Resumo
Este artigo busca analisar as representações de lazer em dois filmes do cinema alemão da República de Weimar: Metropolis, de Fritz Lang, lançado em 1927, e Menschen am Sonntag (Gente no Domingo), de Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer, lançado em 1930. Para isso, partimos da premissa de que o cinema é um campo privilegiado de disputas simbólicas, sendo um meio de construção de representações sociais. No contexto da Alemanha no período entreguerras, marcado por tensões, disputas políticas, culturais e sociais, o lazer tornou-se um tema em disputa, tanto no cotidiano da população, quanto nas telas. A partir de uma análise fílmica, por meio de seleção de fotogramas, procuramos atingir o objetivo proposto. Ao se constituir quase como uma etnografia do cotidiano, Menschen am Sonntag se distancia de Metropolis em seus caminhos estéticos e políticos, refletindo as tensões do período.
Palavras-chave
Lazer; Cinema alemão; Política;
Metropolis
;
Menschen am Sonntag
Abstract
This article aims to analyze the representations of leisure in two films from Weimar Republic German cinema: Metropolis, directed by Fritz Lang and released in 1927, and Menschen am Sonntag (People on Sunday), directed by Robert Siodmak and Edgar G. Ulmer and released in 1930. To this end, we start from the premise that cinema is a privileged field of symbolic disputes, functioning as medium for the construction of social representations. In the context of interwar Germany ‒ marked by tensions and political, cultural, and social conflicts ‒ leisure became a contested theme, both in everyday life and on the screen. Through film analysis, focusing on selected film stills, we seek to achieve the stated objective. Functioning almost as an ethnography of everyday life, People on Sunday distances itself from Metropolis, following distinct aesthetic and political paths and reflecting the political tensions of the period.
Keywords
Leisure; German Cinema; Politics;
Metropolis
;
Menschen am Sonntag
1 Introdução
O cinema é um campo privilegiado de disputas simbólicas. As imagens e sons refletem – e influenciam – os rumos políticos de determinada sociedade. Segundo Christian Metz (2006: 28), o segredo do cinema é “injetar na realidade da imagem a realidade do movimento e, assim, atualizar o imaginário a um grau nunca antes alcançado”. Já Luiz Nazario (1999: 93), em uma linha de raciocínio semelhante, afirma ser o cinema “[o] meio mais perfeito do imaginário humano jamais criado, [...] a coisa-sem-vida mais parecida com a vida que existe”. Diante da riqueza dessa linguagem, o que não falta são possibilidades de estudos que se propõem a desvendar esse objeto e teorizar sobre a sociedade que o produz e consome.
A relação entre cinema e política é recorrente. Muitas vezes, a propaganda ou o lado político dos filmes não precisa estar explícito ou ser intencional; mesmo de forma ambígua ou implícita, esses conteúdos podem ser desvelados por meio de uma análise cuidadosa.
Além do uso político do cinema, o uso político do lazer também não é recente, nem raro, como se pode constatar em vários estudos: Nathaus (2010) aponta como os clubes sociais e de lazer, sejam eles de matiz socialista, católico ou conservador, eram organizações dedicadas a promover cultura política na República de Weimar. Cornelsen (2023) aponta que a KdF – Nationalsozialistische Gemeinschaft Kraft durch Freude (Comunidade NacionalSocialista Força pela Alegria) foi uma organização criada em 1933 para centralizar e regular as políticas de lazer, fazendo parte do projeto de controle total sobre a vida pública e social da população alemã, além de ser um meio de propaganda política do regime nazista. Por exemplos como esse, não surpreende que o lazer seja frequentemente mobilizado no cinema.
Esse contexto é particularmente evidente em um período específico da História da Alemanha, a República de Weimar (1919-1933), marcada por intensas disputas políticas, sociais e culturais. Com o fim da Primeira Guerra Mundial,com as crises decorrentes da derrota e o fim do Império, o país passava por uma fase turbulenta, que marcaria negativamente a República, proclamada por Phillip Scheidemann em 09 de novembro de 1918. O Cinema Alemão não ficou alheio a esse status quo. Diretores, produtores, partidos políticos e outros segmentos se mobilizaram e exploraram o cinema como meio para promover ideias, reforçar valores e questionar a ordem. Naquela época de grande instabilidade política e econômica, o lazer também passou a ser tema recorrente nas narrativas. Filmes como Metropolis (1927) e Menschen am Sonntag (Gente no Domingo, 1930) exemplificam essa tendência e demonstram como representações de lazer são frequentemente mobilizadas e carregam em si muitos significados, incluindo as disputas políticas, os debates e aflições de determinada sociedade.
Diante desse cenário, nossa contribuição tem por objetivo analisar as representações do lazer nos filmes Metropolis (1927), de Fritz Lang, e Menschen am Sonntag (Gente no Domingo, 1930), de Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer, no intuito de compreender como essas práticas foram empregadas na construção das narrativas fílmicas e avaliar as possíveis conexões políticas por trás dessas representações. Partimos do pressuposto de que, nos referidos filmes, possamos observar intencionalidade, posicionamento político, tensões, origens sociais e diversos outros aspectos que nos permitam avaliar o papel do lazer naquele contexto, lembrando que seus produtores estão sempre incorporados a uma realidade histórica. Portanto, considerá-los como fonte e analisá-los contribui para a compreensão das dinâmicas daquela época, revelando não apenas as aspirações e ideologias, mas também os valores, as contradições e as disputas vigentes em um tempo de crise, como o da República de Weimar.
Os filmes Metropolis (1927) e Menschen am Sonntag (Gente no Domingo, 1930), que compõem o corpus de análise do presente estudo, estão situados na segunda fase da República de Weimar, porém em momentos distintos desse recorte. Metropolis, que começou a ser produzido em 1925, surge em um contexto de relativa estabilidade, mas ainda permeado de tensões e disputas. Menschen am Sonntag (produzido em 1930) situa-se em um momento de crises, com desemprego e uma maior instabilidade política. Esses filmes, a seu modo, servem como possibilidade de análise desse período histórico complexo.
Para alcançar os objetivos do presente estudo, realizamos a análise fílmica de trechos específicos dos dois filmes, nos quais se evidenciam as representações de lazer. Consideramos os instrumentos essenciais para a análise fílmica propostos por Aumont e Marie (2004) em A análise do filme: a) os descritivos: que descrevem unidades narrativas maiores ou menores, bem como a imagem (montagem) e o som (sincronização de áudio); b) os citacionais: que focam em excertos de filme ou fotogramas; c) os documentais: que são as fontes exteriores ao filme, que registram detalhes de sua produção, por exemplo, em reportagens e entrevistas. Neste estudo, buscamos extrair dos filmes fotogramas que possuem principalmente imagens de lazer, descrevendo-as e analisando-as em diálogo com pesquisas sobre o contexto político, social e cultural, e com o próprio conjunto fílmico.
Ressaltamos, ainda, o entendimento de lazer para além da mera oposição entre tempos do trabalho e do não-trabalho, para pensá-lo em toda a sua complexidade, como categoria sociológica construída e consolidada na modernidade. Para isso, tomaremos por base Pierre Bourdieu (1996: 22) e o conceito de “habitus”, bem como Michel Foucault (2011) que percebe o tempo dentro das relações de poder, sujeito ao controle e à disciplina, e Joffre Dumazedier (2008), ao propor a distinção entre lazer e ócio.
2. Metropolis – uma Science Fiction projetada no presente da débil República
Em 1890 nascia o Diretor de Metropolis (1927), Friedrich Anton Christian Lang, ou apenas Fritz Lang. Conhecido por seu perfeccionismo, Lang viveu parte de sua vida como cineasta na Alemanha da República de Weimar e parte como exilado nos Estados Unidos. Assim, sua cinematografia pode ser dividida em dois momentos: os filmes alemães e os hollywoodianos. Durante seus anos como cineasta na Alemanha, destacamos filmes como: Der müde Tod (A Morte Cansada, 1921), Dr. Mabuse, der Spieler (Dr. Mabuse, o Jogador, 1922), Die Nibelungen (Os Nibelungos, 1924), Metropolis (1927) e M – Eine Stadt sucht einen Mörder (M, uma cidade procura um assassino, 1931; título em português: O vampiro de Düsseldorf).
Metropolis (1927), um de seus principais filmes, é um marco do cinema mudo alemão. A primeira versão do roteiro, escrito por Thea Von Harbou (1888-1954), foi publicada em uma revista ilustrada denominada Illustriertes Blatt e, posteriormente, em livro. Após essa publicação, Fritz Lang, que já havia conquistado prestígio com alguns de seus filmes, conseguiu aprovar junto a UFA – Universum Film Aktien-Gesellschaft o projeto de transformá-lo em filme. As filmagens começaram em 1925 e a exibição teve início em 1927.
O enredo de Metropolis (1927) se desenrola em uma cidade industrial futurista, fortemente dividida. Enquanto a maioria da população pena, trabalhando e habitando o subterrâneo, a classe dominante desfruta de uma vida confortável e tranquila na superfície, sendo Freder (Gustav Fröhlich), filho do poderoso administrador da cidade, Joh Fredersen (Alfred Abel), seu principal representante. Após se apaixonar por Maria (Brigitte Helm) e descobrir as condições cruéis dos trabalhadores subterrâneos, Freder se une a eles. Enquanto isso, seu pai planeja substituir Maria por um robô para incitar a violência entre os operários. Instigados pela versão robô de Maria, os habitantes do mundo inferior se rebelam, destruindo as máquinas que faziam funcionar Metrópolis. Essa revolta, porém, acaba se voltando contra os próprios trabalhadores e trabalhadoras, já que, sem as máquinas, a cidade inferior acaba inundada, pondo em risco a vida de seus filhos e filhas. O filme termina com as crianças sendo salvas por Maria e Freder Fredersen, que se apresenta a todos como o tão esperado mediador, capaz de conciliar as duas classes. Segundo o historiador Ernst Piper (2021: 43),
[n]ão é preciso muita imaginação para pensar, aqui, em Berlim. A cidade multiplicou por treze vezes sua extensão com a junção de municípios da Grande Berlim em 1920, tornandose a segunda maior cidade do mundo, depois de Los Angeles. Berlim era a maior cidade industrial da Europa,3
nas palavras do escritor e jornalista Jens Bisky (2023: 13), “um monstro desenfreado” (ein wildwuchernder Moloch). Na metrópole, ainda de acordo com Piper (2021: 43), “fábricas gigantescas com chaminés imponentes eram as catedrais da modernidade”.4
A magnitude do filme Metropolis não se restringiu às inúmeras inspirações que gerou, e também se expressa nas pesquisas sobre ele. O filme foi analisado por inúmeros pesquisadores e pesquisadoras ao longo dos anos, sob diferentes perspectivas a respeito de diferentes aspectos fílmicos. Talvez a análise mais famosa tenha sido apresentada no livro de Siegfried Kracauer, De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema Alemão (1988; título original: Von Caligari zu Hitler: Eine psychologische Geschichte des deutschen Films, 1947), em que o autor analisa vários filmes do momento anterior ao nazismo, entre eles, Metropolis (1927), e os aponta como um reflexo psicológico das tensões sociais e políticas da Alemanha durante a República de Weimar e como um prelúdio do que estava por vir na década seguinte. Outras análises também foram produzidas, algumas buscando compreender as questões estéticas e, mais comumente relacionado a isso, a arquitetura da cidade fictícia de Metropolis (LEZO 2010; Suppia 2012; Barros 2016), os Sentidos do Trabalho (MELLO et al., 2009), Gênero e Sexualidade feminina (RAMOS 2021) e Mobilização Operária e Lazer (CARVALHO, SALDANHA, 2022).
É impossível falar de Metropolis (1927) e não falar da cidade cinematográfica que impactou o cinema. A cidade futurista é simbólica, pois representa os medos e anseios da sociedade daquele momento, além de representar a divisão de classes de forma estruturada e verticalizada, onde os capitalistas, como Jon Fredersen, habitam os níveis superiores, e os trabalhadores e trabalhadoras ocupam os subsolos (BARROS 2016).
Lezo (2010), ao explorar a estética de Metropolis, também ressalta a arquitetura da cidade e o uso de luz e sombra como artifícios simbólicos para o entendimento da obra e do contexto histórico em que foi criada. A autora aponta como a verticalidade da cidade de Lang, composta de arranha-céus iluminados, representa o ideal de progresso e poder, enquanto as sombras e a escuridão dos espaços subterrâneos, onde vivem os trabalhadores, enfatizam a desumanização. Essa dualidade proposta pela iluminação e pelo ‘lugar alto’ versus ‘lugar baixo’ é um componente essencial para transmitir a tensão e a aparente crítica do filme.5
Mas não é somente pela conformação da cidade ou do espaço que se caracterizam os personagens e se constrói uma narrativa. Recursos, como o luxo ou a miséria, a presença ou ausência de tecnologias, o tipo e a disponibilidade de alimentação, as diferentes formas de lazer ou sua completa falta, as vestimentas, a iluminação, o trabalho, tudo isso faz parte dessa construção e tudo isso pode ser visto e analisado cuidadosamente em Metropolis (1927).
Portanto, por mais que o filme tenha sido objeto de muitas análises, o lazer, tão importante para a construção da narrativa, ainda foi pouco citado e analisado. Ele aparece em alguns momentos como fator importante em determinadas pesquisas. Barros (2016) pontua em algumas passagens de seu artigo como parte da humanidade em Metrópolis vivencia momentos de lazer nos jardins e nos terraços e se beneficia de uma vida lúdica e confortável. Em contraste a isso, na “cidade dos trabalhadores”, para uma massa triste, cabisbaixa e melancólica resta apenas o trabalho. Carvalho e Saldanha (2022), ao comparar A Greve (1926) e Metropolis (1927), destacam o lazer como um elemento central tanto na construção da narrativa quanto na análise política do filme, sendo que aqui buscaremos nos aprofundar nesse tema.
E, falando de lazer, é quase impossível não o relacionar ao trabalho. Nesse sentido, as pesquisas sobre o trabalho em Metropolis (1927) são essenciais. Entendemos aqui que o lazer é um fenômeno nascido na sociedade capitalista e que se relaciona com a artificialização dos tempos sociais (MELO, ALVES JUNIOR 2003). Tempo, Trabalho e Lazer são aspectos fundamentais em Metropolis e já no início do filme é destacada a importância desses temas. Os primeiros fotogramas são de uma série de máquinas e engrenagens, estabelecendo uma simbologia importante. Esses equipamentos ocupam quase todo o enquadramento, de forma monstruosa, que, em conjunto com o som, cria uma atmosfera de terror em relação às máquinas. Já o relógio, exibido com números fora de um padrão convencional, passa uma sensação de um tempo distorcido, ou até infinito, principalmente em relação ao tempo de trabalho. O relógio e a máquina antecipam como o fator tempo e trabalho são centrais para o desenvolvimento do filme, pois retornam constantemente na narrativa.
Em determinado momento, como veremos mais adiante, o protagonista, Freder, após se deparar com uma realidade até então desconhecida, troca de lugar com um trabalhador e assume o posto dele na máquina. Essa máquina, além de destacar a posição de exploração do trabalhador, é representada em formato de relógio, onde o trabalhador ‒ e posteriormente Freder, ao trocar de lugar ‒ tenta controlar os ponteiros, que consomem toda a sua energia e vitalidade.
Essa mesma máquina (Figura 1) é palco para outra simbologia. Quando o protagonista é quem está operando a máquina-relógio, ele se ajoelha, como se estivesse carregando uma cruz. Essa postura de sacrifício reforça ainda mais a construção de Freder como o “salvadorˮ, assumindo o papel de uma figura messiânica.
Após a troca de turno entre os trabalhadores, no início do filme, aparece o seguinte intertítulo “Tão profunda era a cidade dos trabalhadores sob a terra, tão alto acima dela erguia-se o bloco de edifícios, chamado ‘Clube dos Filhos’, com seus auditórios e bibliotecas, seus teatros e estádios”.6 Os herdeiros, que pertencem ao “Clube dos Filhos”, que viviam nos enormes edifícios erigidos sobre a superfície, desfrutam de espaços de cultura e lazer, como os jardins, os campos esportivos, as bibliotecas e os teatros, enquanto os trabalhadores estão confinados às profundezas insalubres da cidade.
Após o intertítulo citado acima, somos transportados para a cidade superior, em que jovens praticam esportes em uma espécie de campo esportivo (Figura 2). O local, rodeado de paredes altas e estátuas que remetem às estátuas clássicas gregas, exala uma atmosfera de grandiosidade e evoca que aquele “Clube dos Filhos” integra sucessores de um ideal de superioridade e perfeição. Nesse ambiente, os jovens desfrutam do privilégio de uma cidade dedicada ao lazer e aos esportes, cidade essa desconhecida pelos trabalhadores e trabalhadoras que vivem no subterrâneo.
Salta aos olhos a estética fascista da praça esportiva de Metropolis, com suas grandes e maciças paredes e colunas, que oprimem o ser humano em sua “pequenez”, que miram de baixo para cima as estátuas de guerreiros no topo das colunas, modelos de perfeição e beleza atlética. Nessa sequência do filme, em que se tem uma tomada em plano de conjunto exibindo os corredores, somos apresentados ao protagonista do filme, Freder, que vence a corrida (Figura 3), reforçando ainda mais sua construção como uma figura de vigor físico e pureza moral.
Após essa cena, novamente temos outro intertítulo importante para análise das representações de lazer em Metropolis. “Pais, para os quais cada rotação de uma engrenagem significava ouro, presentearam seus filhos com o milagre dos Jardins Eternos”.7 Esse intertítulo, que precede a apresentação dos jardins da cidade das elites de Metropolis, sugere que o lazer dessa pequena parte da população foi construído em cima da extração de mais valia dos trabalhadores.
Os jardins, espaços de lazer das elites, possuem uma estética romântica, que idealiza a natureza idílica e a transforma em um refúgio, perfeito e controlado. O ambiente com fontes que jorram água em abundância (Figura 4), com vegetação diversa e animais exóticos, como pavões, os ornamentos e a presença de pessoas com vestimentas e acessórios exuberantes, reforça essa sensação de paraíso. É um “Éden”, inclusive designado dessa forma em algumas traduções. Nesse cenário paradisíaco e luxuoso, o herdeiro brinca com uma jovem, jogando água e desfrutando da leveza e da beleza que esse espaço proporciona.
O contraste entre o mundo de baixo e o mundo de cima logo volta a aparecer quando a operária Maria sobe para a cidade da classe dominante com algumas crianças, justamente para a parte dos jardins. Ao vê-la, Freder coloca a mão no peito, como se fosse tomado por uma súbita paixão ou um despertar, e decide procurá-la. Ao ir para a cidade dos trabalhadores, ele se depara pela primeira vez com as fábricas e as máquinas, essas últimas assumem forma de um verdadeiro “monstro” e, ali, ele testemunha uma explosão e a consequente morte de alguns trabalhadores. Esse momento marca, no filme, uma espécie de “tomada de consciência” do predestinado, que nasceu entre as elites, mas nele reside o poder de “melhorar as coisas”. Barros (2016) e Carvalho e Saldanha (2022) ressaltam como Freder, apontado como o “coração” que vai conciliar “o cérebro” (os industriais) e “as mãos” (os trabalhadores), e Maria encarnam em si, por meio de inúmeros artifícios, uma visão conciliadora, pacifista e idealizada sobre a luta de classes.
Em pouquíssimos momentos os trabalhadores aparecem usufruindo de seu tempo livre. E em algumas dessas breves passagens podemos nos questionar sobre certo preconceito de classe ou até conservadorismo (o que não é incomum nos filmes desses anos da República de Weimar) imbuídos no filme. Freder, após se sentir profundamente impactado pela explosão das máquinas e pela consequente morte dos trabalhadores, solidariza-se com os operários e troca de lugar com um deles. Esse ato simbólico de troca, em que Freder se torna um elo entre a classe dominante e a classe trabalhadora, possibilita um desses raros momentos de lazer para um membro da classe operária. O trabalhador, no lugar do herdeiro, começa a vivenciar uma experiência de luxo e de possibilidades de prazeres, aos quais nunca teve acesso. Nesse cenário, ele se depara com um bilhete, de um local chamado Yoshiwara, possivelmente inspirado no famoso local de entretenimento de Tóquio, que era conhecido por suas apresentações artísticas e pelo entretenimento adulto. No bilhete, aparecem duas frases impressas em caixa alta: “Aquele que deseja dominar seus vícios deve seguir seus vícios. — Oscar Wildeˮ8 e “No paraíso, deve haver trompas. Dizem que lá há vinho. Pois por que então vinho e trompas? Raramente são mulher e vinho o céu para todos. — Omar Khayyamˮ.9
Ambas as citações reforçam a atmosfera de que Yoshiwara, no filme, é provavelmente um local para o qual as pessoas vão para buscar prazeres considerados “desviantes”. Nas cenas subsequentes, o trabalhador, ao receber o bilhete, começa a imaginar o local (Figura 5), repleto de jogos de azar (Figura 6), figuras sensuais, exóticas e marginalizadas. A imaginação reforça a ideia de que o lazer é para ele apenas “um sonhoˮ e o que é imaginado demonstra alguns aspectos conservadores e elitistas do filme. O lazer sonhado pelo trabalhador é diferente do lazer das elites, um é aparentemente inferior, já o outro é ‘puro’, ‘organizado’, e acontece em ambientes como jardins e campos esportivos.
Em relação aos aspectos cinematográficos, essa sequência da imaginação do trabalhador sobre o Yoshiwara busca causar no espectador uma sensação de caos e intensidade emocional. Com uma sobreposição de imagens que se alternam rapidamente, em uma espécie de experiência cinematográfica quase fantasiosa e alucinante, cria-se uma atmosfera de um lugar “fora da normaˮ. A iluminação também precisa ser destacada. Diferentemente dos Jardins e dos campos esportivos que possuíam uma iluminação clara e quase que divina, o Yoshiwara aparece por meio de sombras intensas, com uma atmosfera sedutora, misteriosa e perigosa. O close-up de figuras ‘exóticas’ e marginalizadas, como o homem negro sorrindo e a mulher com traços orientais, reforça o lugar como um local que transgride as normas culturais daquela sociedade naquele momento. O ritmo também é um fator importante. Nessa sequência, juntamente com a aparição da roleta girando rapidamente, intensifica-se um sentimento de vertigem e velocidade, que proporciona um entendimento de que aquele lazer, que o trabalhador ficou tentado a usufruir, além de degenerado, era instável e fugaz. Posteriormente, descobrimos que o trabalhador não apenas ficou tentado a conhecer o Yoshiwara, como ele realmente foi ao local.
Uma das “vilãs” do filme, a falsa Maria, ou Maria Robô, aparece no Yoshiwara logo após um intertítulo que sugere que o apocalipse está próximo. Essa Maria, criada pelo inventor e ocultista Rotwang (Rudolf Klein-Rogge) para incitar a desordem, realiza uma dança provocante, quase animalesca, que contrasta com a imagem da verdadeira Maria, pacífica e conciliadora. Em seguida, surge uma página de um livro antigo, uma Bíblia cristã, que retrata a figura da “Grande Babilôniaˮ, do Livro do Apocalipse, descrita como prostituta enviada para seduzir e enganar, representando uma ameaça moral e corruptiva.
Na sequência, homens que presenciaram a apresentação de Maria Robô no Yoshiwara começam a lutar esgrima nos Jardins Eternos, um espaço anteriormente marcado pela serenidade e pelo lazer puro. Essa cena demonstra como a Maria Robô foi projetada para incitar o caos e o descontrole, promovendo um tipo de lazer primitivo e violento, ligado a um ambiente sombrio.
O intertítulo “Os Jardins Eternos permanecem desertos... enquanto noite após noite em Yoshiwara...ˮ10 marca uma separação entre os dois tipos de lazer: o dos Jardins, associado à pureza, foi abandonado em favor dos excessos e da devassidão do Yoshiwara. Ambientar a Maria Robô nesse espaço reforça sua função de “vilãˮ, feito a “Grande Babilônia”, que possui sete cabeças e dez chifres da citação do Livro do Apocalipse (17, 3-5), em contraste com a verdadeira Maria, que buscava uma saída não revolucionária.
A construção da dicotomia entre vilã e mocinha nas duas Marias é feita predominantemente por meio da oposição entre dois tipos de lazer. A vilã Maria, construída em torno de um estereótipo de sensualidade exacerbada e com movimentos que beiram o animalesco, aparece sempre em locais de lazer “desviantesˮ, como o Yoshiwara, um espaço de excessos e transgressões (Figura 7). Ela instiga os trabalhadores a uma revolução, questionando-os diretamente sobre o sistema ao qual estão submetidos. O intertítulo “Wer schmiert die Maschinen-Gelenke mit seinem eigenen Mark?” (“Quem lubrifica as articulações das máquinas com sua própria carne?”) demonstra um pouco disso. Essa fala coloca em evidência a exploração sofrida pelos trabalhadores e seu sacrifício físico para manter as máquinas em funcionamento. É uma provocação que incita a revolta e a destruição das máquinas. Mas a narrativa revela que essa incitação ao caos é manipulada pelo cientista, que diz claramente que não é Joh Fredersen quem controla Maria, mas ele mesmo. Dessa forma os vilões do filme são Maria Robô e o cientista Rotwang, que manipulam a situação para provocar a destruição e o caos. Um detalhe que adiciona uma camada simbólica, que foi apontado por Nazario (1999), é que na casa do cientista existe a presença de uma estrela de Davi. Esse símbolo importante para o judaísmo pode refletir o contexto de preconceitos antissemitas atribuídos ao inventor e ocultista.
O diretor, Fritz Lang, foi uma figura complexa e contraditória, que gerou debates a respeito de suas aspirações políticas. Nazario (1999), por exemplo, argumenta que Metropolis é uma obra-prima nazista, sugerindo que a “boaˮ Maria (a Maria humana, não o robô) representa uma mensagem alinhada com os ideais hitleristas, enquanto a Maria robô, criada pelo cientista Rotwang e que incita os operários à revolta, simboliza o “malˮ — o bolchevismo. Essa interpretação não pode ser descartada, considerando que a Maria robô, uma criação de um “cientista malucoˮ, provoca os trabalhadores a abandonarem o caminho conciliatório, resultando em caos e destruição. Essa ruptura conduz à ruína dos trabalhadores, à ameaça contra os filhos (ou seja, a família), à destruição das instituições sociais e à insanidade coletiva. Até a representação visual do feminino reforça essa leitura: a Maria conciliadora, com maquiagem leve e expressão angelical, contrasta com a Maria robô, que promove a luta de classes, que dança sensualmente, que utiliza maquiagem pesada e que possuí um olhar demoníaco.
Se pensarmos em alguns aspectos do filme, podemos ficar realmente ‘desconfiados’ em relação a Metropolis. Nos campos esportivos e jardins, os herdeiros são representados como figuras jovens e disciplinadas, e as imagens de estátuas clássicas — uma forma de arte frequentemente mobilizada em representações modernas — auxiliam na construção da legitimidade desses herdeiros. Quando o ‘coração’, símbolo central encarnado em Freder, é um fruto da classe dominante, a metáfora atribui a ele um papel messiânico, como se o poder e a bondade viessem naturalmente a alguém nascido na elite. Essa personagem é dotada de uma suposta superioridade cultural, evidenciada por meio de seu lazer. É nesse ser jovem, saudável e disciplinado que reside o poder de melhorar as coisas e guiar as massas para um grande acordo de paz.
E por mais que seja visível a predominância de outras vertentes estéticas em Metropolis, como o Expressionismo e a Nova Objetividade, a presença de um jardim alinhada à estética romântica, e de estruturas e formas que remetem ao neoclassicismo, não deve ser ignorada, principalmente nesse contexto.
O neoclassicismo dá ênfase à ordem, à simetria e à grandiosidade. Para o regime nazista, por exemplo, ele era ideal, pois possibilitava a transmissão dos ideais de poder e perfeição. Isso é evidente em alguns filmes elaborados pela cineasta do regime, Leni Riefenstahl, na década seguinte. No filme documentário Triumph des Willens (Triunfo da Vontade, 1935), existe, por exemplo, a simetria nas formações e a ideia de unidade em torno de um líder, imagens que parecem similares a Metropolis em alguns momentos. Em Olympia (1938), o neoclassicismo é visível na celebração de corpos atléticos perfeitos, fortes e belos, fazendo alusão às estátuas gregas clássicas. Esses elementos visuais não apenas glorificavam a força física e a beleza, mas também eram usados para transmitir os ideais de pureza racial e superioridade ariana promovidos pelo regime nazista (SANTOS 2021). Já o romantismo se manifestava na ênfase à emoção, na glorificação do passado e na idealização da natureza e da beleza humana, presente em filmes como Die goldene Stadt (A Cidade Dourada) de 1942, dirigido por Veit Harlan. Portanto, é difícil acreditar em certa ‘inocência’ ou ‘neutralidade’ de Metropolis ao antecipar aspectos da estética nazista.
A imagem dos trabalhadores retratada por Fritz Lang também pode ser questionada. A movimentação em sincronia, sem expressão e sem individualidade, reforça uma visão de controle, como se cada trabalhador fosse apenas uma peça facilmente substituível. Contudo, à medida que isso muda e o proletariado assume uma postura diferente, não compactada, desafiando essa dominação, a visão vilanizada dessa massa emerge.
Há também uma teoria, reforçada pela narrativa contada pelo próprio diretor, de neutralidade política, ou crenças mais alinhadas aos ideais do SPD, embora Lang não fosse filiado ao partido. A lógica conciliatória característica da socialdemocracia daquele momento parece estar presente em várias ocasiões do filme (CARVALHO, SALDANHA 2022). Essa dúvida, porém, não recai sobre sua companheira e roteirista de Metropolis (1927), Thea Von Harbour, que, além do evidente teor nacionalista de seus roteiros, se filiou ao partido nazista em 1933.
Fato é que, por mais que haja no filme críticas ao capitalismo (algo que o partido nacional-socialista também fazia nos primeiros anos), Metropolis é um filme contrarrevolucionário, que não vislumbrava uma revolução.
3. Menchen am Sonntag – uma pausa no ritmo da metrópole
Quando se fala em lazer e entretenimento na República de Weimar, em primeira linha, costuma-se destacar o breve e aparente período “dourado” (1924-1929), no qual, segundo o historiador Ernst Piper, teria se efetivado uma relativa estabilidade política e econômica após os primeiros anos de distúrbios e de hiperinflação em 1923, período marcado também por uma “autêntica explosão em arte e cultura” (PIPER 2021: 43). Na verdade, caberia a indagação: ‘Dourado’ para quem? Já nos anos 1990, o historiador Wolfgang Benz (1997: 145-147) apresentava um olhar crítico para o paradoxo que predominava nos anos 1920, na Alemanha, entre glamour e miséria. Os chamados ‘Anos 1920 Dourados’ (Goldene Zwanziger), de fato, foram para poucos. A massa propriamente dita vivia, em sua maioria, em bairros pobres ou miseráveis nas grandes cidades como Berlim, geralmente em condições extremamente insalubres. E também aqueles que queriam desfrutar das ofertas de lazer e entretenimento dividiam-se de acordo com a camada social à qual pertenciam: magnatas, novos ricos, artistas e intelectuais, por exemplo, tinham acesso a restaurantes, teatros, cafés e locais de entretenimento noturno como, por exemplo, salões de dança, bailes de gala e cabarés de luxo; a massa, dispondo de parcos recursos, limitava-se ao consumo de literatura trivial, a idas ao cinema em busca de diversão, e também a cervejarias e bares simples, salões de dança, cabarés e teatros populares, e a áreas públicas ao ar livre, onde o acesso lhes era franqueado sem maiores custos, como parques e lagos. Dos meios de comunicação de massa da época, ao lado do cinema, o rádio foi aquele que atraiu um público amplo e difundiu muitos hits musicais, mas a leitura também foi uma atividade de lazer muito incentivada em virtude da diversidade e distribuição de jornais e revistas especializadas.
Nesse sentido, Wolfgang Benz reconhece que havia uma espécie de linha divisória entre a intelectualidade e a massa quando o assunto era lazer e entretenimento na República de Weimar:
[...] Os ‘Anos 1920 Dourados’ aconteciam nos centros de teatro, nas galerias e nos restaurantes finos, era um assunto de bailes e galas sensacionais dos novos ricos, dos locais noturnos e nos cafés artísticos da boemia. [...] A grande massa não compreendia os vanguardistas, que queriam acusar e agitar. [...] Tivera início um isolamento intelectual, que nunca pôde ser plenamente transposto [...]11
(BENZ 1997: 146).
Conforme mencionado anteriormente, juntamente com o cinema e a literatura, o rádio teve papel preponderante na oferta de lazer e entretenimento daqueles apartados das benesses sociais. Como bem ressalta Wolfgang Benz,
[a] demanda cultural de amplas massas foi aplacada pelo rádio, pelo novo cinema de entretenimento e pela literatura trivial, bem como por cabarés e locais de dança. Os sucessos e melodias da renascença operística com suas superestrelas como Richard Tauber, Martha Eggert e Jan Kiepura ajudaram a construir castelos no ar, facilitaram a fuga do cotidiano cinzento12
(1997: 146).
Sem dúvida, um dos maiores hits da época foi a canção “Wochenende und Sonnenschein” (“Fim de semana e raios de sol”), que se tornou famosa nas vozes do grupo à capela Comedian Harmonists, lançada em 1930, e que transmite bem o espírito da época quando se tratava de desfrutar de momentos de lazer e entretenimento (FRÜHBEIS, 2020): “Fim de semana e raio de sol/ e então com você sozinho no bosque,/ não preciso de mais nada para ser feliz,/ fim de semana e luz do sol. [...] Nada de carro, nada de alameda,/ e ninguém próximo a nós”.13
Assim como o rádio, o cinema também auxiliou a propagar imagens idealizadas de lazer e entretenimento na República de Weimar. Talvez o maior exemplo seja o filme Menschen am Sonntag (Gente no Domingo), lançado em 1930 e dirigido por Robert Siodmak (1890-1973) e Edgar G. Ulmer (1904-1972). Trata-se de um dos primeiros filmes independentes, realizado pela companhia Filmstudio 1929, e um precursor do neorrealismo do pós-guerra em termos estéticos. Além disso, o caráter documental de suas tomadas garantiu para a posteridade um registro de Berlim em uma atmosfera de verão no final de semana, quase 15 anos antes da destruição de grande parte da capital alemã em decorrência dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial.
O roteiro de Menschen am Sonntag foi escrito por Robert Siodmak juntamente com Billy Wilder (1906-2002), futuro ganhador do Oscar com o filme The Lost Weekend (1945), a partir de um argumento fílmico proposto por Kurt Siodmak (1902-2000), escritor e irmão do cineasta. Todos eles, incluindo Edgar G. Ulmer, emigraram para os Estados Unidos no início dos anos 1930, onde deram continuidade a suas carreiras de sucesso em Hollywood. A equipe contou também com Moriz Seeler (1896-1942) como produtor e com Eugen Schüfftan (1893-1977) como câmera e diretor de fotografia.
Basicamente, o enredo de Menschen am Sonntag, que tem por subtítulo “um filme sem atores” (ein Film ohne Schauspieler), pode ser assim resumido: cinco jovens berlinenses – Brigitte Borchert, vendedora em uma loja de discos, Christl Ehlers, que atua como figurante em filmes, a manequim Annie Schreyer, Wolfgang von Waltershausen, representante de uma empresa de produção de vinhos, e Erwin Splettstöβer, um chofer de táxi – realizam um passeio ao lago Wannsee, localizado no sudoeste da cidade de Berlim. Eles mergulham nas águas do lago, andam de pedalinho, fazem piquenique, caminham e ouvem canções de discos tocados em um gramofone, conversam e se amam, depois retornam à cidade e cada um segue seu rumo. Eles são os únicos nomeados no filme, enquanto um turbilhão de gente é captado pelas lentes de Schüfftan, seja em primeiríssimos planos, seja em planos de conjunto ou em panorâmicas.
O texto do primeiro intertítulo do filme de ficção Gente no domingo enfatiza seu caráter documental e o fato de não contar com atores profissionais: “Estas cinco pessoas estiveram aqui, pela primeira vez em suas vidas, diante de uma câmera. Hoje, elas estão de volta a seus empregos”.14 Embora o resumo do enredo possa transmitir uma impressão de um filme aparentemente banal, ele nos permite traçar uma série de conjecturas ao pensarmos sobre lazer e entretenimento na República de Weimar. Primeiramente, a própria situação de Berlim, uma metrópole com aproximadamente quatro milhões de habitantes naquela época, como capital do Reich, era um grande irradiador cultural para todo o país. Não é por acaso que inúmeros estudos historiográficos ou sociológicos sobre a República de Weimar centram seu foco em Berlim. Sem dúvida, o filme Menschen am Sonntag reafirma essa posição de destaque da grande cidade.
Salta aos olhos a influência que o filme documentário Berlin. Die Symphonie der Groβstadt (1927; Berlim. A sinfonia da grande cidade), de Walter Ruttmann (1887-1941), desempenhou no modo tanto como foram filmadas as cenas iniciais de Menschen am Sonntag nas ruas de Berlim em termos de construção de planos sequência e de enquadramento, quanto como foram montadas e sincronizadas na mesa de edição. Travellings e uso de câmeras com angulação giratória sobre tripé, além de outros recursos de enquadramento permitiram a construção de uma narrativa fílmica que apresenta, de início, cada uma das cinco personagens no sábado que antecede ao ‘tão sonhado’ domingo, no qual desfrutarão, juntas, momentos de lazer e entretenimento às margens do lago Wannsee. Desse modo, as cenas iniciais funcionam como uma espécie de prelúdio, que situa as personagens em termos sociais para o espectador e como elas combinam o passeio no domingo. O próprio ritmo agitado da cidade, com o tráfego de veículos de passeio e táxis, de ônibus, de bondes e do metrô, e de vários transeuntes, será oposto à atmosfera idílica ao ar livre, longe da agitação urbana.
Estudos do discurso nos ensinam que, para além do dito, devemos também prestar a atenção nos não ditos ou interditos. Caberia, pois, a seguinte questão: o que é representado no filme? Basicamente, o momento de lazer de quatro jovens [eram cinco, mas uma das jovens acaba não indo ao passeio], todos empregados que desempenham profissões distintas, embora o filme não se limite apenas a eles, como poderemos ver posteriormente. No enredo, há um recorte social de classe, no qual estão ausentes operários e desempregados, figuras preponderantes na paisagem de uma metrópole como Berlim, que aparecem em algumas cenas que retratam o sábado, e também em determinados momentos de lazer no domingo, mas não fazem parte do círculo dos amigos. O próprio planejamento do passeio ao Wannsee pressupõe questões de ordem socioeconômica: bilhetes de metrô ou S-Bahn (metrô de superfície) para o deslocamento, poder aquisitivo para desfrutar da oferta de entretenimento, como, por exemplo, andar de pedalinho ou de barco, ou também organizar o piquenique, ou mesmo para possuir um aparelho gramofone e discos. Portanto, o lugar social é bem definido em Menschen am Sonntag, em que o dia, livre dos afazeres do trabalho, é reservado para o descanso e a diversão, se bem que, ao final, constatemos que os jovens são, por assim dizer, ‘remediados’: sem um tostão no bolso, Erwin oferece seu relógio ao barqueiro, que o recusa, e Christl acaba lhe emprestando uma moeda de 1,0 Marco para que ele possa efetuar o pagamento do transporte.
Por sua vez, o próprio Wannsee como topônimo e espaço de locação de boa parte das cenas do filme Menschen am Sonntag merece atenção especial. Desde o início do século XX, o Wannsee tornou-se um dos locais preferidos dos berlinenses para atividades ao ar livre. Trata-se de um dos grandes lagos de Berlim, localizado no sudoeste da cidade. Em sua margem se situa uma das maiores praias de água doce da Europa. Há mais de um século, os moradores de Berlim e os turistas desfrutam de seus momentos de lazer, banhando-se em suas águas ou praticando outras atividades, como velejar ou passear de barco, ou mesmo caminhar na orla. A praia do Wannsee foi inaugurada em 1907 e possui 1.275 metros de faixa de areia, sendo que 15% da área são reservados à FKK, Freie Körper Kultur, ou seja, o movimento naturista “Cultura do Corpo Livre”, adepto da prática do nudismo (OLOEW, 2007). Heinrich Zille (1858-1929), um dos fotógrafos e ilustradores que eternizaram os tipos humanos característicos de Berlim, não ficou alheio a esse novo espaço de lazer, criado ainda no período do Império, mas que logo se tornou popular, sobretudo para moradores da capital do Reich que viviam em condições insalubres, em pequenas moradias de apenas um ou dois quartos, nos cortiços dos bairros proletários como Wedding ou Neukölln (Fig. 8). Ao contrário dos diretores e roteiristas do filme Menschen am Sonntag, Heinrich Zille sempre manifestou seu interesse principal em retratar não os estratos médios e os abastados, mas a gente simples. O artista manteve-se socialmente comprometido durante toda a sua vida e defendeu os direitos dos excluídos e explorados em sua força de trabalho, que viviam à margem, como atestam seus desenhos “Berliner Strandleben” (A vida berlinense na praia) e “Freibad Wannsee” (Banho ao ar livre no Wannsee), ambos de 1912 (CORNELSEN, 2022).
Posto isto, devemos considerar Berlim também em seu significado econômico e tecnológico na República de Weimar, tanto como capital do Reich quanto como maior cidade do país em termos populacionais. De acordo com o escritor e cineasta Eike Geisel (1993: 57),
[n]o fim dos anos vinte, Berlim não era apenas o centro administrativo da Alemanha, o seu mercado capitalista. Era também a sua maior cidade industrial. Ali se achavam cerca de 900.000 empregados e funcionários e se concentrava a duodécima parte de todo o setor industrial alemão, com aproximadamente 1,7 milhão de trabalhadores. As grandes empresas, com mais de 2 mil empregados, eram dominadas pelos gigantes da indústria elétrica e de máquinas, e imprimiam sua marca em bairros inteiros, quando não os faziam assemelhar-se, como o do Siemensstadt, ao norte, a locais de produção cercados de prédios! Lá trabalhavam mais de 50.000 operários. A companhia de eletricidade AEG formava, sozinha, o coração de Wedding. Era também ao norte, em Tegel, que se situava a gigantesca fábrica de máquinas Borsig.
Portanto, essa realidade está praticamente ausente do cerne do filme Menschen am Sonntag, uma vez que os cinco jovens retratados não são oriundos do segmento operário, atuam no comércio ou são profissionais autônomos. Podemos considerar que, em certa medida, não partilham plenamente dos mesmos gostos daqueles que, muitas vezes, desempenham um trabalho pesado e extenuante em galpões de fábricas. Além disso, as poucas cenas transmitidas no filme que retratam áreas pobres de Berlim exibem ruas sujas, com trabalhadores varrendo-as ou lavando-as com jatos de mangueira, e fazendo a coleta de lixo em carroças puxadas a tração animal (Figura 9).
Outro aspecto a ser levado em consideração ao analisarmos o filme de Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer é o próprio domingo e seu significado no universo do trabalho a partir do Império alemão, precisamente a partir do Código de Profissões, promulgado pelo Imperador Guilherme II em 01 de junho de 1891. Em seu livro Leben nach der Arbeit: Ursprünge und Perspektiven der Freizeitspädagogik (Vida depois do trabalho: origens e perspectivas da pedagogia do tempo livre), o pedagogo Hermann Giesecke (1983: 26) afirma que, originalmente,
[n]a consciência dos trabalhadores e dos funcionários tal desenvolvimento [i.e., do advento do domingo como dia de descanso e lazer para o trabalhador] significou, seguramente, um progresso, uma libertação de uma vida que deixava além do trabalho e da recreação pouco tempo para outras atividades, como, por exemplo, atividades culturais e de convívio humano.15
Todavia, Hermann Giesecke (1983: 54) aponta para uma questão que, em certa medida, se confirma na representação do lazer no filme Menschen am Sonntag: se, por um lado, o associativismo era um traço da época, por outro, muitos jovens pouco se interessavam pela vida em associação e privilegiavam compromissos escolhidos individualmente por pessoas com o mesmo pensamento e, respectivamente, de mesma faixa etária, o que tendia a uma individualização do tempo livre.
Como mencionado anteriormente, das cinco personagens, uma não participa do passeio: Annie, namorada de Erwin, que fica dormindo em seu apartamento, enquanto ele vai ao encontro de Christl, jovem que conhecera na rua, no dia anterior. Christl, que havia marcado o encontro com Erwin na estação Niklassee do S-Bahn, para de lá seguirem ao Wannsee, traz uma amiga, Brigitte. Wolfgang, amigo de Erwin, também se junta ao grupo (Figura 10).
Após entrarem na água, nadarem e se divertirem, os amigos fazem o piquenique ao som da música do gramofone, trazido por Brigitte. Entretanto, a cena é interrompida por planos sequência que apresentam outras pessoas desfrutando do domingo: os primeiros, aparentemente por suas vestes e cortes de cabelo, são jovens estudantes, que permanecem anônimos no filme, e que se divertem ao ar livre (Figura 11):
Em seguida, há cenas de uma partida de hóquei sobre a grama, que alternam entre o campo de jogo e a arquibancada, de modo que podemos pensar tanto na prática esportiva daqueles que jogam (Figura 12), quanto na prática do torcer como lazer daqueles que formam a assistência ao redor do gramado (Figura 13):
Inegavelmente, o próprio título do filme nos permite afirmar que o uso do termo alemão Menschen (pessoas, seres humanos) ao invés de Leute (pessoas, pessoal) ou Individuen (indivíduos) possui um caráter de abrangência que extrapola o próprio universo das quatro personagens enfocadas às margens do Wannsee, algo que, inclusive, parece corroborar o pensamento de Roberto DaMatta, baseado em Marcel Mauss, ao estabelecer a distinção entre indivíduo e pessoa como “duas formas de conceber o universo social” (DAMATTA 1997: 219). Enquanto o indivíduo figura como “realidade concreta, natural, inevitável, independente das ideologias ou representações coletivas e individuais” (DAMATTA 1997: 221), a pessoa seria caracterizada como “uma vertente coletiva da individualidade, uma máscara colocada em cima do indivíduo ou entidade individualizada (linhagem, clã, família, metade, clube, associação etc.) que desse modo se transforma em ser social” (DAMATTA 1997: 223).
Sendo assim, as pessoas no filme de Siodmak e Ulmer, ao desfrutarem de seus momentos de lazer e entretenimento de maneira diversa em uma metrópole como Berlim, são seres sociais marcados por distinções de classe.
Por sua vez, deduz-se que aqueles situados à margem da sociedade, mesmo sem possuir recursos para, por exemplo, estar nas arquibancadas de uma partida de um esporte considerado nobre e de origem britânica, como o hóquei sobre a grama, ou de passear de pedalinho ou de barco nas águas do Wannsee, ou de outros lagos da cidade de Berlim, como o Müggelsee, o Niklassee e o Schlachtensee, não deixam de buscar também na natureza momentos de relaxamento e diversão, como demonstra uma cena de Menschen am Sonntag na qual numerosas famílias proletárias se divertem fazendo piquenique em um grande parque da cidade (Figura 14), o que nos faz lembrar novamente dos famosos desenhos do ilustrador Heinrich Zille:
No filme, há cenas que contemplam, brevemente, em um continuum de planos sequência, também aqueles que, ao invés de buscarem diversão em parques, lagos ou piscinas públicas, ficam em casa e contemplam das janelas ou das sacadas a vida no espaço da rua, ou também aqueles que buscam os bancos de praça para se encontrar com amigos e jogar conversa fora. Entretanto, se, por assim dizer, a narrativa fílmica abre espaço para divagações que aponta para a diversidade de práticas de lazer e entretenimento na metrópole, sempre condicionadas a questões de caráter socioeconômico, após um intervalo de cerca de quatro minutos, ela retoma a cena dos quatro jovens no Wannsee, que descansam deitados na grama. Intercaladas a ela, mais uma vez, nos deparamos com tomadas das ruas vazias, de comércios fechados e vitrines não decoradas, marcando, assim, o domingo.
Todavia, o próprio poder é referenciado no filme, em uma breve cena na qual um homem, passeando pelo Tiergarten, maior parque de Berlim, originalmente projetado como parque de caça para os reis da Prússia, contempla uma das estátuas de figuras históricas que o adornam. Em intensa montagem, que nos faz lembrar do cineasta soviético Sergei Eisenstein e da famosa cena da “Escadaria de Odessa” em seu filme Bronenosets Potyomkin (1925; Encouraçado Potemkin), planos detalhe de estátuas de celebridades e de leões de pedra, tomadas em contra-plongée, são seguidas por uma tomada de transição em efeito fadein e fade-out da Siegessäule, a Coluna da Vitória, com quase 70 metros de altura, cuja construção foi concluída em 1873 para celebrar as vitórias militares prussianas nas guerras contra a Áustria (1866) e a França (1870), que culminaram com a fundação da Alemanha como Estado-nação unificado em janeiro de 1871 (Figura 15).
Tomada da Siegessäule, com a deusa romana Viktoria em seu topo e um mirante ao redor de seu pedestal
Não obstante o fato de essas tomadas reforçarem a presença simbólica e física do militarismo prussiano e alemão no filme, rodado no final da década de 1920 em pleno período republicano, elas também evidenciam o potencial turístico daqueles que visitam o Tiergarten e podem contemplar os monumentos, ou mesmo subir os quase 300 degraus de escada para alcançar o topo da Siegessäule e contemplar, lá de cima, a vastidão do parque e as construções da cidade a perder de vista. Em sequência, voltando ao Wannsee, não poderia faltar também uma tomada da praia de água doce, com seus banhistas nas areias (Figura 16):
Enfim, Gente no domingo apresenta um leque de possibilidades de lazer e divertimento, de acordo com o nível social e o poder aquisitivo das pessoas residentes em uma metrópole como Berlim, de um passeio pelas áreas verdes da cidade, como o Grünewald ou o Tiergarten, ou às margens dos canais do rio Spree, que a corta, ou dos lagos, como o fazem Brigitte, Christl, Erwin e Wolfgang. No final da tarde do domingo ensolarado, os quatro amigos voltam para casa, mas Erwin e Wolfgang já fazem planos para o próximo domingo: a ida a uma partida de futebol, sem a companhia das jovens. Os últimos intertítulos do filme marcam, por fim, a transição do domingo para a segunda-feira, quando as pessoas retornam, apressadas, para as repartições, as fábricas, os comércios e as escolas: “e então na segunda-feira” (und dann am Montag) “de novo trabalho” (wieder Arbeit), “de novo cotidiano” (wieder Alltag), “nova semana” (wieder Woche), “4” (4) “Milhões” (Millionen) “aguardam” (warten) “pelo” (auf) “próximo” (den nächsten) “domingo” (Sonntag).
4. Considerações finais
Para este estudo, partimos da premissa que o cinema alemão, durante a República de Weimar, foi um espaço de disputa, na qual as representações de lazer e entretenimento são fundamentais para compreensão dos filmes. Por meio da análise de Metropolis e Menschen am Sonntag, intentamos compreender como essas representações foram constituídas e quais as possíveis conexões por trás delas. Embora tenhamos optado por não trabalhar, a priori, com categorias específicas em termos comparativos, valendo-nos, entretanto, de instrumentos descritivos, citacionais e documentais, conforme propostos por Aumont e Marie (2004), constatamos que, em ambos os filmes, o substrato social que os permeia evidencia certa semelhança ao representar uma estrutura de classes, em que o desfrute ou a falta de acesso a momentos de lazer e entretenimento se evidenciam. Além disso, questões de ordem econômica e política, implicadas em tal estrutura, em maior ou menor grau, encontraram representação em ambos os filmes, não obstante as distinções existentes entre eles. Evidenciam-se, pois, nas representações fílmicas traços do “habitus” (BOURDIEU 1996) em sua prática determinada socialmente, bem como das relações de poder (FOUCAULT 2011), decorrentes da “biopolítica”.
Em termos de espacialização, não deixamos de perceber o papel fundamental de Berlim para a concepção dos dois filmes, mesmo que possamos apenas especular seus traços na futurista Metropolis de Fritz Lang, com sua estrutura arquitetônica fundada em uma cisão de classes sociais, em que a juventude da superfície desfruta de um ‘eterno domingo’, enquanto os confinados do subterrâneo se extenuam no trabalho, ou também observar os interditos na ‘ficção documental’ de Siodmak e Ulmer ao representar momentos de lazer e entretenimento em certo domingo, sem integrar operários e desempregados em tal paisagem dominical. Nesse sentido, corroboramos a visão de Jens Bisky (2023: 16-17) ao considerar que, por seu significado, falar da realidade de Berlim é, ao mesmo tempo, falar da história da Alemanha e dos problemas de uma metrópole, não só no período da República de Weimar.
Em Metropolis, conforme constatamos, o lazer aparece como um privilégio de classe. Na realidade cindida da metrópole futurista, os jovens herdeiros desfrutam de festas, jardins, esportes e momentos de ociosidade na superfície, enquanto os trabalhadores, em seu subterrâneo, são privados dessas práticas. A própria estratificação social é, arquitetonicamente, verticalizada e piramidal, em que a minoria privilegiada está, literalmente, acima da maioria subjugada e explorada, cuja força de trabalho é garantia para que a vida na superfície possa existir em tal estrutura. Essa diferença, explicitada desde o princípio, em um primeiro momento indica ser uma crítica social, porém no conjunto fílmico acaba por assumir um tom moralista, de resignação. Ao invés de inquietar, as representações diferentes de lazer são usadas para marcar as distinções entre os sujeitos e hierarquizá-los. Os privilégios burgueses aparecem naturalizados, conformadores de uma suposta superioridade moral. A solução conciliadora, no fim, reforça o efeito apassivador e contrarrevolucionário, indicando a necessidade de manutenção da ordem desigual e a possibilidade de harmonia entre as classes (desde que cada uma se limite ao seu papel ‘natural’).
Já em Menschen am Sonntag o efeito é o contrário. Ao retratar a banalidade de um fim de semana pequeno-burguês, onde nada extraordinário acontece e a harmonia é rompida apenas por conflitos tolos, como uma discussão entre namorados pela posição da aba do chapéu, ou um disco quebrado, tratados em toda sua insignificância, o filme provoca uma inquietação no espectador. O tema principal parece ser justamente o vazio e a imobilidade do cotidiano, a partir de um determinado recorte de classe em que operários e desempregados estão ausentes. As cenas de lazer coletivo e a exibição de rostos anônimos em atividades corriqueiras reforçam a ideia de uma experiência comum, compartilhada. Nenhuma solução é indicada. No fim, a volta ao trabalho de funcionários e profissionais autônomos, com a chegada da segunda-feira, indica o caráter cíclico e repetitivo do dia a dia. Trata-se, aliás, de um filme aqui-e-agora, cujas personagens foram desempenhadas por atores e atrizes amadores, que estiveram diante das câmeras pela primeira vez, reforçando o pretenso caráter ‘documental’ que Siodmak e Ulmer pretendiam produzir, diferindo, pois, da imaginária e distópica Metropolis idealizada por Lang.
Se, em Metropolis, a relação entre trabalho (dos explorados) e não-trabalho (dos exploradores) é passível de crítica, não obstante o tom apaziguador e conservador de seu final, em Menschen am Sonntag tal relação está ausente. Em momento algum do filme de Siodmak e Ulmer as cinco personagens se questionam sobre sua posição social ou sobre questões que diriam respeito a um momento tão crítico em termos sociais, políticos e ideológicos. Cabe ressaltar que, em 1930, ano de lançamento do filme, a Alemanha possuía quase 3,1 milhões de desempregados. Entretanto, o ‘não dito’ acaba por evidenciar que algo subjacente sustenta tal viés de representação do cotidiano.
Ao se constituir quase como uma etnografia do cotidiano, Menschen am Sonntag se distancia de Metropolis em seus caminhos estéticos e políticos, deixando entrever as tensões do período. Na cidade futurista de Metropolis, o lazer aparece marcado por uma ideia conservadora e moralizante, para a benesse de privilegiados segundo a lógica exploratória do não-trabalho, ou, nos termos de Dumazedier (2008), da ociosidade. Já em Menschen am Sonntag, o lazer carrega traços de monotonia e, tal qual o mito de Sísifo, a eterna repetição tem o poder de despertar no espectador a necessidade de ruptura e transformação.
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3
Todas as traduções do Alemão, salvo outra indicação, são de nossa autoria. No original: “Es gehört nicht viel Phantasie dazu, hier an Berlin zu denken. Die Stadt hatte durch die Schaffung der Einheitsgemeinde Groß-Berlin 1920 ihre Fläche verdreizehnfacht und war nun flächenmäßig nach Los Angeles die zweitgrößte Stadt der Welt. Berlin war Europas größte Industriestadt, [...]”.
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4
No original, “Riesige Fabriken mit weit aufragen den Schornsteinen waren die Kathedralen der Moderne”.
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5
O espaço “estratificado” para representar uma disputa social e política entre grupos e classes é um elemento frequentemente utilizado no cinema. Em Snowpiercer (2013), o diretor Bong Joon-ho explora a divisão espacial de um trem para representar a luta de classes, porém, o espaço é dividido de forma horizontal: as classes dominantes ocupam os vagões da frente, enquanto a classe trabalhadora é confinada aos vagões traseiros. Mais recentemente, o filme O Poço (2019) também traz uma estratificação, dessa vez verticalizada, assim como em Metropolis. Nesse filme, a estrutura prisional é vertical e a comida é enviada de cima para baixo, onde os primeiros níveis se alimentam à vontade, enquanto os níveis inferiores vão ficando sem nada.
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6
No original: “So tief die Stadt der Arbeiter unter der Erde lag, so hoch über ihr türmte sich der Häuserblock, der ‘Klub der Söhne’ hiess, mit seinen Hörsälen und Bibliotheken, seinen Theatern und Stadions”.
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7
No original: “Väter, für die jede Umdrehung eines Maschinenrades Gold bedeutete, hatten ihren Söhnen das Wunder der Ewigen Gärten geschenkt”.
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8
No original: “WER SEINE LASTER BEHERRSCHEN WILL MUSS SEINEN LASTEREN NACHGEHEN. — OSCAR WILDE”.
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9
No original: “IM PARADIES SOLLEN HÖRNER SEIN. MAN SAGT, ES GEBE DORT WEIN. WARUM DENN WEIN UND HÖRNER? WERDEN SELTEN WEIB UND WEIN DER HIMMELSCHLERN ALLEN. — OMAR KHAYYAM”.
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10
No original: “Die Ewigen Gärten liegen verwaist... doch Nacht um Nacht im Yoshiwara...”.
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11
No original: “[...] Die ‘goldenen zwanziger Jahre’ fanden in den Theaterzentren, Galerien und feinen Restaurants statt, waren eine Angelegenheit sensationeller Bälle und Galas der Neureichen, der Nachtlokale und Künstler-Cafés der Bohème. […] Die groβe Masse verstand die Avantgardisten nicht, die anklagen, aufrütteln wollten. […] Eine intellektuelle Isolierung hatte begonnen, die nie völlig überbrückt werden konnte. […]”.
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12
No original: “Den Kulturbedarf der breiten Massen befriedigten das Radio, der neue Unterhaltungsfilm, die Trivialliteratur sowie Revuen und Tanzlokale. Die Schlager und Melodien der Opperetten-Renaissance mit ihren Superstars Richard Tauber, Martha Eggert und Jan Kiepura halfen Luftschlösser bauen, erleichterten die Flucht aus dem grauen Alltag”.
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13
No original: “Wochenend und Sonnenschein/ und dann mit dir im Wald allein,/ weiter brauch ich nichts zum Glücklichsein,/ Wochenend und Sonnenschein. […] Kein Auto, keine Chausee/ und niemand in uns 'rer Näh'”.
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14
No original: “Diese fünf Leute standen hier zum ersten Mal in ihrem Leben vor einer Kamera. Heute gehen sie wieder ihrem Berufen nach”.
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15
No original: “Im Bewußtsein der Arbeiter und Angestellten war diese Entwicklung sicherlich zunächst ein Fortschritt, eine Befreiung aus einem Leben, das neben Arbeit und Rekreation wenig Zeit für andere, zum Beispiel kulturelle und gesellige menschliche Tätigkeiten ließ”.
Declaração de Disponibilidade de Dados
Todos os dados apresentados neste estudo foram publicados no próprio artigo.
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- LANG, Fritz. Die Nibelungen [Os Nibelungos]. Alemanha: UFA, 1924. Filme (288 min)
- LANG, Fritz. Dr. Mabuse, der Spieler [Dr. Mabuse, o Jogador]. Alemanha: UFA, 1922. Filme (270 min).
- LANG, Fritz. M – Eine Stadt sucht einen Mörder [M – O Vampiro de Düsseldorf]. Alemanha: NeroFilm AG, 1931. Filme (117 min).
- LANG, Fritz. Metropolis Alemanha: UFA, 1927. Filme (148 min).
- RIEFENSTAHL, Leni. Olympia [Olímpia]. Alemanha: Olympia-Film GmbH, 1938. Filme (226 min, dividido em duas partes: Fest der Völker e Fest der Schönheit).
- RIEFENSTAHL, Leni. Triumph des Willens [Triunfo da Vontade]. Alemanha: Universum Film AG (UFA), 1935. Filme (114 min).
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Editor
Juliana Perez
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
06 Jul 2025 -
Aceito
10 Jul 2025

















Fonte: Lang (1927: 47’09”)
Fonte: Lang (1927: 7’12”)
Fonte: Lang (1927: 7’23”)
Fonte: Lang (1927: 9’15”)
Fonte: Lang (1927: 37’26”)
Fonte: Lang (1927: 37’40”)
Fonte: Lang (1927: 92’42”)
Fonte: Siodmak; Ulmer (1930: 19’29’’)
Fonte: Siodmak, Ulmer (1930: 7’16’’)
Fonte: Siodmak, Ulmer (1930: 34’13’’)
Fonte: Siodmak, Ulmer (1930: 36’30’’)
Fonte: Siodmak, Ulmer (1930: 37’15’’)
Fonte: Siodmak, Ulmer (1930: 37’18’’)
Fonte: Siodmak. Ulmer (1930: 37’47’’)
Fonte: Siodmak, Ulmer (1930: 42’55’)
Fonte: Siodmak, Ulmer (1930: 43’13’’)