaube an das Theater als ein politisches Medium.”
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A noção de plana, aqui, segue a concepção das personagens de ficção utilizada por Antônio Candido (2000).
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Como discutiremos na seção seguinte, podemos pensar que a falta de coerência entre uma citação e outra e o sentimento de inconclusão e ausência de sentido que disso emerge nos possibilitam ver nessa técnica de montagem uma subversão da noção de intersubjetividade do drama moderno.
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“Der Sinn läuft überhaupt durch den Schauspieler hindurch, der Schauspieler ist ein Filter, und durch ihn läuft Sand durch Sand, ein anderer Sand, durch den Sand, Wasser durch Wasser.” (JELINEK, 1997: n.p)
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“Die Herausforderung besteht vielmehr darin, daß sie, wie fleischfarbene Schinken, die nicht nur nach Fleisch aussehen, sondern Fleisch auch sind, aufgehängt in der Räucherkammer, im Schacht einer anderen Dimension, die nicht Wirklichkeit, aber auch nicht Theater ist, uns etwas bestellen sollen, eine Nachricht die Anfänger, eine Botschaft die Fortgeschrittenen. Und dann merken sie, daß sie selber ihre eigene Botschaft sind.” (JELINEK, 1997, n.p)
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“Die Schauspieler SIND das Sprechen, sie sprechen nicht.” (JELINEK, 1996: n.p)
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“Er muß meinen Anspruch vernehmen und gleichzeitig muß er ihn übersehen können, um einer zu werden, der selber Ansprüche stellt” (JELINEK, 1997: n.p)
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“In meinen Schriftzügen festgelegt, bis er hervorkommt, mit diesen Zügen entgleist, in den Wald kracht, und als ein ganz anderer wieder zum Vorschein gebracht wird. Ich halte mein Licht, um ihm nachzuscheinen, aber jetzt ist er endgültig weg, egal ob ich es will oder nicht” (JELINEK, 1997: n.p)
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“Er kann nicht so einfach ein andrer werden, aber er kann ein anderer sein! Allerdings wiederum nicht ganz der, den er darstellen soll, sondern einer, den er erschafft, den er aus dem Bergenden seines Körpers hervorzieht, nichts Halbes und auf keinen Fall, bitte!, schon gar nicht was Ganzes” (JELINEK 1997: n.p).
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“Ich weiß ja schon jetzt, zu Beginn, nicht, noch nicht, was ich zu den von allseits (wirklich allseits, bloß noch nicht von allen) abgelehnten Textflächen nun sagen könnte, denn beim Sagen kämpfe ich mit Hemmnissen, die herangeschleppt wurden, damit ich drüberfalle” (JELINEK, 2013b: n.p)
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A tradução literal do título poderia ser algo como “Vara, cajado e Stangl”. As duas primeiras palavras, no alemão, referem-se a um trecho do Salmo 23 e a terceira é o sobrenome do comandante austríaco do campo de concentração de Treblinka, Franz Stangl. No entanto, Stab também faz referência ao jornalista de direita Richard Nimmerrichter, que escrevia sob o pseudônimo de Staberl no Kronen Zeitung, uma coluna que ficou famosa pelos comentários inflamatórios, racistas e antissemitas.
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“Bitte, sehen Sie hier eine flache Landschaft, in die versenkt Jauchengruben, Ziegelteiche, Erdhügel ruhen, eine Ebene, die gleichmütig von sich selbst fortstrebt! Sie ist leer und doch wieder nicht, das sehen Sie doch, oder?”
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“Eine alte Nichtreisende bindet sich also ein letztes Mal - gleich kommt der Zug der Zeit, und wir müssen hier weg! - ihre Textflächen […] an die Füße wie Schneeschuhe, denn Skier wären ihr schon zu rasant, gefährliche Werkzeuge, obwohl andre sich damit in ihren Ahnungslosigkeitsabgrund (Robert Walser) stürzen, als hätten sie nicht wenigstens auf ihr Material aufzupassen” (JELINEK, 2013b: n.p).
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“Geht da was in die Tiefe bei dieser Fläche?, meines Wissens nicht, ich habe vorhin die Lawine ausgelöst, aber in die Tiefe bin ich nicht gegangen, eher habe ich oben was draufgehäufelt, aber wer braucht schon ein Wissen, geschweige denn meins?, wozu diese Tiefe? Wer braucht die? Vielleicht um mich selbst mit diesen armseligen Schneeschuhen, die den Schnee grade nur ein bißchen aufwühlen, sich aber irgendwie doch halten können, aufgrund des Aufwühlens, ich meine des Aufgewühltseins, dort einzupflanzen?” (JELINEK, 2013b: n.p).
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“Die Tiefe ist nicht für mich geschaffen, ich fürchte mich sogar bem Schwimmen davor, deswegen tu ich es ja nicht” (JELINEK, 2013b: n.p).
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“Ich gehe auch drüber, ich gehe über diesen Text drüber, ich verstehe ihn nicht, aber sein Schöpfungsprinzip ist folgendes, das aber mir leider nicht folgt, ich verrate es hier, ich verrate hier mein Gesetz, das nicht unbedingt immer und für alle Fälle, die ich schon hingelegt habe, gilt, hier aber schon: Es muss ohne Unterbrechung, ohne Absetzen, ohne Absetzung, ohne Absätze (na ja, nicht ganz) immer weitergeschrieben werden” (JELINEK, 2013b: n.p).
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“[...] was muß diese Frau Worte, die ihr gar nicht zustehen, dermaßen verdrehen, wo sie nicht einmal ihre ursprüngliche Bedeutung richtig kennt?, sie soll sie erst mal kennenlernen, dann würde sie sie nicht so malträtieren” (JELINEK, 2013b: n.p).
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“Ich aber, ich steh nur einfach so da, ich bestehe auf nichts, indem ich scheinbar auf, nein, nicht mich als Subjekt, ich bin ja keins, ich bin eine schreibende Frau, die kann ein Subjekt gar nicht sein (höhnisches Gelächter, gellender Hohn, das kennen wir schon!), meine Meinung bestehe?, vielleicht, das ist eine schöne weibliche Position, in die ich mich noch irgendwie hineinquetschen könnte, ich stehe also da und bestehe auf meine Meinung, jedoch ohne Herrschaft über meine Arbeit, denn Arbeit und Herrschaft passen zwar zusammen, aber bitte doch nicht in einer Person!”
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“Ich glaube nur, und das heißt nichts wissen. Das ist mein Schreiben, nichts wissen und auch nicht wissen, was ein andrer gesagt hat, den ich dennoch sprechen lasse” (JELINEK, 2013b: n.p).
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“Weygang: Wie heißt du?/ Nora: Nora./ Weygang: Wie die Hauptfigur des Theaterstücks von Ibsen?/ Nora: Wie Sie alles wissen… Sie sind so stark!” (JELINEK, 2018: 25).
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“Nora: Solche Worte lassen eine ziehende Schwäche in meinen ganzen Körper entstehen. Gleich muss ich mich unwillkürlich so weit zurückbiegen, dass mein Kopf beinahe den Erdboden berührt. Tut es. […] Ich schlage ein Rad und mache zum Abschluss einen Spagat. Ächzend richte ich mich wieder auf, müde, aber glücklich” (JELINEK, 2018: 26).
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“Nora: Auffordernd blicke ich zur Eingangstür und frage: Gehen wir heute nicht aus? In einer Minute bin ich angezogen. / Weygang: Nein, heute nicht. Heute muss ich mit meinem kleinen Mädchen einmal ernsthaft reden/ Nora: Ooooch, leicht beleidigt stampfe ich mit dem Fuß auf und drehe mich einmal um meine Längsachse, dich jedoch schelmisch von unter her anblickend, um zu zeigen, dass ich es nicht so ernst meine wie es aussieht. / […] Nora: Ich schlage mit meiner kleinen Faust auf den Tisch, blicke aber zwischen meinen wilden Haarlocken mit einer Mischung aus leichter Ängstlichkeit und banger Frage und süßer Gewissheit, geliebt zu werden, zu dir empor” (JELINEK, 2018: 37-38).
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“Nora: Wer sind Sie? […] Ich fühle, dass Sie nicht nur an meinen Körper, sondern auch an meiner Seele interessiert sind. Das habe ich sofort gespürt. Schon lange hat sich niemand mehr für meine Seele interessiert. […] Nora: Sie sehen mich plötzlich mit einer Spur Unsauberkeit in Ihren Gedanken an. Ich weise aber diese Blicke nicht wie sonst. Zurück, sondern erschauere unter ihnen. Etwas Neues ist an mich herangetreten” (JELINEK, 2018: 24-25).
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“Er spricht nicht nur das kapitalistische Idiom, er denunziert es zugleich, indem er ausspricht, was die Sprache seinesgleichen sonst nur mein und zu sagen vermeidet. Er spricht nicht so, wie schon einmal einer gesprochen hat” (JELINEK, 1984: 14).
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“Weygang: Was Frauen betrifft, zählt für mich, ausgehend davon, daß sie leicht verderbliche Ware darstellen, Qualität von Quantität. / Minister: Wenn man jedoch bedenkt, wie rasch Sie Ihren Bestand auszutauschen beziehungsweise zu ergänzen pflegen, kommt man beim Rechnen doch auf eine gewisse Quantität” (JELINEK, 2018: 31).
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“Weygang: Sie hat nicht nur ein Gesicht und einen Körper, sondern auch noch eine beträchtliche Allgemeinbildung/ Minister: Sie sind ein guter Geschäftsmann, Fritz, das muss man Ihnen lassen. Sie verstehen es zu verkaufen” (JELINEK, 2018: 32).
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“Nora: Wenn ich euch so zuhöre, möchte ich am liebsten alles anzünden!./ Arbeiterin: Du bist ja verrückt, Nora./ Arbeiterin: Und entstellt, Nora./ Arbeiterin: Und entmenscht, Nora./ Arbeiterin kopfschüttelnd: Anzünden, was uns erst frei gemacht hat; die Maschine!./ Nora: Wenn eine Frau Maschine bedient, verliert sie in dem Moment ihre Weiblichkeit, entmännlicht gleichzeitig den Mann und nimmt ihm, ihm demütigend, das Brot aus dem Munde. Mussolini. / Arbeiterin: Wir haben aber keinen Faschismus hier!” (JELINEK, 2018: 66-67).
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36
Embora possa parecer, à primeira vista, exagerado e/ou grotesco, o argumento de que mulheres emancipadas sejam mais “feias” que as conservadoras está longe de ser extinto, inclusive no mundo discursivo brasileiro (um exemplo da grande atualidade das provocações lançadas por Jelinek em sua peça). Lembramos, por exemplo, da declaração feita em 2018 por um político da direita brasileira de que “as mulheres da direita são mais bonitas que as da esquerda” (cf. FUCHS, 2018).
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37
“Sehr angenehmer Zustand, man kann ohne zu zögern sagen, dass man glaubt, niemand zu sein und niemand mehr werden zu wollen” (JELINEK, 2013a: n.p).
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38
“Ich weiß nicht recht. Jetzt bin ich selber eine Art Kleid, unter dem es herausrinnt. Ich bin das, was nur kurz gelebt hat, noch weniger Abdruck im Boden als die Schlange, die sich auf mich gestürzt hat, was nützt mir nun meine Kleiderhaut, meine Kleiderbrut, mein nie gelungener Hort? [...]Gerne würde ich wieder am Waldrand stehen, wo es passiert ist. Meine Freundinnen sind fort. Sind Notrufe selbst, weinen, graben nach ihren Handys, wollen eine Rettung, die es nicht gibt. Schon wieder Geheule, überall, allerorten. Wo ich doch so lärmempfindlich bin, ach, jetzt ist es gut, ich höre es kaum noch. Bin wohl schon im Keinort, aber nein, doch nicht im Kurort, wo denken Sie hin. Nichts ist mehr da” (JELINEK, 2013a: n.p).
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39
“Es kommen Abgesandte, ja, jetzt erkenne ich sie, um mit mir die künftige Einrichtung meines Lebens zu besprechen” (JELINEK, 2013a: n.p).
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40
Numa montagem no Akademietheater em Viena, em 2013, por exemplo, foram quatro atrizes “representando” Eurídice (cf. KREICHBAUM, 2013).
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41
“Wir sind nicht mehr Bewußtsein, von dem sein Träger nichts weiß, denn wir sind auch keine Träger mehr, wir tragen nicht einmal mehr unsere Kleidung, na ja, Fetzen vielleicht, das, was vom Tage übrigblieb, was vom Leben übrigblieb [...] Wenn das Unbewußte der wichtigste Charakter des Bewußten ist, dann sind wir es endlich los, dann sind wir vielleicht Unbewußte; da uns nicht bewußt ist, wer oder was wir sind, kann ich das nicht sagen.” (JELINEK, 2013a: n.p)
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“Na, einen sehen Sie ja, keine Ahnung, nein, ich habe eine Ahnung, welchen, aber ich habe keine Ahnung, ob das wirklich wahr ist, was der Sänger singt. Ich glaube, jetzt ist er ohnedies ruhig.”
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43
A maior parte das ofensas parece ligada de alguma forma ao campo do grotesco, com ênfase nas funções mais básicas do corpo, como a excretora e sexual. Eurídice as chama de mijonas (Pisserinnen) e se reporta com frequência ao desejo sexual que nutririam pelo cantor, como podemos ver no seguinte trecho: “Er zeigt sein Fleisch und hüftet den brüllenden kleinen Pisserinnen draußen was vor, irgendwo lauern die sicher auf ihn, sie verstecken sich, aber sie lauern, ich kenne sie, die geben nicht auf, nie!, die warten auf ihn, damit er ihnen wieder seinen Schwanz vor die Gesichtchen bockt, damit er seinen Schwanz für sie aufbockt, jederzeit eingriffsbereit, und jetzt tut er so, als wollte er sie wieder vollspritzen, ja, der Sänger versteht das Leid der Ungefickten, der Babymäuse, auch wenn er selber nie auch nur einen Tag ungefickt bleibt, kreisch kreisch kreisch, das können sie, es wird ihnen Kommunikation auf Augenhöhe vorgeführt, eine heilige Kommunion mit seinem Geschlecht, bis die Polizei kommt und es wieder einsperrt, so, da sind seine Hüften und sein Schwanz, sein fast nackter” (JELINEK, 2013a: n.p).
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“aber was soll der Sänger mit denen anfangen, die da vor seinem Gesicht ihr Geschlecht hervorziehen und aufklappen, und das weibliche Geschlecht ist schon in seiner frühesten Phase einfach überall, man kann schauen, wohin man will, die sind einfach überall, die Mädels mit ihren tückischen Spalten, die sind wie Sandhaufen, Sandbänke, Treibsandlöcher, nehmen jeden auf, geben niemand wieder her, sind bereit für einen, der keiner ist, oder für keinen, der einer ist, wer auch immer, am besten eine Gruppe, viele auf einmal!” (JELINEK, 2013a:n.p).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Fev 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Dec 2025
Histórico
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Recebido
12 Jan 2024 -
Aceito
29 Maio 2024