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Modernidade e indeterminação em “O lobo da estepe”

Modernity and indeterminacy in “Steppenwolf”

Resumo

Dada a posição excêntrica de Hermann Hesse dentro da literatura de língua alemã no século XX, quase como um “outsider” retrógrado, o objetivo do presente artigo é tentar situar O lobo da estepe (1927) nas discussões sobre a “modernidade literária”. Para esse fim, serão realizadas considerações que demonstram como o livro representa um sujeito no contexto do mundo moderno dos anos 1920 e como o romance adota uma estrutura multiperspectiva que reflete os novos modos de representação que começaram a ser explorados na forma literária moderna. Essa estrutura será analisada com base nas categorias narratológicas propostas por Genette (1995), apontando as três diferentes perspectivas sobre o protagonista Harry Haller presentes no livro: a do “Prefácio do editor”, “As Anotações de Harry Haller” e o “Tratado do lobo da estepe”. A partir da análise, discutir-se-á a possibilidade de entender os acontecimentos narrados nas “Anotações” como frutos da imaginação ou como depoimento autobiográfico do protagonista. No primeiro caso, o livro se encaixaria na categoria do realismo, no segundo, na literatura fantástica. Por fim, serão comparadas as diversas edições do livro - que apresentam diferenças significativas - de modo a evidenciar como a estrutura narrativa pode favorecer a classificação do romance como fantástico.

Palavras-chave:
O lobo da estepe; modernidade; ficcional; factual; fantástico

Abstract

Given Hermann Hesse's eccentric position within German-language literature of the 20th century, almost as a retrograde “outsider”, the purpose of this article is try to situate Steppenwolf (1927) in the discussions about “literary modernity”. To this end, considerations will be made that demonstrate how the book represents a subject in the context of the modern world of the 1920s and how the novel adopts a multiperspectivity structure that reflects the new modes of representation that began to be explored in modern literary form. This structure will be analyzed based on the narratological categories proposed by Genette (1995), pointing out the three different perspectives on the protagonist Harry Haller present in the book: “Editor's Preface”, “Notes by Harry Haller” and the “Treatise on the Steppenwolf”. From the analysis, it will be discussed the possibility of understanding the events narrated in the “Notes” as fruits of the imagination or as the protagonist's autobiographical testimony. In the first case, the book falls into the category of realism, in the second, it belongs to fantastic literature. Finally, the different editions of the book - which have significant differences - will be compared in order to show how the first edition can favor the classification of the novel as fantastic.

Keywords:
Steppenwolf; modernity; fictional; factual; fantastic

1 “O lobo da estepe: um romance sobre a Modernidade

Hermann Hesse foi laureado com o prêmio Nobel de literatura em 1946, e seus livros estão entre os mais vendidos e mais traduzidos da literatura de língua alemã do século XX (Licht 200526 LICHT, Hendrik. Hermann Hesses Steppenwolf intermedial. Universität Kassel. Germanistik, Trabalho de conclusão de curso, 2005.https://www.yumpu.com/de/document/read/4818936/hermann-hesses-steppenwolf-intermedial. (10/12/2019).
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: 7). Mas sua consagração com o mais importante prêmio da categoria e sucesso de vendas não são o suficiente para certificar seu lugar no cânone da literatura do século XX, pois sua obra parece carecer de traços modernos. Boa parte da história literária, afirma Schärf (200431 SCHÄRF, Christian. Hermann Hesse und die literarische Moderne. In: Hermann Hesse und die literarische Moderne. Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2004, 87-100.: 93), negligencia seus livros alegando que Hesse representa uma posição marginal e retrógrada na literatura moderna, voltada para um (neo-)romantismo. Um bom exemplo das vozes críticas sobre a tendência neorromântica do autor encontra-se em Beutin et al. (19893 BEUTIN, Wolfgang; EHLERT, Klaus; EMMERICH, Wolfgang (orgs.). Geschichte der deutschen Literatur. Von den Anfängen bis zur Gegenwart. 3. ed. Stuttgart, Metzler, 1989.: 368):

Die Lösungsangebote, die Hesse in seinen Romanen macht: romantischer Antikapitalismus, Wiederbelebung der klassisch-bürgerlichen Kultur gegen die Moderne, Wiedergewinnung der verlorenen Identität durch Verinnerlichung, Kontemplation, Bewußtseins veränderung und -erweiterung, Aufhebung der Persönlichkeitsspaltung durch Ausgleich zwischen Sinnlichkeit und Geistigkeit im Menschen usw. erweisen sich als untaugliche Mittel, die eingetretene Entfremdung wirksam aufzuheben, da die wirklichen Ursachen davon gänzlich unberührt bleiben.

O autor, de fato, não parecia ter a ambição de ser “moderno” e tampouco participava das ações programáticas das vanguardas contemporâneas, como os expressionistas. O que Hesse escrevia, ele mesmo explicava, eram, sobretudo, “Seelenbiographien” (apud Licht 200526 LICHT, Hendrik. Hermann Hesses Steppenwolf intermedial. Universität Kassel. Germanistik, Trabalho de conclusão de curso, 2005.https://www.yumpu.com/de/document/read/4818936/hermann-hesses-steppenwolf-intermedial. (10/12/2019).
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: 25). Essa classificação do autor, contudo, pode ser repensada quando se trata do romance O lobo da estepe (Der Steppenwolf) de 1927, no qual Hesse apresenta, diferente de suas obras anteriores, uma narrativa situada no contexto da cidade moderna e estruturada de forma mais complexa. Neste livro, nota Forster (20129 FORSTER, Gabrielle da Silva. “O Lobo da Estepe: uma escritura selvagem”. Revista Criação & Crítica, v. 9, 111-127, 2012.https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v5i9p111-127. (12/04/2020).
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: 111), ocorre um efeito de estranhamento que não é provocado pela trama em si, mas pelo seu arranjo estrutural que revela caminhos incomuns ao potencializar o embate entre visões de mundo. Este embate é figurado na forma de três diferentes perspectivas, as quais possuem o mesmo objetivo: promover um olhar abrangente sobre a vida de Harry Haller. Assim afirma Forster (20129 FORSTER, Gabrielle da Silva. “O Lobo da Estepe: uma escritura selvagem”. Revista Criação & Crítica, v. 9, 111-127, 2012.https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v5i9p111-127. (12/04/2020).
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: 112):

[...] sua construção formal [d’O lobo da estepe] não introduz uma única visão fechada na perspectiva de um narrador centralizante, mas abre espaço para o diálogo e para o confronto procedente deste, ao dividir a obra em três discursos que, independentes, se entrelaçam, lançando luz sobre o todo.

O livro conta a história de um indivíduo em crise, Harry Haller, e seu período de permanência, de nove a dez meses, em uma pensão localizada em um grande centro urbano. Sua crise deve-se ao conflito primordial que acontece em sua alma, entre o homem com traços eruditos e seu lado impulsivo - este último faz com que Harry se autodenomine metaforicamente de “lobo da estepe”. Trata-se de uma cisão do sujeito que alude, não por acaso, às duas almas do Fausto de Goethe (201312 GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia. Primeira parte. Tradução de Jenny Klabin Segall; apresentação, comentários e notas de Marcus Vinicius Mazzari. 5. ed. São Paulo, Editora 34, 2013.: 119), o protagonista emblemático da literatura moderna. O conflito pelo qual Harry passa revela-se tão intenso a ponto dele desejar e considerar fortemente o suicídio. A voz desesperada e melancólica deste personagem, contudo, não é revelada ao leitor de modo imediato quando este abre o livro, mas apresentada e intermediada primeiramente pelo prefácio de um “editor” fictício, intitulado “Prefácio do Editor”, o qual diferentemente de prefácios comuns não funciona “como elemento paratextual, mas é artefato ficcional constitutivo da estrutura da obra”, como informa Foster (20129 FORSTER, Gabrielle da Silva. “O Lobo da Estepe: uma escritura selvagem”. Revista Criação & Crítica, v. 9, 111-127, 2012.https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v5i9p111-127. (12/04/2020).
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: 112).

O livro poderia ser separado, de forma inicial, em três partes. Na primeira, o narrador do “Prefácio” introduz o protagonista Harry mediante as percepções que têm sobre ele. Depois desta introdução, o leitor conhece a própria voz do protagonista nas “Anotações de Harry Haller”, que conta suas experiências e reflexões. Inserido na narração de Harry, está um pequeno livro impresso e de autoria anônima intitulado “Tratado do lobo da estepe”, entregue a Harry por um desconhecido. Além disso, as “Anotações” contêm também dois poemas compostos pelo próprio Harry. A estrutura, portanto, pode ser descrita como perspectivada mediante três textos de três vozes, sendo que a voz de Harry se desdobra em uma voz narrativa e outra lírica.

Quando foi lançado pela primeira vez, o romance obteve uma certa rejeição pelo público de Hesse, uma recepção bem diferente daquela que aconteceria anos mais tarde, partir da década de 60, quando o livro se tornaria um grande sucesso entre a comunidade jovem e os simpatizantes de movimentos da contra-cultura, sobretudo nos EUA, segundo informa Swales (200934 SWALES, Martin. “Der Steppenwolf”. In: CORNILS, Ingo (org.). A Companion to the Works of Hermann Hesse. Rochester, New York, Camden House, 2009, 171-185.: 184). Mas em 1927, ele foi taxado como imoral e recebeu censuras e desaprovações, as quais Hesse relata em uma carta de 1932 (apud Michels 197228 MICHELS, Volker. Materialien zu Hermann Hesses Steppenwolf. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1972.: 146): “Eu recebi mais de 100 cartas sobre O lobo da estepe, nas quais os leitores dizem querer se distanciar de mim porque eles não podem suportar esse ‘lixo revirado’ e esse ‘retrato da lascívia.’”. A severidade com a qual se atacou o livro deve-se, em parte, à trajetória anterior neorromântica e tradicional de seu autor, e também às novidades que o romance traz e não eram comuns às obras prévias de Hesse, como por exemplo, a representação de um ambiente urbano, moderno e decadente como cenário constitutivo que na evolução da trama não é mais rechaçado, mas abraçado pelo protagonista.

Swales (200934 SWALES, Martin. “Der Steppenwolf”. In: CORNILS, Ingo (org.). A Companion to the Works of Hermann Hesse. Rochester, New York, Camden House, 2009, 171-185.: 181) explica que o fato de Hesse ter sido criado em um ambiente pietista fez com que ele, desde o início de sua carreira, se aproximasse de uma forte tendência intimista e neorromântica, além de tê-lo incentivado a se interessar por temáticas místicas e assuntos relacionados ao mundo psíquico do indivíduo. O tipo de escrita que Hesse escolheu, como ele afirmou em uma de suas declarações (apud Licht, 200526 LICHT, Hendrik. Hermann Hesses Steppenwolf intermedial. Universität Kassel. Germanistik, Trabalho de conclusão de curso, 2005.https://www.yumpu.com/de/document/read/4818936/hermann-hesses-steppenwolf-intermedial. (10/12/2019).
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: 52), se concentra em histórias individuais, mais especificamente de uma figura mítica em seus relacionamentos com o mundo e com ela mesma. Desse modo, o autor manteve-se próximo de temas essenciais da tradição literária alemã do século XIX, como o Bildungsroman (‘romance de formação’) e narrativas centradas no desenvolvimento pessoal. Estas tendências moldaram seus livros, cujos enredos exploram os conflitos interiores das personagens principais, um padrão que vemos em alguns de seus maiores sucessos anteriores a’O lobo da estepe, como Demian (1919) e Sidarta (1922).

Tanto Demian quanto Sidarta possuem uma trama voltada para personagens jovens em conflito consigo mesmos e em suas trajetórias individuais de aprendizagem. Dhority (19737 DHORITY, Lynn. “Who wrote the Tractat vom Steppenwolf?”. German Life and Letters, v. 27, n. 1, 59-66, 1973.: 62) explica a diferença fundamental entre estes dois romances anteriores de Hesse e O lobo da estepe:

The context of the hero’s relationship to the world has now expanded beyond the very personal and subjective relationship between Sinclair and Demian and Frau Eva in Demian, yet it does not dissolve into the remote, cosmic transcendence of Siddhartha. Hesse has given Steppenwolf a measure of objective reality which his previous works did not possess.

Diferentemente de seus predecessores, Harry mantém um elo tão intenso com seu mundo externo contemporâneo, com a diegese de O lobo da estepe , a ponto deste interferir diretamente na sua crise individual. Neste ponto, a conexão com o mundo exterior é imprescindível no desenvolvimento da subjetividade do indivíduo e o influencia profundamente; sua atitude no início das “Anotações” é de repúdio (Hesse 201317 HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Tradução de Ivo Barroso. 38. ed. Rio de Janeiro, Record, 2013.: 41):

Não consigo permanecer por muito tempo num teatro ou num cinema. Mal posso ler um jornal, raramente leio um livro moderno. Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar [...].

No entanto, inicia-se uma mudança em Harry quando ele encontra com a personagem de Hermínia, uma representante da “nova mulher” transgressora dos anos 20, e por meio da qual Harry conhece Maria, com quem tem um caso, e Pablo, um saxofonista. Eles serão seus guias para as experiências alucinógenas e fantásticas que ele tem no “teatro mágico”, local para onde Hermínia e Pablo o levam para concluir sua trajetória de aprendizagem. Este espaço, afirma Landgren (201324 LANDGREN, Gustav. “Prolegomena zur Konzeptionalisierung unzuverlässigen Erzählens im Werk Hermann Hesses mit Schwerpunkt auf dem Steppenwolf”. Orbis Litterarum, v. 68, n. 4, 312-339, 2013.: 318), se assemelha a uma sala de imagem expressionista, onde o tempo e a realidade estão suspensos, e cuja função é apresentar a Harry suas múltiplas personalidades. Com eles, Harry percorre um caminho no qual procura superar sua crise, entregando-se ao mundo das diversões modernas da cultura de massa pelo qual ele, anteriormente, tinha aversão. Assim, sob a influência dos novos amigos, Harry aprende a ouvir jazz e a dançar Foxtrott, e começa a aceitar essas novas tendências da cultura e seu lado “lobo”, confirmando o que Singh (200832 SINGH, Sikander. Endlich besiegte Zeit. Hermann Hesses Roman Der Steppenwolf (1927). In: LUSERKE-JAQUI, Mathias (org.). Deutschsprachige Romane der klassischen Moderne. Berlin, New York, de Gruyter, 2008, 238–262.: 256) diz sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade moderna que ocorre na trama: “O lobo da estepe tematiza tanto o anonimato da grande cidade, como também as implicações sociais e psico-individuais dessa experiência para o sujeito”.

Por meio da narração de Harry Haller em suas “Anotações”, o leitor pode sentir o impacto na forma de isolamento e confusão que uma metrópole moderna causa no narrador-personagem. Diante deste cenário, não parece ser uma casualidade que o título original da narrativa de Harry, “Anotações” (‘Aufzeichnungen’), ecoe o livro de Rilke, Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge (Os cadernos de Malte Laurids Brigge), de 1910, considerado um dos primeiros romances modernos em língua alemã. Em ambos, o narrador apresenta, em uma forma de diário, suas impressões, experiências e reflexões sobre o espaço urbano moderno. Trata-se de representações da realidade das primeiras décadas do século XX, um espaço onde o narrador está inserido e sofre seu impacto.

Tanto Malte - o personagem do livro de Rilke - como Harry, ou ainda outros protagonistas da literatura moderna, vivem sob as condições sócio-políticas e culturais que são resultado de um processo de modernização social de longo prazo da cultura ocidental que não avançou linearmente, mas em impulsos conflitivos e acompanhados por crises, com informa Lohmeier (200727 LOHMEIER, Anke-Marie. „Was ist eigentlich modern?“. Internationales Archiv für Sozialgeschichte der deutschen Literatur, 2007, 1-15.: 5). As maiores cesuras desse processo geralmente são situadas nos anos 1800 e 1900, com crescente intensificação dos fenômenos. Trata-se de transformações econômicas, demográficas, técnicas, políticas e científicas baseadas na racionalização - segundo Max Weber -, e na diferenciação funcional das sociedades - segundo Niklas Luhmann. Estas tranformações vão se manifestar por meio da industrialização, capitalização, secularização, urbanização, burocratização, individuali zação e mobilidade social e cultural (Lohmeier 200727 LOHMEIER, Anke-Marie. „Was ist eigentlich modern?“. Internationales Archiv für Sozialgeschichte der deutschen Literatur, 2007, 1-15.: 7). Entre os efeitos culturais, Lohmeier (ibid.) destaca a “dissolução das diferenças entre alta cultura e cultura popular” e a “hibridização transnacional das culturas”, um processo que vemos em O lobo da estepe e que justifica a resistência inicial de seu protagonista erudito:

E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanos que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, ou Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes - aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem o alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível. (41)

Desarraigado da sua terra natal, Harry se encontra numa cidade desconhecida, vivendo numa pensão sem laços de família ou amigos. Seu interlocutor principal é o manuscrito no qual ele registra suas observações. O mundo exterior se apresenta como sociedade massificada, a cultura é dominada pelas mídias (o rádio) e pela indústria cultural de origem norte-americana. A atmosfera desordenada desta sociedade se imiscui também nas suas aventuras amorosas, que são caracterizadas por uma relação de semi-prostituição com Maria e, no auge da trama, as experiências centrais dos personagens são induzidas por substâncias alucinógenas.

Harry percebe o ambiente do seu tempo como caótico, como um período que está passando por crises e mudanças radicais. Sua percepção da sociedade moderna beira os limites do desespero:

[...] aqueles dias de morte da alma, perversos de vazio interior e desespero, nos quais, em meio à terra destroçada e ressequida pelas sociedades anônimas, o mundo dos homens e a chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso e vulgar esplendor de feira e nos atormenta com uma persistência emética [...] (36)

Apesar de tudo isso, o personagem começa a instalar-se em meio a esse caos como uma forma de enfrentar essa sociedade moderna. Suas “Anotações” e suas experiências amorosas e alucinógenas no “teatro mágico” podem ser vistas justamente como tentativas de se recuperar da sua crise individual causada pelos tempos modernos, entregando-se à crise da cultura moderna com a ajuda dos personagens que ele conhece ao longo da trama. Contudo, diferentemente de Demian e Sidarta, a aprendizagem de Harry Haller não resulta em uma conclusão com êxito da história, pois ele assassina Hermínia em uma das experiências alucinógenas no “teatro mágico”, indicando que ele não aprendeu a lição do riso que ela e Pablo queriam lhe ensinar. O final das “Anotações” é aberto e inconclusivo, deixando o protagonista - e o leitor - perturbado e sem certezas. A frase final de Harry mostra que não há uma conclusão de sua trajetória e indica que ele precisaria continuar tentando: “Da próxima vez saberia jogar melhor. Da próxima vez aprenderia a rir. Pablo me esperava” (235).

“O lobo da estepe”: um romance moderno

Uma obra literária que descreve um sujeito inserido no mundo moderno deve, consequentemente, refletir as estruturas da experiência moderna na sua própria estrutura estética para ser considerada bem-sucedida. Modernidade na literatura significa, em primeiro lugar, questionar de forma categórica e permanente os processos de modernização sócio-políticos e suas consequências Becker (20072 BECKER, Sabina; KIESEL, Helmuth. “Literarische Moderne. Begriff und Phänomen”. In: BECKER, Sabina; KIESEL, Helmuth (orgs.). Literarische Moderne. Begriff und Phänomen. Berlin, de Gruyter, 2007, 9–35.: 13). No livro de Hesse, esse questionamento se faz sentir tanto na construção da personagem quanto na forma estética.

Como já mencionado, Harry Haller sofre de um processo que ele denomina “a progressiva destruição daquilo que antigamente chamava minha personalidade” (142), uma dissociação da sua personalidade, um conflito entre o lado humano e o “lobo” que não podem ser integrados num indivíduo burguês que atue na sociedade contemporânea de forma apropriada. O embate entre seu lado civilizado e animalesco é sentido como um paradoxo por Harry: “eu, o Lobo da Estepe, o sem pátria e solitário odiador do mundo burguês, sempre morei em verdadeiras casas burguesas, talvez por um velho sentimentalismo da minha parte.” (38). Embora a condição psíquica de Harry pareça melhorar mediante seu contato com Hermínia e a seguinte iniciação na vida amorosa da sociedade massificada, o que ocorre, contudo, é que tudo isso só alavanca a desintegração e o desarraigamento de seu ser mais ao final do livro.

A crise do sujeito culmina quando Harry está no teatro mágico, sob influência de drogas, e sua personalidade se dissocia em inúmeras figuras, indo além da mera dubiedade homem versus lobo. Pablo, então, utiliza essas figuras para montar diferentes jogos de xadrez que compõem o “jogo da vida” do protagonista: “E assim foi o sábio arquiteto construindo com as figuras, que eram fragmentos de mim mesmo, vários jogos, uns após outros, todos semelhantes, todos participantes de um mesmo mundo, [...] mas sempre inteiramente novos” (209). Desses jogos e dos espelhamentos alucinatórios no “teatro mágico”, o Eu de Harry não resulta em um Eu unificado, renascido e reintegrado; pelo contrário, ele torna-se consciente de seus “infinitos Harrys” (193). Mas ao assassinar Hermínia em um desses jogos por causa de ciúmes, Harry demonstrou não saber lidar com as múltiplas possibilidades que Pablo lhe apresentou. Sabendo que ele ainda não domina “as centenas de milhares de figurinhas do jogo de vida” (235), Harry pretende levar em conta o conselho de Mozart - personagem fruto de sua alucinação - de que ele não deve tomar demasiado sério seu Eu e a vida nas suas diversas facetas. A atitude recomendada diante de uma realidade não compreendida é a do humor e da ironia, como lhe ensina Mozart: “Tem de aprender a rir, isso é que se exige. Tem de aprender a compreender o humor da vida, o humor patibular” (233).

Além da dissociação do sujeito, a modernidade do romance se manifesta sobretudo na forma narrativa. Enquanto alguns autores tendem a ignorar esses traços modernos na estética d’O lobo da estepe, outros que constatam uma evolução na escrita de Hesse aumentaram recentemente. Para Lethen (199525 LETHEN, Helmut; WEYERGRAF, Bernhard. “Der Einzelne und die Massengesellschaft”. In: WEYERGRAF, Bernhard (org.). Literatur der Weimarer Republik. Hansers Sozialgeschichte der Deutschen Literatur. Bd. 8. München, Hanser, 1995, 636-672.), por exemplo, o romance mostra que as estruturas usadas por Hesse anteriormente em seus livros - narrativas biográficas lineares e harmoniosas - não cabem mais para representar uma nova experiência, o que resulta em uma modificação na forma narrativa. Assim afirma o autor (1995: 654):

Aus der Erfahrung seines Leidens an der Zeit glaubt Hesse, mit der autobiographisch geprägten Geschichte des Harry Haller die Gesellschaft insgesamt charakterisieren zu können. Allerdings demonstriert die Form des Romans, daß sich die Epochenkrise im Modell einer individuellen Krisengeschichte nicht fassen ließ. Den Steppenwolf kennzeichnet eine Abkehr von einer eher harmonisierenden Schreibweise.

Uma escrita não harmônica é o reflexo de um mundo difícil de viver, de apreender e de narrar; as ferramentas convencionais conhecidas pela tradição da literatura não são mais suficientes para dar conta da complexidade do mundo moderno. O que começa a ser explorado pela literatura moderna é justamente uma abordagem que rompe com o padrão linear e harmônico da forma narrativa que era encontrada, por exemplo, em romances anteriores de Hesse.

A modernidade literária exigia um modo de representação não-linear, fragmentário, uma vez que, segundo Becker e Kiesel (20072 BECKER, Sabina; KIESEL, Helmuth. “Literarische Moderne. Begriff und Phänomen”. In: BECKER, Sabina; KIESEL, Helmuth (orgs.). Literarische Moderne. Begriff und Phänomen. Berlin, de Gruyter, 2007, 9–35.: 20), essa estética da “dissonância” e da “descontinuidade” é útil para descrever a experiência de um mundo industrializado e urbanizado. Ainda segundo os autores, essa poética fragmentada da modernidade visava a uma captura caleidoscópica das partículas da realidade. Pode-se dizer que este aspecto não uniformizador e fracionário foi herdado das primeiras décadas do século com as vanguardas, uma característica que se estendeu até a década de 1920, no período da chamada “modernidade clássica”. A história literária se utiliza do termo “modernidade clássica” para designar a última fase da época moderna, considerada no contexto alemão a partir da década de 1920 e finalizada em 1933. Trata-se de um período quando os movimentos vanguardistas da fase mais “radical” começam a enfraquecer e dar lugar a modalidades narrativas mais atenuadas, cautelosas, sintéticas e reflexivas. Becker e Kiesel (20072 BECKER, Sabina; KIESEL, Helmuth. “Literarische Moderne. Begriff und Phänomen”. In: BECKER, Sabina; KIESEL, Helmuth (orgs.). Literarische Moderne. Begriff und Phänomen. Berlin, de Gruyter, 2007, 9–35.: 10) distinguem a modernidade literária na Alemanha entre três fases: a esteticista, a vanguardista e a clássica. Embora com seus próprios requisitos, pode-se dizer que a “modernidade clássica” manteve o aspecto fragmentário da corrente vanguardista porque além de possibilitar uma nova forma de disposição, funcionava também como uma maneira de ir além da referência mimética da realidade. Kiesel (201721 KIESEL, Helmuth. Geschichte der deutschsprachigen Literatur 1918 bis 1933. München, C.H. Beck, 2017.: 110) explica mais detalhadamente a fragmentação inerente ao indivíduo moderno, cujo reflexo encontra-se na forma literária:

Die Moderne bekennt sich zum Fragmentarismus: konstatiert die Zersplitterung von Welt und Sein, reproduziert sie in ihren Werken und überläßt sich dem Überwindungswunsch nur in hypothetischen, ironisch gebrochenen oder sich selbst widerrufenden Konstruktionen.

Em O lobo da estepe, a dificuldade de narrar se reflete nas perspectivas divergentes sobre o mesmo sujeito e os mesmos acontecimentos, mas também na ausência de uma instância que hierarquize essas perspectivas. Assim, esse processo irônico e de fragmentação se reflete no livro não somente enquanto condição existencial do personagem, mas também na composição da obra. Portanto, é neste momento que a perspectiva unívoca e onisciente do narrador ou a estrutura linear do enredo encontrados na tradição literária são desafiados.

Para fazer Harry superar a crise pessoal não é mais cabível - assim como o era em Demian e Sidarta - narrar sua trajetória por um único ponto de vista. As três partes de O lobo da estepe buscam apreender a figura de “Harry” e seu contexto social em uma estrutura narrativa descontínua e múltipla, incorporando o aspecto fragmentário que já vinha sendo explorado desde a vanguarda. Kiesel (201123 KIESEL, Helmuth; WIELE, Jan. Klassische Moderne (1890–1930). In: MARTINÉZ, Matias (org.). Handbuch Erzählliteratur. Theorie, Analyse, Geschichte. Stuttgart, Weimar, J. B. Metzler, 2011, 258-272.) explica que foi uma prática constitutiva da literatura moderna utilizar-se de “fragmentos da realidade” para colagens, de modo que ficasse evidente a disparidade ou a natureza contraditória dos materiais selecionados, mas que ao fim seria possível um entendimento novo e mais complexo a partir da junção destes elementos díspares. Esses fragmentos de realidade poderiam oferecer um vislumbre do ‘todo’ apesar de sua cisão imanente - justamente o que ocorre no livro de Hesse. Kiesel (201123 KIESEL, Helmuth; WIELE, Jan. Klassische Moderne (1890–1930). In: MARTINÉZ, Matias (org.). Handbuch Erzählliteratur. Theorie, Analyse, Geschichte. Stuttgart, Weimar, J. B. Metzler, 2011, 258-272.: 267) detalha esse fenômeno:

Zunächst fand diese Darstellungstechnik in kleineren Formen Anwendung, bald aber wurde sie auch für den Roman genutzt [...]: Hermann Hesses Steppenwolf (1927), der aus mehreren innerlich zwar zusammenhängenden, äußerlich aber deutlich voneinander abgesetzten Teilen besteht, [ist] dem Montageprinzip in kompositorischer Hinsicht verpflichtet […].

Tendo em vista este aspecto moderno em sua composição, apenas recentemente a crítica começou a valorizar O lobo da estepe e a destacar sua modernidade, como pode-se ver em Kiesel (200422 KIESEL, Helmuth. Geschichte der literarischen Moderne. Sprache, Ästhetik, Dichtung im zwanzigsten Jahrhundert. München: C.H. Beck, 2004.: 301), que o lista entre os grandes romances modernos da década de 1920 na Alemanha, ou ainda Swales (200535 SWALES, Martin. “New Media, Virtual Reality, Flawed Utopia? Reflections on Thomas Mann’s Der Zauberberg and Hermann Hesse’s Der Steppenwolf”. In: LABROISSE, G.; KNAPP, G.; EKE, N. (orgs). Hermann Hesse Today. Hermann Hesse heute. Amsterdam, New York, Rodopi B. V., 2005, 33-40.), que também o coloca ao lado de obras consideradas o cânone nesse mesmo período. Guardadas as diferenças, segundo Swales (ibid.), este grupo seleto de obras da década de 20 possui características em comum, o que envolve tanto a consciência do momento histórico quanto a autorreflexão e a reelaboração da forma e do estilo literário. Paradigma deste período é A Montanha Mágica, de Thomas Mann, que, segundo Kiesel (20072 BECKER, Sabina; KIESEL, Helmuth. “Literarische Moderne. Begriff und Phänomen”. In: BECKER, Sabina; KIESEL, Helmuth (orgs.). Literarische Moderne. Begriff und Phänomen. Berlin, de Gruyter, 2007, 9–35.: 89), modifica e moderniza a técnica de representação do romance realista, tornando claro o aspecto ‘fingidor’ e refletindo o processo de narrar. Outro exemplo é Berlin Alexanderplatz, de Döblin, que rompe com estrutura linear da narrativa usando a técnica de “romance de montagens”. Dada esta atividade reflexiva da forma literária, Swales (200535 SWALES, Martin. “New Media, Virtual Reality, Flawed Utopia? Reflections on Thomas Mann’s Der Zauberberg and Hermann Hesse’s Der Steppenwolf”. In: LABROISSE, G.; KNAPP, G.; EKE, N. (orgs). Hermann Hesse Today. Hermann Hesse heute. Amsterdam, New York, Rodopi B. V., 2005, 33-40.: 33) destaca a autoconsciência narrativa das obras da “modernidade clássica”:

Yet in the 20th century the situation changes radically. Between 1924 and 1933 German culture produces five novels that are absolute classics of European High Modernism. They are Thomas Mann’s Der Zauberberg (1924), Hermann Hesse’s Der Steppenwolf (1927), Alfred Döblin’s Berlin Alexanderplatz (1929), Hermann Broch’s Die Schlafwandler (1932), and Robert Musil’s Der Mann ohne Eigenschaften (1933). All these novels share three concerns: an acute awareness of cultural crisis, a high degree of narrative self-consciousness, and an urgently expressed utopian aspiration which, while present throughout the novels, can be felt with particular intensity in the closing sections of the texts in question.

Como textos paradigmáticos e “clássicos” da modernidade, tanto Kiesel quanto Swales escolhem romances que não pertencem à fase mais radical dos experimentos das vanguardas, mas à “modernidade clássica”. As narrativas de Thomas Mann, Robert Musil e Hermannn Broch seguem essa tendência nos anos após 1920, já que suas obras “parecem bem mais convencional do que vanguardista” (Kiesel/Wiele 201123 KIESEL, Helmuth; WIELE, Jan. Klassische Moderne (1890–1930). In: MARTINÉZ, Matias (org.). Handbuch Erzählliteratur. Theorie, Analyse, Geschichte. Stuttgart, Weimar, J. B. Metzler, 2011, 258-272.: 269). Nos parâmetros dos autores citados, o romance de Hermann Hesse se encaixa no contexto da “modernidade clássica” dos anos 20 na medida em que reflete os processos de modernização da sociedade - a crise cultural -, e também possui autoconsciência da narrativa ao combinar diferentes perspectivas que confluem para um mesmo objeto, a história de Harry, condicionando a forma literária a um novo e moderno modo de representação, mesmo que não seja tão radical.

O modo como o livro está disposto, com sua estrutura múltipla, produz também incerteza no que diz respeito ao estatuto ficcional das “Anotações” e do “Tratado”, outro traço moderno provocado pela disposição e distribuição das narrativas. Portanto, o capítulo seguinte pretende demonstrar, por meio da análise das três perspectivas, uma ambiguidade gerada pela estrutura narrativa e que não parece ter uma solução única: as “Anotações de Harry Haller” devem ser entendidas como texto autobiográfico ou como uma ficção de autoria do personagem-narrador? Isto é, dentro da realidade ficcional na qual se passa a história d’O lobo da estepe, o que está sendo narrado nas “Anotações” são acontecimentos realmente vivenciados pelo narrador-personagem ou se trata de uma imaginação literária dele?

Com base nas categorias da narratologia e de trabalhos que tratam especificamente das perspectivas do romance, pode-se apoiar as duas hipóteses, porém não é possível estabelecer uma resposta final. Nesse sentido, explica Forster (20129 FORSTER, Gabrielle da Silva. “O Lobo da Estepe: uma escritura selvagem”. Revista Criação & Crítica, v. 9, 111-127, 2012.https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v5i9p111-127. (12/04/2020).
https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124....
:112), a narrativa também questiona as fronteiras entre o real e o fictício do que está sendo narrado por Harry. A modernidade do livro parece adquirir um contorno mais significativo quando se observa esta ambiguidade, o que possibilita perceber outro traço moderno do livro e que não parece receber tanta atenção da crítica.

3 Incerteza dos eventos narrados nas “Anotações de Harry Haller”: narrativa autobiográfica ou ficção?

O lobo da estepe é constituído por três narrativas diferentes, cada uma com seu respectivo narrador: a primeira delas é a do “Prefácio do Editor”, cujo narrador é o editor responsável pelo manuscrito de Harry; a segunda é a narrativa “Anotações de Harry Haller”, sendo o próprio Harry Haller seu narrador, e a terceira é a do “Tratado do lobo da estepe”, cuja autoria é desconhecida e sua voz se apresenta somente como um “nós”. O romance contém ainda dois textos líricos com os poemas “Eu, o Lobo da Estepe, vago errante” e “Os Imortais”, que também foram escritos por Harry e compõem o corpo textual das “Anotações”.

A tipologia proposta por Genette (199510 GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Lisboa, Vega, 1995.) determina uma narrativa em relação ao seu nível de pertencimento na história que está sendo narrada. São diversos níveis (ou graus) que podem compor um romance: uma narrativa será de primeiro nível quando a instância narrativa - o narrador - for o criador de uma narrativa primária; para este nível, Genette (199510 GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Lisboa, Vega, 1995.: 227) utiliza o termo extradiegético. O autor prossegue: uma narrativa será de segundo nível ou grau quando estiver situada dentro de uma narrativa primária e a sua instância narrativa for introduzida por outra instância; este nível é determinado como intradiegético ou somente diegético. Pode haver também narrativas intra-intradiegéticas, também chamadas de metadiegéticas, que surgem dentro da narrativa de segundo grau, tornando-se, com isso, uma narrativa de terceiro nível e assim por diante se prossegue o encadeamento de níveis. Genette também estabelece uma tipologia em relação à posição do narrador dentro da diegese. Ele define como homodiegético o narrador que faz parte do mundo que narra; quando, contudo, o narrador não pertence ao mesmo mundo da diegese, ele é heterodiegético (Genette 199510 GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Lisboa, Vega, 1995.: 244).

N’O lobo da estepe, o “Prefácio do editor” pode ser identificado como narrativa de primeiro nível, extradiegética. Geralmente, prefácios são considerados, segundo Genette, como elementos paratextuais com a função principal de garantir uma boa leitura do texto (Genette 200111 GENETTE, Gérard. Paratexte. Das Buch vom Beiwerk des Buches. Prefácio de Harald Weinrich. Tradução de Hornig, Dieter. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2001.: 191). O prefácio desse romance de Hesse é atribuído a uma figura fictícia - o qual supostamente é o sobrinho da dona da pensão onde Harry morou e que alega ser editor do manuscrito deixado por ele. Em primeiro lugar, um prefácio desse tipo deve, como observa Genette (200111 GENETTE, Gérard. Paratexte. Das Buch vom Beiwerk des Buches. Prefácio de Harald Weinrich. Tradução de Hornig, Dieter. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2001.: 267; 275), negar que o autor histórico do romance seja idêntico ao autor do suposto manuscrito. No caso do livro de Hesse, porém, o editor fictício vai muito além das circunstâncias da proveniência do texto, dando um retrato detalhado do suposto autor “Harry Haller” e um relato da sua relação com este. Nesse sentido, o “Prefácio” tem um estatuto duplo: por um lado um peritexto das “Anotações de Harry Haller”, por outro uma parte integral do romance O lobo da estepe. Além disso, ao ocupar o primeiro nível da história - extradiegético -, o “Prefácio do Editor” faz com que o texto do próprio Harry Haller apareça emoldurado e sua voz intermediada.

O narrador do “Prefácio” ocupa, tendencialmente, uma posição heterodiegética, uma vez que não aparece como personagem nas “Anotações”. Por outro lado, ele narra, da sua perspectiva no “Prefácio”, acontecimentos que fazem parte das “Anotações”, fazendo com que as realidades das duas partes, aparentemente, formem uma unidade. Sob essa perspectiva, ele pode ser considerado homodiegético em relação ao “Prefácio” e heterodiegético em relação às “Anotações”. Importante ainda ressaltar que o paratexto visual do livro estabelece uma hierarquia na qual o “Prefácio” representa a realidade imediata da ficção. Quando o leitor abre o livro, é com a realidade ficcional realista inaugurada pelo “Prefácio” que ele primeiro se depara, e não com a realidade narrada por Harry ou pela voz do “Tratado”. Com isso, o estatuto do “Prefácio” é indubitavelmente “factual” e se restringe à sua função introdutória. As incertezas ocorrem nos outros níveis da diegese de O lobo da estepe.

As “Anotações de Harry Haller” representam a narrativa de segundo nível, intradiegética. Se o “editor” apresentou Harry de forma externa, distanciada - ele descreve a si mesmo como homem burguês, vivendo de forma regular e acostumado a trabalho e uma organização exata do tempo -, o narrador homodiegético das “Anotações” propicia ao leitor um conhecimento muito mais íntimo, compartilhando suas auto-observações e dúvidas privadas que dão a impressão de um diário. Tal semelhança é relevante ainda que o estilo de Harry destoe de um diário comum, pois, como observa Cohn (19695 COHN, Dorrit. “Erzähltes Bewußtsein im Steppenwolf”. The Germanic Review, v. 44, 121-131, 1969.: 126), trata-se de um caso incomum de um narrador em primeira pessoa que se preocupa intensamente com a reprodução de seus próprios pensamentos no passado e não no presente da narração.

Já seus poemas “Eu, Lobo da Estepe, vago errante” e “Os Imortais” surgem como manifestações metadiegéticas na narrativa de segundo nível. Enquanto a narrativa das “Anotações” pode ser vista como relato factual do personagem - pelo menos num primeiro instante -, os poemas são manifestações literárias da mesma personagem que oferecem uma outra perspectiva “meta” sobre ela.

O “Tratado do lobo da estepe”, por sua vez, está situado dentro da narrativa de segundo nível: Harry Haller alega ter recebido o texto de um desconhecido e é o mesmo Harry que apresenta seu conteúdo. Portanto, o “Tratado” é uma narrativa de terceiro nível, ou ainda uma narrativa metadiegética, redigida por um narrador heterodiegético, uma instância ausente da história que conta e que se refere a si mesmo na primeira pessoa do plural. De acordo com o gênero indicado pelo título, o “Tratado” possui uma forma mais discursiva e objetiva, versando sobre o caráter do “lobo da estepe”, e não sobre acontecimentos concretos. O estatuto ficcional do “Tratado” depende das “Anotações” justamente por estar dentro e subordinado a elas: sendo as “Anotações” consideradas um relato factual, o “Tratado” é classificado do mesmo modo.

A diferença no ponto de vista das três instâncias pode também ser percebida na linguagem empregada por cada uma delas. O tom das “Anotações” é intimista e muitas vezes patético por causa da crise existencial pela qual o narrador passa, enquanto o “Prefácio” e o “Tratado” são narrativas mais sóbrias, distanciadas. O distanciamento do primeiro se deve à sua perspectiva externa da vida de Harry, já o distanciamento do “Tratado” ocorre devido ao tom pseudo-científico e irônico de seu texto.

A multiplicidade de vozes, com suas diferentes perspectivas e informações, fornece ao leitor uma ampla gama de perspectivas sobre o protagonista, veiculada pelos vários níveis diegéticos. Devido a essa complexa organização, Landgren (201324 LANDGREN, Gustav. “Prolegomena zur Konzeptionalisierung unzuverlässigen Erzählens im Werk Hermann Hesses mit Schwerpunkt auf dem Steppenwolf”. Orbis Litterarum, v. 68, n. 4, 312-339, 2013.) vê no livro uma estrutura de mise en abyme, cujo produz uma construção paradoxal, na qual a narrativa-dentro-de-uma-narrativa - as “Anotações” e o “Tratado” - e a narrativa moldura - “Prefácio do Editor” - se intercalam. Segundo o autor, a construção en abyme, reconhecida como traço destacado da literatura moderna desde André Gide, permite a narração do mesmo acontecimento por diferentes perspectivas e narradores. Com isso, produz-se uma Schachtelstruktur (“estrutura em encadeamento”) -, na qual cria-se espelhamentos graças aos vários níveis diegéticos. Landgren explica (2013: 319):

So spiegelt der „Traktat vom Steppenwolf“ die Selbstmordgedanken Hallers, die schon im Vorwort des Herausgebers und in den Aufzeichnungen Hallers beschrieben worden sind. Auch Hallers Verhältnis zum Bürgerlichen und seine strenge Erziehung sind Beispiele für die Spiegelungen im Roman, die auf drei diegetischen Ebenen dargestellt werden. Ein auffallendes Detail für die Schilderung desselben Ereignisses bietet der Konzertbesuch des Romanprotagonisten, der zwei Mal auf verschiedenen diegetischen Ebenen geschildert wird.

Conforme mostra a citação, o pensamento suicida de Harry é um tema abordado primeiro pelo narrador do “Prefácio”, que comenta as características de Harry de um olhar exterior: “Não são necessários mais informes nem descrições para demonstrar que o Lobo da Estepe levava uma vida de suicida” (30), depois pelo narrador das “Anotações” que reitera suas digressões e desejo de morte: “E assim sendo, aquela comédia tinha de acabar hoje mesmo. Vá para casa, Harry, e corte o pescoço! Chega de esperar!” (94), e por fim com o “Tratado”, que explica tais tendências quase como se fosse um estudo de caso: “O ‘suicida’ - e Harry era um deles - não precisa necessariamente viver em relações particularmente intensas com a morte; isto se pode fazer sem que se seja um suicida.” (58).

Em relação à recorrência de alguns acontecimentos em mais de um nível, Landgren destacou o episódio do concerto, mas há outro episódio similar, o do “pinheirinho”, que atua como forma do espelhamento do mesmo espaço - o corredor da pensão - e demonstra como a existência dessa planta tem efeitos diversos nos narradores. Para o sobrinho, no “Prefácio”, a limpeza do local da planta capta sua atenção: “[...] duas plantas em grandes vasos: uma azálea e um pinheirinho. As plantas eram muito bonitas e estavam sempre muito bem cuidadas e irrepreensivelmente limpas, o que também a mim já havia chamado a atenção” (25), mas não lhe causa maiores emoções; algo totalmente diferente ocorre com Harry nas “Anotações”, que vê nesta impecável limpeza um micromundo da vida burguesa que seu lado “lobo” condena: “Sento-me num degrau da escada acima do pinheirinho e, descansando um pouco, os dedos cruzados, contemplo esse pequeno jardim da ordem e deixo que sua aparência enternecedora e sua solidão um tanto ridícula me comovam até às profundezas da alma.” (39).

Não somente locais e acontecimentos, mas também pessoas passam pelo processo de espelhamentos entre os níveis, como é o caso da presença de uma mulher junto a Harry que o narrador do “Prefácio” comenta e que, provavelmente, é Maria, personagem que figura constantemente nas “Anotações” como a amante de Harry. Assim diz o narrador do “Prefácio”: “Nada sei sobre essas relações e desejo acrescentar apenas que voltei a vê-lo ainda uma vez mais com aquela mulher, numa rua da cidade. Iam de braço, e ele parecia feliz [...]” (30).

Esses espelhamentos interligam os níveis de modo que se pode selecionar coincidências e semelhanças entre eles, e a partir das quais é possível tirar algumas conclusões que parecem legitimar a leitura das “Anotações” enquanto uma narrativa (pseudo)autobiográfica, na qual seu narrador relata experiências ocorridas com ele. O primeiro ponto a ser observado é a consideração de que o “Prefácio” oferece uma moldura que autentifica ao leitor a vida de uma figura chamada “Harry” antes dele iniciar a leitura das “Anotações”. Com a visão introdutória e distanciada do “Prefácio”, lembra Decker (20086 DECKER, Jan-Oliver. Stimmenvielfalt, Referenzialisierung und Metanarrativität in Hermann Hesses Der Steppenwolf. In: BLÖDORN, Andreas; LANGER, Daniela; SCHEFFEL, Michael (orgs.). Stimme(n) im Text: narratologische Positionsbestimmungen. Berlin, New York, De Gruyter, 2008, 233-265.: 253), é postulada, portanto, a existência factual de Harry além do texto, oferecendo ao leitor a sensação de que o Harry das “Anotações” não apenas existe fora delas como é o mesmo Harry do “Prefácio”. Por causa da suposta autenticidade e factualidade do “Prefácio” e dos espelhamentos que confirmam eventos e locais ocorridos em mais de um nível, pode-se reconhecer a possibilidade de ver Harry como um indivíduo “real” desta realidade ficcional, alguém que escreve sobre sua vida e os acontecimentos vivenciados. Dhority (19737 DHORITY, Lynn. “Who wrote the Tractat vom Steppenwolf?”. German Life and Letters, v. 27, n. 1, 59-66, 1973.: 61) confirma essa leitura:

In point of fact, however, Hesse makes it quite clear that the novel is not merely a product of Harry Haller’s hallucinations. He does so through the device of the editor’s preface. The bourgeois editor provides an objective frame of reference for the notebooks of Haller and locates the hero in mundane reality; the factual circumstances described in the preface reappear in Haller’s notebooks. The reader may, therefore, justifiably conclude that Haller’s writings are not sheer fantasy but stem from objectively corroborated experiences.

Assim, se os episódios como o do concerto, a presença de um mesmo objeto, o “pinheirinho”, a existência da personagem Maria ou até mesmo a existência de Harry são autenticados por meio dos espelhamentos entre o “Prefácio” e as “Anotações”, então pode-se pressupor que as “Anotações de Harry Haller” possuem um teor factual comum ao relato autobiográfico. Dito de outra forma, ao leitor é certificada a existência de uma pessoa chamada “Harry”, a qual irá mostrar sua própria voz no capítulo seguinte do romance. A autenticidade do discurso de Harry nas “Anotações” pode ainda ser corroborada a partir de referências à realidade contemporânea de sua época, como o cenário urbano e menções às músicas comuns naquele período, ou seja, com características de alguém que simplesmente relata suas ações e pensamentos do cotidiano:

De um salão de dança, diante do qual passei, me veio o ritmo de uma vívida música de jazz, como o odor bravio e quente da carne crua. Detive-me um momento; aquela espécie de música sempre tivera para mim um secreto encanto, apesar do muito que a detestava. (48)

O leitor pode tomar como ponto de referência esses elementos confirmados por ambos os níveis narrativos e ler a história desse indivíduo em crise como ela se mostra no título, ou seja, simplesmente como “Anotações”. Mas se o leitor assim o fizer, também precisará considerar que neste mesmo relato no qual se narra elementos supostamente reais, são possíveis e aceitáveis também acontecimentos fantásticos e misteriosos, como o recebimento do “Tratado” ou mesmo as experiências fantásticas que Harry vivencia no “teatro mágico”. O recebimento do “Tratado” e o “teatro mágico” quebram por sua natureza sobrenatural a ilusão de um mundo realista, estabelecido pelo “Prefácio” e pelo início das “Anotações”, quando o protagonista apenas “andava pelas ruas”, visitava “tavernas” e dispensava algum comentário mal-humorado sobre a cultura moderna.

O entendimento do título “Anotações” como espécie de diário ou relato autobiográfico do protagonista não parece se sustentar de modo inteiramente convincente. Se fosse um diário, deveria seguir uma estrutura mais intermitente (com retrospectivas cotidianas) e tornar mais visível a passagem temporal de modo paulatino; ou ainda, se fosse uma autobiografia, deveria abandonar a perspectiva pretérita sobre o que está sendo narrado e incluir, momentaneamente, o presente da narração. Um exemplo desta diferenciação temporal ocorre nas “Anotações” (‘Aufzeichnungen’) do narrador Malte, no romance de Rilke, citado anteriormente. Neles, percebe-se os pensamentos do narrador situados no presente e os quais se referem a acontecimentos do passado: “Quando penso em nossa casa, onde não se mora mais ninguém, acho que outrora deve ter sido diferente. Antigamente sabíamos (ou talvez pressentíssemos) que contínhamos a morte em nós [...]” (Rilke 200830 RILKE, Rainer Maria. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Tradução Lya Luft. Osasco, SP, Novo Século, 2008 [1910].: 11). Já o estilo de Harry nas “Anotações” adquire o caráter de pretérito tanto na narração dos acontecimentos como nos pensamentos acerca destes: “O dia passara como normalmente passam os dias: eu o havia desperdiçado, dissipado suavemente, com minha primitiva e arredia maneira de ser; [...] (35). Além do mais, no nível da história, os acontecimentos fantásticos entram em conflito com o mundo realista do “Prefácio”, pois, afinal, os eventos “reais” que aparecem nas duas narrativas sugeriam uma continuidade entre as realidades apresentadas nos dois textos.

A epígrafe das “Anotações” - “Nur für Verrückte” (Apenas para loucos) -, de certa maneira, também nega seu caráter factual, sobretudo porque esta epígrafe se repete no “Tratado” e mais uma vez na carta de convite para o “teatro mágico”. Supondo que os três textos tivessem autores diferentes seria uma grande coincidência encontrar a mesma formulação em cada um deles. Vale a pena mencionar, ainda, que em manuscritos anteriores Hesse havia nomeado o “Tratado” como “Märchen vom Steppenwolf” (O conto de fadas do Lobo da Estepe), o que evidencia mais ainda o caráter duvidoso do texto. Ao se enfraquecer o estatuto factual da narrativa por meio do espelhamento das epígrafes, por outro lado se fortalece a leitura que entende a narrativa como uma invenção do protagonista. Neste caso, o estatuto de ficção deve ter estendido para o “Tratado”, uma vez que, como mencionado anteriormente, ele está subordinado ao nível das “Anotações”. O narrador Harry alega tê-lo recebido na rua - o que poderia ser uma mera invenção e ele apenas colocou o texto do “Tratado” em meio às suas próprias “Anotações”. De fato, um comentário do “editor” apoia essa interpretação “ficcional”:

Não me foi possível comprovar o quanto de veracidade existe nos fatos de que trata o manuscrito de Haller. Não duvido de que sejam fictícios [‘Dichtung’] em sua maior parte, não no sentido de uma espontânea invenção, mas no sentido de uma procura de exprimir-se, de expressar uma anterior atividade anímica, profundamente vivida, com a roupagem de acontecimentos verossímeis [sichtbarer Ereignisse]. (31)

Ao destacar que o que se seguirá provavelmente seja ficção em sua maior parte, o narrador do “Prefácio” estabelece um paradoxo, pois, se de um lado sua existência enquanto “Prefácio” autentifica a presença de Harry, por outro sua declaração coloca o que será narrado por Harry em dúvida. Interessante perceber que esta afirmação do “editor” é, na realidade, uma interpretação e uma “correção” da narrativa de Harry, como mostra Landgren (201324 LANDGREN, Gustav. “Prolegomena zur Konzeptionalisierung unzuverlässigen Erzählens im Werk Hermann Hesses mit Schwerpunkt auf dem Steppenwolf”. Orbis Litterarum, v. 68, n. 4, 312-339, 2013.: 320-321): “As Anotações de Haller são, portanto, corrigidas e interpretadas por uma instância ‘externa’”. O editor não é o único a corrigir um dos níveis narrativos, Harry também o faz em relação ao “Tratado”:

Voltei a ler várias vezes o Tratado do lobo da estepe, já com abnegação e agradecimento como se um mago invisível estivesse dirigindo prudentemente o meu destino, já com desprezo e desdém pela insipidez do tratado que, a meu ver, não compreendia em absoluto a disposição e o transe específicos de minha vida. O que ali estava escrito sobre os lobos da estepe e os suicidas era, sem dúvida, muito bom e judicioso [...] mas era uma rede de malhas muito largas para apanhar o meu ser individual, meu destino único e insubstituível. (82)

É devido a passagens como essas que Swales (200934 SWALES, Martin. “Der Steppenwolf”. In: CORNILS, Ingo (org.). A Companion to the Works of Hermann Hesse. Rochester, New York, Camden House, 2009, 171-185.), ao comentar a autoconsciência narrativa do livro, irá dizer que vê as relações entre os três níveis como excesso de discursividade (“discursivity”): “O lobo da estepe é um texto que continua comentando sobre si mesmo, falando sobre si mesmo, sobre seu próprio significado” (2009: 180). Tanto a declaração do narrador do “Prefácio” como a de Harry demonstram que eles não acreditam que os textos estejam representando uma verdade “factual”. Se as “Anotações” são ficção na visão do “Prefácio” e o “Tratado” não consegue cumprir a sua função - explicar a natureza de Harry -, o que se pode concluir é que nenhum deles parece ser “completo” e suficiente enquanto visão de mundo, por isso as correções mútuas das instâncias narrativas.

Essas correções potencializam a incerteza do estatuto das “Anotações” e do “Tratado”, mas elas trazem em seu cerne um aspecto essencial da narrativa moderna, a saber, a desestabilização da realidade ficcional, como mostra Adorno (20121 ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de literatura I. São Paulo, Duas Cidades; Editora 34, 2012, 55-65.: 58-59):

Quanto mais firme o apego ao realismo da exterioridade, ao gesto do “foi assim”, tanto mais cada palavra se torna um medo “como se”, aumentando ainda mais a contradição entre a sua pretensão e o fato de não ter sido assim. Mesmo a pretensão imanente que o autor é obrigado a sustentar, a de que sabe exatamente como as coisas aconteceram, precisa ser comprovada.

A realidade vivida por Harry e pelo “Editor” não pode ser reduzida a um relato de fatos, pois nem o sobrinho e tampouco Harry podem atestar o “foi assim”, isto é, a certeza dos acontecimentos daquela determinada realidade ficcional. A certeza de um narrador onisciente não pode mais ser alcançada: o conhecimento do “Editor” se limita a aspectos superficiais e suposições, e a história do próprio Harry parece se revelar uma ficção dele mesmo, a qual o leitor não sabe como relacioná-la com a realidade ficcional do primeiro nível. Essa construção narrativa acaba, assim, com um realismo mimético, embora isso não é perceptível num primeiro instante. Não se pode saber o que aconteceu ou não com Harry, assim como não se consegue julgar os acontecimentos fantásticos.

A incerteza gerada a partir da dubiedade das “Anotações” poder levar à pressuposição de que os acontecimentos “fantásticos” narrados nas “Anotações” foram frutos da imaginação de Harry, isto é, foram “Dichtung”, como sugere o “Prefácio”. Nessa leitura, a história contada por Harry torna-se uma narrativa na qual a natureza dos acontecimentos misteriosos não é problemática, já que se trata da imaginação de seu narrador-protagonista. Neste caso, o “Tratado” deve ser considerado uma ficção dentro da ficção dentro da ficção, escrito e inserido pelo personagem Harry Haller no contexto das suas “Anotações” ficcionais, já que tudo o que estava contido dentro do manuscrito deixado na pensão foi produto da imaginação de seu narrador. Essa interpretação, no entanto, destoa completamente da leitura que se pode fazer da primeira edição do livro. Na disposição de 1927, o “Tratado” possui uma formatação “autônoma” que pode interferir no modo como se entende a sua dependência com as “Anotações”, além de alterar a percepção da natureza fantástica dos acontecimentos que Harry relata.

4 A Primeira edição do livro e sua dimensão fantástica

Segundo Dhority (19737 DHORITY, Lynn. “Who wrote the Tractat vom Steppenwolf?”. German Life and Letters, v. 27, n. 1, 59-66, 1973.: 59), o “Tratado” é o centro temático e estrutural d’O lobo da estepe. Ele enriquece o livro com sua perspectiva filosófica ao ampliar, em um nível mais sofisticado, o tema do conflito entre o mundo burguês e as tendências não-civilizadas representadas sob a figura do lobo. Sua importância temática é inegável, mas sua relevância se expande mais ainda quando se analisa o fenômeno narrativo da metalepse. No livro de Hesse, o fenômeno da metalepse ocorre no momento em que Harry se propõe a ler o “Tratado” e o texto surge literalmente no fluxo textual das “Anotações”. Decker (20086 DECKER, Jan-Oliver. Stimmenvielfalt, Referenzialisierung und Metanarrativität in Hermann Hesses Der Steppenwolf. In: BLÖDORN, Andreas; LANGER, Daniela; SCHEFFEL, Michael (orgs.). Stimme(n) im Text: narratologische Positionsbestimmungen. Berlin, New York, De Gruyter, 2008, 233-265.) explica que é exatamente neste momento que o segundo e o terceiro nível narrativo do livro se cruzam, pois Harry, o narrador da narrativa de segundo nível, lê sobre si mesmo em um texto de terceiro nível, o qual provém de uma origem diferente, desconhecida. Dito de outra forma, há uma intrusão súbita na narrativa intradiegética - as “Anotações” - que é causada pela “aparição” textual do “Tratado”.

A metalepse, segundo Pier (201429 PIER, John. Metalepsis. In: HÜHN, Peter; MEISTER, Jan; PIER, John; SCHMID, Wolf (orgs.). Handbook of Narratology. Berlin, München, Boston, de Gruyter, 2014, 326-343.), pode ser definida como um distúrbio na diferenciação dos níveis narrativos por meio da intrusão do autor em sua própria ficção, ou da intrusão de uma outra figura ou voz no nível diegético, como é o caso do livro de Hesse. A metalepse é, portanto, uma transgressão deliberada que intenta causar determinado efeito de sentido. Pier (201429 PIER, John. Metalepsis. In: HÜHN, Peter; MEISTER, Jan; PIER, John; SCHMID, Wolf (orgs.). Handbook of Narratology. Berlin, München, Boston, de Gruyter, 2014, 326-343.: 338) afirma que devido à instabilidade que causa no curso “normal” da narrativa, a metalepse é tida como algo inquietante ou perturbador, ou ainda como uma figura da imaginação criativa.

Entretanto, a metalepse contida n’O lobo da estepe se sobressai na primeira edição do livro, publicada em 1927 pela editora S. Fischer. Como exigência do próprio Hermann Hesse ao editor, o texto do “Tratado” possuía uma capa colorida e uma contracapa, paginação própria e um tipo de fonte diferente daquela que fora usada nas “Anotações” e no “Prefácio”. Estas particularidades apontavam sua autonomia em relação ao restante do livro, e o traço formal que dividia os três níveis narrativos ficava ainda mais reforçado. Desse modo, o livro constituía-se de três partes distintas, sendo que o “Tratado” recebia um lugar de destaque como se fosse, na terminologia de Genette, um epitexto ou prétexto independente da ficção do romance, mas interagindo com o conteúdo desse.

O realce causado por essas configurações editoriais se perdeu, contudo, nas edições posteriores. Na edição alemã da Suhrkamp de 197015 HESSE, Hermann. Der Steppenwolf. Berlin, Suhrkamp, 1970., por exemplo, o “Tratado” está inserido dentro das “Anotações” sem apresentar nenhum recurso que evidencie uma ruptura na disposição do livro, valendo-se somente de dois pontos no final do parágrafo anterior e do título “Der Tractat vom Steppenwolf” (“O Tratado do lobo da estepe”) para diferenciar os dois textos. Já a edição de 199716 HESSE, Hermann. Der Steppenwolf. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1997., da mesma editora, apesar de ainda manter o “Tratado” incluído nas “Anotações” sem ter paginação própria ou uma fonte diferenciada, traz a capa reproduzida da primeira edição. Nas versões em português encontradas no Brasil, atualmente, encontram-se edições como a da editora Record de 2013 e da BestBolso de 2012, nas quais o “Tratado” é colocado no fluxo textual das “Anotações” sem nenhum elemento característico, assim como no original em alemão de 1970.

O aspecto desestabilizador ou até lúdico da metalepse “material” se adequa com as formas de expressão modernas justamente por criar mecanismos de inovação. Ao considerar a metalepse e o contexto de criação d’O lobo da estepe, a autonomia do “Tratado” da primeira edição intensifica o teor moderno do livro ao demonstrar uma característica incomum em sua disposição. Mas além de ter o elemento desestabilizador da metalepse acentuado, a independência do “Tratado” altera a semântica do livro. Ao surgir dentro das “Anotações” com traços independentes, o “Tratado” desvencilha-se dos vínculos textuais das “Anotações” e adquire o status de “real”. Nesta configuração, o “Tratado” existe independentemente das “Anotações” e de Harry Haller, e mostra como o “autor-implícito” - enquanto uma instância intermediária que se coloca, segundo Booth (19804 BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa, Arcádia, 1980.), entre o narrador e o autor-explícito do mundo real - quer convencer o leitor de que coisas misteriosas como o “Tratado” existem na realidade ficcional das “Anotações” e até mesmo na realidade do leitor que lê o livro e de repente se depara com a sua manifestação física. Nesse sentido, o autor-implícito enquanto responsável por estruturar todo o livro escolheu essa disposição justamente para produzir este efeito incomum e misterioso. Conforme afirma Booth (19804 BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa, Arcádia, 1980.: 92): “o autor implícito escolhe, consciente ou inconscientemente, aquilo que lemos”.

Como esse aparecimento autêntico e “real” causa estranheza e parece não fazer parte das leis que regem aquele mundo ficcional, O lobo da estepe como romance (e não somente a narrativa intradiegética “Anotações”) adquire um caráter fantástico. O conceito de “fantástico” utilizado aqui é aquele que diz respeito a acontecimentos que não podem ser explicados pelas leis de sua própria diegese. A definição de Todorov (200836 TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo, Perspectiva, 2008.: 30) sobre esse gênero resume o que se propõe como “fantástico”:

Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das suas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas por nós.

Ao ter uma existência própria e não ser mais incluso no fluxo textual das Anotações”, o “Tratado” é praticamente uma prova dos acontecimentos fantásticos da narrativa e corrobora com as condições estranhas e fantásticas com as quais Harry o recebeu. A partir deste ponto, a leitura das “Anotações” como ficção ou “Dichtung” perde sustentação, uma vez que a manifestação “real” do “Tratado” assinala que ele de fato existe, e não somente seu conteúdo é reproduzido ou até inventado pelo personagem fictício Harry. Se o leitor considerar a existência do “Tratado” enquanto confirmação das experiências de Harry, ele inevitavelmente deve considerar que acontecimentos fantásticos realmente ocorreram e são possíveis nesta realidade ficcional.

As implicações do efeito fantástico têm ainda reverberações na estrutura dos níveis narrativos. Abaixo, o primeiro esquema mostra como ficaria a organização da estrutura do livro na primeira edição no que diz respeito à hierarquização dos níveis narrativos; no segundo esquema é representado a disposição nas edições que não reproduzem a autonomia do “Tratado” (Decker 20086 DECKER, Jan-Oliver. Stimmenvielfalt, Referenzialisierung und Metanarrativität in Hermann Hesses Der Steppenwolf. In: BLÖDORN, Andreas; LANGER, Daniela; SCHEFFEL, Michael (orgs.). Stimme(n) im Text: narratologische Positionsbestimmungen. Berlin, New York, De Gruyter, 2008, 233-265.: 238).

Primeira edição (1927):

Edições de 1970, 1997, 2012, 2013:

O esquema visual da primeira edição demonstra como a organização do mundo ficcional é alterada quando se tem a presença do “Tratado” com características próprias e independentes da narrativa de segundo nível - “Anotações de Harry Haller”. O primeiro esquema revela ainda como elementos editoriais - capa, contra-capa e paginação própria - influenciam na desvinculação do nível diegético. Com isso, o “Tratado” emancipa-se dos marcadores textuais das “Anotações”, e possui tanta autonomia quando esta última e o “Prefácio”: as três narrativas ficam emparelhadas, sem haver subordinação de um nível narrativo a outro. No nível da estrutura, manifesta-se a autonomia do “Tratado”: o livro com capa e paginação própria que o leitor lê é o mesmo livro que o Harry recebeu, ele não é uma ficção na ficção, mas um livro real. Dessa forma, o autor implícito do romance mostra seu intuito ao apresentar um livro fantástico.

O aspecto fantástico da primeira edição se perde quando os traços que tornam o “Tratado” autônomo são negligenciados pelas editoras. O “Tratado” torna-se uma narrativa submetida ao nível diegético das “Anotações” assim como as outras produções metadiegéticas de Harry - seus poemas. Sem os traços particulares do “Tratado”, não há mais elementos “físicos” que possam comprovar o que Harry diz ter ocorrido com ele. Desse modo, a dubiedade das “Anotações” enquanto relato autobiográfico ou uma obra ficcional de Harry persiste e o leitor fica sem acesso a outras evidências.

5 Considerações finais

Com exceção da primeira edição d’O lobo da estepe, na qual o caráter fantástico sobrepõe-se à capacidade imaginativa de Harry, não é possível determinar se os acontecimentos realistas e fantásticos narrados nas “Anotações” são memórias autobiográficas de Harry Haller e, portanto, tratam de eventos que realmente ocorreram com ele na diegese, ou se o que está sendo narrado ali possui um teor ficcional, e Harry somente “imaginou” o que ele narra nas “Anotações”. O terceiro capítulo do presente artigo explorou as duas possibilidades, mas a fronteira entre o real e o fictício da narração de Harry está escondida por causa das perspectivas do “Prefácio do Editor” e do “Tratado”. Sem a voz que autentifica e testemunha a realidade de Harry no “Prefácio”, não entraria em questão se ele imaginou ou vivenciou o que narra, porque não teria uma perspectiva que rivalizasse com o ponto de vista apresentado no manuscrito das “Anotações”. Do mesmo modo, com a voz do “Tratado”, e sua autonomia na primeira edição, aumenta-se o teor fantástico, o qual rivaliza, por sua vez, com o teor realista do “Prefácio” e parte do manuscrito de Harry. A ambiguidade das “Anotações” ganha importância justamente na convivência e no embate dos diferentes níveis narrativos do livro.

Ao apresentar um personagem avesso ao mundo moderno, o romance de Hesse não parece ocupar um lugar na literatura moderna ao lado de Thomas Mann ou Alfred Döblin. Mas mesmo que não queira, seu protagonista é descrito como um sujeito da modernidade, que experiencia o ambiente urbano. A narrativa está submetida à incerteza da narração moderna: não é possível confirmar que “foi assim” sua experiência durante o curto período que viveu na pensão. A metalepse material e “real” do “Tratado”, realizada na primeira edição, desloca o romance para o gênero fantástico e comprova ainda mais seu pertencimento a uma nova literatura que se despediu de um realismo convencional praticado por Hesse nas obras anteriores.

Referências bibliográficas

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  • 36
    TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo, Perspectiva, 2008.
  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Código de Financiamento 2014/26111-6.
  • 2
    “As soluções que Hesse oferece em seus romances são: anticapitalismo romântico, reviver a cultura burguesa clássica contra a modernidade, recuperar a identidade perdida mediante a interioridade, contemplação, mudança e expansão da consciência, eliminar a cisão da personalidade por meio do equilíbrio dos sentidos e da espiritualidade nas pessoas etc. Estas soluções provam ser um meio inadequado de abolir efetivamente o estranhamento, uma vez que as causas reais permanecem totalmente inalteradas.” [Tradução minha].
  • 3
    “Biografias da alma”.
  • 4
    Os versos de Fausto em que ele relata a luta de opostos em seu ser: “Vivem-me suas almas, ah! no seio/Querem trilhar em tudo opostas sendas;/Uma se agarra, com sensual enleio/E órgãos de ferro, ao mundo e à matéria;/A outra, soltando à força o térreo freio, /De nobres manes busca a plaga etérea. (V. 1112-1117).
  • 5
    [Tradução minha]. Em outra carta de 1932, Hesse reclama de uma resposta ainda mais problemática: “Novamente recebi, não pela primeira vez, uma carta de uma senhora do norte; ela reclamava que ‘Camenzind’ era tão bonito e tão ‘germânico’ e agora o ‘Lobo da Estepe’ e ‘Goldmund’ é tão feio e ‘judeu’, e que trata apenas de sujeiras. Eu reconheço a melodia que vem de ‘germânico’ e ‘judeu’: Hitler” (apud Michels 197228 MICHELS, Volker. Materialien zu Hermann Hesses Steppenwolf. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1972.: 146). [Tradução minha].
  • 6
    “O contexto do relacionamento do herói com o mundo agora se expandiu além do relacionamento muito pessoal e subjetivo entre Sinclair, Demian e Frau Eva em Demian (1919), mas também não se dissolve na transcendência cósmica remota de Sidarta (1922). Hesse deu a’ O lobo da estepe (1927) uma medida da realidade objetiva que seus trabalhos anteriores não possuíam.” [Tradução minha].
  • 7
    O termo é um utilizado por GENETTE (199510 GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Lisboa, Vega, 1995.). Considera-se “diegese” a realidade ficcional de um livro, cuja organização lógico-temporal remete ao nível dos acontecimentos narrados no mundo que o livro cria. Nesse sentido, o tempo e espaço narrativos são próprios deste mundo ficcional, com suas próprias regras e restrições.
  • 8
    Todas as citações referentes a’O lobo da estepe utilizadas neste texto são extraídas da edição de 201317 HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Tradução de Ivo Barroso. 38. ed. Rio de Janeiro, Record, 2013.. As referências do livro daqui por diante serão indicadas somente pelo número da página.
  • 9
    Tradução minha.
  • 10
    O processo de modernização, contudo, é percebido de modo diferente na arte e na ordem social. Walter Fähnders (20108 FÄHNDERS, Walter. Avantgarde und Moderne. 1890 – 1933. Stuttgart, Weimar, Verlag J.B. Metzler, 2010.: 2) explica que a modernidade ocorrida no nível da sociedade deve ser diferenciada da modernidade estética das obras artísticas, mas esta última se encontra em uma clara tensão com a primeira: como parte da era moderna político-social geral, a modernidade estética a acompanha como uma instância crítica e reivindica autonomia para si. Assim, a modernidade estética, por mais autônoma que seja, marca sempre os sentimentos de perda que a modernização social gera, caracteriza seus custos e levanta suas críticas ao mostrar a ambivalência e ambiguidade do progresso e da racionalização. No entanto, afirma ainda Fähnders (ibid.), isso não acontece como uma crítica cultural conservadora ou antiprogressista, os ainda antimoderna, mas ocorre como um conflito entre a modernização social e a modernidade estética.
  • 11
    Tradução minha.
  • 12
    “A partir da experiência de seu sofrimento na época, Hesse acredita que pode caracterizar a sociedade como um todo com a história autobiográfica de Harry Haller. No entanto, a forma deste romance demonstra que a crise da época não pode ser compreendida no modelo de uma história de crise individual. O lobo da estepe marca a despedida de uma escrita harmônica.” [Tradução minha].
  • 13
    “A modernidade está comprometida com o fragmentarismo: observa a fragmentação do mundo e do ser, o reproduz em suas obras e confia no desejo de superá-lo apenas em construções hipotéticas, ironicamente quebradas ou auto-reveladoras.” [Tradução minha].
  • 14
    “Inicialmente, essa técnica de representação era usada em formas menores, mas logo também passou a ser usada no romance [...]: O lobo da estepe (192714 HESSE, Hermann. Der Steppenwolf. Berlin, S. Fischer Verlag, 1927.), de Hermann Hesse, que consiste em várias partes conectadas internamente, mas que são claramente separadas umas das outras, está ligado ao princípio de montagem em termos de composição […]”. [Tradução minha].
  • 15
    “No entanto, no século 20, a situação muda radicalmente. Entre 1924 e 1933, a cultura alemã produz cinco romances que são clássicos absolutos do alto Modernismo Europeu. São eles A montanha mágica (1924), de Thomas Mann, O lobo da estepe (1927), de Hermann Hesse, Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, Os sonâmbulos (1932), de Hermann Broch, e O homem sem qualidades, de Robert Musil (1933). Todos esses romances compartilham três preocupações: uma aguda consciência da crise cultural, um alto grau de autoconsciência narrativa e uma aspiração utópica urgentemente expressa que, embora presente ao longo dos romances, pode ser sentida com particular intensidade nas partes finais dos textos em questão.” [Tradução minha].
  • 16
    Tradução minha.
  • 17
    A dissertação de SOUZA, “Um Lobo nos trópicos: A recepção crítica de Hermann Hesse no Brasil (1935-2005)”33 SOUZA, João Paulo Francisco de. Um lobo nos trópicos: A recepção crítica de Hermann Hesse no Brasil (1935-2005). Dissertação de Mestrado. 2005.https://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=80553. (15/04/2020).
    https://www.dominiopublico.gov.br/pesqui...
    , mostra como a crítica no Brasil costuma identificar na obra de Hesse a grande influência da psicanálise, sobretudo de Freud e Jung, além do orientalismo e as correntes do individualismo. Souza também demonstra como é uma prática comum desta crítica associar os traços da biografia de Hesse com os seus personagens. Um exemplo disso é justamente a figura de Harry Haller, a qual parece ser inspirada no autor que, à época da escrita do romance, também passava por uma intensa crise existencial. A assonância entre a letra “H” e a cadência no nome dos dois, Harry Haller e Hermann Hesse, corrobora, na visão biográfica, a ligação entre autor e sua criação.
  • 18
    Cohn (19695 COHN, Dorrit. “Erzähltes Bewußtsein im Steppenwolf”. The Germanic Review, v. 44, 121-131, 1969.: 126) explica que há um alto pathos no gesto linguístico do narrador das “Anotações”, que pode ser identificado sobretudo através de exclamações (“Ah, sim!”, “Não, com todos os demônios”), perguntas retóricas (“Eu deveria...?”, “Não seria mais prudente...?”), além de repetições e paralelismos. Cohn nota ainda que foi a tendência patética de Harry, em parte, que o impediu de aprender o “riso” que o teatro mágico propôs.
  • 19
    “Assim, o ‘Tratado do Lobo da Estepe’ reflete os pensamentos suicidas de Haller, que já foram descritos no ‘Prefácio do Editor’ e nas “Anotações” de Haller. O relacionamento de Haller com a burguesia e sua educação severa também são exemplos de espelhamentos do romance, que são retratados nos três níveis diegéticos. Um detalhe admirável em relação à descrição do mesmo evento é a ida do protagonista ao concerto, que é descrita duas vezes em diferentes níveis diegéticos.” [Tradução minha].
  • 20
    O episódio ocorrido na perspectiva do “Prefácio”: “Certa vez pude observá-lo durante toda uma noite, num concerto sinfónico, onde, para minha surpresa, vi-o sentar num lugar próximo ao meu, sem que desse pela minha presença. [...] Distanciado, solitário e estranho, com um olhar frio porém cheio de preocupação, permanecia de olhos baixos” (28) e depois narrado por Harry: “Ouvindo um dueto de Haydn, vieram-me lágrimas aos olhos, não esperei o final do concerto” (147).
  • 21
    “No entanto, na verdade, Hesse deixa bem claro que o romance não é meramente um produto das alucinações de Harry Haller. Ele faz isso através do dispositivo do prefácio do editor. O editor burguês fornece um quadro de referência objetivo para as anotações de Haller e localiza o herói na realidade mundana; as circunstâncias factuais descritas no prefácio reaparecem nas anotações de Haller. O leitor pode, portanto, justificadamente concluir que os escritos de Haller não são pura fantasia, mas decorrem de experiências objetivamente corroboradas.” [Tradução minha].
  • 22
    Grifos meus.
  • 23
    Manuscrito encontrado em: Hermann-Hesse-Nachlass, caixa n. 693a. Cópia manuscrita de O lobo da estepe. A página do manuscrito também se encontra exposta na exposição “Die Seele” (A alma) do Museu da Literatura Moderna em Marbach, Alemanha.
  • 24
    Tradução minha.
  • 25
    Tradução minha.
  • 26
    “Contra a vontade do editor, Hesse insistiu em colocar o “Tratado”, na primeira edição, com uma escrita de outro tipo e uma capa colorida que se diferenciasse da parte principal. Dessa forma, a escrita teria o efeito de um caderno barato e aleatoriamente encadernado, semelhante a pequenos “tratados” que poderiam ser encontrados em feiras como literatura moralista de autoajuda.” (HUBER 199420 HUBER, Peter. Der Steppenwolf: Psychische Kur im deutschen Maskenball. In: Hermann Hesse Romane. Stuttgart, Reclam, 1994, 76-112.: 85). [Tradução minha].
  • 27
    A autonomia do “Tratado” também é atestada pelo fato do texto ter sido também publicado separadamente do livro O lobo da estepe, como informa DHORITY (19737 DHORITY, Lynn. “Who wrote the Tractat vom Steppenwolf?”. German Life and Letters, v. 27, n. 1, 59-66, 1973.: 60).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2020
  • Aceito
    17 Jul 2020
Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
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