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O demoníaco no romance Eduard Allwills Briefsammlung de Friedrich Jacobi

[The daemonic in the novel Eduard Allwills Briefsammlung’s by Friedrich Jacobi]

Resumo

As contribuições literárias de Friedrich Heinrich Jacobi foram muito reduzidas às querelas filosóficas nas quais o autor participou. Contudo, Jacobi publicou dois importantes romances que, além da boa acolhida recebida em sua época, dialogaram fortemente com as tendências da época. O presente artigo visa analisar de que maneira o primeiro desses romances, Eduard Allwills Briefsammlung, pode servir como uma importante contribuição para a literatura moderna e para o estabelecimento de tendências e estruturas posteriormente exploradas desde o romantismo até a literatura contemporânea. Segundo nossa análise, o romance de Jacobi é marcado por um forte traço de negatividade, sendo este elemento inserido através do personagem principal, Eduard Allwill. Ao emular gêneros como o romance epistolar ou o romance filosófico, Jacobi utiliza essa negatividade como uma chave que produz efeitos de suspensão e de subversão na constituição de um novo romance. Nossa análise busca demonstrar como essa negatividade é realizada através do conceito de demoníaco, herdado da filosofia e convertido em um dos principais componentes da literatura moderna.

Palavras-chave:
Friedrich Jacobi; Eduard Allwills Briefsammlung; Demoníaco; Romance Epistolar; Negatividade

Abstract

Friedrich Heinrich Jacobi's literary contributions were largely reduced to the philosophical squabbles in which the author participated. However, Jacobi published two important novels which in addition to the good reception they received at the time also conversed strongly with the trends of their era. This article aims to analyze how the first of these novels, Eduard Allwills Briefsammlung, might be seen as an important contribution to modern literature and to the establishment of trends and structures which were later explored from romanticism on up to contemporary literature. According to our analysis, Jacobi's novel is marked by a strong trait of negativity, and this element is inserted through the main character, Eduard Allwill. By emulating genres such as the epistolary novel or the philosophical novel, Jacobi uses this negativity as a key which produces effects of suspension and subversion in the constitution of a new kind of novel. Our analysis seeks to demonstrate how this negativity is realized through the concept of the daemonic, inherited from philosophy, and then converted into one of the main components of modern literature.

Keywords:
Friedrich Jacobi; Eduard Allwills Briefsammlung; Daemonic; Epistolary Novel; Negativity

1 Introdução

Friedrich Heinrich Jacobi é muitas vezes lembrado pelas querelas filosóficas travadas com grandes nomes de seu tempo. Em geral, tais querelas tinham como ponto central o confronto de Jacobi com algumas tendências iluministas, de tal modo que o primeiro embate, evidenciado no livro Über die Lehre des Spinoza in Briefen an Herrn Moses Mendelssohn (1785), posteriormente expandido em 1789, é direcionado contra a filosofia racionalista de Mendelssohn, mas também contra a filosofia de Espinosa e, de forma lateral, contra supostas posições do recém-falecido Gotthold Ephraim Lessing, uma figura evocada pelos filósofos racionalistas como um arauto de suas causas. Ao apresentar de forma condicionada o conhecimento filosófico de Lessing, ao atribuir ao dramaturgo a suposta limitação “espinosana” de seu pensamento e ao defender o conceito de fé [Glaube] como ponto central de sua teoria do conhecimento, Jacobi atrai para si um exército de detratores. Tal impulso combativo não se arrefeceu com o tempo e, posteriormente, Jacobi fica conhecido pelas acusações que lança contra Johann Gottlieb Fichte no que ficou conhecido como Atheismusstreit, onde Jacobi, mais uma vez acusando um filósofo de seu tempo de “espinosismo”, associa essa vertente filosófica com o ateísmo e com o que ele chamou de “niilismo”, termo cunhado para identificar essa específica posição filosófica associada tanto com o Iluminismo, quanto com o idealismo. Mesmo no fim de sua vida, em seu último escrito, Von den göttlichen Dingen und ihrer Offenbarung (1811), Jacobi coloca-se em um novo confronto filosófico, agora tendo por alvo o pensamento de Schelling, um antigo admirador do trabalho de Jacobi que, conjuntamente com Hegel, não desprezou as contribuições feitas por um autor que muitas vezes foi tomado por pietista e irracionalista2 2 A influência de Jacobi sobre o idealismo é bastante evidente, bastando notar as considerações que faz Hegel sobre o pensamento de Jacobi em seu Fé e Saber (2011). Como aponta Manfred Frank em seu “Unendliche Annäherung”: Die Anfänge der philosophischen Frühromantik (1997: 690 ss.), Jacobi foi sobremaneira importante para Schelling no que diz respeito aos primeiros momentos de seu filosofar, com especial atenção para a questão do “conhecimento incondicionado”, questão essa que permitiu a Schelling promover diversos movimentos dentro do seu próprio pensamento, distanciando-se de Fichte e avançando para uma filosofia da natureza que tanto o caracterizou. .

Esses exemplos devem ilustrar um detalhe importante na forma com que Jacobi foi recepcionado pela tradição posterior: suas obras foram condicionadas pela leitura filosófica que, não raras vezes, circunscreveram a importância dessas produções sob a tutela destes mesmos embates filosóficos anteriormente indicados. Embora exista uma boa medida de razão em ler Jacobi dentro da constelação filosófica à qual ele fez parte, há que se considerar que ao menos duas de suas obras se encontram em um âmbito não tão bem delimitado. Essas duas obras são, não por menos, dois romances. O primeiro, publicado em sua forma inicial em 1776 no jornal Der Teutsche Merkur, recebeu o título provisório Eduard Allwills Papiere, sendo posteriormente ampliado e publicado no formato de livro em 1792 com o título Eduard Allwills Briefsammlung. O segundo romance também passou por diferentes edições - 1779, 1794 e 1796 -, recebendo diferentes subtítulos, mas mantendo o original Woldemar no início. Há que se notar que ambos os romances surgem em suas formas iniciais na década de 1770, precisamente quando a literatura alemã passava por um momento de agitação e jovens escritores se apresentavam ao público trazendo com eles um ímpeto tempestuoso que visava alterar o ambiente da literatura naquela língua. Se é possível indicar a importância de Herder e suas considerações crítico-literárias, ou o papel central de Christoph Martin Wieland em suas produções poéticas e em seu trabalho como publicista, ou mesmo do incendiário Johann Georg Hamann, é preciso indicar que é em 1774 que Goethe publica Os sofrimentos do jovem Werther, evidenciando o fato de que ali surgia na literatura alemã não apenas uma nova força estética, mas um novo campo de acontecimentos que se alongaria por algumas décadas e formaria as bases da literatura moderna. Nesse sentido, os romances de Jacobi, que buscavam pertencer precisamente a esse tempo e a esse impulso, não podem ser vistos simplesmente como meras formas estetizadas produzidas pelo autor - como era típico em sua época - para transmitir seus interesses filosóficos. Ao contrário, havia ali, como o presente trabalho pretende demonstrar, uma produção romanesca singular e bastante prolífica, a qual funcionava não em relação aos padrões gerais dos romances até então existentes - sobretudo aqueles retirados dos modelos franceses e ingleses -, mas em relação às suas próprias determinações.

No caso de Eduard Allwills Briefsammlung3 3 Optou-se aqui por trabalhar com a edição finalizada do romance e não com a edição de 1776. Muito embora Jacobi tenha promovido algumas alterações decorrentes de suas reformulações teórico-filosóficas no período entre as duas edições, é verdade que uma parte substancial do romance foi mantida, sendo acrescentadas apenas alguns elementos finais do romance. Em termos gerais, portanto, a estrutura é mantida e, com ela, a presença da ideia de “demoníaco” na economia geral da obra, como se demonstrará. , o que parece determinar tanto a estrutura do romance quanto a condução do seu conteúdo - em relação à narrativa, aos temas e aos personagens - é a ideia de “demoníaco”, ideia essa que estava presente na época desde o influente Sokratische Denkwürdigkeiten de Hamann, deixando marcas sensíveis nas produções de diversos autores do Sturm und Drang, bem como nos períodos classicistas e românticos posteriores. A intenção do presente artigo é demonstrar como o romance de Jacobi, muitas vezes tomado ora como simples texto de exploração filosófica, ora como uma má-realização romanesca em termos estéticos, pode ser lido, sob a tutela do conceito de demoníaco, como um valioso documento exemplar na modernização da literatura através da ressignificação da estrutura do “romance epistolar”, do emprego da subjetividade/interioridade, e, ainda, na inserção de um elemento de “negatividade” no âmbito da narrativa. Para tanto, o presente trabalho será dividido em três momentos: a) apresentação do romance e de seus principais elementos estruturais (personagens, temas e características narrativas), comparando-o à tradição em que se encontrava, e a qual buscava emular; b) apresentação do conceito de “demoníaco”, tanto na obra de Jacobi quanto nos textos que o influenciaram nesse sentido; c) reflexão sobre como a aplicação hermenêutica do conceito de “demoníaco” nos permite tomar o romance Eduard Allwill como um importante documento literário no qual se introduz um dos traços característicos da posterior modernidade literária, ou seja, o “personagem negativo”.

2 O “romance” Eduard Allwills Briefsammlung

O livro Eduard Allwills Briefsammlung, que poderia ser traduzido como Correspondência ou Coleção de cartas do referido personagem, parece escapar às tentativas de determinação de um gênero literário. Muito embora seja considerado um “romance”, o é simplesmente por associação ao modo estrutural presente no século XVIII e ao qual, de alguma forma, o escrito se vinculava. Em termos gerais, como o próprio título indica, trata-se de um “romance epistolar” em que se colecionam ou agrupam as cartas do personagem central, um tal Eduard Allwill. O sobrenome do referido personagem já é uma indicação suficientemente clara sobre a relação deste escrito literário para com a tradição inglesa que tanto influenciou o início da produção autônoma da Alemanha do século XVIII. Se Werther lia o poema épico de Ossian, o famoso engodo criado pelo poeta escocês James Macpherson que inspirara os sentimentos apaixonados dos jovens daquele tempo, então Eduard tem em seu nome a conjunção de duas palavras presentes tanto no espectro linguístico anglo-saxão quanto no germânico: “all” e “will”, representando, neste caso, um personagem que é “todo vontade”.

Mais do que a simples indicação literário-filosófica a que se filiava aquele personagem, há também aqui uma indicação às produções de autores como Richardson e Fielding, os quais também haviam produzido “romances epistolares” e que, ademais, haviam sedimentado esse gênero como parte constitutiva de um tipo de narrativa que alocava no centro de sua composição personagens, sentimentos e disposições burguesas. Como menciona, com bastante precisão, Germaine de Staël, esse gênero só poderia ser moderno, pois opõe à objetividade clássica um método interior e subjetivo que “sempre pressupõe mais sentimento que ação” (1821: 87).4 4 Salvo onde indicado pela referência bibliográfica, todas as traduções são de nossa autoria. Aproveita-se o ensejo para agradecer os pareceristas e editores pelos apontamentos precisos com relação às traduções. Mais do que uma mera inserção no debate sobre os antigos e os modernos, o que Staël aponta é o fato de que o romance epistolar se coaduna bem com a ideia de expressão da interioridade dos personagens, uma vez que suas vozes são identificadas em um momento reconhecidamente íntimo, ou seja, na troca de impressões e confissões por meio de cartas pessoais. Apesar de suas muitas desvantagens estilísticas e narrativas, como a escala temporal e o distanciamento social em relação às imagens retratadas, “a principal vantagem consiste no fato de as cartas serem a prova material mais direta da vida interior de seus autores” (Watt 2010: 202), elas possuem um traço de realidade material que embasava o crescimento do realismo daquele tempo, sendo que sua “realidade é do tipo que revela as tendências subjetivas e privadas do autor com relação ao destinatário e às pessoas mencionadas, bem como seu próprio íntimo” (Watt 2010: 202). Considerando esses aspectos, o romance de Jacobi é certamente uma representação desse quesito íntimo, já que os personagens ali representados são, com poucas exceções, relacionados por vínculos de parentesco e, portanto, comunicam-se com uma grande proximidade e uma grande intimidade.

No entanto, por mais que a narrativa de Eduard Allwill revele alguns traços das personalidades dos personagens, dando alguns sinais de certa profundidade emocional, não se encontra nesse romance uma exploração tão destacada dos sentimentos como nos casos de Pamela ou Clarissa de Richardson, ou ainda no Werther de Goethe, de modo que é possível considerar que a obra de Jacobi seria antes um “romance filosófico”, ou ao menos estaria de alguma forma vinculada a esse gênero. George di Giovanni afirma ter chamado a obra de “‘filosófica’ por falta de qualquer termo descritivo melhor”, logo acrescentando que mesmo o termo romance seria pouco apropriado neste caso, pois “se Allwill deve ser chamado de um romance, isso é em si mesmo um problema, uma vez que a obra é vazia de ação dramática em qualquer forma óbvia” (Jacobi 1994: 119). Em outro artigo, o mesmo comentador afirma se tratar de uma obra “estranha”, porque “não é escrita no estilo usual de um tratado filosófico, mas tem todas as características de um romance psicológico do século dezoito” (idem1989: 78). Um estranho quase-romance quase-filosófico que, no fundo, parece ser estruturado como um romance psicológico de tipo epistolar. Para alguns estudiosos, contudo, seria mais fácil indicar o pertencimento da obra ao seu tempo e, neste caso, indicar as bases materiais de seu surgimento:

Um romance muito admirado e muito criticado no maior período de nossa literatura, e em nossos dias apenas se arrastando nos compêndios da história literária, é o "Eduard Allwills Briefsammlung", a primeira obra do profundo Friedrich Heinrich Jacobi. Não foi apenas o conteúdo imaginativo, mas também uma relação transparente com pessoas e circunstâncias reais que fizeram com que este romance atraísse muita atenção e uma ampla variedade de resenhas. Foi a época da glorificação do gênio e da doença que resultou dela, o vício de genialidade. (Holtzmann 1878: 5)

A partir de todos estes casos, o que restam são as tipificações gerais com relação à obra, com base nas quais é possível então iniciar uma consideração mais detalhada sobre sua estrutura. De fato, trata-se de uma obra epistolar, ainda que os muitos paratextos tenham, sobretudo a partir da edição de 1792, acrescentado algumas intromissões por parte de Jacobi. Tais intromissões, como se verá na sequência, possuem sim um caráter filosófico e foram inseridas claramente com o intuito de recondicionar a obra original às intenções posteriores de sua primeira composição. No que diz respeito ao interesse literário aqui analisado, o que importa é, contudo, precisamente a parte epistolar. Neste caso, o que os leitores têm em mãos é a coleção de cartas reunida pelo próprio Eduard Allwill. Este detalhe, editorialmente questionado no Prefácio de 1792, já confere um elemento importante, pois, confessa o editor: “o que temos disponível não lança luz sobre como Allwill conseguiu se apossar de toda a coleção dessas cartas e torná-las sua propriedade.” (1812: IX).

A coleção de cartas dispõe os personagens em relação a este organizador documental misterioso e de razões escusas, o próprio personagem Allwill, o que já indica o primeiro traço de sua negatividade, já que muitas dessas cartas não são referentes a ele mesmo, Eduard, mas às relações íntimas de uma certa família Clerdon. Ainda mais significativo é o fato de que o romance inicia com uma carta de Silly, dita na introdução como “tendo nascido von Wallberg” (1812: 3), posteriormente casada com August Clerdon, irmão de Heinrich Clerdon. Ocorre que, já na primeira carta do romance, Silly afirma estar em uma situação sentimentalmente dolorosa: “Sim, meu amigo, a cada dia a desolação fica maior ao meu redor, e o estranho estado de humor [Gemüthstimmung] que você critica em mim, do qual você não conhece o nome, me toma cada vez mais fortemente” (1812: 6). O sentimento corresponde a uma realidade efetivamente penosa, pois Silly, segundo indicam as cartas, acaba de se tornar viúva de August Clerdon, bem como também sofre com a morte da criança que havia nascido daquele casamento, estando agora presa em uma cidade que lhe é pouco familiar em função de um processo judicial. O cunhado, Heinrich Clerdon, contudo, vive um certo idílio, dada a boa convivência com sua esposa Amalia e com seu entorno social. O casal recebe em sua casa as visitas das primas de Silly, Lenore e Cläre, as quais também figuram na troca de cartas. Além desses personagens, há também a participação epistolar do irmão de Silly, Clement von Wallberg, fechando assim o núcleo familiar. Por fim, encontra-se no romance também a presença epistolar destoante de uma certa Luzie, personagem essa que parece fazer parte do passado de Allwill e que figura à parte do restante do grupo, em trocas epistolares que não parecem fazer sentido com o todo à primeira vista. Esse destoar, contudo, não parece casual, já que, como foi pontuado, de início poderíamos nós, os leitores, identificar no romance uma quase centralidade nessa relação entre Silly e seus parentes. Na verdade, a própria introdução do livro pontua isso claramente: “Todas essas pessoas passaram, em momentos diferentes, muitos anos próximas ou juntas umas das outras, e se amaram e se cuidaram como a irmãos, intimamente ligadas não só por relações externas, mas muito mais por relações internas” (1812: 5).

É preciso notar que esse deslocamento de centralidade, de Eduard Allwill, o personagem principal e organizador dessa coleção de cartas, para os sofrimentos de Silly e daquele entorno familiar não é algo fortuito. Ao contrário, trata-se de um subterfúgio narrativo muito bem arranjado. Pois o que se revela paulatinamente com essas cartas é a oposição entre um sentimentalismo pretensamente positivo - de Silly - e aquele que se mostrará como completa negatividade no caso de Allwill. A partir daquela situação de quase “exílio”, sofrendo com seus lutos, Silly revela ser, seja por seu discurso, seja por suas referências culturais5 5 Logo nas primeiras cartas, Silly menciona ao menos duas referências literárias fundamentais para a base do sentimentalismo da época e, neste caso, para a verve específica do Sturm und Drang: Shakespeare - mencionado através de Macbeth (1812: 8) - e The Vicar of Wakefield, romance de Oliver Goldsmith citado através de uma menção ao personagem Primrose (1812: 22). Ambas as referências são importantíssimas para Goethe e haviam figurado, direta ou indiretamente, em seu Werther, romance igualmente epistolar que se tornou um modelo para aquele movimento literário. , uma expressão das determinações sentimentais da literatura da época. Um exemplo deve servir para ilustrar esse traço estilístico e temático, tal como encontramos na carta IV, de Silly para Heinrich Clerdon:

Se você soubesse o quanto me angustia que você tenha tanta preocupação e tanto pesar por mim! Acreditem, vocês, pessoas boas, acreditem que não estou tão mal assim quanto imaginam. Toda beleza e toda bondade na natureza é sim belo e bom para mim; e a cada dia ainda mais. Ou você conhece alguém que prova de todas as alegrias humanas mais intimamente que a sua Silly? E como não devo acreditar no amor, eu, cujo próprio peito aperta com isso? Veja este jacinto aqui! Quantas vezes não fiquei diante dele, meu peito pulsando forte; sugando de seu ser com todos os meus sentidos, até que me abalasse os nervos, e eu tivesse toda a beleza e bondade viva em mim e - chame de loucura, de tolice, de entusiasmo [Schwärmerei] - senti seu amor correspondido! (1812: 16)

O nome da personagem Silly é uma perfeita contraparte à Allwill, pois se Eduard é “todo vontade”, a personagem feminina, também em uma alusão à língua inglesa, tem o significado da certa banalidade ou, mais precisamente, seria ela a “tola”. E essa “tolice” é associada ao entusiasmo sentimental que tão claramente vincula Silly às marcas da literatura do Sturm und Drang e, mais, que a dispõe como a base positiva de traço psicológico-filosófico que permitirá o aparecimento do próprio Allwill. Nesse sentido, vê-se aqui como Jacobi arranja a narrativa epistolar de seu romance sob os moldes iniciais daquelas obras anteriormente mencionadas, às quais pertencem exemplos como o próprio Werther de Goethe, mas também os romances de Richardson e, de igual maneira, o romance Julia, ou a nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau. Em todos estes casos, os romances servem à função de demonstrar um progresso tanto no aprofundamento das revelações das interioridades das personagens, quanto servem para evidenciar o progresso moral, psicológico e até mesmo filosófico dessas mesmas personagens. Ainda que não nos encontremos aqui em uma nítida expressão do “romance de formação”, é igualmente claro o esforço para, através do romance - gênero em constituição naquele tempo -, encontrar uma maneira de demonstrar a possibilidade de um aprimoramento do caráter e das individualidades. Rousseau, de forma destacada, havia sedimentado a vinculação do romance epistolar com um duplo movimento: por um lado, o desvelamento das almas, das interioridades; por outro, o aprimoramento dessas mesmas interioridades tanto em termos morais, quanto em termos filosóficos6 6 Esse duplo movimento pode ser identificado tanto em trechos pontuais quanto na totalidade de Julia, ou a nova Heloísa, já que os dados discursivos particulares e a própria narrativa revelam tal característica. A título de exemplo: “Sempre acreditei que o bom não era senão o belo posto em ação, que um estava intimamente ligado ao outro e que ambos tinham uma fonte comum na natureza bem ordenada. Resulta dessa ideia que o gosto se aperfeiçoa pelos mesmos meios que a sabedoria e que uma alma bem marcada pelos encantos da virtude deve proporcionalmente ser também sensível a todos os outros tipos de belezas” (Rousseau 1994: 67). Jean Starobinski trabalhou de forma muito precisa o que considerou como “um devaneio prolongado sobre o tema da transparência e do véu” no referido romance. Esse traço reforça o movimento de desvelamento das interioridades, vide o fato de que, conforme pontua Starobinski: “A nova Heloísa, em seu conjunto, aparece-nos como um sonho acordado, em que Rousseau cede ao apelo imaginário da limpidez que já não encontra no mundo real e na sociedade dos homens: um céu mais puro, corações mais abertos, um universo ao mesmo tempo mais intenso e mais diáfano” (1991: 94). Esse devaneio, contudo, não reside apenas no âmbito onírico, tendo a função de servir como modelo e como indicação moral e filosófica da possibilidade de aprimoramento humano, conforme foi pontuado. . Por influência desse modo de estruturação temática e narrativa, a literatura alemã do Sturm und Drang havia convertido essas mesmas expectativas em um âmbito “sentimental” em que as determinações, em oposição à razão iluminista, seriam encontradas naquela “razão do coração”, a qual, por uma via distinta, também indicaria uma certa noção de aprofundamento na expressão das interioridades e, conjuntamente, de progresso dessa mesma interioridade. Assim, a presença central de Silly e a própria estrutura do início do romance de Jacobi denotam certa vinculação desta obra com aquela tradição. Contudo, esse “pertencimento” é circunstancial e programaticamente engendrado para permitir uma diferença substancial na maneira com que Jacobi insere então a oposição constante que será Allwill.

A primeira evidência dessa oposição está precisamente na ojeriza que Silly demonstra ter para com Eduard. Em uma carta de Clerdon para Silly, o cunhado afirma que “aquele que não cede, este é Allwill” (1812: 27). Ao longo de todo romance, a oposição entre Silly e Eduard se estabelece precisamente pelo fato de que a jovem viúva é amada pelos familiares por sua sentimentalidade passiva e de entrega, a qual se estabelece como aquele aprofundamento constante da alma e de sua moral, enquanto Allwill é aquele que se nega continuamente. Na mesma carta em que Clerdon se encarrega de apresentar o caráter de seu amigo Eduard para a cunhada Silly, encontramos então a narração que pode expressar esta personalidade:

Ele mesmo me contou dia desses que certa vez foi açoitado à beira da morte porque seu preceptor tentou fazê-lo admitir por meio de um questionamento socrático que a chibatada era uma coisa boa; e ele sempre o afastava da conclusão fazendo-se de tolo. Várias vezes ele assumiu a culpa e a punição por seus camaradas; não tanto por um entusiasmo da amizade e por piedade, mas porque ele estava insuportavelmente enjoado com as súplicas e uivos durante a punição. Em tudo isso nem uma sombra de audácia; pelo contrário, ele era tão tímido, tão humilde para com todos, pois ele considerava isso uma boa coisa; e, ao mesmo tempo, tão conveniente, tão grato, tão gentil e tão bom, que a maioria das pessoas o tomam em parte por um tolo, em parte por um adulador. (1812: 32)

É significativo que Allwill tenha relatado para Clerdon, e que esse venha a relatar para Silly, sobre como ele havia se comportado com relação às punições, em uma persistência quase autodestrutiva que, no entanto, dizia respeito à determinação de uma negação com relação ao desejo alheio. É tanto mais significativo, como se indicará na sequência, que Allwill o tenha feito em relação a um preceptor que tentou fazê-lo admitir essa posição “por meio de um questionamento socrático”, ocasião essa em que o aluno teria se portado de maneira disruptiva ao fazer-se de tolo, sendo, assim, o próprio Allwill o que se comportava socraticamente. Essa comparação com Sócrates é sobremaneira importante, porque remeterá, como veremos, ao demoníaco recuperado por Hamann. Porém, é igualmente importante que este traço socrático revele o que se tornará um ponto central em todo romance: sabe-se algo sobre todos os personagens, algo definitivo e razoavelmente sedimentado, inclusive havendo certo progresso em tal conhecimento, mas de Allwill o que se apreende é uma espécie de suspeita. Isso é compartilhado pelos próprios personagens, de modo que Amalia afirma que “Allwill é um jovem muito valente e tenho muita confiança nele em alguns aspectos; mas não confio nele em outros aspectos: há algo de inescrupuloso [Ruchlosigkeit] nele” (1812: 46). O que há de inescrupuloso, perverso ou devasso em Allwill é associado pelas mulheres com elementos de caráter sedutor, sexual e imoral. Todos estes elementos certamente são constitutivos do caráter do personagem, como ele mesmo admite7 7 Em uma confissão que poderia parecer excepcional ao seu caráter - e à função do personagem no romance -, Allwill indica sua relação com as mulheres sob os seguintes termos: “Ouça todo o meu segredo. As associações com o sexo oposto me excitam; estas criaturas agradáveis têm algo de macio e confortável nelas que me agrada. Ao lado delas, as coisas mais importantes no meu modo de sentir [Empfindungsart] vão se suavizando; elas roubam a equanimidade e a calma do meu coração” (1812: 34-35). É preciso notar, contudo, que essa descrição que Allwill faz sobre sua relação com as mulheres está situada em um âmbito bastante dúbio: ao mesmo tempo em que recai em muitos lugares comuns - em certas tópicas - da sentimentalização, desbrutalização e refinamento dos homens por seus tratos com o sexo oposto, está presente também uma espécie de percepção deturpada ou intencionada alterada do personagem sobre si mesmo, já que o romance demonstrará que essa “equanimidade” e “calma do coração” que menciona Allwill não é verdadeira. . Contudo, mesmo as longas cartas de Eduard, que tendem a perderem-se em elucubrações filosóficas, não servem para apresentar nada sobre esse personagem, salvo aqueles vagos contornos já conhecidos. É, então, nas imagens produzidas pelas outras personagens que vemos que a vagueza de Allwill não é uma ausência de determinação do romance, mas é a própria determinação da obra. Em certa altura, Silly, o perfeito contraponto, faz a seguinte descrição:

O coração jamais enfrentou uma juventude como Allwill - tão cheio de espírito e de nobre empenho, e, ao mesmo tempo, tão contido, tão sensato e circunspecto. Nenhuma virtude, nenhuma gentileza que não estivesse nele refletida, como o sol no mar; e isso inteiramente por causa da qualidade nua de sua natureza! (1812: 98)

O ímpeto e a sensatez de Allwill parecem qualidades completamente contraditórias, assim como soa estranha a descrição constantemente presente no romance, tanto pela voz de Eduard como pelos relatos dos outros personagens, referente ao egoísmo e ao altruísmo dessa estranha figura. A contradição é a própria forma de Allwill e, no limite, é o que caracteriza o romance. A nudez de que fala Silly é a qualidade ou a propriedade - a Eigenschaft - de uma natureza que reflete tudo, que contém tudo, sem nunca evidenciar o que lhe é particular ou singular. Na mesma carta que descreve a nudez de Allwill, Silly cita que “Clement o chama de um possesso [Besessenen]”, caracterizando-o como alguém “que de forma alguma tem permissão para agir arbitrariamente” (1812: 99). Ser incapaz de agir arbitrariamente é decorrente do caráter de possessão, de tal maneira que Allwill é identificado continuamente com uma força que lhe é simultaneamente própria e imprópria, que lhe é inerente e exterior. Aos poucos, os conteúdos das cartas começam a debater, ainda que de forma velada e indireta, essa presença/ausência que é Allwill, de tal maneira que mesmo quando este não é mencionado, sente-se aí os reflexos que sua convivência impôs a todos os outros personagens. Em uma carta de Cläre enviada para Silly, a remetente afirma, em uma disputa de ordem filosófica - que também se intensifica com o avançar do romance -, ser incapaz de lidar com as posições daquela figura escusa: “Mas eu não posso tolerar os olhos que nada veem, os ouvidos que nada ouvem e uma razão que se ocupa eternamente com nada” (1812: 116). A nudez do possesso revela apenas que o que constantemente ele coloca diante de si é um certo nada. Para os termos do romance, no entanto, o que percebemos é a constante apresentação de argumentos que visam sustentar a nadificação da qual ele mesmo, Allwill, é a expressão.

O processo de explicitação dessa “nadificação” é evidenciado pelo próprio personagem Allwill quando, em uma carta, assume que “Sócrates, o amigo da juventude, me representará; ele me tomará sob suas asas” (1812: 140). Allwill então faz referência ao diálogo atribuído à Platão, Teages, em que o personagem homônimo, filho de Demócodo, procuraria o grande filósofo para discutir sobre a voz interior divina que Sócrates diz escutar, desejando aprender com Sócrates sobre aquela voz. Allwill então afirma:

Para testá-lo, o homem com o gênio [Mann mit dem Genie] resistiu ao seu desejo. Aconselhou-o a recorrer a um dos muitos homens famosos que tinham a vantagem de ter o poder de ajudar outros homens a avançarem; e que não estavam, como ele, sujeitos a um gênio, sem o qual nada poderia fazer. (1812: 140-141)

Tomar Sócrates como o “homem com o gênio” e indicar o processo de esquiva tipicamente socrático, precisamente ao evocar um diálogo atribuído à Platão onde se discutiria sobre o “daimon” socrático, é prova suficiente do que está em questão neste ponto. Allwill emprega o termo Genie na amplitude semântica própria daquele tempo e, portanto, o “gênio” pode muito bem ser compreendido como sendo o “demoníaco”, como será indicado. Se Allwill elege, em uma carta direcionada para Cläre, mencionar esse duplo elemento - da esquiva socrática e, por conseguinte, do daimon/gênio socrático - isso se deve à própria estrutura do romance e, mais, à constituição da obra em relação à constituição do personagem de Allwill. Isso porque Cläre é a personagem com quem Allwill trocará uma série de cartas com teores filosóficos e será a personagem responsável por servir tanto como ponte para o anti-desenvolvimento de Allwill enquanto personagem, quanto servirá para avançar algumas questões que pareciam caras à Jacobi no âmbito do debate filosófico de seu tempo.

Não importa aqui demonstrar as nuances filosóficas debatidas por Jacobi, até porque, neste caso, a figura de Allwill poderia surgir como uma dupla negatividade, servindo como uma exemplaridade exterior ao próprio romance8 8 Para maiores considerações sobre as posições filosóficas de Jacobi, é possível conferir a tradução, notas e comentários de Juliana Ferraci Martone em Jacobi, Friedrich Heinrich. Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao senhor Moses Mendelssohn. Campinas: Editora da Unicamp, 2021; ou então, abordando precisamente a questão da não-filosofia e do não saber no pensamento de Jacobi, a tese martone, Juliana. Friedrich Heinrich Jacobi: uma história natural da filosofia especulativa. 2020. 386 f. Tese de doutorado - FFLCH/USP, São Paulo, 2020. . Ao deter-se sobre a estrutura do romance, no entanto, compreende-se que o personagem de Allwill surge paulatinamente como uma sombra que perpassa as vidas e relações de todas as personagens. Sua posição de “nada”, de vazio ou, mais propriamente, de negatividade, não é meramente um efeito das impressões das personagens que se sentem ameaçadas ou mesmo atemorizadas por seus dotes e charmes, mas é algo suscitado pelo próprio personagem, vide a clara menção à Sócrates e seu daimon. Para avançar na análise sobre esse efeito na composição e constituição do romance, e para compreender seus efeitos posteriores, é preciso então entender o que é esse “demoníaco”.

3 Allwill e o demoníaco

O conceito de demoníaco possui um entrecruzamento com o conceito de gênio, sendo que a sua abordagem filosófica foi cunhada no século XVIII por Johann Georg Hamann, especialmente em seu Sokratische Denkwürdigkeiten. Neste pequeno ensaio, Hamann contrapõe-se às tendências racionalistas da filosofia iluminista de seu tempo e, endereçando-se a dois amigos - um dos quais era Kant -, o filósofo propõe uma interpretação da figura socrática sob a ótica de sua relação com seu daimon, ao invés de recorrer ao Sócrates racionalista tomado pelos iluministas. A questão passava pela estética e dizia respeito, ainda mais, à compreensão sobre como é possível formular uma imagem antropologicamente não-racionalista do homem que permita apreender também aqueles traços que não são determinados pelo “entendimento”, pela “razão” ou pelo “pensamento”. Em seu ensaio, Hamann é enfático ao construir a imagem de Sócrates por uma dupla via, ou seja, pela sua relação com seu daimon - muitas vezes evocado por Hamann sob o nome de “gênio” -, bem como por sua relação com sua suposta ignorância. Segundo Hamann, ao assumirmos a validade real tanto da relação “demoníaca” de Sócrates, quanto de sua ignorância, podemos então compreender de que maneira nossa razão não é suficiente para servir como único ponto de determinação da complexidade da existência humana. A ignorância de Sócrates, reinterpretada por Hamann, é assumida como uma “sensibilidade” e, portanto, transportada não para o campo semântico da determinação racional - de um saber ou não-saber - mas de uma relação do indivíduo em uma disposição dinâmica entre sua interioridade e sua exterioridade9 9 Hamann é bastante claro - o que lhe é incomum - ao indicar esse deslocamento conceitual: “A ignorância de Sócrates era sensibilidade [Empfindung]. Mas há uma diferença maior entre sensibilidade e uma proposição doutrinária do que há entre um animal vivo e seu esqueleto anatômico. Não importa o quanto os céticos, antigos e novos, se envolvam com a pele de leão da ignorância, eles se traem por meio de suas vozes e ouvidos. Se eles não sabem nada, por que o mundo precisa de uma prova erudita disso? A hipocrisia deles é ridícula e ultrajante. Mas, quem precisa de tanta perspicácia e eloquência para se convencer de sua ignorância deve abrigar em seu coração uma poderosa aversão a sua verdade.” (Hamann 1821: 35) . O resultado de tal deslocamento semântico passa pela questão estética referente ao gênio e seu potencial criativo10 10 Ao buscar explicitar essa posição intermediária de Sócrates na relação com seu daimon, Hamann evoca a questão estética que permanece sempre no pano de fundo de sua obra: “O que substitui em Homero a ignorância das regras da arte que Aristóteles inventou depois dele, e o que substitui em Shakespeare a ignorância ou a violação dessas leis críticas? O gênio [Genie] é a resposta unânime. Sócrates podia muito bem ser bastante ignorante; ele tinha um gênio em cuja ciência ele podia confiar, a quem ele amava e temia como seu Deus, com cuja paz ele se preocupava mais do que com toda a razão dos egípcios e dos gregos, e por cujo vento [...] a compreensão vazia de um Sócrates pode se tornar fértil para nós como o ventre de uma virgem pura.” (Hamann 1821: 38) , mas também diz respeito à produção de uma nova compreensão sobre os limites do conhecimento humano no que diz respeito às determinações de sua própria existência. Em suma, Hamann apresenta através do conceito de “demoníaco” uma alternativa ao sujeito moderno racional que havia sido constituído paulatinamente pela filosofia desde Descartes e que havia alcançado certo ápice de sua autodeterminação com a filosofia de Leibniz, a qual foi então explorada ou divulgada por autores como Christian Wolff e Moses Mendelssohn. Afastando-se da suposição de um sujeito internamente constituído pelas determinações racionais do pensamento que se consideram capazes de estabelecer os fundamentos de todo conhecimento válido em termos objetivos, Hamann propõe um sujeito que não se encontra nem completamente embrenhado nesta interioridade, nem tampouco perdido em uma simples exterioridade imediata, como talvez pudessem supor certos materialistas franceses. A relação do sujeito com o demoníaco, portanto, guarda algo de uma posição intermediária em que as determinações não podem ser definidas em sua totalidade seja pela interioridade - pelo esforço racional do pensamento -, seja pela mera imposição externa da natureza. A consequência imediata desse conceito encontra ecos na estética e na literatura e Hamann, sempre ciente sobre como esse ponto tocaria a questão da linguagem em termos literários, já ponderara em seu Essais à la Mosaique: “que demônio me fornecerá a atrocidade do estilo insular?” (Hamann 1821: 350)”.

A influência de Hamann sobre a literatura foi notória e pode ser mencionado o impacto que o filósofo teve sobre as obras e pensamentos de Johann Gottfried von Herder, bem como sobre Goethe. Esse também foi o caso de Jacobi, com quem Hamann cultivou uma amizade e uma vasta correspondência. Muito embora o contato pessoal de Jacobi para com Hamann tenha se estabelecido sobretudo na década de 1780 - entre 1782 e o ano da morte de Hamann, em 1788 -, é evidente que os ensaios e ideias do filósofo já haviam sido recepcionadas pelo então jovem escritor mesmo antes desse contato. Ocorre que a apropriação que diferentes autores fizeram do conceito de “demoníaco”, como sói ocorrer, não manteve a mesma estrutura inicial intentada por Hamann, de tal modo que os desenvolvimentos de Herder, Goethe e Jacobi se distinguiriam bastante posteriormente. No caso específico de Jacobi, a ideia de demoníaco parece encontrar uma expressão clara na constituição do romance aqui analisado, uma vez que o personagem Allwill representaria precisamente esse “sujeito negativo” que, expresso como um intermezzo de força natural/sobrenatural e potência interior sedutora, surte efeitos que, contudo, nunca revelam totalmente a própria essência de sua caracterização pessoal.

Ao considerar o personagem criado por Jacobi na análise que faz do romance, Hans Schwartz afirma que “Allwill percebeu a regra dos princípios como uma compulsão que impedia a livre expressão da natureza e chegou à convicção de que a crença, em sua validade absoluta, era falsa”, uma conclusão que então teria levado o personagem à percepção de que “nossas ações não devem ser guiadas desde fora por leis abstratas da razão, mas elas mesmas devem ser nossos guias” (Schwartz 1914: 14). Segundo essa interpretação, Allwill poderia ser tomado como uma espécie de pré-romântico que se perderia em considerações especulativas impulsionadas por seu ímpeto juvenil interno e, por conseguinte, acabaria em uma espécie de elucubração etérea. Em muitos sentidos, o personagem parece assumir precisamente essa roupagem e nesse caso os leitores poderiam ver Allwill muito mais próximo de Werther ou de qualquer personagem trágico que, para mais ou para menos, encontra as formas de expressar ou desvelar suas almas. O gênero epistolar favoreceria, como foi indicado, precisamente esse traço. Contudo, deve-se notar, como o faz Reinhard Lauth, que Jacobi compôs um personagem - e, por conseguinte, um romance - que desafia especialmente essa rápida determinação, uma vez que, ao se considerar a caracterização de Allwill, o que desponta é a evidência de que “o absurdo de sua essência desafia todos os conceitos” (Lauth 1973: 52). A impossibilidade de definição é a marca da negatividade de Allwill e, mais, como se quer aqui evidenciar, é o próprio motor do romance, permitindo, com isso, que a dinâmica se estabeleça em uma contínua apresentação dos outros personagens em suas próprias instâncias de intimidade. Não é raro, então, que Allwill seja percebido por todos como uma “força” ou um “poder” indefinido, pois a função “demoníaca” serve perfeitamente à construção de um dispositivo de espelhamento que evita a todo custo sedimentar qualquer determinação racional ou mesmo essencial sobre qualquer um dos personagens e, por óbvio, sobre o próprio Allwill.

O caráter “demoníaco” de Allwill, então, aparece continuamente expressado pelas diversas tentativas de caracterizá-lo. É Silly, no entanto, aquela que, por estar diametralmente oposta ao personagem principal, parece revelar precisamente o elemento “demoníaco” com melhor precisão. Em uma carta endereçada à Amalia, significativamente escrita à meia-noite, Silly reconta uma visita feita a uma família amiga, remontando todo o prazer da unidade ali encontrada. Em meio às conversas, tidas por Silly como “boas e compreensivas”, isto é, pautadas pelo bom senso, a personagem então relata seus sentimentos sobre aquele acontecimento, explicitando seu caráter, personalidade e intimidade:

Na maioria das vezes, eu apenas ouvi e me regozijava no silêncio do meu espírito com o fato de que faz pouca ou nenhuma diferença para a ponderada razão se um homem tem um intelecto grande ou pequeno por natureza; o que importa é como a sua imaginação [Phantasie] é constituída, e que, por um lado, em homens bons, leais e capazes ela proceda sem mudança, assim como, por outro lado, aquele procede em sua exposição e demonstração. O que neles se tornou imutavelmente a base, a regra ou a fé, é para eles venerável. Eles julgam e agem sem medo ou dúvida. (1812: 164-165)

A escrita de Silly pode parecer por vezes forçadamente filosófica, um detalhe supostamente desabonador se fosse considerada a aplicação da regra de verossimilhança tão própria de certo realismo. Esse detalhe se destaca aqui em função do conceito de “imaginação” ou “fantasia”, empregado com os contornos pré-românticos que posteriormente assumiriam um papel central nas teorias estéticas. Contudo, uma vez que se nota que também em Rousseau e Diderot os personagens tendiam a falar “filosoficamente”, não apenas se abona Jacobi, mas pode-se entender que o relato de Silly serve para modular o tom do que parece a essa personagem como o desejável em todas as personalidades. A personagem faz um relato de sua própria intimidade, de sua admiração pela parcimônia, pelo bom senso e pela planificação dos impulsos, enaltecendo os homens que, mesmo naturalmente dotados, são capazes de conter seus ímpetos internos em prol de uma sociabilidade burguesa. Tal relato, por sua vez, serve para indicar um modelo ou um padrão que logo será aplicado na análise que faz Silly sobre a figura de Allwill em uma carta escrita alguns dias depois, onde retoma o tópico sobre a caracterização dos homens para encontrar o elemento particular em questão:

Agora, no que diz respeito ao gênero humano, sobre o qual afirmo ter sido muito precisa, as excelentes qualidades que devem ser admitidas nele já contêm em si o perigo de seu abuso. “Cuidado”, li em algum lugar - : “Cuidado com aquele que Deus marcou!” Todo excesso de poder incita algum tipo de violência e de opressão. Além disso, no caso dos Allwills, seus dons superiores são baseados em uma sensualidade particularmente delicada e viva, uma grande força de afeto e uma energia incomum de força imaginativa [Einbildungskraft]. Menciono o afeto antes da força imaginativa, porque a imaginação dos Allwills é principalmente uma imaginação do afeto, e não tanto uma livre faculdade do espírito, como nas outras pessoas. (1812: 177)

A descrição apresentada por Silly não é capaz de fornecer um quadro delimitado de Allwill. Não é por menos que a personagem, ao desenvolver sua análise daquele que lhe é tão oposto, tem de recorrer às generalidades, falando antes de todos os possíveis “Allwills” e não especificamente daquele um Allwill determinado. Na sequência da carta, Silly afirma precisamente o fato de que “esta espécie humana”, ainda apelando aos termos gerais, tende a ser evanescente e não permite o estabelecimento de nenhum fundamento ou base em sentido moral, sendo então considerados por Silly como egoístas ou mesmo como pertencentes a algum “estado místico de inimizade à lei”. É significativo, contudo, notar a diferença entre o caráter desenhado por Silly sobre o tipo de bom senso por ela idealizado - do homem capaz de controlar e domar sua “imaginação” - e aquele atribuído à espécie dos Allwills, ou seja, dos que possuem suas “forças imaginativas” controladas por afetos e, portanto, voláteis (1812: 177). Seria possível argumentar, então, que a descrição que Silly faz de Allwill estaria em plena consonância com um certo personagem impulsivo, movido por um ímpeto interno e por uma tempestade externa, que bem representaria o elemento sentimental das obras literárias daquele tempo. Ocorre, no entanto, que Allwill não permite tal apreensão de sua personalidade, pois, como foi indicado anteriormente, também dá exemplos de ter ele, em alguma medida, ações ascéticas e desinteressadas, bem como pode chegar a ser abnegado e altruísta. Silly admite que essa espécie de pessoas não é caracterizada pela ganância, mas, ao mesmo tempo, sua sentença sobre a personalidade de Allwill só pode produzir, por fim, aquela suspensão que instaura uma imprecisão entre o interno e o externo, entre o essencial e o acidental, entre o positivo e o negativo:

Porque os Allwills não se expõem exteriormente, dão provas de grandiosidade e em muitos casos mostram generosidade; além disso, desde que não sejam completamente corrompidos, frequentemente revelam os mais belos impulsos da alma, de fato, não raramente são guiados por tais impulsos; de tal modo que não se pode desprezá-los inteiramente nem odiá-los constantemente. E é isso que os torna perigosos. Porque seu egoísmo é brutal e cruel como nenhum outro. Não são capazes de abnegação real e a resiliência da moralidade neles é praticamente morta. (1812: 179-180)

Apesar de ter uma perspectiva restrita, dada sua função opositiva, Silly consegue compreender a imprecisão e a suspensão de Allwill. Por óbvio que, ao tirar consequências, suas palavras são de crítica e repúdio, mas ainda constam ali os efeitos produzidos, de uma admiração e de uma repulsa. Agora, se Silly nota esse elemento demoníaco em Allwill, isso também é percebido pelos outros personagens. É em uma carta de Luzie, aquela que manteve um relacionamento amoroso com Allwill, que o traço demoníaco aparece com mais clareza:

Eduard! tu és realmente um homem extraordinário. A quem te conhece bem, muitas vezes deve parecer um milagre que não tenhas te tornado um anjo em virtude ou um satanás em vício. O absurdo da tua natureza desafia todos os conceitos. Sensualidade desenfreada e inclinação estoica; ternura feminina, frivolidade extrema - e a coragem mais fria e a mais firme lealdade; sentidos de tigre - e o coração do cordeiro; onipresente - e em lugar nenhum; tudo - e nunca algo. (1812: 202)

Essa é a condição do demoníaco: nem um anjo, nem um satanás. Anos mais tarde, ao tentar definir o demoníaco em sua autobiografia, Goethe utilizará termos muito semelhantes11 11 Em Dichtung und Wahrheit, quase ao final, Goethe apresenta uma de suas mais claras conceituações - ainda que não totalmente desenvolvida - sobre o “demoníaco”: “Ao longo desta narrativa biográfica, vimos em detalhes como a criança, o menino e o jovem tentaram se acercar do transcendente (dem Übersinnlichen) pelos mais diversos caminhos: primeiramente, com sua simpatia por uma religião natural; em seguida, com sua adesão a uma religião positiva; depois disso, testando alegremente às formas mais comuns de crença. Enquanto vagava de um lado para o outro nos espaços entre cada uma dessas regiões, procurando por algo, olhando tudo ao seu redor, acabou encontrando coisas que não pareciam cabem em lugar algum e, de pouco em pouco, foi se convencendo de que seria melhor afastar seu pensamento daquilo que se lhe manifestava como inapreensível, como monstruosamente além de toda medida. Esse jovem acreditava ser capaz de descobrir, na natureza, algo - vivo ou sem vida, animado ou inanimado - que só poderia se manifestar em contradições e, exatamente por essa razão, não poderia ser apreendido em nenhum conceito, muito menos numa única palavra. Não era algo divino (göttlich), pois parecia irracional; não era humano, pois não tinha inteligência; não era diabólico (teuflisch), uma vez que se mostrava benéfico; não era angelical, pois não raro se comprazia da desgraça alheia. Equiparava-se ao acaso, pois não se revelava como consequência de nada, e guardava semelhanças com a providência, já que sugeria um nexo. Tudo aquilo que nos era restrito, parecia perscrutável para esse algo, parecia ligar-se arbitrariamente aos princípios fundamentais de nossa existência, contraindo o tempo e expandindo o espaço. Só no impossível esse algo parecia encontrar contentamento, afastando o possível com desprezo. Esse elemento essencial, que parecia surgir em meio a todas as outras coisas, diferenciando-as, unindo-as, eu o chamava de “demoníaco” (dämonisch), seguindo o exemplo dos antigos e de outros que, antes de mim, haviam percebido algo parecido” (Goethe 2017: 941-2). . No momento do romance de Jacobi, contudo, tal personagem surge como uma novidade que se faz sentir ao longo de toda obra. Distinguindo-se daqueles personagens que tão desesperadamente buscavam assinalar algo, um detalhe sentimental, apaixonado, racional, moral ou mesmo “humano”, Eduard Allwill é demoníaco no sentido de não ser, como afirma Luzie, “nunca algo”. Tendo em vista então a interpretação de Allwill como um personagem demoníaco, pode-se finalmente tecer uma análise sobre o romance de Jacobi nesses termos.

4 O demoníaco na estrutura do romance

Ao terminar a parte referente ao corpo principal da obra, ou seja, antes de iniciar a Adição que conta com textos declaradamente escritos na década de 1790, Jacobi finaliza a carta de Luzie com duas citações, uma retirada de Plutarco, referindo-se ao amor, e outra, originalmente publicada em grego, retirada do Banquete de Platão e, embora alterada, indicada como fazendo parte do trecho comandado por Diotima. Em uma tradução aproximada do original grego alterado por Jacobi, pode-se ler: “pois os deuses não se misturam diretamente com o humano, e é apenas através da mediação do demoníaco [daimonion] que o homem pode ter um diálogo familiar com os deuses” (1812, p. 226)12 12 Em uma tradução mais precisa, baseada no original platônico, lê-se: “Os deuses não se misturam com os homens; é por meio desse elemento que os deuses entram em contato com os homens e se torna possível o diálogo entre eles, tanto no estado de vigília como durante o sono. O perito em tais assuntos é demoníaco, enquanto o homem entendido noutras artes e nos diferentes misteres não passa de um obreiro comum” (203 a) (Platão 1980: 258). . Resta mais do que demonstrado que Allwill é essa figura “demoníaca” que deveria favorecer tal mediação entre os deuses e os homens. A questão que podemos colocar, estando esta citação exatamente no último momento do corpo principal do romance, é a seguinte: Allwill realiza tal mediação? A resposta, suscitada pela referida citação, opera como uma espécie de ritornelo, reenviando a análise para o início do romance. Que Allwill figure como o “demoníaco”, isso é inegável, mas que o faça no sentido da mediação indicada por Diotima, isso parece pouco plausível. Em um sentido peculiar, Allwill é, na estrutura do romance, o completo oposto de tal mediação. Operando como uma constante negação ou como uma força de negatividade interna do romance, o personagem subverte os gêneros que permitiram sua própria criação.

Considere-se, por exemplo, o gênero epistolar, sobretudo em três exemplos produtores deste gênero: Julie, ou la Nouvelle Héloïse, de Rousseau; Clarissa, de Samuel Richardson; e Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Nos três casos, a edição das cartas selecionadas deve produzir o efeito de uma intensificação na trama em ao menos dois sentidos: a) o aprofundamento do conhecimento do leitor sobre as interioridades psicológicas e sentimentais dos personagens; e b) a percepção por parte do leitor sobre as nuances e estruturas sociais que cercam a realidade daqueles acontecimentos. Trata-se, é claro, de uma edição, algo que os próprios romances tornam evidente para aumentar o traço de seu realismo. Contudo, a edição deve não apenas favorecer o aparecimento desses efeitos, como deve servir para criá-los.

No caso de Julie, por exemplo, o amor da jovem por seu preceptor vai desabrochando conforme avançam as cartas e, através do próprio desenvolvimento epistolar, a personagem se transforma, tornando evidente aos leitores as causas, profundidades, detalhes e consequências dessa transformação. Este primeiro plano “a” é conjugado com um contínuo confronto do plano “b”, que se engendra por meio das diferenças de classes dos amantes, das regras sociais e afins. Ainda que o desvelo de sentimentos e interioridades se mostre tanto mais forte quanto mais se está próximo do centro da relação amorosa, também os personagens secundários acabam adentrando no vórtice criado pelo gênero epistolar, revelando então detalhes de suas próprias mentalidades e visões de mundo.

Ainda que diametralmente oposto em termos de relação amorosa, Clarissa também desenvolve um longo processo de desvelamento da interioridade de uma jovem que, visada pelo libertino Robert Lovelace, se vê tentada em sua moral, de tal maneira que todo o transcurso do romance pode ser visto como a formação e solidificação da moralidade de Clarissa. Os detalhes sociais, econômicos e culturais são trazidos para dentro das considerações psicológicas e apresentam ao leitor um quadro unívoco em termos temáticos. Em certo sentido, os personagens são, até certo modo, peças na composição de um quadro moral mais amplo.

O romance de Goethe, também ele tratando de uma relação de amor, é singular por delimitar sua ênfase no traço sentimental do personagem principal e, mais, por permitir demonstrar, com certa dualidade, o quanto o amor de Werther por Charlotte se encontra no limiar entre o contingente e o necessário. O recurso epistolar permite ao leitor adentrar com certa familiaridade nas transformações, inconstâncias e perturbações de Werther, mas também permite vislumbrar as estruturas psicológicas de outros personagens sob os quais as ações do jovem impetuoso produzem efeitos. As regras do casamento burguês são postas em cena pelas dúvidas e desesperos de Werther e de Charlotte, apresentando posições sólidas sobre a moral, os valores cívicos, religiosos e sentimentais.

Ao se considerar Eduard Allwill, no entanto, nota-se que tal desvelamento de interioridades, quando ocorre, permanece sempre parcial, encoberto ou ao menos nebuloso. Mesmo nos casos de personagens mais assertivas com relação às suas posições filosóficas ou morais, como Silly, percebe-se que, em relação à estrutura e desenvolvimento do romance, aquelas posições não alcançam a sedimentação fundamental presente nos casos supramencionados. Em outros casos, como nos exemplos de Clerdon e Luzie, os efeitos da relação com Allwill produzem confusão e deslocamento, não servindo ao propósito de uma unidade temática ou mesmo narrativa. A negatividade de Allwill arranja o romance de tal maneira que o caráter demoníaco do personagem se torna a própria estrutura de uma subversão do gênero epistolar. No lugar de um desvelamento de valores morais ou de sólidas apresentações da alma ou da psique humana, o que se encontra é a dúvida, a suspeição e a contingência.

Se tal deslocamento vale para o gênero do romance epistolar, isso também pode ser aplicado no caso do romance filosófico. Muito embora Jacobi assumisse que o romance Eduard Allwill, bem como o romance Woldemar, comporia parte da apresentação de sua assim considerada “filosofia”, a sua singularidade pode ser vista com independência em relação a textos posteriores. A “tese” filosófica presente em Eduard Allwill - se pode ser assim colocada - tem por intento apresentar uma espécie de prolegômenos ou de propedêutica ao conceito de salto mortal e de crença que depois seria o ponto fundamental do pensamento de Jacobi. Em termos pontuais, o romance serviria para demonstrar a necessidade desses conceitos posteriormente desenvolvidos pelo filósofo, vide o fato que, sem os fundamentos da crença, não seria possível se estabelecer uma base para a ética e, portanto, para a existência humana13 13 O conceito de salto mortal, pelo qual Jacobi ficou filosoficamente conhecido, pode ser uma consequência direta de certa leitura do romance Eduard Allwill. Uma vez que se assume as postulações filosóficas presentes em textos como Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao Senhor Moses Mendelssohn ou David Hume sobre a crença, ou idealismo e realismo, então tal vinculação se apresenta cada vez mais como necessária. Para os fins do presente artigo, não se avançará sobre essa questão. Não obstante, é válida a precisa explicação sobre o conceito feita por Juliana Ferraci Martone: “O salto mortal é um salto sobre a mediação da causalidade eficiente e do mecanismo de associação de ideias, é contrário às demonstrações por fundamentos racionais, uma vez que estas ocorrem mediatamente por silogismos, proposições ou conceitos intermediários (Mittelbegriffe), isto é, sem saltos. O salto é, portanto, um meio de evitar a busca pela verdade e pelo suprassensível mecânica ou naturalmente mediante proposições ou induções, e inverte (de ponta-cabeça) a ordem das coisas: a certeza é dada na imediatez do sentimento da crença, anterior ao conhecimento discursivo, que pode confirmá-la, mas nunca demonstrá-la. Como consequência, o conhecimento conceitual é de segunda mão e a relação entre sensível e suprassensível não pode mais ser esclarecida naturalmente. É impossível uma filosofia natural do suprassensível, dirá Jacobi” (Jacobi 2021: 29) É interessante notar que Allwill é caracterizado por ser esse ponto de mediação e imediatez, como alguém que estaria prestes ou seria capaz de realizar o salto mortal, porém impedido por sua posição demoníaca. . Porém, tomando o romance individualmente, sem os acréscimos interpretativos da obra posterior de Jacobi, então percebemos que também a utilização do gênero “romance filosófico” parece ser subvertida. Em uma análise do romance que visa apresentar o problema da “revelação da existência” pela via de uma consideração sobre o contexto da história da mídia em que foi publicado, Monika Nenon pondera precisamente sobre esse detalhe “temático”:

Então, sobre o que tematiza o romance epistolar Eduard Allwills Papiere? Pode-se ver que os vários esboços de existência apresentados formulam diferentes representações dos seres humanos e suas ações e, portanto, diferentes esboços de suas práticas éticas. Fica claro que os esboços de existência, como a da entusiasta sensível Silly ou da força de gênio Allwill, que agem a partir de sentimentos ou paixões, são vistos criticamente porque não seguem nenhum padrão ético baseado em um sentido equilibrado no bem-estar do indivíduo e/ou dirigido ao bem comunal; eles se tornam vítimas ou perpetradores que prejudicam a si mesmos ou aos outros. (Nenon 2017: 167)

Filosoficamente, o romance de Jacobi, portanto, trataria de um detalhe ético-existencial, porém sob a égide tanto de uma parcialidade quanto de uma incapacidade de estabelecimento de um fundamento. Tais elementos, contudo, são completamente contrários aos exemplos dos romances filosóficos encontrados no século XVIII, pois, como já foi indicado, tais produções visavam apresentar uma tese positiva sobre alguma concepção suficientemente sedimentada. Em certo sentido, por sua característica de negatividade, o romance de Jacobi poderia se aproximar dos textos satírico e/ou filosóficos de Voltaire ou, ainda, do Rasselas, de Samuel Johnson. Contudo, por fazer uso de elementos do realismo, também se distanciaria desses textos em vários sentidos. Assim, Eduard Allwill só pode ser aceito como um “romance filosófico” quando se impõe diversas ressalvas a essa categorização e, mais, quando se ressalta a subversão que produz internamente nesse gênero.

Por fim, é preciso então analisar a singularidade mesma do referido romance e, para tanto, como tem sido a tese do presente trabalho, é preciso recorrer ao conceito de demoníaco. Como foi indicado, o traço demoníaco de Allwill ultrapassa as dimensões de seu personagem e abarca a própria estrutura do romance. Produz-se, como consequência, tanto uma suspeita como uma suspensão, de tal maneira que a parcialidade se torna a regra tanto em termos de abordagens psicológicas quanto na apresentação de temáticas sociais, culturais e filosóficas. Por meio do demoníaco, Jacobi produziu um romance que anteciparia em muitos sentidos os principais aspectos constitutivos do romance moderno, onde as certezas, as regras e os fundamentos que se supõe absolutamente verdadeiros são solapados em prol de uma construção baseada na dúvida, na incerteza e na contingência. Travestido de romance epistolar, movendo-se com gestos de um romance filosófico, Eduard Allwills Briefsammlung pode ser comparado com as produções românticas posteriores e, mais, pode ser assumido como um importante predecessor de tais produções. Em termos de valor literário, o demoníaco de Allwill pode servir como uma abertura para se considerar esse elemento também nos romances posteriores, indicando como é essa posição de indeterminação e entremeio que pode ter sido essencial para a constituição do romance moderno.

Referências bibliográficas

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  • Watt, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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    A influência de Jacobi sobre o idealismo é bastante evidente, bastando notar as considerações que faz Hegel sobre o pensamento de Jacobi em seu Fé e Saber (2011)Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Fé e Saber. Tradução de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2011.. Como aponta Manfred Frank em seu “Unendliche Annäherung”: Die Anfänge der philosophischen Frühromantik (1997Frank, Manfred. “Unendliche Annäherung”: Die Anfänge der philosophischen Frühromantik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997.: 690 ss.), Jacobi foi sobremaneira importante para Schelling no que diz respeito aos primeiros momentos de seu filosofar, com especial atenção para a questão do “conhecimento incondicionado”, questão essa que permitiu a Schelling promover diversos movimentos dentro do seu próprio pensamento, distanciando-se de Fichte e avançando para uma filosofia da natureza que tanto o caracterizou.
  • 3
    Optou-se aqui por trabalhar com a edição finalizada do romance e não com a edição de 1776. Muito embora Jacobi tenha promovido algumas alterações decorrentes de suas reformulações teórico-filosóficas no período entre as duas edições, é verdade que uma parte substancial do romance foi mantida, sendo acrescentadas apenas alguns elementos finais do romance. Em termos gerais, portanto, a estrutura é mantida e, com ela, a presença da ideia de “demoníaco” na economia geral da obra, como se demonstrará.
  • 4
    Salvo onde indicado pela referência bibliográfica, todas as traduções são de nossa autoria. Aproveita-se o ensejo para agradecer os pareceristas e editores pelos apontamentos precisos com relação às traduções.
  • 5
    Logo nas primeiras cartas, Silly menciona ao menos duas referências literárias fundamentais para a base do sentimentalismo da época e, neste caso, para a verve específica do Sturm und Drang: Shakespeare - mencionado através de Macbeth (1812: 8) - e The Vicar of Wakefield, romance de Oliver Goldsmith citado através de uma menção ao personagem Primrose (1812: 22). Ambas as referências são importantíssimas para Goethe e haviam figurado, direta ou indiretamente, em seu Werther, romance igualmente epistolar que se tornou um modelo para aquele movimento literário.
  • 6
    Esse duplo movimento pode ser identificado tanto em trechos pontuais quanto na totalidade de Julia, ou a nova Heloísa, já que os dados discursivos particulares e a própria narrativa revelam tal característica. A título de exemplo: “Sempre acreditei que o bom não era senão o belo posto em ação, que um estava intimamente ligado ao outro e que ambos tinham uma fonte comum na natureza bem ordenada. Resulta dessa ideia que o gosto se aperfeiçoa pelos mesmos meios que a sabedoria e que uma alma bem marcada pelos encantos da virtude deve proporcionalmente ser também sensível a todos os outros tipos de belezas” (Rousseau 1994: 67Rousseau, Jean-Jacques. Júlia, ou, A Nova Heloísa. São Paulo: HUCITEC/UNICAMP, 1994.). Jean Starobinski trabalhou de forma muito precisa o que considerou como “um devaneio prolongado sobre o tema da transparência e do véu” no referido romance. Esse traço reforça o movimento de desvelamento das interioridades, vide o fato de que, conforme pontua Starobinski: “A nova Heloísa, em seu conjunto, aparece-nos como um sonho acordado, em que Rousseau cede ao apelo imaginário da limpidez que já não encontra no mundo real e na sociedade dos homens: um céu mais puro, corações mais abertos, um universo ao mesmo tempo mais intenso e mais diáfano” (1991: 94). Esse devaneio, contudo, não reside apenas no âmbito onírico, tendo a função de servir como modelo e como indicação moral e filosófica da possibilidade de aprimoramento humano, conforme foi pontuado.
  • 7
    Em uma confissão que poderia parecer excepcional ao seu caráter - e à função do personagem no romance -, Allwill indica sua relação com as mulheres sob os seguintes termos: “Ouça todo o meu segredo. As associações com o sexo oposto me excitam; estas criaturas agradáveis têm algo de macio e confortável nelas que me agrada. Ao lado delas, as coisas mais importantes no meu modo de sentir [Empfindungsart] vão se suavizando; elas roubam a equanimidade e a calma do meu coração” (1812: 34-35). É preciso notar, contudo, que essa descrição que Allwill faz sobre sua relação com as mulheres está situada em um âmbito bastante dúbio: ao mesmo tempo em que recai em muitos lugares comuns - em certas tópicas - da sentimentalização, desbrutalização e refinamento dos homens por seus tratos com o sexo oposto, está presente também uma espécie de percepção deturpada ou intencionada alterada do personagem sobre si mesmo, já que o romance demonstrará que essa “equanimidade” e “calma do coração” que menciona Allwill não é verdadeira.
  • 8
    Para maiores considerações sobre as posições filosóficas de Jacobi, é possível conferir a tradução, notas e comentários de Juliana Ferraci Martone em Jacobi, Friedrich Heinrich. Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao senhor Moses Mendelssohn. Campinas: Editora da Unicamp, 2021; ou então, abordando precisamente a questão da não-filosofia e do não saber no pensamento de Jacobi, a tese martone, Juliana. Friedrich Heinrich Jacobi: uma história natural da filosofia especulativa. 2020. 386 f. Tese de doutorado - FFLCH/USP, São Paulo, 2020.
  • 9
    Hamann é bastante claro - o que lhe é incomum - ao indicar esse deslocamento conceitual: “A ignorância de Sócrates era sensibilidade [Empfindung]. Mas há uma diferença maior entre sensibilidade e uma proposição doutrinária do que há entre um animal vivo e seu esqueleto anatômico. Não importa o quanto os céticos, antigos e novos, se envolvam com a pele de leão da ignorância, eles se traem por meio de suas vozes e ouvidos. Se eles não sabem nada, por que o mundo precisa de uma prova erudita disso? A hipocrisia deles é ridícula e ultrajante. Mas, quem precisa de tanta perspicácia e eloquência para se convencer de sua ignorância deve abrigar em seu coração uma poderosa aversão a sua verdade.” (Hamann 1821: 35)
  • 10
    Ao buscar explicitar essa posição intermediária de Sócrates na relação com seu daimon, Hamann evoca a questão estética que permanece sempre no pano de fundo de sua obra: “O que substitui em Homero a ignorância das regras da arte que Aristóteles inventou depois dele, e o que substitui em Shakespeare a ignorância ou a violação dessas leis críticas? O gênio [Genie] é a resposta unânime. Sócrates podia muito bem ser bastante ignorante; ele tinha um gênio em cuja ciência ele podia confiar, a quem ele amava e temia como seu Deus, com cuja paz ele se preocupava mais do que com toda a razão dos egípcios e dos gregos, e por cujo vento [...] a compreensão vazia de um Sócrates pode se tornar fértil para nós como o ventre de uma virgem pura.” (Hamann 1821: 38)
  • 11
    Em Dichtung und Wahrheit, quase ao final, Goethe apresenta uma de suas mais claras conceituações - ainda que não totalmente desenvolvida - sobre o “demoníaco”: “Ao longo desta narrativa biográfica, vimos em detalhes como a criança, o menino e o jovem tentaram se acercar do transcendente (dem Übersinnlichen) pelos mais diversos caminhos: primeiramente, com sua simpatia por uma religião natural; em seguida, com sua adesão a uma religião positiva; depois disso, testando alegremente às formas mais comuns de crença. Enquanto vagava de um lado para o outro nos espaços entre cada uma dessas regiões, procurando por algo, olhando tudo ao seu redor, acabou encontrando coisas que não pareciam cabem em lugar algum e, de pouco em pouco, foi se convencendo de que seria melhor afastar seu pensamento daquilo que se lhe manifestava como inapreensível, como monstruosamente além de toda medida. Esse jovem acreditava ser capaz de descobrir, na natureza, algo - vivo ou sem vida, animado ou inanimado - que só poderia se manifestar em contradições e, exatamente por essa razão, não poderia ser apreendido em nenhum conceito, muito menos numa única palavra. Não era algo divino (göttlich), pois parecia irracional; não era humano, pois não tinha inteligência; não era diabólico (teuflisch), uma vez que se mostrava benéfico; não era angelical, pois não raro se comprazia da desgraça alheia. Equiparava-se ao acaso, pois não se revelava como consequência de nada, e guardava semelhanças com a providência, já que sugeria um nexo. Tudo aquilo que nos era restrito, parecia perscrutável para esse algo, parecia ligar-se arbitrariamente aos princípios fundamentais de nossa existência, contraindo o tempo e expandindo o espaço. Só no impossível esse algo parecia encontrar contentamento, afastando o possível com desprezo. Esse elemento essencial, que parecia surgir em meio a todas as outras coisas, diferenciando-as, unindo-as, eu o chamava de “demoníaco” (dämonisch), seguindo o exemplo dos antigos e de outros que, antes de mim, haviam percebido algo parecido” (Goethe 2017: 941-2Goethe, Johann Wolfgang von. De minha vida: Poesia e Verdade. Tradução de Mauricio Mendonça Cardozo. São Paulo: Unesp, 2017.).
  • 12
    Em uma tradução mais precisa, baseada no original platônico, lê-se: “Os deuses não se misturam com os homens; é por meio desse elemento que os deuses entram em contato com os homens e se torna possível o diálogo entre eles, tanto no estado de vigília como durante o sono. O perito em tais assuntos é demoníaco, enquanto o homem entendido noutras artes e nos diferentes misteres não passa de um obreiro comum” (203 a) (Platão 1980: 258).
  • 13
    O conceito de salto mortal, pelo qual Jacobi ficou filosoficamente conhecido, pode ser uma consequência direta de certa leitura do romance Eduard Allwill. Uma vez que se assume as postulações filosóficas presentes em textos como Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao Senhor Moses Mendelssohn ou David Hume sobre a crença, ou idealismo e realismo, então tal vinculação se apresenta cada vez mais como necessária. Para os fins do presente artigo, não se avançará sobre essa questão. Não obstante, é válida a precisa explicação sobre o conceito feita por Juliana Ferraci Martone: “O salto mortal é um salto sobre a mediação da causalidade eficiente e do mecanismo de associação de ideias, é contrário às demonstrações por fundamentos racionais, uma vez que estas ocorrem mediatamente por silogismos, proposições ou conceitos intermediários (Mittelbegriffe), isto é, sem saltos. O salto é, portanto, um meio de evitar a busca pela verdade e pelo suprassensível mecânica ou naturalmente mediante proposições ou induções, e inverte (de ponta-cabeça) a ordem das coisas: a certeza é dada na imediatez do sentimento da crença, anterior ao conhecimento discursivo, que pode confirmá-la, mas nunca demonstrá-la. Como consequência, o conhecimento conceitual é de segunda mão e a relação entre sensível e suprassensível não pode mais ser esclarecida naturalmente. É impossível uma filosofia natural do suprassensível, dirá Jacobi” (Jacobi 2021: 29Jacobi, Friedrich Heinrich. Sobre a doutrina de Espinosa em cartas ao senhor Moses Mendelssohn. Tradução de Juliana Ferraci Martone. Campinas: Editora da Unicamp, 2021) É interessante notar que Allwill é caracterizado por ser esse ponto de mediação e imediatez, como alguém que estaria prestes ou seria capaz de realizar o salto mortal, porém impedido por sua posição demoníaca.
  • Financiamento:

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (2019/27014-8).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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