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A puericultura em revista

Puericulture in review

Resumos

Examina-se o papel das revistas femininas na constituição da puericultura como área de conhecimento e campo específico de atuação médica nas primeiras décadas do século XX no Brasil, e de um novo papel social feminino: a mãe moderna. A partir da identificação da imprensa periódica como veículo privilegiado de difusão da ciência na sociedade, aponta-se a função de mediação cultural exercida por duas revistas em circulação no período - Vida Doméstica e Revista Feminina - na conformação de um novo modelo de maternidade, de base científica. A maternidade científica mostrou-se como elemento central de um processo de aliança negociada entre médicos e mulheres das camadas média e alta dos principais centros urbanos brasileiros, de consequências transformadoras para ambos.

puericultura; maternidade; revistas femininas


This paper aims to examine the impact of feminine magazines in the constitution of well-child care as a specific area of knowledge and medical practice in the first decades of the 20th century in Brazil and the new feminine social role: the modern mother. Taking as a point of departure the identification of periodic press as a privileged way to spread science among society, we analyze the cultural mediation role performed by two feminine magazines of that period - Vida Doméstica and Revista Feminina - in building of a new maternity model, in scientific basis. The scientific maternity was the main subject of a negotiated alliance process held between doctors and Brazilian high urban class women, with great consequences to both.

well-child care; maternity; feminine magazines


A Belle Époque das revistas

A literatura especializada assinala que no Brasil a imprensa periódica consolidou-se progressivamente desde meados do século XIX como lócus privilegiado de debate das grandes questões nacionais, identificando problemas, estabelecendo hipóteses causais e sugerindo soluções. Tal constatação justifica, entre outros, a inclusão da imprensa periódica como fonte historiográfica relevante e singular, sobretudo a partir da década de 1970.

Em obra de referência sobre o tema, Nelson Werneck Sodré (1966)SODRÉ, N.W. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1966. 583 p. identifica diferentes fases percorridas pela imprensa brasileira, associando-as ao quadro mais amplo de transformações no país. O autor destaca como ponto de inflexão desse processo o surgimento, na virada do século XIX para o XX, de novo suporte: a revista ilustrada, um fenômeno abrangente de caráter mundial. Dentre os itens que contribuíram para a diferenciação entre o jornal e a revista, Sodré cita a profissionalização da prática jornalística; o caráter progressivamente empresarial da imprensa; a substituição de conteúdos literários por notícias, reportagens e entrevistas; as inovações técnicas do setor gráfico; e a crescente necessidade de informação por parte da sociedade urbana.

As primeiras décadas do século XX assistiram a uma "explosão" de produção e consumo de revistas de tal magnitude que o período foi caracterizado como a Belle Époque das revistas. Distintamente dos jornais diários, preocupados em divulgar notícias e informações atualizadas, as revistas, de frequência geralmente semanal, ocupavam-se prioritariamente com o entretenimento. Assim, apresentavam conteúdos mais leves e em formatos atraentes, que privilegiassem a diversão e o preenchimento do tempo ocioso, ao mesmo tempo em que permitiam a leitura descontinuada e estimulavam o colecionismo, tão em moda no período. Tais características, aliadas ao deslocamento - dos jornais para as revistas - da dimensão doutrinária da imprensa, transformaram as revistas ilustradas no suporte mais adequado para a expressão de opiniões, o confronto e a conformação de ideários e propostas de mudanças de comportamentos, e o estímulo ao consumo (MARTINS, 2001MARTINS, A.L. Revistas em revista. São Paulo: Fapesp, 2001. 593 p.; REVISTA..., 2000; SODRÉ, 1966SODRÉ, N.W. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1966. 583 p.). A diferenciação era clara: as revistas focavam o universo das camadas médias e da elite, deixando para os jornais a abordagem dos temas associados à pobreza e os dramas das classes populares (CARVALHO, 1999CARVALHO, K. A cidade das revistas. Tese (Doutorado em Comunicação) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; Brites, 1999BRITES, O. Imagens da infância. São Paulo e Rio de Janeiro: 1930 a 1950. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1999.).

O apuro técnico, a utilização de fotografias e de ilustrações e a linguagem mais informal foram outros elementos contributivos para converter as revistas em signos materiais de modernidade e civilização. De outro lado, a crescente inserção da propaganda ampliava suas possibilidades comerciais e alimentava experiências de consumo também identificadas com a modernidade, demonstrando o potencial desse gênero de periódico na mediação de novas práticas culturais.

No período que sucedeu a implantação da República, o florescimento de uma camada urbana com interesses mais definidos representou um ingrediente adicional para consolidar o sucesso das revistas e sua disposição vanguardista (VELLOSO, 1996VELLOSO, M.P. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 1996. 235 p.). A força desse universo pode ser medida pelo dado de que apenas na década de 1920 foram contabilizados 616 títulos diferentes na capital, Rio de Janeiro, o que justificou sua reputação como a "cidade das revistas" (CARVALHO, 1999CARVALHO, K. A cidade das revistas. Tese (Doutorado em Comunicação) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.). É verdade que muitas dessas publicações tiveram vida efêmera - fato apelidado por Olavo Bilac como o "mal-de-sete-números" (LUCA, 2006, p. 98LUCA, T.R. de. Um repertório do Brasil: tradição e inovação na Revista Nova. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 13, p. 97-107, jul.-dez. 2006.) - e algumas não passaram nem mesmo do primeiro exemplar. Mas de qualquer forma justifica a concepção de que nos efervescentes anos 1920 ler revista era uma atitude urbana e sintonizada com a vida moderna.

Do diversificado conjunto de publicações, interessa destacar para fins deste artigo uma determinada categoria: as revistas femininas. O termo "revista feminina" é utilizado em adesão ao modelo de classificação proposto por Sullerot (1966)SULLEROT, E. Histoire de la presse féminine en France des origines à 1848. Paris: Armand Collin. 1966. 233 p., a qual toma como base o gênero dos leitores/consumidores.1 1 Embora divirja da tipologia habitual de ordenação - baseada no conteúdo da revista, e não no sexo do público leitor -, essa classificação vem sendo amplamente aceita por pesquisadores de diferentes áreas. Assim, refere-se às publicações destinadas pelos editores, de forma mais ou menos explícita, ao público feminino. As revistas femininas que tinham como objetivo declarado questionar a posição e o papel social das mulheres e lutar por sua emancipação são qualificadas como "revistas feministas".

Apesar de não haver um número significativo de mulheres letradas no Brasil até as primeiras décadas do século XX, mesmo nos principais centros urbanos, o hábito de ler revista expressava uma dimensão cosmopolita e logo se tornou moda. Foi, portanto, absorvido como mais um elemento de proximidade com o contexto parisiense - nosso principal modelo de sociabilidade -, provocando uma demanda crescente por novos títulos. A assinatura de escritores renomados nesses periódicos, de outro lado, garantia o selo de leitura saudável, apropriada para as melhores famílias.

Embora tivessem sua origem em séculos anteriores,2 2 Lady's Mercury, criada na Inglaterra em 1693, é reconhecida como a primeira revista feminina do mundo ocidental. No Brasil, a pioneira foi O Espelho Diamantino, de 1827, enquanto Jornal das Senhoras, fundado 25 anos depois por Joana Paula Manso de Noronha, é considerada nossa primeira revista feminista (CARVALHO, 1999; BUITONI, 1986; HAHNER, 1981). as revistas femininas mostraram crescimento mais acelerado na década de 1920, no bojo do florescimento geral desse gênero de periódico e da expansão dos movimentos feministas. Acompanharam também o incremento do maternalismo,3 3 Uma discussão aprofundada sobre o conceito de maternalismo encontra-se em Larsen (1966). fenômeno de dimensão mundial que preconizava a ascendência do papel de mãe para todas as mulheres (FREIRE, 2011FREIRE, M.M. de L. Maternalismo e proteção materno-infantil: fenômeno mundial de caráter singular. Cadernos de História da Ciência, Instituto Butantan. V. 7, n.2, p.55-69, jul/dez. 2011.).

A diversificação de títulos, o aumento nas tiragens das revistas já existentes e a incorporação de novos recursos gráficos foram seguidos também de modificações mais substanciais. Além do uso cada vez mais frequente de ilustrações e fotografias, as revistas femininas foram incluindo de forma crescente novos conteúdos e a colaboração de articulistas de prestígio, como Olavo Bilac e Coelho Neto, de forma a reforçar a identificação das leitoras com esse veículo de comunicação, e dialogar com seus presumidos costumes e anseios. Não seria, portanto, de se estranhar que a ciência, ícone da civilização e da modernidade, se tornasse tema de presença obrigatória nessas revistas.

A expansão das atividades de divulgação científica foi um fenômeno marcante da década de 1920. Atividades que ultrapassaram os limites de suportes como livros e periódicos, para ocupar meios e espaços sociais diversificados, como as transmissões radiofônicas,4 4 A Rádio Sociedade, pioneira no país, não por acaso foi fundada, em 1923, no Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais e cientistas (MOREIRA; MASSARINI, 2001, p. 630). e integrar programas de cursos e conferências públicas - a exemplo das Conferências Populares da Glória (FONSECA, 1995, p. 96FONSECA, M.R.F. da. As conferências populares da Glória: a divulgação do saber científico. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, p. 135-166, nov. 1995/fev.1996.). Tais iniciativas não se destinavam a difundir de forma aprofundada temas específicos de conhecimento. Intentavam, sobretudo, estimular e alimentar a atmosfera de receptividade social à ciência, acompanhando o movimento dominante na Europa do pós-guerra (MOREIRA; MASSARINI, 2001MOREIRA, I. de C.; MASSARANI, L. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a década de 1920. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 627-651, fev. 2001.).

A ciência, o turismo e as tecnologias foram peças de destaque no processo de ampliação do escopo de temas das revistas femininas. As tradicionais seções de moda e notas sociais, entretanto, foram mantidas e continuaram a alimentar comportamentos que se espelhavam ora em Paris ora nas girls americanas ‒ ao mesmo tempo em que se propagava um ufanismo nacionalista. O apelo ao consumo tornava-se crescentemente explícito e competitivo, e apoiado em técnicas de publicidade mais agressivas.

A imprensa feminina começou a atrair maior atenção de pesquisadores da área das ciências humanas a partir da década de 1970, em todo o mundo, associada ao desenvolvimento do campo da história das mulheres. Um número expressivo de investigações historiográficas focalizou determinados momentos históricos de crise e transição política e social no cenário europeu, como os períodos de guerra ou entreguerras, considerados especialmente desestabilizadores das dinâmicas familiares. No Brasil, as revistas femininas foram objeto de estudos históricos apoiados, de maneira geral, numa linha interpretativa que superdimensionava seu poder normatizador e minimizava seu potencial como espaço de participação social das mulheres (FREIRE, 2006______. Mulheres, mães e médicos. Discurso maternalista em revistas femininas (Rio de Janeiro e São Paulo, década de 1920). Tese (Doutorado em História das Ciências) - Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2006.).

Pretende-se examinar neste artigo um aspecto pouco explorado desse território, qual seja, o papel das revistas femininas na difusão de determinado ideário de maternidade, de base científica, e na construção de uma relação peculiar entre médicos e mulheres das classes média e alta urbana brasileira. Mais particularmente, busca-se explorar como se desenhou, nas páginas das revistas, o processo de aliança negociada entre médicos e mulheres, em torno do tema da criação dos filhos, o qual teve consequências transformadoras para ambos.

Duas revistas femininas foram privilegiadas para análise, por se mostrarem representativas do gênero, fosse pelas características do conteúdo, pela expressiva tiragem ou pelo extenso período de circulação: Vida Doméstica(1920-1963) e Revista Feminina(1914-1936)REVISTA FEMININA. São Paulo/Rio de Janeiro: Virgilina de Souza Salles, jan. 1920 - dez. 1929..

Vida Doméstica foi fundada no Rio de Janeiro pelo empresário português Jesus Gonçalves, e se apresentava como uma revista dedicada aos "assuntos do lar" - o que significava o cultivo de hortas e jardins, a criação de pequenos animais e a confecção de utensílios domésticos, bordados e outros apetrechos de decoração. A partir do quarto ano de circulação, passou a incluir o subtítulo de "revista do lar e da mulher", em sintonia com a nova linha editorial, como se discutirá mais adiante. Em virtude do interesse particular de seu fundador no assunto, diferenciou-se de outras revistas pelo uso intenso de fotografias em suas páginas, o que acentuava seu feitio de modernidade. Outro aspecto distintivo inovador de Vida Domésticarefere-se à integração entre capa e conteúdo, característica que só veio a se generalizar no periodismo na década de 1940.

Já a Revista Feminina foi criada por Virgilina de Souza Salles, católica praticante e membro de família tradicional paulista, como um periódico dedicado à defesa dos interesses das mulheres e à melhoria da cultura feminina. O elevado nível sociocultural de sua fundadora e o ambiente em que esta circulava foram componentes que facilitaram a penetração da revista na elite e camadas médias. Embora seu conteúdo priorizasse os mesmos textos literários e receitas culinárias presentes em outros periódicos, publicava com frequência reproduções de artigos estrangeiros e informações atualizadas sobre as principais conquistas e reivindicações dos movimentos feministas mundiais. Caracterizava-se, portanto, desde sua criação, como uma revista feminista.5 5 A revista usava, inclusive, o argumento da "atitude feminista" para convocar suas leitoras a angariar novas assinantes nos seus círculos sociais.

Apesar das diferenças entre seus objetivos e conteúdos iniciais, os dois periódicos exibiam, no aspecto formal, as mesmas características de modernidade daquele suporte, como o recurso ao humor e às ilustrações, intercalando de maneira atraente textos e imagens. Ao longo dos anos foi possível perceber, no entanto, uma mudança radical nos conteúdos de ambas, que convergiram para uma concentração notável de artigos - majoritária, mas não exclusivamente, assinados por médicos - dedicados à difusão dos princípios da maternidade científica. Esses artigos não se resumiam a simples prescrições técnicas, mas revelavam, de maneira exemplar, as tensões, contradições e ambiguidades do mundo feminino e as tentativas de conciliação de interesses das mulheres e de vários segmentos da sociedade brasileira urbana no que se referia à maternidade.

A Eva dos anos vinte

Em seu afã se "ensinar a mulher a ser mulher", as revistas expunham a multiplicidade e complexidade dos papéis esperados para as mulheres das camadas urbanas mais elevadas nos anos vinte. O artigo intitulado "A Eva de hoje", publicado na Revista Feminina de março de 1928, expressava de maneira exemplar os atributos de uma mulher moderna: independente, bem informada, trabalhadora, desportista e capaz de manejar a direção do seu próprio carro com a mesma destreza com que manejava uma máquina de escrever ou uma enceradeira. Mas o texto reservou para o final a consideração presumidamente mais importante: a mulher moderna era capaz de desempenhar tudo isso "sem perder jamais a essência sagrada da maternidade"...

Se muitas vezes a expressão "mulher moderna" era utilizada pelas revistas para apoiar atitudes femininas desejáveis, com frequência estabelecia-se uma associação entre atitudes emancipatórias e comportamentos masculinos. Na verdade, a sugerida oposição entre duas categorias: a mulher moderna - livre e consciente do seu valor - e a mulher bibelô - fútil e dependente - exibia limites confusos e fracamente delimitados, podendo ser ambas associadas a qualidades positivas ou negativas conforme o interesse dos articulistas. No que se referia às militantes feministas, as críticas eram mais ásperas, chegando quase a ser ofensivas: "O feminismo combativo é a vingança das feias" ("Crônica", Vida Doméstica, n. 125, ago. 1928).

Outros signos identificados com a mulher moderna recebiam ao mesmo tempo avaliações severas ou comentários bem-humorados. O exemplar de julho de 1927 da Revista Feminina, por exemplo, apresentava um curioso debate: "Porque cortei os cabelos X Porque não cortei os cabelos". Em outro número, um artigo de página inteira mostrou, com divertidas ilustrações, imagens estereotipadas de mulheres - classificadas como "a coquete", "a datilógrafa", a "sport-woman", etc. - justificando por que cortaram seus cabelos ("Cabelos curtos", Revista Feminina, 127, dez. 1924). Já em Vida Doméstica, o mesmo tema inspirou longa reportagem a respeito da moda dos cabelos curtos, que foram analisados simultaneamente quanto à sua dimensão estética quanto higiênica. Ganhou maior destaque, entretanto, matéria em que desenhos em art nouveau emolduravam uma paródia dos versos de Raimundo Correa:

Tranças

Vai-se a primeira trança decepada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim centenas... De tranças pretas e douradas vão-se, apenas A moda seja pela derrubada...

E agora, de cabeça bem rapada, Lindas mulheres, loiras e morenas, Libertas das "incômodas" melenas, Veem-se na rua, desde madrugada...

Também dos corpos, onde se abotoam As saias e os corpetes logo voam, Como voaram as tranças naturais;

(Nem por isso os maridos se revoltam...) Mas ah! que as saias e os corpetes voltam; E as lindas tranças, estas, nunca mais! ("Tranças", Vida Doméstica, 90, jul. 1925).

As ilustrações caricaturadas das mulheres "liberais" de cabelos curtos e o tom debochado dos versos de "Tranças" revelam como as revistas femininas exploraram a estética moderna desse gênero de periódico, ratificando sua própria imagem de veículo da modernidade. Ao mesmo tempo, são representativas das tensões que envolviam a posição da mulher na sociedade urbana naquele período.

A polarização de gênero e a dicotomia antigo/novo, tradicional/moderno que embasavam as argumentações críticas aos comportamentos femininos pareciam repetir o esquema de oposição binária que vinha sendo utilizado desde o século XIX para justificar o "problema brasileiro", através de categorias como atraso/progresso, litoral/sertão e saúde/doença (LIMA; HOCHMAN, 2004, p. 497LIMA, N.T.; HOCHMAN, G. "Pouca saúde e muita saúva": sanitarismo, interpretações do país e ciências sociais. In: HOCHMAN, G.; ARMUS, D. (Orgs.). Cuidar, controlar, curar. Ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004 p. 493-533, 567 p.). A necessidade de distinguir os papéis sociais de homens e mulheres era assentada, sobretudo, em características consideradas naturais dos sexos, segundo a ótica da complementaridade e das esferas separadas. Sob tal lógica, ao homem se destinaria a esfera pública, que incluía o trabalho profissional, a gestão da cidade e a administração das relações. À mulher estava reservada a esfera privada, ou seja, o trabalho doméstico, a administração do lar, e os cuidados com os corpos e as emoções. Assim, se o papel do homem como provedor da família era agir e dirigir, a missão da mulher, de forma complementar, consistia em apoiar, cooperar, aplaudir e devotar-se a ele e aos filhos. Funções cujo desempenho dependeria da ativação de habilidades inatas a cada sexo, tais como força, coragem e ousadia, e tolerância, dedicação e sacrifício, respectivamente.

Os argumentos essencialistas eram acionados indistintamente pelos colaboradores das revistas em relação aos mais diversos cenários do universo feminino. Se desaconselhava, por exemplo, o trabalho fora de casa, pois as mãos delicadas das mulheres eram consideradas mais apropriadas para acolher os bebês do que para fabricar vassouras e chapéus - embora a indústria valorizasse esses mesmos atributos na seleção de seus funcionários... Um dos principais temas das revistas eram, justamente, as tensões que envolviam o cumprimento da atividade doméstica feminina, particularmente a maternidade, e o trabalho, tolerado apenas em caso de necessidade.

Mas ao mesmo tempo em que se reconhecia a fluidez das fronteiras entre as esferas pública e privada, e a multiplicidade dos papéis esperados e efetivamente exercidos pelas mulheres, as revistas femininas repercutiam e alimentavam a concepção de que elas não poderiam viver plenamente sua condição feminina a não ser pela maternidade. O jornalista português Ramalho Ortigão afirmou com convicção: "A função da mulher não é ser jornalista ou doutora, é ser mãe" (Ramalho Ortigão, "Mãe e esposa", Vida Doméstica, 136, jul. 1929VIDA DOMÉSTICA. Rio de Janeiro: Jesus Gonçalves, jan. 1920 - dez. 1929.).

A maternidade era exaltada em prosa e verso nas páginas das revistas, fosse em referência à natureza feminina, através da concepção de instinto maternal, a um dom divino, ou a uma função de caráter patriótico. Na verdade, mais que um direito, era considerada um dever das mulheres, um destino inexoravelmente atrelado a sua essência. Em acordo com essa ideia, a recusa à maternidade podia ser entendida como uma patologia, um pecado ou um crime, ou o pior, uma perda da identidade feminina.

A defesa da maternidade como a função mais importante das mulheres era unanimidade entre os colaboradores das revistas. Intelectuais e profissionais de todos os matizes, políticos, educadores, médicos e higienistas, juristas, reformadores de tendência tradicional ou não, representantes da Igreja Católica, mulheres simpatizantes, contrárias, ou militantes nos movimentos feministas, do mais conservador ao mais radical, todos concordavam que a função maternal constituía valor a ser preservado e cuidado (FREIRE, 2006______. Mulheres, mães e médicos. Discurso maternalista em revistas femininas (Rio de Janeiro e São Paulo, década de 1920). Tese (Doutorado em História das Ciências) - Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2006.).

Textos literários de exaltação à maternidade eram reproduzidos em quase todos os números, caprichosamente emoldurados por guirlandas de flores ou enfeitados por desenhos em art nouveau. Colaborações das leitoras também mereciam destaque, fossem relatos de mães corajosas e sofredoras, pequenas prosas, canções ou poesias. O apelo emocional era presença constante, assim como o pressuposto de que a mulher que não era mãe, "passou pela vida e não viveu" (Antoninha Lobo, "Carinho Maternal", Vida Doméstica, 94, nov. 1925). Fotografias de mães e filhos passaram a ilustrar com maior frequência as capas das revistas. A escolha costumava recair sobre esposas de homens de destaque na cena social, assinalando e ao mesmo tempo reforçando os elementos que compunham o capital simbólico das elites urbanas.

A propaganda se adequou a esse ambiente e explorou a maternidade para vender ampla variedade de bens de consumo, de leite a tapetes, de geladeiras a automóveis. A imagem de uma mulher cuidadosamente vestida e penteada, olhando embevecida para um bebê sorridente em seu berço, era colada aos mais diversos produtos, agregando-lhe um valor de modernidade e distinção ‒ ainda que em contradição com a realidade de vida da maioria das mães...

Mas ao apelo emocional adicionava-se paulatinamente uma argumentação de outra ordem, racional. Não se tratava mais apenas de ser mãe, mas ser uma mãe moderna, esclarecida, a responsável pela formação dos futuros cidadãos e, portanto, da própria nação brasileira. À medida que a maternidade era redefinida e justificada por outros parâmetros, emergia o consenso entre os articulistas de que as mulheres precisavam ser adequadamente educadas e preparadas para essa função. Ramalho Ortigão sintetizou essa ideia de forma categórica: "Ser mãe é uma ciência" (Ramalho Ortigão, "Mãe e esposa", Vida Doméstica, 136, jul. 1929VIDA DOMÉSTICA. Rio de Janeiro: Jesus Gonçalves, jan. 1920 - dez. 1929.).

O entrelaçamento da maternidade com o tema da construção da nação brasileira alçava-a ao duplo patamar de atividade científica e missão patriótica. O eixo do discurso reformista republicano assentava-se na ruptura com a herança colonial/escravista e o passado de "atraso" - que tinha na elevada mortalidade infantil um dos seus principais símbolos -, depositando na salvaguarda da infância a esperança de um futuro de progresso e civilidade. A década de 1920 conferiu renovado impulso ao processo reformador, atrelado à valorização social da ciência, em particular a eugenia, e ao incremento de movimentos sociais como o maternalismo, o nacionalismo e os feminismos.

A preparação das mulheres para que assumissem a responsabilidade pela criação dos seus filhos, informadas pela ciência, representava uma das estratégias de materialização do discurso modernizador e a republicanização efetiva do país (FERREIRA; FREIRE, 2005FERREIRA, L.O.; FREIRE, M.M. de L. Higienismo, feminismo e maternalismo: ideologias e práticas de proteção à infância no Brasil, 1899-1940. Estudos do século XX, Coimbra, n. 5, p. 301-315, 2005.). Como intelectuais comprometidos com esse projeto, que tinha como pontos centrais o sanitarismo, a reforma educacional e alterações do espaço urbano, a colaboração de médicos e higienistas se materializou através da enunciação dos princípios técnicos e ideológicos da maternidade científica,6 6 Apple (1987) define maternidade científica como o exercício da maternidade fundamentado em bases científicas, objeto de práticas educativas próprias e sob supervisão médica. concentrados no conjunto de regras da puericultura.

A puericultura pode ser definida como o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil. Distintamente, portanto, da pediatria, que almeja intervir diretamente sobre o corpo doente da criança, tem por objeto de seu discurso e de sua prática o corpo social, propondo-se a transformar crenças, valores, costumes e atitudes. Assim, para além da aplicação prática de um conjunto de normas técnicas voltadas para o cuidado com o corpo e a mente das crianças, a puericultura pressupõe transformação de ordem cultural, que inclui, entre outras dimensões, a redefinição do conceito e do valor da infância e da maternidade.

De outro lado, a legitimação da puericultura como um campo específico de conhecimento médico exige mais do que o reconhecimento de seu estatuto entre os pares. Demanda o reconhecimento, pelas mulheres, de sua autoridade, e a adesão às suas práticas. Nesse sentido, as revistas femininas pareciam ser o suporte ideal para a difusão dessas "boas novas".

O décimo número de Vida Doméstica é exemplar da "virada" editorial nessa direção, ao ostentar na capa a fotografia de um bebê sorridente e bochechudo, em substituição às habituais imagens de bois, coelhos, tratores e outros símbolos da persistência do Brasil rural. O editorial da revista, sob o título de "Hominicultura", era assinado pelo médico Antonio Barbosa Vianna, e tratava agora da criação de filhos, e não mais da criação de animais, como os exemplares anteriores.

Dr. Barbosa Vianna reconhecia a presença de um instinto materno natural, mas criticava a educação "antiga", que destinava às mulheres papel meramente decorativo, e condenava os preconceitos e crendices daquelas que se ocupavam das crianças. O médico buscava direcionar tal tarefa exclusivamente às próprias mães, através de uma dupla valorização da maternidade − tanto de seu caráter natural quanto de sua dimensão racional. Ainda que tal retórica possa parecer, em princípio, ambígua, torna-se compreensível num contexto em que a infância representava a esperança de viabilidade do país, e os médicos disputavam com outras mulheres − como as comadres, vizinhas e avós - o papel de conselheiros na criação dos filhos. Inserido no debate mais amplo em torno da construção da nação brasileira − guiada pela Higiene e tendo ao centro a criança −, esse discurso significava, efetivamente, o combate entre as ideias "antigas", identificadas com o "atraso" e a tradição, e as novas técnicas científicas, representativas da modernidade e do progresso.

Assim como Dr. Barbosa Vianna, os articulistas de Vida Doméstica e Revista Feminina dedicavam muitas linhas a explicar em que consistia a nova maternidade, enfatizando o caráter racional que deveria guiar as funções domésticas em tempos modernos.7 7 A racionalidade seria, em si mesma, um traço distintivo da ideia de modernidade, assim como a responsabilidade individual. Assim como as mulheres deveriam aprender a organizar suas casas de maneira econômica e higiênica, também não deveriam confiar puramente no instinto maternal para criar seus filhos, pois este era considerado insuficiente, devendo ser aperfeiçoado através da educação. Em suma, era uma tarefa urgente e indispensável instruir as mulheres quanto aos princípios científicos da puericultura. E as próprias revistas se encarregaram disso.

Ensinando a mulher a ser mãe

A partir, sobretudo, de meados da década de 20, as revistas femininas passaram a publicar um número progressivamente crescente de artigos voltados para a orientação das mulheres, com base na ciência, a respeito de todos os aspectos do amplo universo infantil: do sono ao vestuário, da amamentação às vacinas, do corte de cabelo ao uso (ou proibição) de chupetas. Os artigos recebiam títulos que não deixavam dúvida quanto a seu caráter racional, como "A ciência da maternidade", "Noções de puericultura", "Consultório da criança" ou "Medicina doméstica".

Práticas corriqueiras como o banho das crianças foram ensinadas nas páginas das revistas com o auxílio de fotografias, onde enfermeiras devidamente paramentadas executavam as etapas descritas em detalhes pelos médicos. As instruções eram minuciosas, abrangendo, por exemplo, a temperatura ideal da água, a técnica de ensaboar e a maneira correta de enxugar, vestir e pentear os bebês. Transformadas em verdadeiros rituais higiênicos, tais práticas pareciam atender a dois propósitos. De um lado, legitimar os princípios da higiene infantil como um domínio de conhecimento e a puericultura como um campo específico de ação médica; de outro, valorizar a função maternal ao aproximá-la do universo socialmente valorizado da ciência.

A organização do quarto do bebê também foi submetida à racionalidade científica, merecendo extensos artigos que versavam a respeito do material, cor e localização do berço, a ventilação do ambiente e a distribuição dos enfeites. Chamado de "nursery", esse aposento seria alvo de mecanismos meticulosos de limpeza, de forma a eliminar a possibilidade de acúmulo de poeira e escapar do perigo representado pelos germes. Tal estratégia estava em sintonia com a noção de risco como tema central da cultura da modernidade, assim como a ideia pretensamente universal de que o perigo devia ser enfrentado segundo os princípios do racionalismo individualista e utilitarista.

As revistas lembravam as leitoras das ameaças à saúde trazidas por baratas e outros insetos e ofereciam receitas caseiras de combate às infestações. De outro lado, reproduziam campanhas promovidas por indústrias norte-americanas de produtos antissépticos e empresas de propaganda. Esse foi o caso do anúncio do desinfetante Lysol veiculado na Revista Feminina, que exagerava o seu poder, ao apregoar sua utilização nos Estados Unidos para conter as mais variadas epidemias.8 8 Segundo Tomes (1999), tais estratégias ajudaram a perpetuar no imaginário da sociedade a associação entre sujeira e doença, mesmo após ser superada pelos novos conhecimentos científicos.

Micróbios e doenças tornaram-se personagens regulares nas páginas das revistas femininas. Embora fornecessem instruções sobre o manejo de ferimentos, acidentes e doenças mais comuns na infância - "antes da chegada do doutor" -, contribuindo para reforçar o papel das mulheres como suas auxiliares e parceiras, os médicos estabeleciam os limites de ação das mães e criticavam os seus erros.

A ênfase conferida a aspectos de prevenção do contágio e desinfecção revelavam a coerência com os pressupostos da Higiene. As mães eram, no entanto, alertadas para a necessidade de levar seus filhos a consultas médicas periódicas, para proceder à vigilância do seu crescimento e desenvolvimento, e não apenas quando eles estivessem doentes. Reforçava-se, de um lado, a presumida responsabilidade feminina pela higiene no lar e na família; de outro, a diferenciação de determinado tipo de profissional, voltado para as especificidades do corpo infantil, e consequentemente, da pediatria e da puericultura como campos distintos de atuação médica. Muitas vezes, as próprias revistas funcionavam como consultórios, onde os médicos respondiam a perguntas das leitoras sobre as mais variadas intercorrências na saúde das crianças, o que incluía a prescrição de medicamentos ou suplementos alimentares.

Numerosas matérias eram destinadas a corrigir os supostos mitos e erros na criação de filhos. Dentre esses, a associação entre erupção dentária e sintomas digestivos era a mais insistentemente negada pelos articulistas, que a tratavam como uma crendice tola e recomendavam que se procurasse sempre o médico ao menor sintoma. A permanência da vinculação entre dentição e diarreia no imaginário de muitas mães até hoje revela uma resistência peculiar ao discurso médico, e demonstra que a construção do ideário e da prática da maternidade científica não se deu de maneira impositiva ou acrítica. Ao contrário, constituiu um processo de assimilações, traduções e negociações de interesses tanto dos médicos quanto das mulheres, permeável também à influência de outras forças sociais como a Igreja católica e a indústria de consumo.

A maior parte dos artigos girava em torno do tema da alimentação infantil. Tanto os médicos como o conjunto da elite intelectual e profissional brasileira estavam convencidos de que os erros alimentares constituíam a principal causa da elevada mortalidade infantil, que por sua vez representava séria ameaça ao futuro do país. Este assunto seria enfrentado por meio de ações pedagógicas cujo alvo preferencial era formado pelas mulheres, mães ou futuras mães.

Longas matérias defendiam, com argumentos simultaneamente científicos, econômicos e religiosos, as vantagens da amamentação. Mas assim como ocorreu em outros espaços sociais, o processo de incorporação da nova racionalidade pela comunidade médica não excluiu antigas tradições. Isso justificou a permanência, em plena década de 1920, de argumentos de qualificação do leite materno como "sangue branco", numa atualização do termo utilizado em tratados de Higiene do século XIX (ROLLET-ECHALIER, 1990ROLLET-ECHALIER, C. La politique à l'égard de la petite enfance sous la III ème République. Paris: PUF, 1990.).

Os mesmos textos que pregavam (e provavam cientificamente) a superioridade do leite materno ensinavam às mães como utilizar fórmulas lácteas e suplementos. A aparente contradição possivelmente expressava o esforço dos médicos em conciliar seu discurso com a realidade de vida e as necessidades das leitoras. A insistência na convocação das mulheres para que aderissem ao aleitamento materno pode sugerir que a prática da amamentação não era tão comum no período, ao menos em centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo. Assim, mais que apenas impor novas atitudes e comportamentos femininos, possivelmente as revistas e os médicos que colaboravam como articulistas respondiam a demandas preexistentes das mulheres, ao tempo em que as reforçavam e introduziam novos elementos no contexto. Para ilustrar seus argumentos e reforçar sua cientificidade, as matérias inseriam gráficos e tabelas especificando a composição tanto do leite materno quanto das fórmulas lácteas, assim como o crescimento e ganho de peso esperados em cada período da vida da criança. As referências a médicos estrangeiros de prestígio também contribuíam para legitimar as informações e valorizar a assinatura dos articulistas.

Quanto à alimentação das crianças maiores, as matérias buscavam iniciar as mulheres no universo científico, ao mesmo tempo em que preservavam alguns hábitos arraigados, como o uso de farinhas para engrossar o leite. Os articulistas ressaltavam o perigo decorrente do uso abusivo dos farináceos, determinando as proporções corretas e sugerindo produtos industrializados. Outros costumes, como a oferta de vinho às crianças pequenas para aumentar o apetite, eram condenados e associados ao passado bárbaro e "atrasado".

Empenhados em conciliar ciência e tradição, os médicos publicavam receitas de chás, sopas e mingaus com a descrição minuciosa das quantidades e composição dos ingredientes; a técnica e tempo de cocção; e a delimitação das faixas etárias em que cada alimento deveria ser introduzido. Ministravam ainda ensinamentos quanto à higienização adequada dos utensílios - com especial atenção para a esterilização das mamadeiras - e explicações sobre a fisiologia do sistema digestório das crianças. Transformando a cozinha num laboratório, promovia-se uma mudança de status da culinária a prática científica, da alimentação a nutrição, e a conversão das mães ao patamar de nutricionistas da família.

O tema da alimentação infantil expressa de forma privilegiada a parceria negociada entre mulheres e médicos nas páginas das revistas. A adesão de muitas mulheres ao novo papel se justificaria não apenas pela obtenção de soluções concretas para os problemas alimentares de seus filhos, mas também pelas vantagens alcançadas na própria condição feminina, revalorizada e protegida enquanto mãe, e a oportunidade de ingresso no mundo acadêmico e profissional da ciência da Nutrição. Para os médicos, a expertise em alimentação infantil - e a consequente alcunha de "papistas" - contribuía para legitimar a puericultura como um domínio específico de conhecimento científico e lhes garantia espaço diferenciado de atuação profissional no terreno da medicina.

Não se tratava, entretanto, de um tema consensual ou isento de disputas. O debate que se travava a respeito de alternativas à amamentação explicitava diferenças na preferência dos doutores, divididos entre sua substituição por mamadeiras com leite de outros animais - fresco, açucarado ou desidratado -, ou pelos serviços das amas de leite (desde que devidamente examinadas e atestadas). A propaganda seguia o mesmo caminho, divulgando para as leitoras tanto leites "maternizados" e suplementos farináceos, quanto remédios que prometiam aumentar a lactação - e que eram oferecidos indistintamente às mães e às amas de leite. Por isso não chega a surpreender a declaração do Dr. Wittrock, ardoroso incentivador da amamentação nas páginas de Vida Doméstica, de que seu filho estava se desenvolvendo muito bem com o uso de Nestogeno.9 9 Os anúncios testemunhais estavam em grande voga no período.

Dr. Germano Wittrock mantinha um consultório bastante prestigiado no Rio de Janeiro e era colaborador habitual de jornais e revistas femininas. Os textos publicados na coluna fixa que assinava em Vida Doméstica foram posteriormente agrupados no Guia das mães, que segundo palavras do próprio autor, visava "fazer de toda mãe uma auxiliar do médico" (WITTROCK, 1927WITTROCK, G. Guia das mães. Rio de Janeiro: Vida Doméstica, 1927. 222 p.). Lançado em setembro de 1927 e esgotado em menos de um ano, o livro fez enorme sucesso entre as mulheres das classes média e alta cariocas, sendo sucessivamente reeditado e tornando-se um presente comumente ofertado às gestantes e até mesmo às noivas.

Esse não foi um fenômeno isolado. A Revista Feminina também publicou seu Guia Prático de Medicina Doméstica, uma compilação de artigos de seus colaboradores. Já as indústrias de medicamentos e alimentos infantis produziram seus próprios manuais, amplamente divulgados nas revistas femininas, e geralmente ofertados gratuitamente mediante o preenchimento e envio do cupom que acompanhava o anúncio. O laboratório Glaxo, por exemplo, oferecia às leitoras os livros ilustrados Antes de nascer o bebê e Conselhos da Glaxo para mãe e filho. Mesmo revistas voltadas para um público mais diverso, como Vida Moderna, incorporaram prática semelhante. No número de maio de 1914, o fabricante dos alimentos lácteos Allemburys, autoproclamados como "a mais completa aproximação ao leite materno obtida pela ciência até hoje", prometia garantir saúde e robustez dos filhos para as mães que seguissem os ensinamentos de seu folheto "Alimentação e cuidado da criança", de distribuição gratuita. Tais iniciativas, aliadas à procura ativa por exemplares, reforçam a ideia da existência de demanda assegurada para esse tipo de publicação, confirmando um interesse das mulheres pela puericultura.

Além de orientações voltadas para o corpo infantil, em meados dos anos 1920 começaram a surgir artigos que discorriam sobre o psiquismo da criança. Alimentados pela crescente incorporação de conhecimentos do campo da psicologia e pedagogia, esses artigos visavam ensinar as mães a resolver determinados problemas de seus filhos, como o medo e a teimosia. Forneciam também orientações quanto ao estímulo intelectual dos pequenos, fosse através de jogos educativos ou de leituras sadias.

A máxima "mens sana in corpore sano" inspirou a associação dessas medidas a práticas regulares de exercício físico, que incluíam os banhos de mar e a exposição ao sol. Outro ditado popular - "é de pequenino que se torce o pepino" - era utilizado para destacar a importância das ações preventivas e o desenvolvimento de hábitos saudáveis nas crianças, ratificando o estatuto da puericultura como roteiro indispensável e seguro para auxiliar as mulheres na criação dos seus filhos.

À guisa de conclusão

O desenvolvimento da revista como gênero específico de periódico nas primeiras décadas do século XX foi um aspecto essencial na construção da relação de aliança negociada entre médicos e mulheres das camadas média e alta urbanas no que se refere às práticas de criação dos filhos. A partir, entre outros elementos, da dimensão compartilhada de modernidade, as revistas - mais especificamente as revistas femininas - formaram um ambiente de circulação cultural singular, propício à divulgação da ciência em geral, em particular da maternidade científica, e à vulgarização dos princípios da puericultura.

O quantitativo e a extensão crescentes de matérias sobre a maneira científica de cuidar das crianças, a receptividade positiva das leitoras às revistas - atestada pelo aumento das colaborações voluntárias, manifestações nas sessões de correspondência, compra de exemplares e novas assinaturas - e o incremento acelerado de inserções publicitárias, além de produtos derivados como livros e manuais, confirmam o interesse das mulheres no assunto. De outro lado, a intensificação da presença de artigos assinados por membros da elite intelectual e médica da época, além de escritoras e feministas renomadas, espelha a convergência de motivações de diferentes grupos sociais na construção do novo papel feminino de mãe, tendo como guia a ciência.

A redefinição da maternidade como atividade científica provocava sua valorização social e conferia maior distinção tanto aos médicos que a supervisionavam, quanto às mães que a praticavam. Possivelmente, a aproximação com o universo "masculino" da ciência facilitou a adesão de mulheres, inclusive aquelas ligadas aos movimentos feministas, ao estatuto da puericultura. Se o exercício da maternidade científica franqueava às mulheres, como adjuntas dos médicos, a oportunidade de exercer a ciência no lar, e ainda as projetava no espaço público como profissionais, sobretudo no campo da nutrição, contribuía, ao fim e ao cabo, para melhorar a condição feminina como um todo.

O acompanhamento da evolução formal e temática das revistas femininas ao longo de uma década sugere que não se tratava de um movimento de sentido único nem de simples estratégia de subordinação de gênero ou imposição de novos valores e comportamentos. Constituiu, ao contrário, processo cultural dinâmico e complexo que envolveu constantes negociações e gerou consequências marcantes para ambos, mulheres e médicos. As mulheres responderiam ao discurso médico-higienista através de incorporações e rejeições dos preceitos científicos, adaptando-os aos próprios saberes e atualizando um repertório particular no que se refere à criação dos seus filhos. Por sua vez, os médicos buscariam adequar suas prescrições às demandas femininas sem abrir mão de sua presumida autoridade, tentando conciliar ciência e tradição. A medicalização negociada da maternidade teria como um de seus resultados a produção de dois novos tipos sociais: a mãe moderna e o médico puericultor.

Embora seja difícil estabelecer com precisão o peso específico da influência exercida pelas revistas femininas nesse processo, não há como negar seu papel exemplar de mediação cultural na construção social da maternidade científica e na constituição da puericultura como área de conhecimento e campo específico de atuação médica.

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  • WITTROCK, G. Guia das mães. Rio de Janeiro: Vida Doméstica, 1927. 222 p.
  • 1
    Embora divirja da tipologia habitual de ordenação - baseada no conteúdo da revista, e não no sexo do público leitor -, essa classificação vem sendo amplamente aceita por pesquisadores de diferentes áreas.
  • 2
    Lady's Mercury, criada na Inglaterra em 1693, é reconhecida como a primeira revista feminina do mundo ocidental. No Brasil, a pioneira foi O Espelho Diamantino, de 1827, enquanto Jornal das Senhoras, fundado 25 anos depois por Joana Paula Manso de Noronha, é considerada nossa primeira revista feminista (CARVALHO, 1999CARVALHO, K. A cidade das revistas. Tese (Doutorado em Comunicação) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; BUITONI, 1986BUITONI, D.H.S. Imprensa Feminina. São Paulo: Ática, 1986. 96 p.; HAHNER, 1981HAHNER, J.E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. Rio de Janeiro: Brasiliense. 1981. 140 p.).
  • 3
    Uma discussão aprofundada sobre o conceito de maternalismo encontra-se em Larsen (1966)LARSEN, E. The relations between maternalism as a historical concept and gender as a category of historical analysis. Disponível em: <www.ub.uib.no/elpub/1996/h/506002/eirinn/eirinn-Maternal.html>. Acesso em: 03 ago 2012.
    www.ub.uib.no/elpub/1996/h/506002/eirinn...
    .
  • 4
    A Rádio Sociedade, pioneira no país, não por acaso foi fundada, em 1923, no Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais e cientistas (MOREIRA; MASSARINI, 2001, p. 630MOREIRA, I. de C.; MASSARANI, L. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a década de 1920. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 627-651, fev. 2001.).
  • 5
    A revista usava, inclusive, o argumento da "atitude feminista" para convocar suas leitoras a angariar novas assinantes nos seus círculos sociais.
  • 6
    Apple (1987)APPLE, R.D. Mothers and medicine. A social history of infant feeding. London: The University of Wisconsin Press, 1987. 280 p. define maternidade científica como o exercício da maternidade fundamentado em bases científicas, objeto de práticas educativas próprias e sob supervisão médica.
  • 7
    A racionalidade seria, em si mesma, um traço distintivo da ideia de modernidade, assim como a responsabilidade individual.
  • 8
    Segundo Tomes (1999)TOMES, N. Spreading germ theory: sanitary science and home economics, 1880-1930. In: LEAVITT, J.W. (Ed.). Women and health in America: historical readings. London: University of Wisconsin Press, 1999., tais estratégias ajudaram a perpetuar no imaginário da sociedade a associação entre sujeira e doença, mesmo após ser superada pelos novos conhecimentos científicos.
  • 9
    Os anúncios testemunhais estavam em grande voga no período.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2013
  • Aceito
    15 Jul 2014
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