O livro a ser apresentado é uma coletânea de artigos produzidos por ex-bolsistas do Programa Franz Werfel, todos germanistas com interesse na literatura austríaca, porém exercendo a docência universitária fora da Áustria. Trata-se, portanto, para o/a leitor/a brasileiro/a, de uma possibilidade de estabelecer um diálogo com discussões da germanística internacional, de conhecer olhares de pesquisadores oriundos de diversos países e línguas sobre a literatura de língua alemã. Antes de apresentar o livro e algumas das suas contribuições, segue uma breve contextualização sobre o referido programa, que oferece oportunidades de bolsas de estudo inclusive para pesquisadores e acadêmicos brasileiros.
Em 1992, a Agência Austríaca de Educação e Internacionalização (OeAD, Österreichs Agentur für Bildung und lnternationalisierung) lançou o Franz-WerfelStipendium, inicialmente liderado pelo saudoso Wendelin Schmidt-Dengler, até seu falecimento inesperado em 2008. Trata-se de um programa de bolsas nomeado em homenagem ao escritor Franz Werfel (1890-1945), que era judeu, nasceu em Praga e escrevia em alemão, assim como seus colegas Franz Kafka e Max Brod. Um dos muitos nomes, portanto, cujas biografias representam o contexto multilíngue e polifônico da Europa, muito antes dos recentes movimentos migratórios. O objetivo do Franz-WerfelStipendium é proporcionar a pesquisadores e professores universitários do mundo todo a oportunidade de passar um período de até 18 meses na Áustria, dedicando-se ao desenvolvimento de projetos de pesquisa sobre a literatura austríaca. Inicialmente, o escopo do programa estava direcionado exclusivamente a germanistas da Europa Central e Oriental, uma escolha estratégica que se fundamentava nos estreitos laços históricos e culturais compartilhados entre essas regiões e a Áustria e nas novas oportunidades que surgiram após a queda do Muro para (re)criar narrativas (literárias) compartilhadas entre essas regiöes, obscurecidas pelo contexto geopolítico anterior. Hoje, o Franz-WerfelStipendium é reconhecido como um programa de excelência pelo Ministério Austríaco de Educação, Ciência e Pesquisa. O programa atende bolsistas da Ásia, África e das Américas e tem o objetivo de impulsionar a pesquisa, o ensino, a colaboração científica ea construção de uma rede internacional de germanistas dedicados ao estudo da literatura austríaca. Além de receberem a bolsa durante sua estadia na Áustria, após voltarem aseu país de origem, os germanistas selecionados podem se candidatar para a Nachbetreuung, que possibilita a continuação no programa, e são convidados anualmente a participar do Simpósio Franz Werfel, que tem um duplo propósito: fortalecer os laços acadêmicos entre os bolsistas e ex-bolsistas e fomentar debates sobre temas específicos e relevantes no contexto da literatura austríaca, a partir de perspectivas da germanística internacional. O tema de cada encontro é escolhido pelos próprios ex-bolsistas, que também assumem a tarefa de editar os volumes que reúnem artigos resultantes dos debates do simpósio.
A título de ilustração, seguem aqui alguns dos temas das publicações dessa série até 2023: "Entre línguas" (Zwischen Sprachen unterwegs, 2006); "Cânone e história literária" (Kanon und Literaturgeschichte, 2010); "Fim de uma era: 1914 nas literaturas da monarquia do Danúbio e os estados sucessores" (Ende einer Ära: 1914 in den Literaturen der Donaumonarchie und ihrer Nachfolgerstaaten, 2015); "Literatura como erotismo. Exemplos da Áustria" (Literatur ais Erotik. Beispiele aus Österreich, 2018); "Fronteiras: Fuga e resistência. Respostas literárias para um tema político" (Grenzen: Flucht und Widerstand. Literarische Antworten auf ein politisches Thema, 2019); "Outras realidades. Para realidades na literatura austríaca" (Andere Wirklichkeiten. Pararealitäten in der österreichischen Literatur, 2023).
Uma parte crucial de todos os simpósios Franz Werfel é a Schmidt-DenglerLesung, realizada sempre no Literaturhaus Wien. A programação consiste na leitura de trechos de uma obra literária recente pelo/a próprio/a autor/a. Além disso, os mesmos trechos são apresentados em traduções elaboradas pelos participantes do programa de bolsas. Em 2023, foi a vez de Barbi Marković, autora do famoso e hilário Ausgehen (2009), inspirado na narrativa Gehen, de Thomas Bernhard (1971), escrito pela autora em língua sérvia e traduzido para o alemão por Mascha Dabić. A escolha dessa autora não foi aleatória, já que ela é de origem sérvia, mas vive na Áustria e, hoje, escreve seus livros em alemão. Marković apresentou passagens de seu romance Die verschissene Zeit (2021) e as respectivas versões elaboradas por alguns dos participantes do simpósio em romeno, croata, polonês e húngaro, que foram lidas pelos próprios tradutores. Este momento do simpósio, aberto ao público geral, não apenas celebra a obra do autor convidado, mas também destaca a diversidade linguística e cultural da germanística internacional.
O assunto central do simpósio Franz Werfel de 2023 foi "Multilinguismo - Polifonia" e o livro aqui apresentado compila os artigos completos - todos com indicações das respectivas referências bibliográficas - que resultaram das comunicações apresentadas durante o evento. Organizado pela germanista tcheca Renata Cornejo e pelo húngaro Tamás Lénárt, o título reúne 15 textos, distribuídos em três secções temáticas distintas: "Entre línguas: estratégias tradutológicas e interferências poetológicas" (Zwischen Sprachen unterwegs: Übersetzungsstrategien und poetologische Interferenzen), "Opções identitárias multilíngues na região da Europa Central" (Mehrsprachige ldentitätsoptionen im zentraleuropäischen Raum) e "A compreensão multilíngue do mundo - desafios de um cotidiano global" (Multilinguale Erfassung der Welt-Herausforderungeneines globalen Alltags). Além disso, uma quarta seção do livro apresenta as passagens do romance Die verschissene Zeit (MARKOVIĆ, 2021), lidas pela autora durante o encontro de 2023, acompanhadas das respectivas traduções para as línguas mencionadas acima.
O tema do multilinguismo na literatura ganha crescente relevância atualmente (cf. BUSCH, 2021; DEMBECK,; PARA, 2020), especialmente à luz dos movimentos migratórios das últimas décadas. Entretanto, conforme ressaltam os organizadores logo no início da introdução, este fenômeno está longe de ser uma novidade. Cornejo e Lénárt (2024: 8) salientam com razão que o multilinguismo merece uma "atenção especial" em qualquer análise da literatura austríaca, "tanto em relação aos conceitos de determinação e delimitação quanto nos estudos sobre a região multicultural e multilíngue da Europa Central". A história do Império Austro-Húngaro, com suas 16 línguas oficiais, é um lembrete poderoso de que o multilinguismo na literatura não é exclusivo da contemporaneidade, mas sim um "fenômeno literário abrangente" e que remete ao mito da torre de Babel (Ibidem).
A primeira seção temática do livro apresenta seis artigos que exploram a fenomenologia da polifonia literária, investigando as diversas formas, funções e intensidades do multilinguismo em textos literários (o livro não parte de uma definição única dos conceitos centrais, polifonia e multilinguismo, cada texto apresenta suas respectivas referências teóricas). Os autores abordam desde nuances dialetais até expressões idiomáticas divergentes, bem como estratégias de alternância de códigos e de tradução aplicadas em textos. Por exemplo, Aleksej Burov (2024) discute a diversidade linguística na literatura medieval, focando especificamente no poema "Das jüngste Gericht" de Frau Ava (1060-1127) (MAURER, 2013), em que Cristo se dirige aos justos em uma das línguas sacras - latim, hebraico ou grego -, enquanto para os pecadores humanos utiliza apenas o idioma alemão. Outras contribuiçöes abordam a coexistência do latim e do alemão em textos antigos como as cartas de São Jerônimo (ČERNÁ, 2024), bem como autores contemporâneos como Gert Jonke (DEBSKA, 2024) e Peter Handke (CARSTENSEN, 2024), em cuja obra o princípio multilíngue é, desde sempre, ancorado na própria biografia do autor e "ligado ao esloveno de modo inseparável" (CARSTENSEN, 2024: 41). É interessante notar que dois artigos desta seção versam sobre autores não austríacos, destacando a amplitude dos interesses dos ex-bolsistas e participantes do simpósio: Edit Kovács (2024) analisa a presença de diversas línguas nos poemas do norueguês Arild Vange, enquanto Támás Lénárt (2024) examina a obra da alemã-húngara Terézia Mora, tratando de sua "poética do estranhamento" e suas diversas estratégias literárias e poéticas (LÉNÁRT, 2024: 87).
A segunda seção temática aborda reflexöes sobre questões identitárias, colocando em xeque a compreensão tradicional da relação direta entre língua e identidade e explorando a relevância literária das biografias bilíngues e multilíngues de autores de diferentes momentos históricos, como Ödön von Horvath, Maja Haderlap e Graf Johann Mailáth, entre outros. No artigo de Edit Király sobre o "Fremd-Sprechen" na obra de Horvath (KIRÁLY, 2024), assim como na contribuição sobre Haderlap (que é da região bilíngue do estado da Caríntia, onde se fala alemão e esloveno), de Jelena Spreicer (2024), destaca-se que a presença de outras línguas na vida e obra de um autor vai muito além de um mero detalhe biográfico, trazendo consequências políticas, estéticas e poéticas significativas. Uma citação de Adorno (1961: 115) ilustra bem o teor desta seção:
A discrepância entre a palavra estrangeira e a própria língua pode servir à expressão da verdade. A linguagem participa da reificação, da separação entre coisa e pensamento. O som habitual do natural engana sobre isso. Ele cria a ilusão de que o que é falado é imediatamente o significado. A palavra estrangeira adverte cruelmente que toda linguagem real tem algo de uma ficha de jogo, ao se reconhecer como tal (apud SPREICER, 2024: 117, tradução própria).
Ainda nessa seção, Gábor Kerekes (2024) analisa as relações que autores tão distintos como Franz Grillparzer, Joseph Roth e Ingeborg Bachmann tiveram com sua língua vizinha, o húngaro.
A terceira seção, dedicada a questões do contexto multilíngue do mundo globalizado e seus reflexos na literatura, traz quatro artigos (de Lehel Sata, Vincenza Scuderi, Naser Šečerovič e Maria Endreva) que discutem as obras de Christoph Ransmayr, Peter Waterhouse, llija Trojanow e Andreas Jungwirth, respectivamente, e suas dimensões de polifonia. Sata (2024) mostra que, em Atlas eines ängstlichen Mannes, de Ransmayr, os elementos linguísticos não alemães têm a função de contribuir para a construção dos espaços geográficos; enquanto, como analisa Scuderi (2024), ocupam na obra de Waterhouse um papel relevante no contexto do projeto pacifista de seu autor. Como bem mostra Scuderi, Peter Waterhouse é um autor cuja obra é especialmente interessante para uma reflexão sobre a polifonia na literatura contemporânea, pois ilustra que uma redução do fenômeno multilíngue ao contexto da migração ignora necessariamente vários aspectos de sua enorme heterogeneidade. Nos textos de Waterhouse, encontra-se ''uma forma de multilinguismo que rompe com todos os esquemas existentes, principalmente porque não se trata de um autor com origens migratórias e seus textos multilíngues não surgem como resultado de diferentes línguas maternas" (SCUDERI, 2024: 191). Waterhouse propõe, no entanto, se pensar uma "creolização" do idioma alemão e reflete sobre o papel da tradução "que não acontece entre as línguas, mas dentro de uma" (Ibidem: 191-192). Os outros artigos ainda abordam questões como poder, incomunicabilidade, gênero e emancipação de minorias, sempre partindo de uma reflexão sobre o papel da diversidade linguística.
A última parte do livro, conforme já mencionado acima, consiste em passagens do romance de Barbi Marković (2021) e suas traduções para diversas línguas.
A relevância da publicação aqui apresentada não se dá devido a alguma proposta inovadora dos organizadores ou de alguma nova abordagem teórica - mas do seu potencial para proporcionar uma visão mais abrangente e includente para questões da germanística contemporânea, a partir de perspectivas pouco ouvidas e lidas no Brasil. Os artigos não dialogam entre si e, obviamente, não abordam todos os autores ou facetas potencialmente relevantes ou interessantes, mas trazem discussões em alto nível acadêmico sobre um fenômeno extremamente interessante e desafiador para qualquer estudo sobre a literatura de língua alemã (que, muitas vezes, não é só de língua alemã), enriquecendo as discussões sobre literatura "de migração" com contribuições originais que ilustram muito bem a complexidade do assunto em foco. Ao mesmo tempo que seus autores apontam, em diversos momentos, a especificidade da literatura austríaca e dos contextos histórico-culturais em que ela é criada, colocam em questão qualquer pretensão de se pensar uma literatura nacional monolíngue e/ou monocultura!.
Por fim, é interessante ainda mencionar que as discussões apresentadas no livro em foco encontram certos paralelos e pontos de contato com debates atualmente em andamento no Brasil e que também ilustram a necessidade de abrirmos mão da ideia de que haja línguas "puras" ou literaturas monolíngues. Lembro aqui apenas dois títulos recentes: Latim em Pó, de Caetano W. Galindo (2022) e Assim nasceu uma língua, do linguista português Fernando Venâncio, recentemente publicado no Brasil (2024). As línguas vivas têm múltiplas origens, são híbridas e mutáveis. O mundo e as literaturas são multilíngues e polifônicos.
Referências bibliográficas
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- VENÂNCIO, Fernando. Assim nasceu uma língua São Paulo: Tinta da China, 2024.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Fev 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Dec 2025
Histórico
-
Recebido
27 Maio 2024 -
Aceito
05 Jun 2024
