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Dramáticas passagens

Dramatic passages

RESENHA

Dramáticas passagens

Dramatic passages

Juliana P. Perez

Professora de Literatura Alemã do Departamento de Letras Modernas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Email: julianaperez@usp.br

KRAUSZ, Luis S. Passagens. Literatura judaico-alemã entre gueto e metrópole. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2012. 459p.

Passagens. Literatura judaico-alemã entre gueto e metrópole, publicado por Luis Sérgio KRAUSZ neste ano de 2012, possui todas as qualidades para se tornar uma obra de referência no âmbito da crítica literária brasileira: linguagem elegante, envolvente e clara (a "cortesia do filósofo", como disse em algum lugar Ortega y Gasset); capítulos completos em si mesmos, por um lado, e inteiramente integrados na argumentação principal, por outro; pressupostos teóricos coerentes com as análises propostas; apresentação marcante do tema; um estudo maturado entre 2006 e 2010, e, por isso, de sabor consistente e profundo.

O livro trata da literatura judaico-alemã moderna, originada do encontro - quase sempre dramático - entre a cultura judaica tradicional e a modernidade europeia. A palavra-chave do título, passagens, é o fio condutor das análises desenvolvidas nos vinte capítulos que constituem a obra e explicitam a transição ocorrida entre formas contrastantes de ver o mundo. O autor resume tal contraste logo no início do livro, por meio de citação de Bertold Auerbach (1812-1882): "A antiga vida religiosa parte da revelação, a nova, da Bildung" [formação e ilustração]. KRAUSZ explica:

[...] os acontecimentos no universo do judaísmo europeu tradicional dividem-se em dois períodos infinitos: o ontem bíblico e o exílio de hoje, dominado pela expectativa da chegada do Messias. Mas o avanço em direção ao Leste das ideias propaladas pela Haskalá judaicoalemã passaria a pôr em questão a insularidade judaica, inerente ao conceito bíblico de galut [o exílio judaico], e a propor a plena integração dos judeus nos estados nacionais emergentes, construídos não mais sobre a base dos dogmas religiosos ditados pelas igrejas, e sim sobre os conceitos tipicamente iluministas de universalismo, direitos humanos e ,,civilização".

É do encontro entre a tradição judaica com esse novo modelo de organização social, que tem como fulcro, na esfera ideológica, a noção de uma humanidade transcendente às especificidades étnicas e religiosas e a ideia fáustica de autonomia humana e, na esfera econônica, a expansão de um capitalismo industrial emergente, voltado para a urbanização, produção e consumo, que surge uma literatura cuja temática central é justamente a ambivalência da situação judaica, na transição que parte de um mundo judaico tradicional, doravante visto como primitivo, obscurantista e supersticioso, em direção às promessas de um novo homem e de uma nova sociedade, fundamentada na noção de progresso, enunciadas pelos filósofos do Iluminismo e responsáveis pela emergência e pela materialização da modernidade europeia ao longo do século XIX. (KRAUSZ 2012: 13s)

O conjunto de problemas apontado nessa síntese introdutória será analisado em cada um dos capítulos, nos quais se dá especial atenção à figura do Ostjude, o judeu do Leste, figura especular do Westjude, o judeu ocidentalizado, supostamente "assimilado" ao seu entorno. Da problemática geral não decorre, como seria possível, uma análise monótona ou cansativa - ao invés, cada uma das obras analisadas apresenta uma nuance diversa dos problemas que o encontro entre a tradição e a modernidade trouxe à cultura judaica.

Dessa forma, após ser familiarizado com conceitos fundamentais da tradição judaica - o exílio e a redenção -, o leitor começa a tomar conhecimento do valor que a Bildung adquire nos escritos de Berthold Auerbach e redescobre a figura de Heinrich Heine (1797-1856) como "o primeiro literato judeu a habitar [o] topos desconfortável entre dois mundos" (Id.: 47): um mundo da tradição, que foi recusado ou abandonado, e um mundo do progresso, que promete integração plena, mas apenas tolera seus novos habitantes. Entretanto, KRAUSZ também mostra que sobre a admiração de vários escritores judeus pela cultura alemã e sobre a esperança de integração plena já paira uma nuvem de dúvida.

Praticamente desconhecido no Brasil e talvez esquecido pela própria literatura judaica é o gênero da Ghettoliteratur, a literatura do gueto, que Krausz apresenta ao leitor brasileiro em vários capítulos de seu livro. Tais textos oferecem, segundo o autor, uma contribuição fundamental para a compreensão das mudanças pelas quais a cultura judaica passou e para a reconstrução histórica das diversas representações do Ostjude. (cf.: 89).

Dentre os autores do século XIX, KRAUSZ analisa as obras de David Bernstein (1812-1884), que, observando a dissolução dos shtetl poloneses, procura preservar a memória de valores ancestrais para integrá-los em um projeto de futuro; de Leopold Kompert (1822-1886), que busca com esperança uma síntese harmônica entre o antigo e o novo; e de Karl Emil Franzos (1848-1904), que estava convicto da ideia de uma simbiose judaico-alemã, da qual só começou a duvidar ao final de sua vida. O escritor Isidor Borchardt (1865-1932), ao invés, observa a modernização dos costumes e a adoção de um ideal burguês no lugar da tradição como sinais irrefutáveis do declínio da cultura judaica. Assim surge, segundo KRAUSZ, a figura negativa do Westjude - materialista, ambicioso, corrompido, modernizado, germanizado - como contraponto à figura do Ostjude, o judeu pertencente a uma realidade em vias de extinção.

O antissemitismo que começa a minar a esperança de integração dos judeus a uma cultura secular, a substituição do paradigma religioso por um paradigma cultural, as mudanças nas condições de vida dos judeus do Império Austro-Húngaro e o desenraizamento irreversível são temas das obras do início do século XX. Tais temas estão presentes em narrativas de Julius David (1859-1906), de Arthur Schnitzler (1862-1931) e Adolf Dessauer (1849-1916). O primeiro revela o jogo de máscaras em que se transforma a assimilação tão ardentemente desejada; os dois últimos retratam tanto o desejo quase obsessivo de integração quanto o de retorno às raízes judaicas, que levaram ao surgimento, em Viena, "de uma cultura judaica altamente singular" (271), como afirma Krausz.

Por sua vez, a obra de Georg Hermann (1871-1943) surge no contexto de um crescente antissemitismo e retrata as tensões entre dois grupos de judeus, os já supostamente assimilados e os ainda supostamente rudes, primitivos, avessos aos ideais da Bildung. Enquanto alguns autores nutrem a distância das formas tradicionais da vida judaica, enxergando-as como ameaças ao status social alcançado, outros, como Martin Buber (1871-1965), nascido em Viena e criado em Lemberg, na Galícia - um dos centros da Haskalá no século XIX -, não apenas redescobre, mas se torna um dos principais difusores do hassidismo, antiquíssima corrente da mística judaica que se torna alternativa para a ideia de progresso. Na linha de Buber, Arnold Zweig (1887-1968) procura revalorizar a imagem do Ostjude, apresentando-o como portador de uma integridade espiritual perdida.

A impossibilidade de retornar a uma identidade perdida e de se integrar ao ambiente secularizado é tema da obra de Jakob Wassermann (1873-1934): paradoxalmente, enquanto a cultura judaica secularizada continua a defender - quase como nova religião - o ideal cosmopolita da Bildung, tão caro à cultura de língua alemã, a sociedade alemã da época começa a se caracterizar pelo nacionalismo exacerbado que pouco conhece a própria tradição filosófica e cultural. A busca de um judaísmo ainda não filtrado "pelo esteticismo da Bildung" e não "contaminad[o] pelas virtudes prussianas cardeais - rigor, objetividade, sobriedade" está presente em textos de Alfred Döblin, que encontra, na figura pobre e estranha do Ostjude, a possibilidade de crítica do próprio ideal de assimilação.

O capítulo sobre Döblin, diga-se de passagem, bem como o capítulo sobre a obra de Elias Canetti (1905-1994) são os que mais se quereriam longos. Talvez por serem autores mais conhecidos do leitor brasileiro, este gostaria de ler análises feitas por Krausz de outros textos de Döblin e Canetti e ousa desejar que Krausz ainda possa escrever sobre os dois escritores em livros futuros.

O autor trata também da obra de Heinrich Kurtzig (1865-1946), Joseph Roth (1894-1939), Isarel Joshua Singer (1893-1944) e termina com uma coda sobre um romance inacabado de Shmuel Yosff Agnon (1888-1970), escritor nascido na Galícia austro-húngara que redigiu seus escritos em hebraico.

Devido à ordenação cronológica dos capítulos, por vezes, o leitor tem a impressão de que o ensaio se torna, ele mesmo, a complexa narrativa de um enredo que ainda não chegou ao seu fim. A extensa pesquisa feita por Luis S. KRAUSZ mostra que substituição de um paradigma de caráter metafísico por um paradigma de caráter racionalista percorre um longo e melancólico itinerário - que vai da negação teórica ou prática da tradição, passa pela idealização e internalização de uma ética moderna, pela evasão em um novo esteticismo, começa a se revelar como ilusão, desespero, alienação, ruptura com o passado e solidão até chegar à perda total de liberdade - interior e exterior. Com grande honestidade intelectual, o autor não faz lamentos ou apelos, tampouco oferece respostas às aporias que apresenta - apenas constata o que lhe parece evidente nos textos literários que escolheu estudar.

O livro de Krausz segue, assim, a longa tradição dos estudos literários brasileiros que pesquisam as relações entre literatura e sociedade. Mesmo os que questionam os pressupostos teóricos dessa abordagem, na qual o texto é espelho, reflexo da sociedade em que é escrito, reconhecerão de bom grado que tais estudos, quando levados tão a sério como neste caso, podem dar resultados simplesmente admiráveis.

Recebido em 12/11/2012

Aprovado em 27/11/2012

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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