Acessibilidade / Reportar erro

Johann Nestroy, o ancestral da vanguarda austríaca: quando a língua se fala e a tradução (não) empaca

Johann Nestroy, the ancestor of the Austrian avant-garde: when the language speaks and the translation does (not) get stuck

Resumo

Johann Nepomuk Nestroy (1801-1862) foi um dos dramaturgos mais importantes da história do teatro da Áustria. Ator e autor aclamado durante seu tempo, é também nome de referência e enorme influência para muitos escritores austríacos canônicos do século XX e do começo do XXI, que até hoje se definem como devedores de sua poética dramatúrgica (por exemplo, Karl Kraus ou Elfriede Jelinek). Este artigo, além de destacar o papel do dramaturgo com “ancestral” para uma parte da literatura austríaca, lança um olhar sobre a única tradução de uma peça de Nestroy disponível no Brasil (Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror, publicada em 1990), com o intuito de colocar em questão a visão recorrente da obra de Nestroy como “intraduzível”.

Palavras-chave:
Johann Nestroy; Literatura austríaca; Tradução

Abstract

Johann Nepomuk Nestroy (1801-1862) was one of the most important playwrights in the history of Austrian theater. He was an acclaimed actor and author during his time, and he is also a reference writer and a huge influence for many canonical Austrian writers in the 20th and early 21st centuries, who today define themselves as debtors of his dramaturgical poetics (for instance, Karl Kraus ou Elfriede Jelinek). The article highlights the role of Nestroy as an “ancestor” for part of Austrian literature, and also looks at the only translation of a Nestroy play available in Brazil (Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror, 1990), in order to call into question the common view of Nestroy's work as “intranslatable”.

Keywords:
Johann Nestroy; Austrian literature; Translation

Nestroys Dichtung ist das schönste Monument, das je dem Mutterwitz eines Volkes errichtet wurde.

Alfred Polgar

1 Introdução

No mundo literário do Brasil, o nome de Johann Nepomuk Nestroy é praticamente desconhecido. Em sua história da literatura alemã, Otto Maria Carpeaux (2013CARPEAUX, Otto Maria. A história concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013.) dedica 26 linhas elogiosas ao seu conterrâneo, mas não temos conhecimento de uma peça publicada por alguma editora brasileira. Apenas a edição número 52 da série Cadernos de Teatro Alemão, louvável projeto organizado pelo Instituto Goethe na década de 1990, traz uma tradução de Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl, com o título Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror (NESTROY 1990NESTROY, Johann Nepomuk. Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror. Opereta em umato. Tradução de Celeste Aida Galeão e Walter Schorlies. Cadernos de Teatro Alemão (Instituto Goethe), n. 52, 1990.). O caderno saiu em 1990 e, conforme consta da segunda capa, traz “somente” uma “tradução informativa” de autoria de Celeste Aida Galeão e Walter Schorlies. O Caderno não tem nenhum prefácio, posfácio ou palavra do tradutor. Atualmente, encontra-se disponível apenas em bibliotecas do Instituto Goethe em algumas capitais brasileiras.

Desde 2019, o leitor brasileiro interessado em Nestroy passou a ter mais um texto à disposição, além da referida peça publicada pelo Instituto Goethe: saiu em Áustria: uma história literária - literatura, cultura e sociedade desde 1650 (ZEYRINGER, GOLLNER 2019ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Áustria: uma história literária. Literatura, cultura e sociedade desde 1650. Tradução e adaptação de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Editora UFPR, 2019.), versão brasileira de Eine Literaturgeschichte: Österreich seit 1650 (ZEYRINGER, GOLLNER 2012ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Eine Literaturgeschichte: Österreich seit 1650. Innsbruck: Studienverlag, 2012.), um capítulo inteiro (com 30 páginas) dedicado exclusivamente ao dramaturgo vienense. O referido capítulo é de autoria exclusiva de Helmut Gollner. Trata-se da primeira abordagem crítico-filológica de fôlego publicada no Brasil sobre Nestroy. O texto, além de trazer uma introdução abrangente à vida pessoal e profissional desse ator e autor, situa-o em seu contexto sócio-histórico e oferece resumos e interpretações de 23 de suas peças teatrais. Conta, ainda, com múltiplas citações de trechos de diversas peças, todos traduzidos para o português e, majoritariamente, ladeados pelas respectivas citações originais em alemão.

No presente artigo, tratamos de duas questões relacionadas à recepção de Nestroy tanto em solo austríaco quanto brasileiro. Em primeiro lugar, apontamos a enorme influência que ele exerceu e continua exercendo sobre muitos escritores austríacos, sobretudo a partir do início do século XX. Com alguns exemplos pontuais, pretendemos ilustrar que não se trata de um autor de relevância apenas histórica, mas de um dos dramaturgos mais encenados atualmente na Áustria e de grande influência poética sobre alguns proeminentes autores desse país.

Em segundo lugar, propomo-nos a apresentar algumas reflexões acerca da tradução brasileira Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror. Nestroy tem fama de ser um autor praticamente intraduzível. Comentamos alguns exemplos de soluções tradutórias de Galeão e Schorlies e, com isso, procuramos argumentar que, embora a linguagem nestroyana certamente represente um grande desafio para qualquer tradutor, é possível, sim, traduzir Nestroy sem abrir mão daquilo que é considerado característico de suas peças e o motivo de seu renome literário, isto é, o enorme potencial inovador, crítico e cômico de sua linguagem.

2 Caminhos da recepção austríaca

O traço distintivo de Nestroy como dramaturgo não está nos enredos de suas peças(os quais poucas vezes são de sua autoria), nem na construção psicológica de seus personagens (praticamente inexistente), mas na própria língua - uma língua “que se fala e que fala consigo mesma”2 2 Todas as traduções de citações neste artigo são de minha autoria, salvo indicação contrária. , como disse Elfriede Jelinek (2001JELINEK, Elfriede. sich mit der Sprache spielen: Johann Nestroy. Elfriede Jelinek, 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy.htm/ (22/12/2020).
http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy....
) - escritora austríaca laureada com o Prêmio Nobel de 2004 -, num pequeno texto que dedicou a Nestroy. A peculiaridade linguística é apontada muitas vezes como razão da escassa recepção de sua obra nos outros países de língua alemã (cujo público não estaria familiarizado com as expressões, o vocabulário e o humor associados ao dialeto vienense, tão presente em suas peças). O escritor (austríaco e alemão) Daniel Kehlmann oferece uma explicação, seguindo a mesma linha de raciocínio apresentada por vários outros autores, sobre o papel de Nestroy no cânone da literatura em língua alemã. Em sua opinião, a fraca recepção da obra nestroyana na Alemanha, onde “as pessoas talvez conheçam o nome”, mas “onde ninguém lê ou encena” suas peças se deve, principalmente, ao “problema de que o cânone prussiano tem, em geral, muito pouco espaço para escritores austríacos e, particularmente, nenhum interesse pelo cômico” (FRANZEN 2013FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013.: 148). Porém, essa avaliação deve ser recebida com certa cautela, pois outros estudiosos (por exemplo, ALBALADEJO 2005ALBALADEJO, Juan Antonio. Los clásicos marginados: Johann Nestroy o la traducción imposible. In: CERNUDA, Miguel Ángel Vega (ed.). La traducción de los clásicos: problemas y perspectivas. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, Instituto Universitario de Lenguas Modernas y Traductores, 2005, 297-304.) apontam que peças de Nestroy foram apresentadas, ainda durante a vida do dramaturgo, em diversos lugares da região correspondente à atual Alemanha e com enorme sucesso. Como as peças em sua forma escrita seguem, em grande medida, o alemão padrão, é possível que, para as encenações no país vizinho naquela época, tenham sido feitas algumas adaptações às variantes linguísticas da respectiva região para facilitar a compreensão (ALBALADEJO 2005ALBALADEJO, Juan Antonio. Los clásicos marginados: Johann Nestroy o la traducción imposible. In: CERNUDA, Miguel Ángel Vega (ed.). La traducción de los clásicos: problemas y perspectivas. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, Instituto Universitario de Lenguas Modernas y Traductores, 2005, 297-304.: 300).3 3 Neste artigo, não nos aprofundamos na recepção da obra de Nestroy nos países de língua alemã. Para um debate mais aprofundado a esse respeito, cf., por exemplo, Peter Haida (1987).

Certo é que Johann Nestroy foi um dramaturgo de enorme popularidade durante sua vida (1801-1862), sobretudo em Viena, mas suas peças foram levadas ao palco também com sucesso em teatros de língua alemã fora da Áustria. Hoje, ele é considerado, ao lado de Ferdinand Raimund, o representante mais importante do teatro popular vienense do século XIX [Altwiener Volkstheater]. Sua obra recebia, já naquela época, tanto críticas negativas quanto positivas. As primeiras resultaram principalmente do fato de Nestroy inspirar-se em peças francesas do gênero Vaudeville e, conforme conceitos atuais, até mesmo plagiá-las, bem como da proximidade de seus textos dramáticos com o gênero da farsa, considerado não poucas vezes como de qualidade ainda inferior à comédia. A peça Häuptling Abendwind, por exemplo, é uma adaptação de uma ópera-bufa Vent du soir, ou L’horrible festin, de Jacques Offenbach, de 1857, cujo libreto é da autoria de Philippe Gille. Nestroy costumava emprestar ou copiar enredos, temáticas e personagens de peças alheias, ambientava-os (quase sempre) em cenários vienenses, acrescentava alusões ao contexto político e social da época, criando, assim, inúmeras possibilidades não apenas de comicidade, mas também de críticas e sátiras. Nestroy, lançando mão de textos de outros autores, criou obras originais e autorais - geralmente com o aviso “frei nach…” [“livremente inspirado em…”]. Aliás, em montagens atuais na Áustria, suas peças são frequentemente adaptadas e atualizadas, travando diálogo com o contexto da respectiva encenação. Por exemplo, na versão de Der böse Geist Lumpazivagabundus [O espírito malvado Lumpazivagabundus], mostrada no Burgtheater de Viena em 2013, quando a personagem Fortuna, fada da sorte e do destino (e, nessa montagem, também fada do orçamento da União Europeia), foi representada com gestose atualizações textuais que remetiam à primeira-ministra alemã Angela Merkel.

Já o reconhecimento positivo pela crítica se deve, desde sempre, sobretudo à linguagem satírica, inovadora e original de Nestroy. Numa resenha da peça Das Mädl aus der Vorstadt [A moça do subúrbio], publicada em 26 de novembro de 1841 no jornal Theaterzeitung, podemos ler, por exemplo: “O chiste com o qual [Nestroy] revestiu esse enredo simples se equipara ao casaco adornado com brilhantes com o qual se veste um esqueleto” (THEATER AN DER JOSEPHSTADT, 2016THEATER AN DER JOSEPHSTADT. Das Mädl aus der Vorstadt. Programa da peça. Josephstadt, 2016.: s.p.). Tal interpretação chega, aliás, bem próximo daquilo que podemos ler na História concisa da literatura alemã, de Otto Maria Carpeaux (2013CARPEAUX, Otto Maria. A história concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013.). Embora defina as peças de Nestroy como “grosseiramente confeccionadas, as mais das vezes plágios de peças ou romances conhecidos”, Carpeaux enfatiza sua dimensão formal, afirmando que Nestroy era “um talento incomparável do trocadilho, explorando todas as possibilidades da língua e do dialeto vienense”, o que fez dele um “grande ‘moralista’, no sentido francês da palavra” (CARPEAUX 2013CARPEAUX, Otto Maria. A história concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013.: 102-103). Ou seja, ele era um atento observador e crítico do espírito e dos costumes de sua época. O crítico austro-brasileiro ainda aproxima o teatro de Nestroy daquele de Aristófanes e afirma que o dramaturgo “arruinou realmente o teatro popular vienense: não pelo suposto cinismo imoral, mas porque era inimitável e ninguém podia ir mais longe” (CARPEAUX 2013CARPEAUX, Otto Maria. A história concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013.: 103).

Na Áustria atual, Nestroy é uma presença constante tanto em pequenos palcos, muitas vezes improvisados por grupos amadores que se apresentam em restaurantes, escolas, pequenos centros culturais no interior do país ou em um dos populares festivais de verão, quanto nos grandes teatros de renome internacional, como o Volkstheater, o Theater an der Josephstadt ou o Burgtheater de Viena4 4 Uma extensa lista de encenações de peças de Nestroy encontra-se no site http://www.nestroy.at/neu/. . Sua obra é capaz de agradar a diferentes tipos de diretores e espectadores, bem como a estudiosos acadêmicos. A relevância atribuída ao dramaturgo mostra-se também pela fundação da Internationale Nestroy-Gesellschaft [Associação Internacional Nestroy], em 1973, responsável pela organização anual de um simpósio sobre o dramaturgo austríaco, pela edição da revista Nestroyana e por diversos eventos acadêmicos. A edição das obras completas de Nestroy consiste em mais de 50 volumes e foi publicada entre 1977 e 20105 5 NESTROY, Johann. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Ausgabe. Herausgegeben von Jürgen Hein, Johann Hüttner, Walter Obermaier und W. Edgar Yates. Wien: Jugend & Volk (Deuticke), 1977-2010. . Desde 2000, a cidade de Viena outorga anualmente o Prêmio Nestroy a diversas categorias de produções artísticas no mundo teatral, reforçando assim o papel desse autor como ancestral da tradição teatral e dramatúrgica do país.

Nem sempre, porém, Nestroy ocupou tal lugar de evidência: houve também fases de esquecimento e depreciação por parte da crítica. Conforme aponta o crítico literário alemão Jürgen Hein, desde o século XIX, o “satírico e animador crítico-agressivo Nestroy” foi visto por muitos como um autor “que corrompe levianamente o povo”, até transformar-se em um “dramaturgo clássico, de consumo fácil, muito encenado, mas pouco compreendido” (HEIN 1990HEIN, Jürgen. Rezeption. In: HEIN, Jürgen. Johann Nestroy. Stuttgart: SammlungMetzler/J. B. Metzler, 1990, 123-135.: 123). Friedrich Theodor Vischer (1807-1887), escritor alemão e especialista na obra de Goethe, ilustra bem a avaliação dominante do século XIX quando diz que Nestroy “dispõe de um leque de sons e movimentos, do qual provêm, para alguém que possui verdadeiros sentimentos, asco e vômito” (VISCHER apudGOLLNER 2019GOLLNER, Helmut. Johann Nestroy (1801-1862). In: ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Áustria: uma história literária. Literatura, cultura e sociedade desde 1650. Tradução e adaptação de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Editora UFPR, 2019, 217-247.: 223), e que com suas “fétidas piadas” e “sarcásticos sons porcos” sujaria “os sentimentos mais nobres” (VISCHER apud GOLLNER 2019: 223). O caráter popular de suas peças, sua linguagem direta e pouco delicada, os exageros grotescos nas apresentações, as expressões de baixo calão e o humor fortemente corrosivo, tudo isso foi motivo de reações negativas por parte da crítica ao longo dos últimos 150 anos.

O maior responsável pela transformação de Nestroy de ameaça aos “sentimentos mais nobres” em autor cultuado pela elite literária foi Karl Kraus. Seu ensaio “Nestroy und die Nachwelt” [“Nestroy e a posteridade”], escrito em 1912, deu início à recuperação da reputação literária do dramaturgo, com frases apodíticas e metafóricas como “no cantinho mais periférico de uma farsa nestroyana existe mais conhecimento vital para o palco e um olhar mais amplo para o cenário dos mundos superiores do que no repertório de uma década alemã” (KRAUS 2013KRAUS, Karl. „Nestroy und die Nachwelt - Zum 50. Todestage“. In: FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013, 134-260.: 218). A partir desse momento, foram justamente o caráter satírico, o grotesco, o humor corrosivo e a oposição a qualquer “sentimento maisnobre” que atraíram gerações de literatos, desde Kraus até a vanguarda austríaca pós-1945. Uma das características que os representantes dessa vertente têm em comum é o fato de suspeitarem de que tais “sentimentos nobres” sejam nada mais que uma fachada atrás da qual se escondem as atrocidades que o ser humano é capaz de cometer.

Sem dar importância às tramas das peças de Nestroy, nem ao seu potencial de compor retratos satíricos de uma determinada época histórica, Kraus concentra sua análise na língua nestroyana. Uma das frases mais citadas de seu ensaio é: “Nestroy foi ‘o primeiro satirista alemão cuja linguagem reflete sobre as coisas. Ele liberta a língua da paralisia, e ela lhe lança uma ideia para cada expressão idiomática’” (KRAUS apudGOLLNER 2019GOLLNER, Helmut. Johann Nestroy (1801-1862). In: ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Áustria: uma história literária. Literatura, cultura e sociedade desde 1650. Tradução e adaptação de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Editora UFPR, 2019, 217-247.: 228). Aqui, Kraus tematiza e exemplifica aquilo que entende como central na obra de Nestroy, mas também na sua própria obra: a língua se transforma em personagem principal. Para fundamentar sua interpretação, Kraus cita algumas passagens nestroyanas. Por exemplo: “Wann ich mir meinen Verdruß net versaufet, ich müßt’ mich g’rad aus Verzweiflung dem Trunke ergeben” [“Se eu não ‘tivesse bebendo por desgosto, eu tinha mesmo é que tomar um porre por desespero”]. A respeito dessa passagem, Kraus (2013KRAUS, Karl. „Nestroy und die Nachwelt - Zum 50. Todestage“. In: FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013, 134-260.: 206) comenta: “Hier lacht sich die Sprache selber aus” [“Aqui, a língua ri de si mesma”]. Nestroy desfigura expressões idiomáticas conhecidas por todos, chamando assim atenção para seus pormenores semânticos e, ainda segundo Kraus (2013KRAUS, Karl. „Nestroy und die Nachwelt - Zum 50. Todestage“. In: FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013, 134-260.: 206), para as “convenções hipócritas [...] que as criaram”, revelando a “verdade” por trás delas, como em: “Ich hab die Not mit Ihnen geteilt, es ist jetzt meine heiligste Pflicht, auch in die guten Tag’Sie nicht zu verlassen” [“Partilhei contigo tempos de miséria, agora é meu dever mais sagrado não deixar-te nos dias de riqueza”] (KRAUS 2013KRAUS, Karl. „Nestroy und die Nachwelt - Zum 50. Todestage“. In: FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013, 134-260.: 208). Sem dúvida, ao destacar tal desmontagem e inversão cômica de expressões idiomáticas, assim como a interpretação literal de metáforas como estratégias inovadoras e originais de Nestroy, Kraus trata, ao mesmo tempo, de uma estratégia literária usada recorrentemente por ele mesmo. Nas palavras do germanista Wendelin Schmidt-Dengler:

Não há dúvida de que Kraus, ao descrever o trabalho de Nestroy com a linguagem, fez também um diagnóstico de si mesmo. Também na sua literatura a “língua reflete sobre as coisas”, e ela [a língua] se torna inclusive a autoridade máxima personificada. Ele [Kraus] também extrai seus pensamentos de expressões idiomáticas. (SCHMIDT-DENGLER 2001SCHMIDT-DENGLER, Wendelin. Nestroy - Die Launen des Glücks. Wien: Paul Zsolnay, 2001.: 11).

Com “Nestroy e a posterioridade”, Kraus salvou o escritor da classificação de dramaturgo de segunda ou até de quinta categoria e se definiu, ao mesmo tempo, como seu primeiro descendente literário 6 6 Outro austríaco, contemporâneo de Kraus, que igualmente parece não ter subestimado Nestroy foi o filósofo Ludwig Wittgenstein, pois a epígrafe escolhida para suas Investigações filosóficas foi justamente uma citação da peça Der Schützling [O protegido]: “Überhaupt hat der Fortschritt an sich, dass er viel größer ausschaut, als er wirklich ist” [“Em geral, é típico do progresso que ele pareça ser muito maior do que realmente é”] (SCHMIDT-DENGLER 2001: 12). .

Kraus aponta ainda que é através das falas de personagens representativos das camadas mais simples da população, sem educação formal e conhecimento retórico, que Nestroy expõe os clichês das falas das classes superiores, por exemplo, quando um criado humilde pronuncia frases retiradas da obra de Friedrich Schiller (KRAUS 2013KRAUS, Karl. „Nestroy und die Nachwelt - Zum 50. Todestage“. In: FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013, 134-260.: 208) - estratégia literária de dessacralização empregada com primazia, décadas mais tarde, por Elfriede Jelinek. Nas obras de Nestroy e de Jelinek, é recorrente o uso e a citação do páthos (alheio) com o intuito de expor, profanar e criticar esse tipo de linguagem e, ao mesmo tempo, criar um forte efeito cômico. Jelinek faz isso, por exemplo, em Lust [Desejo] (1992JELINEK, Elfriede. Lust. Hamburg: Rowohlt. 1992.), ao misturar elementos da literatura pornográfica com poemas de Hölderlin, ou no texto teatral Wolken.Heim. (ainda sem tradução no Brasil), repleto de alusões e citações de Hegel, Heidegger, Hölderlin, Fichte, Kleist e outros grandes literatos de língua alemã.

Em 2013, o ensaio de Kraus ganhou nova vida, também fora das fronteiras austríacas, ao ser incluído no volume The Kraus Project, do escritor americano Jonathan Franzen (2013FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013.), que traduziu textos escolhidos de Kraus, acrescentando extensas notas, com apoio dos colegas Paul Reitter e Daniel Kehlmann, citados em muitas delas como comentadores e analistas da obra krausiana. Franzen apresenta Nestroy como “o principal nome da idade de ouro do teatro vienense, na primeira metade do século XIX”, mas “praticamente desconhecido fora da Áustria (em parte, devido à modalidade austríaca da linguagem usada pelas personagens das classes mais desfavorecidas” (FRANZEN 2013FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013.: 135). Franzen, com colaboração de Kehlmann e Reitter, pretende estimular a recepção internacional não apenas de Karl Kraus, mas também de Nestroy - chamando o primeiro de “filho” deste e definindo-o como aquele que teria “completado o potencial” (FRANZEN 2013FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013.: 172) de seu percursor. Franzen chega a comparar Nestroy com Shakespeare, destacando dois aspectos que, tradicionalmente, ganham menos relevo em estudos filológicos: as “tramas bem construídas” e o “dom de criar bufões ao mesmo tempo ridículos e simpáticos” (FRANZEN 2013FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013.: 136). O escritor estado-unidense ainda acrescenta: “Sua [de Nestroy] linguagem era brilhante, e a estrutura dos enredos, muito clara”, porém o fato de “o gênero da comédia geralmente (e especialmente na Alemanha) ser menos estimado que a tragédia” levou à deterioração de sua reputação, até Kraus transformar esse “escritor subestimado” em “cânone” (FRANZEN 2013FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013.: 136-137).

Num livro dedicado integralmente a Nestroy, Schmidt-Dengler (2001SCHMIDT-DENGLER, Wendelin. Nestroy - Die Launen des Glücks. Wien: Paul Zsolnay, 2001.) sugere que ele teria antecipado as práticas literárias não apenas de Kraus, mas também da vanguarda de Viena dos anos de 1950, referindo-se a autores como H. C. Artmann, Konrad Bayer e Gerhard Rühm, membros do Grupo de Viena. É de Schmidt-Dengler (2001SCHMIDT-DENGLER, Wendelin. Nestroy - Die Launen des Glücks. Wien: Paul Zsolnay, 2001.: 22) a sugestão de que Nestroy teria sido o “ancestral” de uma tradição literária austríaca de satírica e panfletária. Todos os autores que possam ser associados a essa vertente são famosos pelo uso provocativo, subversivo, irônico, cômico, não normativo, experimental e crítico do idioma alemão, baseado nas premissas do ceticismo linguístico e cultural e, muitas vezes, recorrendo a variantes dialetais da língua - características que, de uma forma ou de outra, podem ser encontradas no teatro de Nestroy.

Em relação ao emprego da linguagem dialetal, é importante lembrar que é um recurso utilizado, tradicionalmente, por poetas associados a uma literatura “patriótica”, recorrentemente próxima de uma ideologia nacionalista e, inclusive, nazista (como, por exemplo, em Josef Weinheber). Nas peças de Nestroy, mas também nas obras dos escritores do Grupo de Viena, o dialeto ganha, porém, uma função crítica e associações diferentes, exatamente contrárias a qualquer viés nacionalista7 7 O exemplo mais famoso dessa faceta da literatura dialetal no século XX é, certamente, o livro med ana schwwoazzn dintn, de H. C. Artmann (1958), o primeiro bestseller da vanguarda austríaca. . Uma de suas estratégias: o contraste entre dialeto e alemão padrão. Além da relevância para a definição da origem social e geográfica de um personagem, o dialeto é usado, nesses casos, para pôr em evidência o caráter dissimulador e excludente da língua padrão. Titus Feuerfuchs, personagem principal e famoso parvenu de Der Talisman [O talismã] (NESTROY 1840NESTROY, Johann. Der Talisman. 1840. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy-werke.at/index.php?r=play/viewpdf&id=40&pdfFile=171005.pdf&scroll=1 (13/12/2020).
http://www.nestroy-werke.at/index.php?r=...
), não apenas é exemplo desse caráter revelador do dialeto: sua fala também fornece uma teoria linguística, que explica inclusive sua ascensão social. Antes do encontro com a Senhora Cypressenburg (famosa poeta e próxima parada feminina na carreira do charmoso trapaceiro), o personagem pondera, num aparte: “Ich steh’ jetzt einer Schriftstellerin gegenüber, da thun’s die Alltagsworte nicht, da heißt’s jeder Red’ a Feyr’tagsgwandl anzieh’n” [“Agora vou me encontrar com uma poeta, agora as palavras cotidianas não servem mais, preciso vestir minha fala com roupa de domingo”] (NESTROY 1840NESTROY, Johann. Der Talisman. 1840. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy-werke.at/index.php?r=play/viewpdf&id=40&pdfFile=171005.pdf&scroll=1 (13/12/2020).
http://www.nestroy-werke.at/index.php?r=...
: 49). Logo depois, dirigindo-se à Senhora Cypressenburg, Titus põe sua teoria em prática, expondo ao mesmo tempo o vazio de expressões consideradas poéticas e cultas, mas que nas peças de Nestroy se revelam patéticas e sem sentido: “Das ist der Augenblick, den ich in gleichem Grade gewünscht und gefürchtet habe, dem ich so zu sagen mit zaghafter Kühnheit mit muthvollem Zittern entgegengesehen habe” [“Este é o momento que desejei e temi na mesma medida, e que, por assim dizer, aguardei com tímida audácia e com tremor corajoso”] (NESTROY 1840NESTROY, Johann. Der Talisman. 1840. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy-werke.at/index.php?r=play/viewpdf&id=40&pdfFile=171005.pdf&scroll=1 (13/12/2020).
http://www.nestroy-werke.at/index.php?r=...
: 49). É com esperteza e através do uso perspicaz, competente e reiterado de metáforas e cultismos que Titus Feuerfuchs consegue ascender na hierarquia social, expondo ao mesmo tempo para o público a ausência de sentido e a hipocrisia por trás da fachada linguística.

Nestroy (e, mais tarde, Helmut Qualtinger, com Der Herr Karl; H. C. Artmann, com sua poesia dialetal; Wolfgang Bauer, em Magic Afternoon; ou Elfriede Jelinek, em Burgtheater, por exemplo) expõe o funcionamento e a função social da língua, desmascarando falas “nobres” ou “cultas”, geralmente ridiculizadas pelos personagens das camadas socioeconômicas mais baixas e aparentemente simplórios, mas extremamente astutos. O dramaturgo mistura, não raro, o alemão padrão e uma linguagem dialetal na mesma fala, para evidenciar duas funções da língua: a de apresentar uma visão que está em concordância com o discurso oficial e politicamente correto, mas que não corresponde à realidade conhecida ou desejada pelo personagem (alemão padrão); e a deexpor uma realidade menos conveniente no que diz respeito à sua aceitabilidade pública, porém mais “verdadeira” do ponto de vista do personagem. Por exemplo, em Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl, quando o cacique Abendwind [Vento-da-Tarde] se dirige, logo no começo da peça, à sua comunidade - os “selvagens” de uma ilharemota -, ele pronuncia, primeiramente, palavras em alemão padrão e com certo páthos típico de um evento formal, seguindo fórmulas de uma palestra pública e evocando uma situação por ele desejada e que estaria em conformidade com aquilo que se espera de uma relação entre soberano e povo, baseada tanto numa suposta humildade e no privilégio dapalavra pública do primeiro quanto na subserviência do segundo: “Und nun einige Worte zu euch, ihr Großen des Reiches, die ihr eigentlich die größten seid in meinem ganzen Reich. (Eine Anrede beginnend). Meine Herrn!” (NESTROY 1862NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
http://www.nestroy.at/neu/wp-content/upl...
) (“E agora algumas palavras a vocês, os grandes do meu reino, os que são na realidade os mais altos em todo o meu reino. (Começando um discurso) Meus senhores!” [NESTROY 1990NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
http://www.nestroy.at/neu/wp-content/upl...
: 3]). Vendo que os presentes não reagem na maneira esperada, ou seja, não se inclinam em sua direção, mas o olham abobalhados, imóveis, ele diz, agora em dialeto, palavras que revelam outra“verdade” acerca da relação entre cacique e seus liderados: “Na, werd’ts euch verneigen, oder nit?” (NESTROY 1862NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
http://www.nestroy.at/neu/wp-content/upl...
) (“Bem, vão inclinar-se, ou não?” [NESTROY 1990NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
http://www.nestroy.at/neu/wp-content/upl...
: 3]). Mais adiante, apresentaremos e comentaremos a solução tradutória de Galeão e Schorlies paraessa passagem. Neste momento, ela é citada para ilustrar a referida estratégia de Nestroy de opor padrão e dialeto. No século XX, encontramos a mesma estratégia na peça Der Herr Karl, famoso monólogo de Helmut Qualtinger (1961), por exemplo, que, “quando diz uma mentira, [...] usa o alemão padrão”, enquanto “sua verdade é dita em dialeto, numa linguagem não normatizada” (ZEYRINGER, GOLLNER 2019ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Áustria: uma história literária. Literatura, cultura e sociedade desde 1650. Tradução e adaptação de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Editora UFPR, 2019.: 741). Essa afirmação de Zeyringer e Gollner já permite vislumbrar, aliás, uma possível chave para a tradução, partindo-se da hipótese de que a função de criar o efeito de oposição entre “mentira” e “verdade” do personagem resultaria não necessariamente do emprego do dialeto, mas da oposição entre uma linguagem padrão e outra não normatizada. No original, a seguinte passagem do monólogo Herr Karl refere-se ao dia da “anexação” da Áustria pelo exército nazista e revela (em dialeto) que não apenas o próprio Herr Karl, mas também a polícia austríaca já estava aguardando os alemães com júbilo e entusiasmo, enquanto no tempo cronológico do enunciado (já posterior à Segunda Guerra Mundial) o mesmo personagem mostra que aprendeu muito bem a repetir frases oficiais e, agora, politicamente mais adequadas: “Na, unsere Polizisten san aa schon da g’standen, mit de Hakenkreizbinden”; e, logo depois: “...es war furchtbar ... das Verbrechen, wie man diese gutgläubigen Menschen in die Irre geführt hat” (QUALTINGER apudZEYRINGER, GOLLNER 2012ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Eine Literaturgeschichte: Österreich seit 1650. Innsbruck: Studienverlag, 2012.: 643). Na versão brasileira de Zeyringer e Gollner (2019ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Áustria: uma história literária. Literatura, cultura e sociedade desde 1650. Tradução e adaptação de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Editora UFPR, 2019.), essas passagens de Qualtinger foram traduzidas lançando-se mão de dois registros diferentes do português, como estratégia para alcançar um efeito semelhante: “É, os nossos tiras já estavam esperando, com as suásticas nos braços” e, depois, “... foi terrível... foi um crime induzir todo esse povo de boa-fé ao erro” (QUALTINGER apudZEYRINGER, GOLLNER 2019ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Áustria: uma história literária. Literatura, cultura e sociedade desde 1650. Tradução e adaptação de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Editora UFPR, 2019.: 742). Como veremos mais adiante, o uso de dois registros distintos do idioma português parece ser uma estratégia tradutória possível e coerente para verter as falas de personagens nestroyanas para a nossa língua.

Aproximadamente cem anos após a revitalização de Nestroy por Kraus, Elfriede Jelinek não deixa dúvida sobre a influência nestroyana em sua obra, chamando a atenção para a força criativa e crítica do uso da linguagem pelo dramaturgo (JELINEK 2001JELINEK, Elfriede. sich mit der Sprache spielen: Johann Nestroy. Elfriede Jelinek, 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy.htm/ (22/12/2020).
http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy....
). A autora afirma frequentemente que sua literatura está enraizada na tradição do Grupo de Viena e nas obras de Ludwig Wittgenstein, Karl Kraus e Johann Nestroy - todos expoentes de uma “literatura muito focada na forma, que trabalha menos com conteúdo do que com a tonalidade, com o som da língua” (JELINEK 2004JELINEK, Elfriede. Ich renne mit dem Kopf gegen die Wand und verschwinde. Interview mit Rose-Maria Gropp und Hubert Spiegel. Frankfurter Allgemeine Zeitung, Frankfurt, 8 nov. 2004. Bücher, 35. Disponível em: Disponível em: http://www.faz.net/aktuell/feuilleton/buecher/elfriede-jelinek-ich-renne-mit-dem-kopf-gegen-die-wand-und-verschwinde-1196979.html (13/12/2020).
http://www.faz.net/aktuell/feuilleton/bu...
: 35). Ou seja, assim como Kraus, Jelinek entende como traço distintivo em Nestroy não os enredos, mas a linguagem nestroyana, e frisa a dificuldade de falar sobre seu precursor: “Acho que só é possível explicar Nestroy ao dizer que ele diz o que diz. E essa língua sempre pensa sobre suas próprias condições, que estão presentes na escrita, mas não são problematizadas, ela [a língua] as diz” (JELINEK 2001JELINEK, Elfriede. sich mit der Sprache spielen: Johann Nestroy. Elfriede Jelinek, 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy.htm/ (22/12/2020).
http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy....
: s.p.). Quando a escritora afirma que Nestroy “brinca com a língua, ao entrar nela e depois sair dela” e “jogando as palavras e frases para cima, para depois deixá-las caírem e dizer sem quaisquer rodeios: o que é fato” (JELINEK 2001JELINEK, Elfriede. sich mit der Sprache spielen: Johann Nestroy. Elfriede Jelinek, 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy.htm/ (22/12/2020).
http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy....
: s.p.), quando ressalta que a língua dele “se fala e fala consigo mesma”, ela se refere - num movimento semelhante àquele realizado por Karl Kraus, conforme mencionamos anteriormente - não apenas ao ancestral da literatura e da dramaturgia austríacas, mas também às suas próprias estratégias literárias, à sua própria poética. Assim como Nestroy, Jelinek recorre amiúde a significantes semelhantes para evocar lapsos e criar associações inusitadas (“Então já estou nas águas terminais, não, não nas águas termais, está pensando o quê” [JELINEK apudBOHUNOVSKY, BACHMANN 2020BOHUNOVSKY, Ruth; BACHMANN, Cristiane Gonçalves. Elfriede Jelinek - “Sombra (Eurídice diz)”. Belas Infiéis, v. 9, n. 2, 261-280, 2020. Disponível em: Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/27435/25746 (23/12/2020).
http://periodicos.unb.br/index.php/belas...
: 267]). Também a postura crítica em relação ao funcionamento da sociedade (capitalista) se mostra tanto na obra de Nestroy como na de Jelinek por meio de trocadilhos, interpretações literais de metáforas ou neologismos. Quando na peça Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften [O que aconteceu após Nora deixar seu marido ou Pilares das sociedades], de Jelinek, o gerente de Relações Humanas diz: “An meiner Position können Sie studieren, daß ein Beruf keine Flucht, sondern eine Lebensaufgabe ist” [Na minha posição, você pode perceber que a profissão não é uma fuga, mas a melhor entrega de uma vida”], Nora lhe responde à la Nestroy: “Ich will aber mein Leben noch nicht aufgeben!” [“Mas ainda não quero entregar minha vida!”] (JELINEK 2018JELINEK, Elfriede. Theaterstücke: Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften/ Clara S. musikalische Tragödie/ Burgtheater/ Krankheit oder Moderne Frauen. Hamburg: Rowohlt, 2018.: 9).

Conforme destaca Juliane Vogel (2013VOGEL, Juliane. Intertextualität. In: JANKE, Pia (Hrsg.). Jelinek-Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2013, 47-55.), a influência da tradição literária austríaca que remota a Nestroy e Kraus é determinante na obra de Jelinek. Na análise da literatura jelinekiana, Vogel se concentra na ocorrência de uma “intertextualidade parodística” (VOGEL 2013VOGEL, Juliane. Intertextualität. In: JANKE, Pia (Hrsg.). Jelinek-Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2013, 47-55.: 49), presente nos três autores, e aponta para mais uma convergência entre Nestroy e Jelinek: assim “como Nestroy, que se dedicou especialmente a modelos do teatro musical francês daquela época, Jelinek pode ser vista como uma virtuose dos ‘dramas secundários’” (VOGEL 2013VOGEL, Juliane. Intertextualität. In: JANKE, Pia (Hrsg.). Jelinek-Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2013, 47-55.: 50). Já desde sua primeira peça (a referida Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte...), de 1979, ela “faz paródias e traduz modelos dramáticos” (VOGEL 2013VOGEL, Juliane. Intertextualität. In: JANKE, Pia (Hrsg.). Jelinek-Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2013, 47-55.: 50), como os de Oscar Wilde ou Georges Feydeau. Essa prática se encaixaria “no contexto de uma intertextualidade parodística e caricata que está firmemente enraizada na cultura teatral austríaco-habsburguiana” (VOGEL 2013VOGEL, Juliane. Intertextualität. In: JANKE, Pia (Hrsg.). Jelinek-Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2013, 47-55.: 49). No contexto do presente artigo, vale lembrar ainda que Jelinek é autora de uma pequena peça intitulada Präsident Abendwind [Presidente Vento-da-Tarde]8 8 Acessível integralmente na página oficial de Elfriede Jelinek: http://elfriedejelinek.com. - uma clara alusão intertextual à peça de Nestroy cuja tradução brasileira comentamos em seguir (nesse pequeno Dramulett, Jelinek tematiza a eleição de Kurt Waldheim a presidente da Áustria, apesar de seu passado nazista).

Resumindo: Nestroy iniciou uma tradição poética e dramatúrgica austríaca, marcada por abordagens intertextuais lúdicas, subversivas e polêmicas e obras literárias em que a língua assume o papel de personagem central. Os personagens das peças de Nestroy, de Kraus (lembrando, por exemplo, Os últimos dias da humanidade [KRAUS 2017KRAUS, Karl. Os últimos dias da humanidade. Tradução de Mariana Ribeiro de Souza. São Paulo: Balão Editorial, 2017.]) e de Jelinek são figuras grotescas e longe de qualquer pretensão realista, eles quebram a ilusão realista constantemente com apartes, comentários metalinguísticos, músicas cantadas e brincadeiras direcionadas ao público e ganham sua relevância cênica, comicidade e potencial crítico-revelador por pronunciarem e desfigurarem padrões linguísticos (Sprachschablonen). É a língua que se apresenta como uma instância própria, que age, reage e instiga para a reflexão metalinguística. Ao defender essa chave de leitura e definir Nestroy como o maior satírico de toda a literatura em língua alemã, Karl Kraus conseguiu elevá-lo à “nobreza da história literária” (SCHMIDT-DENGLER 2001SCHMIDT-DENGLER, Wendelin. Nestroy - Die Launen des Glücks. Wien: Paul Zsolnay, 2001.: 20). Um autor que, como tentamos mostrar com alguns exemplos, inspirou e influenciou vários outros literatos que hoje fazem parte dessa “nobreza”, ou, em outras palavras, do cânone da literatura do pequeno país alpino.

3 Traduzir Nestroy: Häuptling Abendwind chega ao Brasil

Em estudos acadêmicos sobre a recepção de Nestroy em outros países é bastante frequente a menção à dificuldade ou até à impossibilidade de traduzir seus textos dramáticos. De fato, o cenário brasileiro de pouca divulgação via tradução não é uma exceção em nível mundial. Conforme informações disponíveis no site oficial do Internationales Nestroy-Zentrum 9 9 Cf. http://www.nestroy.at/neu/. , sediado em Schwechat, perto de Viena, a recepção mundial de Nestroy via tradução publicada é a seguinte: há uma peça traduzida, respectivamente, para o árabe, o chinês, o português, o sueco, o eslovaco e o húngaro; duas outras peças para o francês, o polonês e o tcheco; mais três peças e uma coletânea de outras sete para o italiano; duas coletâneas de farsas nestroyanas para o japonês; e cinco peças traduzidas para o alemão suíço. A recepção mais ampla deu-se em língua inglesa, havendo duas coletâneas com três peças cada; uma peça traduzida como parte de uma coletânea de dramas de diversos autores austríacos; sete peças traduzidas “e adaptadas” por diferentes dramaturgos, entre eles Thornton Wilder. Este último adaptou Einen Jux will er sich machen [Divertir-se é o que ele quer] para a peça The Merchant of Yonkers (1939) que em 1955 ganhou o título The Matchmaker para a versão cinematográfica e em 1965 foi transformada em filme musical, sob o título Hallo Dolly, com Gene Kelly no papel principal10 10 Todos esses dados sobre a recepção de Nestroy em outras línguas foram extraídos de http://www.nestroy.at/nestroy-materialien/uebersetzungen/. Para mais informações sobre a recepção de Nestroy nos EUA, cf., também: ALTER, Maria P. The Reception of Nestroy in America as Exemplified in Thornton Wilder's Play The Matchmaker. Modern Austrian Literature, 20 (3/4), 32, 1987. . Essa sequência de reescritas em língua inglesa é mais um exemplo de que a dramaturgia de Nestroy, que já é, por sua vez, uma reescrita de outros “originais”, tem sobrevivido nas mais diversas formas e adaptações.

O conjunto de características da linguagem nestroyana é frequentemente apontado como empecilho e “armadilha” (HÖLLER apudGORBATENKO 2010GORBATENKO, M. “Nestroys Rezeption in Russland Oder: Wenn die Übersetzung auf viele Probleme stöβt und die Interpretation an der Gattungsinkongruenz scheitert”. In: KNAFL A. (Hg). Über(ge)setzt: Spuren zur österreichischen Literatur im fremdsprachigen Kontext. Wien: Praesens, 2010, 69-78.: 70) tanto para a recepção em outros países de língua alemã, conforme mencionamos acima, como também para a tradução. Nesse contexto, o uso dialetal do alemão vienense; a língua empregada não como meio, mas como objeto de comicidade; os neologismos; a presença de um cultismo irônico; os trocadilhos e jogos linguísticos com expressões idiomáticas do alemão austríaco; assim como os nomes sugestivos de muitos dos personagens: todos esses traços tendem a ser mencionados para explicar as dificuldades de recepção literária de Nestroy fora da Áustria e, sobretudo, da sua tradução. Não é raro tradutores apontarem ser impossível verter Nestroy para outro idioma (ALBALADEJO 2005ALBALADEJO, Juan Antonio. Los clásicos marginados: Johann Nestroy o la traducción imposible. In: CERNUDA, Miguel Ángel Vega (ed.). La traducción de los clásicos: problemas y perspectivas. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, Instituto Universitario de Lenguas Modernas y Traductores, 2005, 297-304.: 297) ou confessarem seu inevitável “fracasso” ao tentar interpretar ou traduzir sua obra (GORBATENKO 2010GORBATENKO, M. “Nestroys Rezeption in Russland Oder: Wenn die Übersetzung auf viele Probleme stöβt und die Interpretation an der Gattungsinkongruenz scheitert”. In: KNAFL A. (Hg). Über(ge)setzt: Spuren zur österreichischen Literatur im fremdsprachigen Kontext. Wien: Praesens, 2010, 69-78.: 70). Curiosamente, os autores que se referem à suposta “intraduzibilidade” não deixam de aludir, nos mesmos textos, a passagens traduzidas (ALBALADEJO 2005ALBALADEJO, Juan Antonio. Los clásicos marginados: Johann Nestroy o la traducción imposible. In: CERNUDA, Miguel Ángel Vega (ed.). La traducción de los clásicos: problemas y perspectivas. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, Instituto Universitario de Lenguas Modernas y Traductores, 2005, 297-304.; GORBATENKO 2010GORBATENKO, M. “Nestroys Rezeption in Russland Oder: Wenn die Übersetzung auf viele Probleme stöβt und die Interpretation an der Gattungsinkongruenz scheitert”. In: KNAFL A. (Hg). Über(ge)setzt: Spuren zur österreichischen Literatur im fremdsprachigen Kontext. Wien: Praesens, 2010, 69-78.). Juan Antonio Albaladejo oferece um caminho que pode ajudar a entender essa situação paradoxal, quando encerra seu artigo com a afirmação de que, antes de enfrentar a tarefa de verter um texto nestroyano para outra língua, seria necessário “perguntar-se se o que se pretende é uma adaptação do texto em questão ou se o que se aspira é a uma verdadeira tradução” (ALBALADEJO 2005ALBALADEJO, Juan Antonio. Los clásicos marginados: Johann Nestroy o la traducción imposible. In: CERNUDA, Miguel Ángel Vega (ed.). La traducción de los clásicos: problemas y perspectivas. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, Instituto Universitario de Lenguas Modernas y Traductores, 2005, 297-304.: 304). Albaladejo ainda explica que uma verdadeira tradução teria que “respeitar o caráter, a forma e o conteúdo do texto original”, algo “muito difícil de conseguir” no caso do dramaturgo em foco (ALBALADEJO 2005ALBALADEJO, Juan Antonio. Los clásicos marginados: Johann Nestroy o la traducción imposible. In: CERNUDA, Miguel Ángel Vega (ed.). La traducción de los clásicos: problemas y perspectivas. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, Instituto Universitario de Lenguas Modernas y Traductores, 2005, 297-304.: 304). Será? Se entendermos “respeitar” como “conservar” ou atingir a tão polêmica “fidelidade” em relação a todos os aspectos textuais e contextuais, estaríamos de fato diante de um empreendimento tradutório impossível - e não apenas no caso de Nestroy, mas para qualquer outro autor, como têm mostrado as mais diversas abordagens teóricas na área de tradução nas últimas décadas. Nenhuma tradução - assim como nenhuma leitura de uma obra original - é capaz de “conservar” características supostamente intrínsecas ao texto original, mas é sempre uma interpretação, uma releitura ou reescrita de um texto de partida. Propomos entender a ideia de respeito nessa passagem de Albaladejo como “lealdade”, nos termos de Christiane Nord (2011NORD, Christiane. Funktionsgerechtigkeit und Loyalität. Theorie, Methode und Didaktik des funktionalen Übersetzens. Berlin: Frank & Timme, 2011.), ou como (re)criação em outra língua de alguns dos efeitos e funções identificados no texto de partida, elaborando um projeto de tradução coerente e, na medida do possível, transparente para o público-alvo11 11 Sem debruçarmo-nos, neste artigo, sobre uma apresentação de modelos teóricos de tradução teatral, indicamos Susan Bassnett (1998) ou Sirkku Aaltonen (2000) como autoras de trabalhos teóricos instigantes para propostas tradutológicas consistentes e criativas no âmbito teatral. Ao pensarmos sobre a versão para outra língua de uma peça de Nestroy, parecem-nos interessantes e relevantes trabalhos que evidenciam a impossibilidade de diferenciar de modo objetivo aquilo que pode ser definido como “tradução” daquilo que seria “adaptação” (cf., por exemplo, WINDLE 2011), pois trata-se de conceitos que se referem muito mais a aspectos extralinguísticos do que a alguma relação definível entre original e reescrita. . Para traduzir uma peça nestroyana, é possível até mesmo considerar que “respeitar” o texto de partida e seu autor pode também significar seguir os passos do dramaturgo vienense no que diz respeito à realização de adaptações, aculturações a alterações linguísticas para obter um texto de chegada condizente com o potencial efeito (cômico, crítico, satírico, artístico etc.) do original em um novo contexto. Com isso, questiona-se também qualquer pretensão de estabelecer limites claros entre tradução e adaptação - assunto que, no entanto, não será aprofundado no âmbito deste artigo. Neste momento, nosso intuito é apenas sugerir que, para traduzir Nestroy, nada melhor do que inspirar-se no próprio Nestroy. Conforme já apontamos, ele foi mestre em “livres adaptações” de modelos, scripts e enredos de outros autores, garantindo, ao mesmo tempo, a sobrevida das obras “originais” sob nova roupagem. Sua prática é prova de que, para produzir um texto com potencial de sucesso entre o público da língua de chegada, é preciso, antes de mais nada, explorar as possibilidades do idioma-alvo com coragem, criatividade e uma postura autoral consciente - ainda que o tradutor não tenha como objetivo elaborar uma reescrita tão “livre” como aquelas que o próprio Nestroy realizou.

A seguir, olharemos mais de perto algumas soluções tradutórias encontradas por Celeste Ainda Galeão e Walter Schorlies em Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror.

A tradução de Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl por Galeão e Schorlies não inclui nenhum paratexto que nos dê alguma informação mais detalhada sobre o projeto tradutório e as estratégias aplicadas. A única pista que nos possibilita levantar uma hipótese acerca do que os norteou é a apresentação da tradução como “somente informativa” (NESTROY 1990NESTROY, Johann Nepomuk. Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror. Opereta em umato. Tradução de Celeste Aida Galeão e Walter Schorlies. Cadernos de Teatro Alemão (Instituto Goethe), n. 52, 1990.: s.p.). Ao nosso ver, essa classificação sugere que não havia intento de traduzir com base num projeto acadêmico ou performático bem definido12 12 É interessante mencionar que todos os Cadernos de Teatro Alemão publicados pelo Instituto Goethe nos anos de 1990 trazem a indicação de “tradução informativa”. Mesmo sem pretensão de apresentar traduções de alta qualidade, os Cadernos tiveram um impacto considerável na recepção do teatro de língua alemã no Brasil, pois foram uma fonte rara de acesso a textos teatrais traduzidos desse idioma. . Ao lado disso, além de aparentemente sinalizar uma pretensão modesta da parte dos organizadores e tradutores em relação à qualidade da tradução, tal designação pode ser interpretada também como uma estratégia argumentativa para permitir-lhes maior liberdade, pois torna explícito o fato de eles não seguirem qualquer ideal de “fidelidade”. Cabe reiterar que se trata apenas de hipóteses sobre as intenções dos tradutores, porém talvez merecedoras de reflexões mais abrangentes.

De qualquer modo, tendo em vista a ambição moderada dessa tradução, expressa na sua declaração de “somente informativa”, nosso objetivo não é uma avaliação crítica da tradução integral sob um viés performático ou filológico. Ou seja, não nos propomos a fazer uma análise da tradução tomando o texto integral como unidade de referência. Nosso intuito é apresentar e analisar algumas das soluções encontradas pelos tradutores para verter frases e termos de Nestroy, e argumentar que os aspectos mais citados como problemáticos ou até inibidores de uma versão da obra nestroyana para outras línguas podem ser (re)criados em língua portuguesa.

Antes de entrar na análise textual, é interessante refletir sobre os motivos que possam ter levado os responsáveis pela coleção Cadernos de Teatro Alemão a escolher justamente a peça Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. Já nas primeiras cenas, apresenta-se ao leitor não apenas uma obra de alta comicidade, mas também um texto teatral que pode ser relacionado com discursos do século XX a propósito do colonialismo europeu imposto a regiões geográficas ditas “selvagens” ou “desconhecidas”. Abendwind [Vento-da-Tarde], o “cacique dos Gran-lulus”, protagonista da peça, é principal líder de uma ilha povoada por “selvagens” e ainda não descoberta pelos europeus - fato mencionado frequentemente por ele ao longo da peça, não sem ironia. Por exemplo: “die benachbarten Inseln sein schon entdeckt; die Zivilisationsverbreiter kommen überall hin; wo’s noch was Unentdecktes gibt, das stieren s’auf” (NESTROY 1862NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
http://www.nestroy.at/neu/wp-content/upl...
), ou, na tradução de Galeão e Schorlies, “as ilhas vizinhas já estão descobertas; os divulgadores da civilização chegam em toda parte; onde ainda há algo não-descoberto, então eles ficam de olho” (NESTROY 1990NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
http://www.nestroy.at/neu/wp-content/upl...
: 3). Suas falas, não apenas cheias de ironia, mas também de trocadilhos e lapsos reveladores, expressam de modo implícito uma visão relativista e crítica acerca da suposta superioridade cultural dos europeus. Na peça de Nestroy, são os “selvagens” - tradicionalmente “objetos” da “missão civilizadora” dos europeus - quem assume a fala. Eles ironizam o projeto colonizador, mas, ao mesmo tempo, são também ironizados e ridicularizados. Certamente, tal viés não condizia com discursos do mainstream de 1862, ano da estreia da peça, entretanto é compatível com os debates críticos em torno do colonialismo dos anos de 1990, quando o texto foi escolhido para ser traduzido. Uma chave de leitura pós-colonial para a peça foi proposta, aliás, em 2007, por Eda Sagarra, em seu artigo “Nestroy’s ‘Häuptling Abendwind’ as Post-Colonial Text?” (SAGARRA 2007SAGARRA, Eda. Nestroy’s “Häuptling Abendwind” as Post-Colonial Text? Austrian Studies, v.15 (Austrian Satire and Other Essays), 53-64, 2007.). Entendemos que a temática do colonialismo - que torna a peça mais relevante ao contexto brasileiro do que uma obra que verse sobre discursos e situações de Viena no século XIX - pode ter sido um motivo para a escolha do texto para integrar a série Cadernos de Teatro Alemão.

O enredo é simples e tem muito em comum com outros textos de Nestroy. Vento-da-Tarde, pai de Atala, uma moça de dezesseis anos, espera a visita do cacique da ilha vizinha, que já foi descoberta pelos “divulgadores da civilização”. Para receber adequadamente seu colega Galo-de-briga (solução sugestiva encontrada por Galeão e Schorlies para traduzir o significativo nome “Biberhahn”), Vento-da-Tarde pretende oferecer um festim canibal - bem ao gosto dos dois líderes. Porém, não há nenhum prisioneiro ou objeto de caça disponível para tal fim. Neste momento, aparece um estrangeiro, Arthur - um náufrago que, logo após ser arremessado na praia, encontra Atala e se encanta com ela. Sem desconfiar de nada, e a mando de Vento-da-Tarde, Arthur é levado pelo cozinheiro Ho-Gu (nome do original mantido na tradução brasileira) para ser preparado gastronomicamente para o referido festim. Durante a conversa entre Vento-da-Tarde e Galo-de-Briga, há múltiplas alusões ao fato de ambos terem, alguns anos antes, cada qual devorado, de modo canibal, a esposa do outro. Galo-de-Briga anuncia que está à espera do filho, que também se chama Arthur e que com apenas um ano de vida foi levado da sua ilha nativa e educado no exterior. O plano de Galo-de-Briga é casá-lo com Atala. Ao descobrir que o “estrangeiro” já consumido durante o festim e o esperado filho do cacique são a mesma pessoa, a peça chega ao seu auge dramático. Como em quase todas as obras teatrais de Nestroy, uma reviravolta inesperada traz o desenlace e o final feliz.

A tradução de Galeão e Schorlies é uma versão integral do texto original, ou seja, não houve cortes, nem acréscimos, nem notas explicativas dos tradutores (a única nota de rodapé apresentada é uma nota do autor e encontra-se no índice de personagens, explicando que o nome Ho-Gu é uma alusão ao francês haut goût, que significa, em português, algo como “gosto apurado”). Já numa primeira leitura, percebe-se em diversas passagens uma proximidade com a sintaxe do alemão - por exemplo, em “Esta foi só por acaso roubada” (NESTROY 1990NESTROY, Johann Nepomuk. Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror. Opereta em umato. Tradução de Celeste Aida Galeão e Walter Schorlies. Cadernos de Teatro Alemão (Instituto Goethe), n. 52, 1990.: 5) - e algumas incoerências semânticas que comprometem a fluência da leitura e indicam que os tradutores não tinham em vista a montagem cênica de sua versão. Na tradução dos couplets (pequenas composições poéticas a serem cantadas pelos personagens), renunciou-se em grande medida a uma proposta rítmica, métrica ou de rima contínua. Concentrando-se no nível semântico da frase, o resultado na versão brasileira oscila na sua qualidade rítmica e musical:

NOTA1213 13 Todas as citações em alemão da peça Häuptling Abendwind… são extraídas da versão disponível no site do Internationales Nestroy-Zentrum (http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf), sem indicação de página.

Ah! Meu papá tem razão quando se zangacom meu espírito anda algo errado; Senhor, tudo que aqui ouvi Ach, mein Papa hat recht im Grimm, Mit meinem Geist steht's wirklich schlimm; Como chinês e grego entendi. (NESTROY 1990: 12) Mein Herr, all das, was ich vernommen, ist mir wie spanisch vorgekommen.NOTA12

Se os primeiros dois versos revelam uma preocupação dos tradutores com a manutenção da informação semântica do texto de partida, ainda que abrindo mão de recriar a melodia produzida pela métrica e pela rima no texto em alemão, os dois versos seguintes são exemplo não apenas de um esforço para compor tanto um texto rimado e performável (“cantável”), mas também da disposição dos tradutores de afastar-se semanticamente do original (vertendo “spanisch” para “chinês e grego”), intentando gerar um conjunto semântico coerente com o uso convencional dessa expressão em português brasileiro. Como indica essa passagem, assim como várias outras ao longo da peça, os tradutores parecem ter procurado por algumas soluções criativas, com o intuito de criar certos efeitos, porém limitaram-se a uma tradução mais rudimentar em outros momentos. O exemplo a seguir - um dueto a ser cantado no palco - também ilustra isso: há, por um lado, a busca dos tradutores por rimas e, por outro lado, a desconsideração do formato métrico e rítmico que marca o texto alemão:

Galo-de-Briga Biberhahn A caminho e sem previsão Ameaçam-no ventos e turbilhão Auf dem Weg, kaum zu bemessen,Drohn ihm nicht nur Stürme bloß, Pode também ser comido por um tubarão Mas contra isso tem ele mesmo um goelão (NESTROY 1990: 39) s' kann ihn auch ein Haifisch fressen, Denn sein Rachen ist gar groß.

Insistimos que nosso objetivo aqui não é criticar soluções tradutórias talvez menos “felizes”, mas sim destacar resultados louváveis para aspectos característicos e relevantes da obra nestroyana. Em relação ao dialeto, por exemplo, vejamos primeiro a solução encontrada para esta passagem, em parte já citada anteriormente:

Vento-da-Tarde: [...] E agora algumas palavras a vocês, os grandes do meu reino, os que são na realidade os mais altos em todo o meu reino. (Começando um discurso) Meus senhores! - (notando com desprazer comotodos o olham abobalhados, sem se mexer). Bem, vão inclinar-se, ou não? Abendwind: [...] Und nun, einige Worte zu euch, ihr Großen meines Reiches, die ihr eigentlich die größten seid in meinem ganzen Reich. (Eine Anrede beginnend.) Meine Herrn! - (Mit Mißvergnügen bemerkend, wie alle ihn bewegungslos anglotzen.) Na, werd'ts euch verneigen, oder nit? (NESTROY 1990: 3)

Nesse trecho, os tradutores optaram por não verter o trecho dialetal para uma variante regional do Brasil, mas operaram uma mudança de registro que pode ter um efeito semelhante à troca entre alemão padrão e dialeto. Certamente, esse efeito poderia ser reforçado ainda mais em português - por exemplo, usando-se o pronome “os senhores” na primeira parte da citação e, talvez, alguma gíria ou expressão idiomática na frase final. O uso de expressões idiomáticas foi, porém, uma estratégia aplicada em outros momentos, como ao traduzir a frase “Mit dem Madl hab’ ich a G’frett!” (NESTROY 1862NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
http://www.nestroy.at/neu/wp-content/upl...
) pela fusão de duas expressões brasileiras (“ter um calo no pé” e “ter uma pedra no sapato”): “Com a moça tenho um calo no sapato” (NESTROY 1990NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
http://www.nestroy.at/neu/wp-content/upl...
: 4).

Conforme já mencionado, Nestroy era mestre em brincar com a (e, segundo Jelinek, na) língua alemã, com a superfície da linguagem, com os significados e significantes de termos e expressões. Em alguns momentos, seus personagens (geralmente em apartes) tecem comentários metalinguísticos acerca dessa estratégia. A seguir, um exemplo e sua tradução para o português:

Vento-da-Tarde: [...] é um povo que fala uma língua enrolada e se gaba de ser altamente civilizado - são também os inventores da diplomacia... Abendwind: [...] 's is a Volk, was eine schnoflete Sprach' red't und sich einbild't, an der Spitze der Zivilisation zu stehn - sie sind auch Erfinder der Diplomatie - Os selvagens: Saúde! Die Wilden: Zur Genesung! Vento-da-Tarde: Obrigado! (Sorrindo, parasi.) Não temos em nossa língua nenhuma palavra que acabe com "acia", por isso eles pensaram que eu dei um espirro. Abendwind: Danke! (Lachend, für sich.) Wir haben in unserer Sprache kein Wort, was auf (NESTROY 1990: 6) »atzi« ausgeht, drum haben s' glaubt, ich hab'g'niest.

Brincar com a língua e sua superfície leva Nestroy também à criação de termos agramaticais e neologismos no mínimo inusitados. Muitas vezes, como no trecho que veremos a seguir, isso ocorre no contexto de uma fala supostamente culta, mas que aos poucos se mostra contraditória ou até mesmo isenta de sentido. Ou seja, a aparente erudição de um personagem revela-se em Nestroy, com frequência, um cultismo de efeito irônico. Em Cacique Vento-da-Tarde, Galeão e Schorlies optam, quase sempre, pela eliminação dessa estratégia, reduzindo, assim, a inventividade e a comicidade do texto. No exemplo seguinte, o neologismo “Zopfismen”, da palavra “Zopf” [trança], uma alusão ao termo “Sophismus” e, num sentido mais amplo, aos diversos movimentos políticos e filosóficos que levam o sufixo “-ismo” em seu nome e que poderia em português ser algo como “trancismo”, perde seu potencial cômico. A fala é do personagem Arthur, recém-naufragado na ilha e que, neste momento, está se aproximando de Atala, filha de Vento-da-Tarde. O público e os outros personagens descobrirão ao longo da peça que ele é também filho de Galo-de-Briga, cacique da ilha vizinha, mas foi criado em Paris - perfil perfeito para uma ridicularização do registro linguístico formal, culto e, supostamente, superior à fala “comum” dos personagens mais humildes.

Arthur: [...] Essa selvagem tem um cabelo magnífico, cuja virgem originalidade ainda não se enrolou em falsas e enganosas tranzas [sic] [...]. Arthur: [...] Diese Wilde hat ein prächtiges Haar, dessen Urwüchsigkeit sich noch niedurch trügerische, falsche Zopfismem kompromittierte [...]. (NESTROY 1990: 14)

Já no trecho a seguir, os tradutores ousaram criar um termo agramatical e uma cacofonia, que não existem no texto original, seguindo os passos criativos de Nestroy e chegando a um resultado, no nosso entender, mais satisfatório:

Arthur: [...] fragilizou a nau, e eu, quando elafragilizou-se, tão atordoado fiquei pelo fragilizamento, que nem fui capaz de agradecer à onda [...]. Arthur: [...] Kurz, der Schiffbruch ward gebrochen, und ich, als er brach, durch den Bruch so betäubt, daß ich mich nicht einmal bei der Welle bedanken konnte [...]. (NESTROY 1990: 14)

Em outra frase da mesma fala de Arthur, que expomos na sequência, Nestroy não criou novos termos, mas, ainda com o intuito de ridicularizar a fala “culta” do personagem, abusou de ironia e paradoxos, em parte (re)criados na versão em língua portuguesa (por exemplo, em “renomado caipira”):

Arthur: Uma tendência especial para o mais elevado e o mais fino me fêz tornar-me artista- do-penteado [...]. Com isso, tenho o direito depresumir que meu pai secreto é um fazendeiro latifundiário ou um renomado caipira ou um capitão de navio naufragado. Arthur: Spezielle Hinneigung zum Höheren und Feineren ließ mich Haarkünstler werden [...]. Ich bin somit zur Mutmaßung berechtigt, daß mein geheimer Vater ein weitläufiger Farmer oder ein bedeutender Hinterwäldler oder ein verschlagener Schiffskapitän sei. (NESTROY 1990: 13)

Brincar com os sentidos concretos e metafóricos de um termo ou de expressões idiomáticas (é o caso, no primeiro dos próximos exemplos que selecionamos, de “anschmieren” - em alemão, passar um creme ou lubrificante em uma superfície, mas também: enganar alguém) é uma das estratégias preferidas de Nestroy (e, atualmente, de Elfriede Jelinek) para novos criar efeitos de sentido, ambíguos e sugestivos. Nos excertos a seguir, os tradutores usaram de modo inventivo a estratégia em língua portuguesa:

Arthur: Aí aparece o cabeleireiro para passar a mão no bolso e na careca dele com pomadas de todos os tipos. Arthur: Da erscheint dann der Friseur, um sieeine Zeitlang mit Haarwuchspomaden in jeder Beziehung anzuschmieren. (NESTROY 1990: 11) Vento-da-Tarde: […] Mas hoje… meu grandealiado, o Galo-de-Briga, é também um filantropo, quer dizer, gosta de homens, especialmente assados. Abendwind: […] Aber heut' - mein großer Alliierter, der Biberhahn, is auch Menschenfreund, das heißt - er verspeist sie gern. (NESTROY 1990: 7) Arthur: […] mas o cabelo pertence à raizmalaia. Arthur: […] das Haar gehört aber dem malaiischen Stamme an. Atala: Permita-me, o cabelo é meu.(NESTROY 1990: 10) Atala: Erlauben Sie, das Haar gehört mir.

Quando Nestroy traduziu ou adaptou textos de outras línguas para o alemão (austríaco), não hesitou em ambientá-los em seu país, quase sempre em Viena, transformando figuras típicas de outras regiões ou países em vienenses ou boêmios locais típicos, tudo em prol daquilo que entendia como necessário para uma comédia de sucesso em sua terra natal, sobretudo quando levada à cena. No caso de Häuptling Abendwind…, no entanto, isso não ocorre: a peça não foi ambientada nem em Viena, nem na Áustria (país que não possuía colônias em outros continentes, motivo pelo qual uma relação direta com o contexto específico de recepção teria sido difícil). Trazer essa peça ao Brasil do século XX, como o fizeram Galeão e Schorlies, muda a perspectiva histórica do público-alvo, bem como outro é o papel do novo público-alvo no contexto da história do colonialismo europeu (agora já encerrada, porém sem termos superado as diversas consequências desse período). Ou seja, abrem-se novas chaves de leitura, novos caminhos interpretativos e novas possibilidades para atualizações e alusões sugestivas.

A tradução do nome do personagem “Biberhahn” por “Galo-de-Briga”, de “passaporte” por “carteira de identidade” e de “jardim-de-Plantes-artig” por “tipo Jardim Botânico” são exemplos de alusões ao contexto brasileiro:

Vento-da-Tarde: Se por ventura alguém sem acarteira de identidade estiver rondando por aqui, vindo de uma ilha estranha... Abendwind: Wenn vielleicht ein Paßloser hierherumgeht von einer fremden Insel - (NESTROY 1990: 7) Arthur: [...] pois quando os raios solares voltarem, fica tudo muito pitoresco, muitotipo Jardim Botânico. Arthur: [...] denn beim wiederkehrendenSonnenschein nimmt sieh das Ganze rechtpittoresk, recht jardin-des-Plantes- artig aus. (NESTROY 1990: 10)

Grande parte da comicidade, mas também do suspense no final da peça, resulta do fato (já consumado no momento da ação da peça) de os dois caciques, ambos canibais, terem, anos atrás, cada qual devorado a esposa do outro. Ao longo da obra, os dois viúvos lembram constantemente do ocorrido, acusando-se mutuamente do crime de canibalismo, mas evocando também o prazer que sentiram ao praticá-lo. Em alemão, os verbos empregados por Nestroy são “essen”, “fressen”, “verschlingen”, todos eles referindo-se apenas ao ato de ingerir um alimento, mesmo que humano. Galeão e Schorlies empregaram, nas referidas passagens, repetidamente, o verbo “comer”, abrindo assim - de modo consciente ou não - uma nova possibilidade de leitura, de cunho erótico, que é capaz de aumentar as dimensões cômica, grotesca, sexual e lúdica da peça - e Nestroy provavelmente teria aprovado essa solução.

Galo-de-Briga: [...] Nunca comi nada mais delicioso que a Vento-da-Tarde. Biberhahn: [...] Ich habe noch nichts Köstlicheres gespeist als die Abendwindin. (NESTROY 1990: 26) Ambos (ao mesmo tempo, mas cada qual para o lado): Só de quando em vez é que comemos um a mulher do outro. Beide (zugleich, aber jeder beiseite) Nur dann und wann fressen wir einer dem anderen die Gattin weg. (NESTROY 1990: 27)

Os próximos dois (e últimos) exemplos ilustram outra adaptação explícita e consciente ao contexto brasileiro e à sua história, mediante o emprego dos termos “antropofagia” e “fico”, ambos claramente associados a momentos ou movimentos de grande relevância na memória política e cultural do país - o movimento de vanguarda cultural dos anos de 1920 e o Dia do Fico, datado de 9 de janeiro de 1822, quando Dom Pedro I decidiu ficar no Brasil e descumprir a ordem da Corte portuguesa de voltar ao seu país de origem. Tais alusões à história Brasil não estão presentes na peça de Nestroy, porém nosso passado de colônia e o enredo da peça, que tematiza justamente a relação entre um poder colonial e um país povoado por “Wilde” [“selvagens”], não apenas explicam e justificam tais adaptações, mas, de modo bastante claro, seguem os passos nestroyanos.

Vento-da-Tarde: […] Por sorte, cá entre nós, insulanos dos mares-do-sul, a antropofagia está em voga... Abendwind: […] Zum Glück is bei uns Südseeinsulanern die Menschenfresserei en vogue. (NESTROY 1990: 6) Arthur: […] Continente, escrevo-te a carta-de-demissão e "fico" … aqui. Arthur: […] Kontinent, ich schreibe dir den Scheidebrief und bleibe hier! (NESTROY 1990: 14)

Considerações finais

Johann Nestroy foi um dramaturgo de renome e sucesso durante sua vida e, a partir do início do século XX, influenciou gerações de escritores austríacos, sobretudo no que tange ao uso inventivo, não normativo, ambíguo e cômico da língua alemã, especialmente da variante falada na região de Viena. Longe do culto à figura de um escritor como “gênio” autoral e original - atitude típica dos movimentos românticos -, criou uma obra com evidentes marcas intertextuais, remetendo não apenas a textos literários alheios, mas também a discursos e temas de sua época. Essas características têm inspirado outros escritores, que se referem a Nestroy como ponto de partida de uma tradição literária e teatral da Áustria e podem ser compreendidas, como tentamos sugerir por meio de alguns exemplos, como fonte de inspiração para possíveis traduções para outras línguas.

Excertos da versão brasileira de Cacique Vento-da-Tarde… foram apresentados aqui não com o intuito de levar a crer que a tradução de Galeão e Schorlies seja a única ou melhor possível. Longe disso. Mas, ao expor algumas boas soluções da dupla, pretendemos contribuir para um questionamento da qualificação da obra nestroyana como “intraduzível” e, no melhor dos casos, estimular projetos tradutórios que tenham aspirações mais ambiciosas do que a de serem “somente informativos”.

Referências bibliográficas

  • AALTONEN, Sirkku. Time-Sharing on Stage: Drama Translation in Theatre and Society (Topics in Translation 17). Clevedon: Multilingual Matters Ltd., 2000.
  • ALBALADEJO, Juan Antonio. Los clásicos marginados: Johann Nestroy o la traducción imposible. In: CERNUDA, Miguel Ángel Vega (ed.). La traducción de los clásicos: problemas y perspectivas. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, Instituto Universitario de Lenguas Modernas y Traductores, 2005, 297-304.
  • BASSNETT, Susan. Still Trapped in the Labyrinth: Further Reflexions on Translation an Theory. In: BASSNETT, S.; LEFEVERE, A. Constructing Cultures: Essays on Literary Translation. Clevedon/Philadelphia: Multilingual Matters, 1998, 90-108.
  • BOHUNOVSKY, Ruth; BACHMANN, Cristiane Gonçalves. Elfriede Jelinek - “Sombra (Eurídice diz)”. Belas Infiéis, v. 9, n. 2, 261-280, 2020. Disponível em: Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/27435/25746 (23/12/2020).
    » http://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/27435/25746
  • CARPEAUX, Otto Maria. A história concisa da literatura alemã. São Paulo: Faro Editorial, 2013.
  • THEATER AN DER JOSEPHSTADT. Das Mädl aus der Vorstadt. Programa da peça. Josephstadt, 2016.
  • FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013.
  • GOLLNER, Helmut. Johann Nestroy (1801-1862). In: ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Áustria: uma história literária. Literatura, cultura e sociedade desde 1650. Tradução e adaptação de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Editora UFPR, 2019, 217-247.
  • GORBATENKO, M. “Nestroys Rezeption in Russland Oder: Wenn die Übersetzung auf viele Probleme stöβt und die Interpretation an der Gattungsinkongruenz scheitert”. In: KNAFL A. (Hg). Über(ge)setzt: Spuren zur österreichischen Literatur im fremdsprachigen Kontext. Wien: Praesens, 2010, 69-78.
  • HAIDA, Peter. Nestroy in der Bundesrepublik Deutschland”. Nestroyana, Jahrgang 7, Heft 3-4, 144-149, 1987.
  • HEIN, Jürgen. Rezeption. In: HEIN, Jürgen. Johann Nestroy. Stuttgart: SammlungMetzler/J. B. Metzler, 1990, 123-135.
  • JELINEK, Elfriede. Ich renne mit dem Kopf gegen die Wand und verschwinde. Interview mit Rose-Maria Gropp und Hubert Spiegel. Frankfurter Allgemeine Zeitung, Frankfurt, 8 nov. 2004. Bücher, 35. Disponível em: Disponível em: http://www.faz.net/aktuell/feuilleton/buecher/elfriede-jelinek-ich-renne-mit-dem-kopf-gegen-die-wand-und-verschwinde-1196979.html (13/12/2020).
    » http://www.faz.net/aktuell/feuilleton/buecher/elfriede-jelinek-ich-renne-mit-dem-kopf-gegen-die-wand-und-verschwinde-1196979.html
  • JELINEK, Elfriede. Lust. Hamburg: Rowohlt. 1992.
  • JELINEK, Elfriede. sich mit der Sprache spielen: Johann Nestroy. Elfriede Jelinek, 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy.htm/ (22/12/2020).
    » http://www.elfriedejelinek.com/fnestroy.htm/
  • JELINEK, Elfriede. Theaterstücke: Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften/ Clara S. musikalische Tragödie/ Burgtheater/ Krankheit oder Moderne Frauen. Hamburg: Rowohlt, 2018.
  • KRAUS, Karl. „Nestroy und die Nachwelt - Zum 50. Todestage“. In: FRANZEN, Jonathan. The Kraus Project: Essays by Karl Kraus. Translated and annotated by Jonathan Franzen. With assistance and additional notes from Paul Reitter and Daniel Kehlmann. New York: Farrar Straus & Giroux, 2013, 134-260.
  • KRAUS, Karl. Os últimos dias da humanidade. Tradução de Mariana Ribeiro de Souza. São Paulo: Balão Editorial, 2017.
  • NESTROY, Johann Nepomuk. Cacique Vento-da-Tarde ou O festim do horror. Opereta em umato. Tradução de Celeste Aida Galeão e Walter Schorlies. Cadernos de Teatro Alemão (Instituto Goethe), n. 52, 1990.
  • NESTROY, Johann Nepomuk. Häuptling Abendwind oder Das gräuliche Festmahl. In:NESTROY, Johann Nepomuk. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von Fritz Brukner und Otto Rommel. v. 14. Wien, 1924-1930, 565-618, 1862. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf (13/12/2020).
    » http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf
  • NESTROY, Johann. Der Talisman. 1840. Disponível em: Disponível em: http://www.nestroy-werke.at/index.php?r=play/viewpdf&id=40&pdfFile=171005.pdf&scroll=1 (13/12/2020).
    » http://www.nestroy-werke.at/index.php?r=play/viewpdf&id=40&pdfFile=171005.pdf&scroll=1
  • NORD, Christiane. Funktionsgerechtigkeit und Loyalität. Theorie, Methode und Didaktik des funktionalen Übersetzens. Berlin: Frank & Timme, 2011.
  • SAGARRA, Eda. Nestroy’s “Häuptling Abendwind” as Post-Colonial Text? Austrian Studies, v.15 (Austrian Satire and Other Essays), 53-64, 2007.
  • SCHMIDT-DENGLER, Wendelin. Nestroy - Die Launen des Glücks. Wien: Paul Zsolnay, 2001.
  • VOGEL, Juliane. Intertextualität. In: JANKE, Pia (Hrsg.). Jelinek-Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2013, 47-55.
  • WINDLE, Kevin. The Translation of Drama. In: MALMKJÆR, Kirsten; WINDLE, Kevin (eds.). The Oxford Handbook of Translation Studies. Oxford: University Press, 2011.
  • ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Áustria: uma história literária. Literatura, cultura e sociedade desde 1650. Tradução e adaptação de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Editora UFPR, 2019.
  • ZEYRINGER, Klaus; GOLLNER, Helmut. Eine Literaturgeschichte: Österreich seit 1650. Innsbruck: Studienverlag, 2012.
  • 2
    Todas as traduções de citações neste artigo são de minha autoria, salvo indicação contrária.
  • 3
    Neste artigo, não nos aprofundamos na recepção da obra de Nestroy nos países de língua alemã. Para um debate mais aprofundado a esse respeito, cf., por exemplo, Peter Haida (1987HAIDA, Peter. Nestroy in der Bundesrepublik Deutschland”. Nestroyana, Jahrgang 7, Heft 3-4, 144-149, 1987.).
  • 4
    Uma extensa lista de encenações de peças de Nestroy encontra-se no site http://www.nestroy.at/neu/.
  • 5
    NESTROY, Johann. Sämtliche Werke. Historisch-kritische Ausgabe. Herausgegeben von Jürgen Hein, Johann Hüttner, Walter Obermaier und W. Edgar Yates. Wien: Jugend & Volk (Deuticke), 1977-2010.
  • 6
    Outro austríaco, contemporâneo de Kraus, que igualmente parece não ter subestimado Nestroy foi o filósofo Ludwig Wittgenstein, pois a epígrafe escolhida para suas Investigações filosóficas foi justamente uma citação da peça Der Schützling [O protegido]: “Überhaupt hat der Fortschritt an sich, dass er viel größer ausschaut, als er wirklich ist” [“Em geral, é típico do progresso que ele pareça ser muito maior do que realmente é”] (SCHMIDT-DENGLER 2001SCHMIDT-DENGLER, Wendelin. Nestroy - Die Launen des Glücks. Wien: Paul Zsolnay, 2001.: 12).
  • 7
    O exemplo mais famoso dessa faceta da literatura dialetal no século XX é, certamente, o livro med ana schwwoazzn dintn, de H. C. Artmann (1958), o primeiro bestseller da vanguarda austríaca.
  • 8
    Acessível integralmente na página oficial de Elfriede Jelinek: http://elfriedejelinek.com.
  • 9
  • 10
    Todos esses dados sobre a recepção de Nestroy em outras línguas foram extraídos de http://www.nestroy.at/nestroy-materialien/uebersetzungen/. Para mais informações sobre a recepção de Nestroy nos EUA, cf., também: ALTER, Maria P. The Reception of Nestroy in America as Exemplified in Thornton Wilder's Play The Matchmaker. Modern Austrian Literature, 20 (3/4), 32, 1987.
  • 11
    Sem debruçarmo-nos, neste artigo, sobre uma apresentação de modelos teóricos de tradução teatral, indicamos Susan Bassnett (1998BASSNETT, Susan. Still Trapped in the Labyrinth: Further Reflexions on Translation an Theory. In: BASSNETT, S.; LEFEVERE, A. Constructing Cultures: Essays on Literary Translation. Clevedon/Philadelphia: Multilingual Matters, 1998, 90-108.) ou Sirkku Aaltonen (2000AALTONEN, Sirkku. Time-Sharing on Stage: Drama Translation in Theatre and Society (Topics in Translation 17). Clevedon: Multilingual Matters Ltd., 2000.) como autoras de trabalhos teóricos instigantes para propostas tradutológicas consistentes e criativas no âmbito teatral. Ao pensarmos sobre a versão para outra língua de uma peça de Nestroy, parecem-nos interessantes e relevantes trabalhos que evidenciam a impossibilidade de diferenciar de modo objetivo aquilo que pode ser definido como “tradução” daquilo que seria “adaptação” (cf., por exemplo, WINDLE 2011WINDLE, Kevin. The Translation of Drama. In: MALMKJÆR, Kirsten; WINDLE, Kevin (eds.). The Oxford Handbook of Translation Studies. Oxford: University Press, 2011.), pois trata-se de conceitos que se referem muito mais a aspectos extralinguísticos do que a alguma relação definível entre original e reescrita.
  • 12
    É interessante mencionar que todos os Cadernos de Teatro Alemão publicados pelo Instituto Goethe nos anos de 1990 trazem a indicação de “tradução informativa”. Mesmo sem pretensão de apresentar traduções de alta qualidade, os Cadernos tiveram um impacto considerável na recepção do teatro de língua alemã no Brasil, pois foram uma fonte rara de acesso a textos teatrais traduzidos desse idioma.
  • 13
    Todas as citações em alemão da peça Häuptling Abendwind… são extraídas da versão disponível no site do Internationales Nestroy-Zentrum (http://www.nestroy.at/neu/wp-content/uploads/2019/06/abendwind-sw.pdf), sem indicação de página.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2020
  • Aceito
    15 Jan 2021
Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: pandaemonium@usp.br