Open-access Análise comparativa dos marcadores discursivos mal, yíxià e uma vez: gramaticalização em alemão, mandarim e português-alemão

Comparative analysis of the discursive markers mal, yíxià and uma vez: grammaticalization in German, Mandarin and Portuguese-German

Resumo

Este artigo apresenta uma análise comparativa dos marcadores discursivos mal no alemão e yíxià no mandarim, conforme abordado por König e Li (2018), juntamente com uma vez do português-alemão, como estudado por Ruscheinsky (2014), com o intuito de evidenciar sua semelhança no processo de gramaticalização. O processo de gramaticalização transforma itens lexicais em gramaticais ou itens gramaticais são transformados em mais gramaticais. Já o processo de mudança linguística por contato linguístico é um processo restrito a uma região resultante de eventos históricos específicos. Sugere-se que a forma uma vez foi influenciada por ambos os processos, resultando em uma gramaticalização induzida pelo contato linguístico. Os dados foram coletados por meio de anotações no caderno de campo e de entrevistas com falantes bilíngues português-alemão do oeste de Santa Catarina realizadas nos anos de 2012 e 2013. As produções com uma vez foram comparadas com as formas mal e yíxià apresentadas na bibliografia. Os resultados apontam que a forma uma vez do português também é similar a mal e yíxià na mudança semântica e na expansão contextual, mas o processo de gramaticalização de uma vez parece estar atribuído ao contato linguístico português-alemão. Já a expansão contextual de lugar para tempo e qualidade é semelhante nas três formas.

Palavras-chave:
Gramaticalização; contato linguístico; multifuncionalidade; mudança linguística

Abstract

This article presents a comparative analysis of the discursive markers mal in German and yíxià in Mandarin, as discussed by König and Li (2018), together with uma vez in Portuguese-German, as studied by Ruscheinsky (2014) with the aim of highlighting their similarity in the grammaticalization process. The process of grammaticalization transforms lexical items into grammatical ones or grammatical items are transformed into more grammatical ones. The process of linguistic change through linguistic contact is a process restricted to a region resulting from specific historical events. It is suggested that the form uma vez has been influenced by both processes, resulting in a grammaticalization induced by linguistic contact. Data were collected through notes in the fieldbook and interviews with bilingual Portuguese/German speakers from the west of Santa Catarina carried out in 2012 and 2013. The productions with uma vez were compared with the forms mal and yíxià presented in the bibliography. The results indicate that the Portuguese form is also similar to mal and yíxià in terms of semantic change and contextual expansion, but the process of grammaticalization of uma vez seems to be attributed to Portuguese- German linguistic contact. The contextual expansion from place to time and quality is similar in all three forms.

Keywords:
Grammaticalization; language contact; multifunctionality; language change

1 Introdução

Em alemão, mal é uma forma reduzida de einmal, que combina o numeral ein (em português um) e o substantivo Mal, que ora já denotou um pequeno espaço e depois passou a denotar pequenas unidades de tempo. Em mandarim2, yíxià (em português uma vez) é uma combinação de numeral e frase classificadora, usada para denotar a frequência de um evento, geralmente de pequena duração. O substantivo Mal, no alemão, passou por um processo de mudança semântica de “mínima frequência” para “mínimo esforço". A forma yíxià também é usada como advérbio temporal, e indica a curta duração de um ato e a suavização do tom do enunciado.

Traduzindo para o português, mal significa uma vez e é uma expressão sinônima de “em certa ocasião, outrora”. No português brasileiro, uma vez é usado com sentido de tempo: “Uma vez eu tava falando sobre isso” e de qualidade, demonstrando momentos que se repetem: “Tinha uma vez uma propaganda”. Além desses usos, a expressão uma vez é usada em frases imperativas por falantes bilíngues português-alemão, conforme estudo de Ruscheinsky (2014)3, em frases como: “Olha uma vez aqui”, “Você pode vir uma vez aqui?” e “Agora chega uma vez”. Estes sentidos serão detalhados mais adiante.

Este artigo objetiva revisar os estudos acerca do marcador discursivo mal do alemão e da forma yíxià do mandarim, conforme König e Li (2018), e, por fim, investigar a multifuncionalidade de uma vez do português falado por bilíngues português-alemão, segundo Ruscheinsky (2014). A análise é sustentada por uma abordagem funcionalista de gramaticalização, com ênfase na mudança semântico-pragmática e categorial de mal e uma vez induzida pelo contato linguístico.

As ocorrências de uso dessas formas passaram por processos de gramaticalização, ou seja, processos nos quais a gramática é criada, tanto a partir de formas lexicais transformadas em formas gramaticais, quanto a partir de formas gramaticais transformadas em formas mais gramaticais.

Os cinco princípios propostos por Hopper (1991), estratificação, divergência, especialização, persistência e decategorização4, possibilitam diagnósticos da emergência de formas e construções gramaticais e também de diferentes graus de gramaticalização dos itens em que esta já pode ser reconhecida. A estratificação são as novas camadas que estão continuamente emergindo, podendo coexistir e interagir com as camadas antigas. A divergência é quando uma forma lexical sofre gramaticalização em clítico ou afixo. Nesse caso, há uma situação de convivência entre a categoria-fonte (por exemplo, verbos ou substantivos em seu pleno funcionamento sujeitos a expansão de sentido e a flexões) e os itens já em contextos gramaticalizados, com função gramatical diferente, como partícula modal, preposição ou marcador discursivo. Já a especialização ocorre quando uma variedade de escolhas formais se estreita e um menor número de formas selecionadas assume significados gramaticais mais gerais. O princípio da persistência demonstra quando um significado gramaticalizado novo se desenvolve, mas não significa que o significado anterior, a categoria-fonte, seja perdido. E a decategorização acontece quando formas que estão sofrendo gramaticalização tendem a perder ou neutralizar seus marcadores morfológicos e características sintáticas peculiares das categorias plenas, ou seja, nome e verbo, e a assumir atributos característicos de categorias sintáticas secundárias como adjetivo, particípio, preposição, etc.

Também se considera a aplicação de quatro parâmetros que auxiliam na identificação do estágio de gramaticalização em que se encontram os dados analisados: extensão, mudança semântica, decategorização e erosão (HEINE; KUTEVA, 2003; HEINE; NARROG, 2015). A extensão é o surgimento de novos significados gramaticais quando as expressões linguísticas são estendidas a novos contextos; a mudança semântica é a perda ou generalização do significado; a decategorização é a perda de propriedades morfossintáticas características de formas lexicais ou outras formas menos gramaticalizadas; e a erosão é a redução fonética, ou seja, uma simplificação formal.

A gramaticalização é um processo baseado em estratégias universais de transferência conceitual. Já a mudança induzida pelo contato linguístico é um processo restrito a uma área resultante de específicos eventos históricos. De acordo com Heine e Kuteva (2003), esses dois processos não são mutuamente excludentes e podem juntos motivar a mudança gramatical5, ou seja, um processo de gramaticalização induzido pelo contato entre línguas devido à influência de uma língua sobre a outra, denominado Contact-induced grammaticalization. Para isso, apresentam os conceitos de língua modelo (model languages - M), ou seja, aquela que fornece o modelo a ser transferido, e de língua réplica (replica languages - R), aquela que faz uso do modelo, termos já usados por Weinreich ([1953] 1979: 30-1).

Os dados da língua portuguesa usados neste estudo e que evidenciam a mudança induzida por contato linguístico são oriundos de Ruscheinsky (2014), pois se trata de um processo restrito a uma área e resultante de características históricas específicas. Ruscheinsky (2014) descreveu o uso da variante uma vez no português falado em Itapiranga e São João do Oeste, localidades situadas no oeste de Santa Catarina, Brasil, com forte presença de falantes de variedade do alemão como língua de imigração. Os municípios fizeram parte de um projeto de colonização chamado Porto Novo, organizado pela entidade filantrópica Volksverein (também chamada de Sociedade União Popular) a partir de 1926, que vendia lotes de terras exclusivamente para alemães (natos ou descendentes). O alemão continua sendo uma das línguas atuais, inclusive, São João do Oeste tem o título de Capital Catarinense da Língua Alemã e a Lei Municipal nº 1685/2016 institui a co-oficialização da Língua Alemã.

Os dados de Ruscheinsky (2014) foram coletados segundo a metodologia proposta pela dialetologia pluridimensional e relacional, conforme Thun (1998). Foram realizadas 16 entrevistas com falantes bilíngues alemão-português das duas localidades, distribuídos conforme a idade (geração velha, GII, e jovem, GI - dimensão diageracional), sexo (Masculino e Feminino - dimensão diassexual) e o nível sociocultural (escolaridade básica Cb ou superior Ca- dimensão diastrática). Cada entrevista era formada por três partes: tradução de frases, conversa livre e leitura de texto. Os resultados apontam maior disparidade dos dados de uso da variante na dimensão diassexual em que as mulheres usam mais a variante uma vez e não apresentam comentários estigmatizados acerca desse uso. A Ca usa a variante mais frequentemente em relação à Cb, o que pode atribuir prestígio ao uso da variante.

Este artigo está estruturado em cinco seções: três seções apresentam, cada uma, os processos de gramaticalização de mal do alemão, yíxià do mandarim e uma vez em português, respectivamente; a seção seguinte apresenta uma análise comparativa entre esses três fenômenos tendo como base os princípios do Hopper (1991); e, ao final, tecemos algumas considerações.

2 Gramaticalização de mal em alemão

O processo de gramaticalização da forma mal foi investigado por König e Li (2018). A partícula mal é a forma reduzida de einmal, ou seja, a junção do numeral ein (um ou uma, em português) e do substantivo Mal. De acordo com os autores, o significado do substantivo Mal no Velho Alto Alemão e no Médio Alto Alemão é muito parecido com o sentido atual, no Alemão Moderno, ou seja, significa um ponto ou um marco. Entretanto, esse uso apenas está presente atualmente em substantivos compostos como Mahnmal (memorial) e Wundmal (ferimento). Assim como König e Li (2018) apontam, Mal denota uma unidade pequena e saliente.

Houve uma mudança semântica de lugar para tempo, processo muito difundido entre as línguas, conforme mostra Haspelmath (1997). Assim, combinado com números cardinais, o substantivo temporal Mal tem dois usos: denotar frequência ou um tempo qualquer, como nos exemplos indicados por Ruscheinsky (2014: 28) e König e Li (2018: 57), respectivamente:

  • 1) a. Er hat mich einmal besucht. Ele me visitou uma vez.

  • b. Einmal habe ich fünfmal getroffen. Certa vez acertei o alvo cinco vezes.

Os dois significados são muito similares e os exemplos ambíguos, pois einmal pode tanto indicar a frequência (apenas uma vez) ou uma certa ocasião. Entretanto, em ambos os usos, a forma pode ser reduzida para mal, passando a ser uma partícula que não pode ser usada antes de verbos infinitivos nem ser negada. Isso demonstra a perda de morfemas gramaticais, característica muito frequente em itens que passam pelo processo de gramaticalização.

König e Li (2018) empregam o termo gramaticalização tanto para se referir à teoria como ao processo e atribuem a explicação do processo unidirecional e dinâmico. Da mesma forma, Heine e Narrog (2015: 407) definem a gramaticalização “como o desenvolvimento de uma forma lexical para uma forma gramatical, ou para uma mais gramatical ainda6. König e Li (2018: 59) demonstram a erosão (einmal > mal) e a mudança semântica (frequência mínima > esforço mínimo) descrita dessa forma: “Uma expressão denotando frequência mínima incorporou a implicação contextual de que o serviço solicitado requer mínimo tempo e mínimo esforço”7.

Entretanto, é importante destacar que a gramaticalização destas expressões lexicais ocorre apenas em contextos específicos, mais especificamente, em enunciados imperativos. Assim, essa descrição serve apenas para enunciados imperativos e interrogativos usados para pedidos que requerem pouco esforço do interlocutor, como nos enunciados 2a e 2b, não sendo aceitos enunciados que denotam muito esforço, como em 2c:

  • 2) a. Könntest du endlich mal (= ‘EINmal, ein einziges Mal’) dein Zimmer aufräumen? Você poderia arrumar seu quarto?

  • b. Könntest du mir mal € 10 leihen? Você pode me emprestar 10 euros?

  • c. * Könntest du mir mal (kurz) ein Haus schenken? Você poderia me dar uma casa de presente?

Enunciados imperativos com a partícula modal mal reduzem o comprometimento do ouvinte, como em 2a, ou caracterizam o pedido como algo pequeno, como em 2b.

Pedidos casuais, já caracterizados pelo falante como não urgentes, têm um efeito coexistente de polidez, por isso, a forma mal muitas vezes é analisada como marcador de polidez.

Os autores defendem que essa mudança é um exemplo de gramaticalização, visto que há uma erosão (de einmal para mal) e uma mudança semântica (de mínima frequência para mínimo esforço), assim como o fato de essa mudança ocorrer apenas em alguns contextos. Também apontam a mudança de uma avaliação objetiva de frequência para uma avaliação subjetiva de esforço, pois o sentido de frequência não está mais no enunciado.

Conforme destacam König e Li (2018), essa mudança é extremamente rara e não é identificada em outras línguas europeias, como o francês ou inglês. Segundo os autores, é preciso haver evidências de outras línguas para que essa mudança seja considerada um caso relevante. Um desenvolvimento paralelo pode ser encontrado no mandarim, o que será descrito a seguir.

3 Gramaticalização de yíxià em mandarim

Esta seção aborda o desenvolvimento histórico da forma 一下 yíxià que remonta ao Antigo Chinês. Originalmente, a forma era um substantivo com o significado de ‘a localização mais baixa, o fundo’, opondo-se à forma 上 shàng (a posição mais alta, o topo). Desse substantivo, derivou o verbo 下 xià com o significado de ‘mover-se do alto para o mais baixo’. Enunciados com esses usos são apresentados por König e Li (2018: 66).

  • 3) a. Shān xià chū quán. Há um riacho ao pé da montanha.

  • b. Yīn yáng biàn huà, yíshàng yíxià, hé ér chéng zhāng. A mudança de yin e yang, um se move para cima, o outro para baixo, assim a combinação compõe uma parte da música.

O enunciado 3a tem a forma xià (substantivo) significando a parte mais baixa, já 3b apresenta o verbo yíxià com significado de ‘mover para baixo’, opondo-se ao verbo yíshàng (mover para cima). A expressão yíxià passou a ser usada também como classificadora, para indicar uma ação rápida de cima para baixo. Entre os anos 400 e 600, a expressão também foi usada para uma ação rápida, mesmo que não seja de cima para baixo.

Entre os anos de 960 a 1369, ainda de acordo com König e Li (2018), nas Dinastias Song e Yuan, alguns verbos passaram a ser usados com a expressão yíxià, estendendo seu contexto e frequência de uso de classificadora para um advérbio temporal com significado de ‘curta duração’. Os enunciados 4a e 4b indicam essa curta duração:

  • 4) a. Wǒ yě xiǎng shāowēi xiūxī yíxià. Eu quero um descanso.

  • b. Xiàng nà shítóu měng jī yíxià. (Ele) bateu na pedra uma vez com força.

Baseados no dicionário Eight Hundred Words from Modern Chinese (LÜ SHUXIANG, 1999: 565) e na gramática Practical Modern Chinese Grammar (LIU YUEHUA, 2001: 135), König e Li (2018) analisam o lexema 一下 yíxià como tendo dois usos: uma combinação de “numeral + classificador”, que denota a frequência de uma ação ou evento, e um advérbio temporal, mostrando a curta duração de uma ação e um tom suavizado do enunciado.

  • 5) a. Tā qiāo le yíxià zhuō zi. Ele bateu na porta uma vez.

  • b. Qǐng shuō yíxià nǐ de xìngqù. Por favor, fale um pouco sobre seu hobby.

Os autores destacam que a ausência de yíxià na frase a torna mais direta, soando como uma ordem, como em 6a, contrastando com o par 6b, que traz um tom mais casual e polido.

  • 6) a. Nǐ guòlái. Venha.

  • b. Nǐ guòlái yíxià. Venha aqui por favor.

  • c. Nǐ néng jiè yíxià10 yuán gěi wǒ ma? Você pode me emprestar $10, por favor?

  • d. *Nǐ néng bāng wǒ mǎi yíxià fángzi ma? Você pode me ajudar a comprar uma casa?

König e Li (2018) também destacam que seu uso não é adequado em contextos que exijam altos custos ou esforços extremos, como ajudar a comprar uma casa, em 6d, diferente de emprestar uma pequena quantia em dinheiro, expresso em 6c. Ao minimizar a duração do serviço solicitado, o enunciado mostra que o falante não quer se impor em relação ao ouvinte, apenas solicita um pouco de seu tempo e esforço. Assim, yíxià não denota um intervalo de tempo, mas é usado como um princípio de polidez.

Assim, compara-se a gramaticalização do marcador discursivo mal do alemão com a forma yíxià do mandarim. Tanto mal quanto yíxià, no seu desenvolvimento de "frequência mínima" para “duração mínima” e "mínimo esforço” e um “indicador de polidez”, manifestam algumas características típicas da gramaticalização, como apontado pelos autores. Ambos apresentam mudanças semânticas, expansão contextual e erosão semelhantes. É importante destacar novamente que essas características não ocorrem em línguas europeias, que tenham proximidade geográfica com o alemão, e sim com o mandarim, apesar da distância geográfica.

Segundo König e Li (2018), isso demonstra que esses processos de gramaticalização são baseados em princípios cognitivos e interacionais, como o princípio da polidez, podendo ocorrer em outras línguas. A seguir, na próxima seção, vamos demonstrar como esses processos ocorrem com a expressão uma vez no português falado por bilíngues alemão-português, usando os exemplos de uso anotados no caderno de campo de 2012 a 2014 e nas entrevistas de Ruscheinsky (2014)8.

4 Multifuncionalidade de uma vez em português

Nesta seção, nosso objetivo é descrever as multifuncionalidades de uma vez, da mesma forma que foi feito nas seções anteriores com as expressões mal em alemão e yíxià em mandarim, que apresentam mudanças semânticas e expansão contextual. Enunciados como “Eu estava uma vez lá”, “Eu tinha uma vez um fusca”, “Ele vem aqui uma vez por dia”, “Olha uma vez lá”, “Eu li uma vez esse livro”, “Chama ela uma vez”, “Faz uma vez cinco vezes vinte e cinco para ver quanto dá” foram produzidos por falantes bilíngues português-alemão e descritos no estudo de Ruscheinsky (2014). Passamos, a seguir, à descrição de peculiaridades morfossintáticas e semântico-pragmáticas desses usos.

Uma vez é a combinação do número cardinal uma com o substantivo vez. Ao contrário de mal, que não apresenta mais o status de nome em alemão, exceto em alguns nomes compostos, vez mantém essa classe morfológica no português. Entretanto, de acordo com Castilho e Ramos (2003), entre as propriedades cognitivas de base9, vez também apresenta a propriedade de lugar, assim como mal em alemão. A seguir, estão as três propriedades cognitivas de base analisadas por Castilho e Ramos (2003), segundo dicionários da língua portuguesa:

/LUGAR/, perceptível em “tirar a vez de alguém”, de que derivam (i) “substituir/ocupar o lugar de outrem”, como em “fez as vezes do cobrador, para ficar com o dinheiro”, “começou logo a gritar, em vez de discutir calmamente”, (ii) lugar no eixo argumental, como em “em vez de entrar, saiu”, “uma vez que / de vez que você não me ouve, desisto”, “uma vez que você me dê ouvidos, te atenderei”, deslizando já para /TEMPO/ e /QUALIDADE - condição/, nestas acepções (CASTILHO; RAMOS, 2003: 20).

LUGAR, como primeira categoria cognitiva de base, está presente no enunciado “tirar a vez de alguém”, ou seja, pode ser substituído por “tirar o lugar de alguém”. O sentido de TEMPO está presente na construção “começou logo a gritar, em vez de discutir calmamente”, pois indica que há alternativas para aquele tempo. A QUALIDADE é expressa no eixo argumental, pois o falante argumenta sobre suas decisões: “uma vez que você me dê ouvidos, te atenderei”. Castilho e Ramos (2003) indicam que o deslizamento para tempo e qualidade já está presente nesta propriedade, estando de acordo com Givón (2001) que postula que durante a sucessão de funções, uma estrutura sempre passa por um estágio em que pode desempenhar simultaneamente dois significados.

Entretanto, apesar de mal e vez integrarem a mesma categoria morfológica, percebe-se que o sentido de lugar não é aquele inicial que mal apresenta, ou seja, um marco ou um pequeno ponto que é perceptível em relação ao espaço maior em que está inserido. Pelos exemplos de uso citados por Castilho e Ramos (2003), o sentido de lugar indicado por vez implica também a opção de outrem. Os enunciados, a seguir, indicam também essa possibilidade: outra pessoa para arrumar e trabalhar ou não:

  • 7) a. “Agora é a tua vez de arrumar a bagunça uma vez” (Caderno de campo, 25/12/12)

  • b. “E se a classe trabalhadora para uma vez de trabalhar, vamos ver o que vai dar” (Caderno de Campo, 06/05/13).

Os enunciados acima também permitem a percepção de tempo, ou seja, em 7a percebe-se pelo emprego do “agora” a indicação de duas ocasiões para arrumar e em 7b duas opções: agora trabalha; outrora, não trabalha.

Castilho e Ramos (2003) definem a propriedade de tempo dessa forma:

/TEMPO/, que deriva metaforicamente de /LUGAR/, de que decorrem (i) “momento de um evento, próximo ou remoto”, como em “era uma vez uma princesa”, “na vez dele, fique quieto!”, “chegou sua vez”, “desta vez ele não me escapa”, “esta fruta ainda está de vez” [isto é, antes de madura], (ii) “alternância de momentos”, como em “falava de vez em quando / de quando em vez / por vezes” (CASTILHO; RAMOS, 2003: 20).

A passagem do cline espaço > tempo ocorre quando deriva de lugar, ou a vez de alguém, como em “fez as vezes do cobrador”, para tempo, como em “na vez dele, fique quieto”. A expressão uma vez apresenta essa propriedade de tempo, ou seja, o momento de um evento, em enunciados como:

  • 8) a. Tu já falou isso uma vez (Caderno de Campo, 03/12/2012).

  • b. Eu estava lá só uma vez (Tradução de frases, 13/02/2014).

Os enunciados mostram o momento do evento único, não de forma exata, mas no tempo remoto, aspecto evidenciado pelo uso do verbo no pretérito.

Já a propriedade de qualidade não demonstra o momento de um único evento, mas de momentos que se repetem, como destacado por Castilho e Ramos (2003: 20):

/QUALIDADE/, conceito abstrato que deriva metaforicamente de /TEMPO/, na indicação de “momentos que se repetem”, de que decorre o Aspecto Iterativo, como em “o trem- de-ferro às vezes chega no horário”, “muitas vezes reclamei contra isso”, “por vezes acho que não tenho a razão”.

Por indicar momentos que se repetem, derivando de tempo, vez adquire o aspecto iterativo. Isso é perceptível quando comparado com itens em que aparece a noção de qualidade. Assim, na ocorrência “o trem-de-ferro às vezes chega no horário”, a noção de qualidade fica evidente quando substituímos por “o trem-de-ferro sempre chega no horário”.

Os enunciados com a expressão uma vez, a seguir, apresentam essa propriedade, apesar do uso do numeral uma e da forma no singular (vez), a qualidade que indica momentos que se repetem está clara, pois o processo ocorria/ocorre frequentemente:

  • 9) a. Mas uma vez vocês vinham nas segundas-feiras (Caderno de Campo 16/10/12).

  • b. Ele vem uma vez por dia aqui (Tradução de frases, 13/02/2014).

A noção de qualidade fica clara ao substituir a forma uma vez por um item de qualidade que se opõe, como a forma sempre: “Mas sempre vocês vinham nas segundas- feiras”. O aspecto iterativo, que indica repetição, dá a noção de qualidade.

Em síntese, o processo de semantização da forma vez provém desde o latim uicis com sentido de ‘no lugar de’ e passou para o português com o sentido de ‘no turno de’, de acordo com Ernout-Meillet (1967 apud CASTILHO; RAMOS, 2003). Os mesmos autores trazem Cunha (1982 apud CASTILHO; RAMOS, 2003, s.v. vez) que destaca outro desdobramento do sentido básico de lugar: indica um fato na sua unidade ou na repetição, um ensejo, uma ocasião. Com essas ocorrências, é possível captar os vários sentidos desenvolvidos por metáfora no processo de semantização de vez: “da representação do ESPAÇO (Locativo: “em determinado momento”, “no lugar de”) > TEMPO (“ocasião”) > QUALIDADE (= Aspecto Iterativo / “repetição”, Conjunção / “condição”).

Castilho e Ramos (2003) se apoiam em Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991) que destacam que a escala ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE demonstra muitas das abstrações metafóricas que ocorrem quando estruturas básicas se desenvolvem em estruturas gramaticais. Esse processo ocorreu com as três formas deste estudo: a forma vez derivou do latim uicis, com sentido de lugar. A forma 一下 yíxià remonta ao Antigo Chinês e, originalmente, a forma era um substantivo com o significado de ‘a localização mais baixa, o fundo’. A forma do alemão mal teve seu sentido mais remoto, ou seja, o sentido de um ponto ou marco, mantido no Alemão Moderno, porém apenas em palavras compostas, conforme apresentado anteriormente com base em König e Li (2018).

Além disso, de tempo que denota apenas uma ocasião e da qualidade que indica a repetição, o aspecto iterativo de uma ação, é possível indicar o desenvolvimento de uma vez para usos imperativos, em que o interlocutor solicita ações que fazem parte do cotidiano e que não demandam muito esforço por parte do ouvinte. Para isso, usamos exemplos de Ruscheinsky (2014), cujo estudo foi realizado com falantes português- alemão, moradores das localidades de Itapiranga e São João do Oeste, colonizadas exclusivamente por descendentes de alemães (e alemães) e com forte presença da variedade alemã10, como:

  • 10) a. Experimenta uma vez (Caderno de campo, 27/08/12).

  • b. Experimenta.

  • c. “Procura ela uma vez no Face, tu não reconhece ela mais” (Conversa livre, 04- 03-14).

  • d. Dá uma olhada nisso.

  • e. Traz uma vez água (Tradução de frases, 13/02/14).

  • f. Traz água.

Com a expressão uma vez, os enunciados reduzem o comprometimento do ouvinte em atender o pedido, que apresenta um aspecto sugestivo. Da mesma forma, se comparados a seus pares sem a forma uma vez (10b, d e f), os enunciados deixam de apresentar o efeito de polidez. Assim, uma vez pode ter um efeito na força ilocutória do enunciado.

Outra análise possível da expressão uma vez é como um indicador de pouco comprometimento do falante com o que é dito, com a verdade do enunciado declarativo. Vejamos as seguintes ocorrências:

  • 11) a. Quero estudar uma vez de novo (Caderno de campo, 01-10-12).

  • b. Também tenho que começar uma vez a xingar (Caderno de campo, 27-12-12).

Os enunciados apresentam uma ação ou vontade que o próprio falante indica para si mesmo, mas o uso de verbos como querer e começar mostram o descomprometimento com o que é dito. Como o falante é o possível autor das ações do enunciado, o uso de uma vez atenua a força ilocutória do enunciado, diminuindo o comprometimento do falante para a realização da ação.

É possível descrever os usos de uma vez no português falado por bilíngues português-alemão da seguinte forma: identificamos usos do substantivo vez com base cognitiva de LUGAR, também passando por TEMPO usado com o numeral uma e assim como QUALIDADE, ao apresentar o aspecto iterativo, chegando ao uma vez em enunciados com força ilocutória, como marcador de polidez ou baixo comprometimento por parte do falante e do ouvinte. Assim, percebe-se a semelhança entre as expressões mal do alemão, yíxià do mandarim e uma vez do português falado por bilíngues português-alemão, apesar de este último não apresentar um processo de erosão como os dois termos anteriores.

Entretanto, enunciados como os exemplos 10 e 11 são característicos da fala de bilíngues de variedades do alemão e do português. O contato linguístico intenso entre essas variedades pode ter incentivado os falantes a desenvolver algumas características linguísticas para equiparar conceitos entre as línguas.

Heine e Kuteva (2003) analisam vários casos de mudança induzida pelo contato linguístico. De acordo com os autores, a gramaticalização, como uma estratégia universal de transferência de conceitos, é um processo que leva do nível lexical ao gramatical e do gramatical para formas mais gramaticais. Por outro lado, a mudança induzida por contato linguístico é um processo restrito regionalmente, resultante de eventos históricos específicos.

Para os autores, há dois tipos de gramaticalização induzida pelo contato: a gramaticalização comum e a de réplica11. A primeira refere-se ao processo quando não há um modelo gramaticalizado na língua modelo e a gramaticalização ocorre na língua réplica, baseado em estratégias universais de gramaticalização. A gramaticalização de réplica é aquele em que um há modelo de gramaticalização que é transferido para língua réplica, usando os materiais disponíveis na sua própria língua.

Como exemplo de gramaticalização por réplica, Heine e Kuteva (2003) citam um dialeto polonês da Silésia (Wasserpolnish), cujos falantes, devido ao contato com a língua alemã (a língua modelo), expandiram o uso do pronome da terceira pessoa do plural para a segunda pessoa do singular em contextos formais. Weinreich ([1953] 1979: 40) cita o exemplo: dokąd idą? como semelhante a Wohin gehen Sie?12 Essa extensão também ocorreu na língua modelo, o alemão, em que o pronome Sie é usado para a terceira pessoa do plural e seu uso foi expandido para a segunda pessoa do singular usado em referência formal, como em Wohin gehen Sie? Provavelmente, os falantes do polonês não tinham conhecimento dos sentidos anteriores que motivaram a gramaticalização na língua modelo, mas tinham acesso a informações sociolinguísticas, pragmáticas e gramaticais que foram suficientes para motivar a gramaticalização por réplica.

Outro exemplo é o processo de gramaticalização na língua portuguesa falada por alemães residentes há mais de cinco anos (um informante reside no Brasil há mais de 50 anos) em São Paulo. Esse processo foi estudado por Rezagli (2009), que demonstrou que “a estrutura para+infinitivo foi utilizada em contextos semânticos que põem em dúvida seu valor de finalidade, sendo ambíguo ou apresentando desbotamento semântico" (REZAGLI, 2009: 5). O exemplo “Schultz mandou construir uma ampliação para a igreja, o coro (...)” apresenta ambiguidade, pois pode ser reescrito da seguinte forma: “Schultz mandou construir um coro, para ampliar a igreja”, tendo a relação de sentido de finalidade, ou “Schultz mandou construir uma ampliação, um coro, para a igreja”, ou seja, “para contribuir com a igreja”, sendo que nesse caso há uma nova estrutura: para+verbo subentendido. O exemplo “(...) você precisa saber para querer (...)” sugere a “ideia de condição, indicando, portanto, um desbotamento semântico” (REZAGLI, 2009: 114).

Considerando o contato linguístico de quase um século entre as variedades do alemão e do português nos municípios de São João do Oeste e Itapiranga - SC e as multifuncionalidades das formas mal e uma vez, nossa hipótese é de que ocorreu um caso de gramaticalização de réplica induzida pelo contato linguístico. A forma mal, que passou pelo processo de gramaticalização no alemão, conforme já descrito por König e Li (2018), foi transferida da língua modelo (alemão) para a língua réplica (português), cujos falantes passaram a usar a forma uma vez também no imperativo, com significado de polidez ou esforço mínimo do interlocutor.

De substantivo indicando lugar, mal passa a indicar frequência mínima ou um momento, ou partícula modal indicando esforço mínimo ou comprometimento mínimo. Entretanto, os falantes bilíngues alemão e português percebem que a forma mal é multifuncional e replicam essa característica para o português, usando a forma uma vez tanto para expressar mínima frequência (12a) ou um momento (12b) quanto para pedidos que requerem um esforço mínimo indicando polidez (12c) ou para expressar um comprometimento mínimo (12d), como nos enunciados abaixo.

  • 12) a) Ele passa aqui uma vez por dia (Tradução de frases, 02-03-14).

  • b) Minha mãe falou assim uma vez (Tradução de frases, 27-11-2013).

  • c) Escuta uma vez o cachorro (Tradução de frases, 27-11-2013).

  • d) Vou tirar a sujeira uma vez um pouco (Caderno de campo, 22-06-13).

A mínima frequência indica o aspecto iterativo da ação e é mínima devido ao uso do numeral uma e o substantivo no singular. Em 12b, a forma uma vez indica um momento no passado, não especificamente quando nem sua duração. Já em 12c, num enunciado imperativo em que pouco esforço é exigido para atender ao pedido, o uso de uma vez expressa polidez, pois o falante evidencia que seu pedido não requer muito esforço do ouvinte. O pouco comprometimento do falante em fazer a ação de 12d fica claro com o uso de uma vez, uma marca que expressa mínimo esforço e hesitação em relação ao que é dito.

Os usos inovadores de uma vez na fala de bilíngues alemão e português estão em enunciados imperativos, em que a forma que denota mínima frequência incorporou a implicação contextual de que o serviço solicitado requer mínimo tempo e esforço, atribuindo polidez ao enunciado. Isso é perceptível na análise dos pares com ou sem a forma uma vez:

  • 13) a) Você pode vir uma vez aqui? (Tradução de frases, 13-02-2014)

  • b) Você pode vir aqui?

  • c) Escuta uma vez o cachorro (Tradução de frases, 27-11-2013).

  • d) Escuta o cachorro.

Dessa forma, é possível identificar os parâmetros da gramaticalização da forma uma vez. De acordo com Heine e Narrog (2015), os parâmetros de extensão, mudança semântica, decategorização e erosão servem como ferramentas para identificar e descrever exemplos de gramaticalização. A extensão ocorre quando o componente semântico conduz de um significado existente para um outro significado que é evocado ou apoiado por um novo contexto. A forma vez teve inicialmente uma propriedade semântica de lugar, passando para tempo e qualidade. Esse novo contexto, de tempo e qualidade, juntamente com o numeral uma, conduz a outros contextos, ou seja, de mínima frequência e de mínimo esforço.

Como consequência imediata da extensão, a mudança semântica é um processo metafórico em que o conceito de um domínio é transferido para outro. A forma uma vez passou do domínio da quantificação (12a) para o da modalização (12c). Devido a essa mudança, a forma perde propriedades morfológicas e semânticas que a caracterizavam em seu uso anterior e que não são mais relevantes para seu novo uso, o que é descrito pelo parâmetro da decategorização. A forma uma vez, no seu novo uso, não é passível de combinação com outros numerais (como duas ou três) e sempre aparece no singular. A propriedade semântica de lugar persiste na forma vez, como em “E se a classe trabalhadora para uma vez de trabalhar, vamos ver o que vai dar”, porém já é perceptível um deslizamento para o significado de tempo. A erosão, ou seja, a perda de propriedades fonéticas, ocorre com a perda da capacidade de pluralização, perdendo a sílaba final de vezes.

Dessa forma, a gramaticalização de uma vez pode estar seguindo as etapas de mal e yíxià até um certo momento do processo e, ao ser usada em contextos imperativos, seu uso é explicado pelo contato linguístico. A seção a seguir apresenta contrastes e semelhanças dos processos de gramaticalização das três formas objeto deste estudo.

5 Gramaticalização de Mal, yíxià e uma vez: Contrastes e semelhanças

Como já descrito, as três formas passaram por processos de gramaticalização, ou seja, conforme definido por Hopper e Traugott (1993), passaram em certos contextos linguísticos a desempenhar funções gramaticais, e continuam desenvolvendo novas funções gramaticais quando gramaticalizados. A seguir, apresentamos uma análise comparativa desses processos, usando como parâmetro três dos cinco princípios de gramaticalização propostos por Hopper (1991: 22): estratificação, divergência e decategorização.

Segundo o princípio da estratificação, novas camadas estão continuamente emergindo e as camadas antigas não são necessariamente descartadas e podem continuar a coexistir e interagir com novas camadas. Esse princípio demonstra que a gramaticalização possibilita a variação linguística, ou seja, a alternância entre as formas pode levar uma delas a predominar em relação a outra, como vimos no alemão, em que o substantivo mal foi suplantado atualmente pelo substantivo composto e passou a ser usado como numeral, advérbio, partícula modal e marcador discursivo. Assim também a forma yíxià no mandarim, originalmente empregada como substantivo, passou por verbo, numeral e classificador. Em português, a forma uma vez é a junção de numeral e substantivo e é usado como marcador discursivo em enunciados de falantes bilíngues. Seu uso como marcador de polidez possivelmente continuará sendo uma variável usada por bilíngues, podendo ser usada também pelos monolíngues dessa comunidade de fala.

O princípio da divergência é quando uma forma lexical sofre gramaticalização e a forma lexical original pode permanecer como um elemento autônomo. A forma mal continua sendo usada como substantivo temporal indicando frequência, todas as diferentes formas de yíxià continuam sendo usadas e uma vez também denomina a singularidade de um evento. Apesar de não ser possível afirmar que uma vez tenha chegado a clitização, há uma situação de convivência entre a categoria-fonte (expressão de frequência mínima) e a nova função que atribui o princípio da polidez em enunciados imperativos.

Assim, é perceptível o princípio da persistência, quando traços do significado lexical original tendem a permanecer na nova forma gramaticalizada, podendo conduzir à polissemia. A forma mal carrega a polissemia de frequência e espaço de tempo, conforme König e Li (2018), como no exemplo “Kannst du mir mal etwas Geld leihen?”13. O significado-fonte de mínima frequência permanece no uso corrente, mas constitui a expressão de mínimo esforço. Ainda segundo os autores, a forma yíxià como em “Qǐng shuō yíxià nǐ de xìngqù”14 permanece com o sentido de brevidade, entretanto, agora atribuída ao ato de falar. A presença da forma uma vez em enunciados como “Fecha uma vez a porta” e “Olha uma vez lá” mantém o significado de brevidade, mas atribui o aspecto de pouco esforço requerido no pedido.

A decategorização ilustra formas que estão sofrendo gramaticalização e tendem a perder ou neutralizar seus marcadores morfológicos e características sintáticas peculiares das categorias plenas, ou seja, substantivo e verbo, e a assumir atributos característicos de categorias sintáticas secundárias como adjetivo, particípio, preposição etc. No alemão, a forma mal deixou de ter a marca de substantivo (grafado com letra maiúscula), em mandarim, o verbo xià passou a forma yíxià. Já em português, não ocorreu a perda ou neutralização do substantivo vez. Entretanto, a forma é usada apenas no singular e precedido do numeral uma em enunciados imperativos. Dessa forma, vez perde a característica de pluralização e capacidade de ser antecedido por preposições (como em “na vez dele”), pronomes possessivos (“sua vez”) e pronome demonstrativo (“desta vez”).

Percebe-se, dessa forma, algumas semelhanças e diferenças no processo de gramaticalização de mal, yíxià e uma vez. Esses processos de gramaticalização são baseados em princípios cognitivos e interacionais ou induzidos pelo contato linguístico. A seguir, apresentamos algumas considerações sobre as discussões acima.

6 Considerações finais

A comparação entre as três formas de diferentes línguas mostra que pode haver semelhanças ou diferenças nos processos de gramaticalização. As formas mal do alemão e yíxià do mandarim apresentam semelhanças na mudança semântica, na expansão contextual e na erosão. O fato de o alemão e o mandarim serem línguas não relacionadas geograficamente demonstra que essas mudanças são baseadas em princípios cognitivos e interacionais, o que sugere que pode ocorrer em outras línguas.

A forma uma vez do português também é similar a mal e yíxià na mudança semântica e na expansão contextual. Porém, o processo de gramaticalização de uma vez parece estar atribuído ao contato linguístico português-alemão, visto que enunciados com a forma uma vez que indicam polidez no pedido são exclusivos de falantes bilíngues. Por outro lado, são semelhantes os processos de gramaticalização das três formas ocorridos na expansão contextual de lugar para tempo e qualidade.

Assim, essas mudanças podem tanto ser baseadas em princípios cognitivos e interacionais ou motivadas pelo contato linguístico como exemplos de gramaticalização induzida pelo contato entre as duas línguas. Como postulam Heine e Kuteva (2003), apesar da comum prática de classificar exemplos de mudança linguística como resultado de fatores internos da língua ou definidos historicamente, ou devido a fatores universais cognitivos e comunicativos, essas alternativas não são de forma alguma mutuamente excludentes.

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  • 2
    König e Li (2018) usam a denominação Mandarin Chinese.
  • 3
    Ruscheinsky (2014) descreveu o uso da variante uma vez no português falado em Itapiranga e São João do Oeste, localidades situadas no oeste de Santa Catarina, Brasil. Os dados foram coletados por meio de anotações no caderno de campo e de entrevistas com falantes bilíngues português-alemão do oeste catarinense realizadas nos anos de 2012 e 2013.
  • 4
    Decategorização ou descategorização, a depender da tradução, ou ainda nomeados por alguns autores como recategorização.
  • 5
    “They jointly conspire in triggering grammatical change” (HEINE; KUTEVA, 2003: 529).
  • 6
    “As the development from lexical to grammatical forms, and from grammatical to even more grammatical forms” (HEINE; NARROG, 2015: 407, tradução própria).
  • 7
    “An expression denoting minimal frequency has incorporated the contextual implication that the service asked for requires minimal time and minimal effort” (KÖNIG; LI, 2018: 59, tradução própria).
  • 8
    Esses exemplos estão acompanhados da identificação entre parênteses, como Caderno de Campo; ou quando fazem parte das entrevistas, estão identificados com a parte da entrevista em que ocorreram, por exemplo: Tradução de frases, Conversa Livre e Leitura de texto, junto com a data da ocorrência.
  • 9
    Ataliba Castilho (2003), em Castilho e Ramos (2003), concebe a língua como um multissistema que exibe simultaneamente os subsistemas Léxico, Discurso, Semântica e Gramática. O Léxico é um “conjunto de propriedades cognitivas abstratas, potenciais, prévias à enunciação, com base nas quais construímos os traços semânticos inerentes” (CASTILHO, 2003: 17).
  • 10
    Uma descrição mais detalhada do contato linguístico está em Ruscheinsky (2014) e Wolschick (2016).
  • 11
    Os termos usados em inglês são: ordinary grammaticalization e replica grammaticalization.
  • 12
    “Aonde você vai?” (Weinreich [1953] 1979: 40, tradução própria).
  • 13
    Pode me emprestar um pouco de dinheiro, por favor?
  • 14
    Por favor, fale-me sobre seu hobby.
  • 1
    Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), Rua Aloísio Stoffel, 1271, Jardim Alvorada, São Carlos, SC, 89885-000, Brasil. E-mail: elenawendling@hotmail.com. ORCID: 0000-0003-2720-4460.
  • Editora
    Maria Helena Battaglia

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2025

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2024
  • Aceito
    05 Jun 2024
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