Open-access Vidas (en)lutáveis e precárias: relato de experiências de cuidado na Atenção Psicossocial

Grieving and precarious lives: reports on care experiences in Psychosocial Care

Resumo

O presente relato de experiência explora temas da Saúde Coletiva, com foco nas condições precárias de existência que afetam os usuários dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial. O autor utiliza suas memórias e anotações para narrar dois casos acompanhados enquanto técnico de saúde mental em um Centro de Atenção Psicossocial, localizado na cidade do Rio de Janeiro. A primeira cena relatada ilustra as questões de reconhecimento discutidas por Judith Butler, destacando como normas sociais e políticas ditam quem é reconhecido como vivente, portanto, passível de luto. O segundo relato serve de ponto de partida para discutir as camadas de precariedade e a complexidade do cuidado, dialogando com autores que discutem sobre o tema. O trabalho conclui refletindo sobre o papel ambíguo do Estado, que simultaneamente cria e tenta mitigar as condições precárias de existência, propondo que o cuidado em territórios vulneráveis deve ser entendido como um ato político necessário para garantir a sustentação das vidas.

Palavras-chave:
Rede de Atenção Psicossocial; Violência; Cuidado; Sofrimento psíquico

Abstract

This experience report explores collective health issues with a focus on the precarious conditions of existence that affect users of the Psychosocial Care Network services. The author uses his memories and notes to narrate two cases he followed as a mental health technician in a Psychosocial Care Center located in the city of Rio de Janeiro. The first scene illustrates the issues of recognition discussed by Judith Butler, highlighting how social and political norms dictate who is recognized as living and therefore subject to mourning. The second story serves as a starting point for discussing the layers of precariousness and the complexity of care, dialoguing with authors who discuss the subject. The paper concludes by reflecting on the ambiguous role of the state, which simultaneously creates and tries to mitigate precarious conditions of existence, proposing that care in vulnerable territories should be understood as a necessary political act to ensure that lives are sustained.

Keywords:
Psychosocial Care Network; Violence; Care; Psychological suffering

Introdução

O relato de experiências que segue pretende explorar temas e conceitos relevantes ao campo da Saúde Coletiva, sem a intenção de esgotar, mas com o objetivo de contribuir para ampliar as discussões sobre o cotidiano, ordinariamente caótico, que frequentemente atravessa os trabalhadores e usuários dos serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial. Nesse contexto, a análise volta-se especificamente para a relação entre saúde mental e violência urbana em um território periférico do Rio de Janeiro, considerando raça, gênero e condições socioeconômicas como marcadores da diferença que se interseccionam e são fundamentais para a discussão.

Inspirado pelo trabalho publicado por Fazzioni (2023), principalmente no que diz respeito à estrutura da narrativa, e orientado pelas reflexões levantadas por Veena Das (2020), Judith Butler (2015) e outros autores, apresento, como categoria de análise central, as situações de violências que foram acompanhadas por mim, quando no exercício da função de técnico de saúde mental/psicólogo1 no cuidado de pessoas que experienciaram camadas de “condições precárias” (Butler, 2015) de existência.

Longe de ser uma etnografia - metodologia de pesquisa de enorme valor ao campo da Saúde Coletiva - mas orientado por um fazer etnográfico, recorri, ao longo do desenvolvimento do trabalho, às minhas anotações pessoais, guardadas em meus caderninhos de anotações, que, por hábito, sempre carrego no bolso e que me acompanharam nos diferentes serviços de saúde pelos quais trabalhei. Somente mais tarde, no contato com o fazer antropológico, descobri que minhas anotações se assemelham ao que os etnógrafos chamam de diário de campo.

Como palavra puxa palavra, além dos caderninhos, também recorri às minhas memórias para resgatar os acontecimentos que ganharam as versões ora transcritas. O processo de rememoração seguiu a compreensão de que a experiência vivida no campo não se esgota no momento da ação, mas permanece como um arquivo subjetivo, podendo ser retomada e reelaborada no ato da escrita (Machado, 2023).

Importa dizer que apresento as narrativas com a parcialidade de quem pretende se fazer entender, mas com a ética de quem sabe que os cotidianos narrados, as histórias que ganham a materialidade da escrita têm, como personagens, sujeitos que em momentos distintos necessitaram de cuidados por apresentarem alguma dimensão de sofrimento psíquico.

Os personagens aqui apresentados, que terão seus nomes alterados, em algum momento foram acompanhados pela equipe de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que o serviço em questão atende a uma área que compreende alguns dos bairros com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade, o que nos coloca para refletir sobre o entrelaçamento existente entre as condições de saúde, mais especificamente da saúde mental, e as condições de existência das populações que habitam esses territórios.

Butler (2015) refere-se à necessidade de pensar uma nova “ontologia corporal” se pretendemos sustentar as reivindicações que apontam para as condições precárias. A autora afirma que “ser um corpo é estar exposto a uma modelagem e a uma forma social” (2015 p. 15-16). A ideia de pensar a construção do humano marcado por condições que parecem externas, mas que são constituintes de sua existência, conduz o nosso olhar para além do objeto-corpo que se apresenta, porém, ao tratar de uma outra ontologia corporal, Butler (2015) nos induz a pensar que uma divisão dual, do tipo dentro e fora, não é suficiente para pensar sobre as diversas formas de existência, ao contrário, trata-se de um dentro-fora sem o intervalo que marca uma separação. Mais adiante, a partir da apresentação de cenas cotidianas, pretendo retomar a discussão sobre a ontologia corporal para pensar a precariedade.

Metodologia

No campo da Saúde Coletiva, o relato de experiência é especialmente relevante, pois permite a compreensão das dinâmicas institucionais, das práticas de cuidado e das relações entre profissionais e usuários. Conforme apontado por Merhy et al. (2019), a produção de conhecimento neste campo exige metodologias que deem conta da complexidade dos processos de trabalho em saúde. Segundo Souza et al. (2020), ao adotar o relato de experiência como método, o pesquisador parte de sua inserção em um contexto específico, utilizando memórias, registros e narrativas para reconstruir acontecimentos e analisá-los à luz de referenciais teóricos.

Dessa forma, o relato se constrói no encontro do registro escrito e da reconstrução narrativa da experiência, articulando-se aos referenciais teóricos que permitem ampliar a compreensão das situações descritas.

O trabalho se apresenta dividido em duas narrativas de histórias que chamarei de “Cena”. Há dois significados expostos no DicionárioMichaelis da Língua Portuguesa (2015) que orientam para o que estou definindo como Cena: 1 - Qualquer ação que se passa no âmbito de visão do observador; 2 - Ato ou fato do cotidiano que impressiona, chama a atenção ou desperta o interesse. Mais do que ilustrações, pretendo que as cenas apresentadas sirvam de materialidade para os conceitos que exponho, com base nos autores que fundamentam as discussões suscitadas.

Cena 1: sobre o reconhecimento

Leonardo, 19 anos, um adulto que mais parecia um adolescente, corpo magro, negro, tinha sempre um sorriso no rosto. Ele vendia balas no sinal e conseguia uns trocados para viver. Vinculou-se ao serviço de tratamento, não porque concordava com o diagnóstico de esquizofrenia, mas porque foi convidado a participar semanalmente de um grupo com outros usuários do serviço, para tratar sobre questões relacionadas a trabalho e geração de renda. Ele queria a primeira experiência com a carteira de trabalho assinada. “Não é assim que é ser alguém? Tem que trabalhar” [Leonardo, segundo o autor].

Certo dia, combinamos que ele iria ao CAPS para fazermos um currículo. Como de costume, ele saiu do morro2 bem cedo para vender suas balas no sinal de trânsito antes de ir ao CAPS. Foi quando se deparou com a patrulha da polícia ao pé do morro e correu, ele não esperou para ver o que aconteceria, ele correu. A polícia atirou, atingiu uma das pernas de Leonardo. Soubemos que ele estava internado e que passava bem.

Depois de todo o processo de internação e recuperação, ele retomou suas idas ao CAPS e nos contou sobre o ocorrido. Disse que correu, pois sabia que, como de rotina, seria abordado pela polícia e que levariam o dinheiro que ele utilizaria para comprar mais balas para vender no sinal. Contou que levou um tiro e que não morreu porque foi reconhecido por um dos policiais - “Ele me conhece da praça onde embalo a mercadoria para vender” [Leonardo, segundo o autor]. Além da polícia, outros jovens do Lava a Jato3 reconheceram Leonardo, eles chamaram seus familiares e cuidaram para que o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) pudesse adentrar na “área de risco”.

Reflexões a partir da cena: sobre o reconhecimento

Sobre a questão do reconhecimento, Butler (2015) menciona que é sobre determinadas condições que uma vida pode ser reconhecida como vida. Ela chama a atenção para o fato de que não recorremos somente às formas de reconhecimento distintas, mas que recorremos às condições mais gerais, as condições que antecedem a existência, elas são produzidas ao longo da história e estão articuladas com instâncias de poder; portanto, podemos entender que são instâncias políticas de reconhecimento e que estas permitem a leitura de semelhanças e diferenças.

Arrisco a dizer que não se trata de uma experiência sensorial do reconhecimento, em que as semelhanças e diferenças físicas são percebidas; isso existe, mas quando a dinâmica do reconhecimento é forjada politicamente, importam as normas que estabelecem a condição de ser reconhecido e, como dito por Butler (2015), estas precedem o ato de reconhecer.

Como exemplo, sabemos que muitos dos agentes de segurança do Estado, estes que produzem cenas de violência como a descrita, com frequência têm, além da cor, histórias de vida parecidas com as histórias das pessoas que sofrem as violências cometidas por eles. Portanto, poderiam ser reconhecidos como iguais. Entendo que a pergunta que advém da constatação não pode ser respondida sem o aprofundamento no tema, de todo modo, fica a reflexão: o poder dado pelo Estado, incorporado pelos agentes de segurança, produz a diferença que permite o não reconhecimento de algumas vidas?

Em sua importante obra, Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser, Sueli Carneiro (2023), dialogando com a obra de Foucault - História da sexualidade I (2021 [1976]) - menciona que “ao assim definir sua abordagem de poder, Foucault procura definir não o que o poder é, mas o modo pelo qual se realiza e se manifesta” (Carneiro, 2023, p. 20). Num esforço para explicitar as variáveis dos modos de exercício do poder, Foucault (2021, p. 102) menciona que “o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis”. Leonardo, num primeiro momento, foi reconhecido em sua “perigosa negritude favelada". Diante de tal reconhecimento, os agentes do Estado reagiram, fazendo valer o poder do “Estado mágico” (Das, 2020), um Estado que opera nas margens da legalidade.

Sobre a assinatura do Estado, Das (2020) afirma que ele se apresenta como uma “forma de regulação que oscila entre um modo racional e um modo mágico de ser” (p. 219). A autora discorre sobre um Estado racional e burocrático, este institui formas de governança por meio de tecnologias de escrita - como leis e portarias -, mas, ao fazê-lo, institui também as formas de falsificação. As formas de falsificação são muitas vezes performadas por agentes do Estado, é o Estado mágico, fundido ao Estado racional, que encontramos nas “margens e recessos da vida cotidiana” (p. 221). Leonardo correu não porque tinha algum flagrante, mas porque seu corpo era o flagrante, ele correu porque um Estado ilegítimo se faz presente. Trata-se de um Estado deslocado de sua originalidade, que ganha outra cadeia de significados e é reconhecido como Lei, justamente onde encontra corpos que não são reconhecidos em suas existências.

Sabemos que casos como o de Leonardo não são exceção. Das (2020) nos lembra as palavras de Benjamin quando, em seu escrito “Critique of violence”, publicado em 1921, afirmou que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o Estado de Emergência em que vivemos não é exceção, mas a regra.” (Das, 2020, p. 24). A autora chama a atenção para a natureza intermitente do controle governamental, somada à ilegibilidade da Lei e às negociações entre o legal e ilegal, como marcas que fazem parte do cotidiano desses territórios. Butler (2015), quando nos adverte sobre a necessidade de pensarmos uma outra “ontologia corporal”, menciona as normas e forças já estabelecidas que precedem e moldam a nossa existência. Aqui, o diálogo com as observações de Das (2020) me parece inevitável, uma vez que estamos falando de vidas que são forjadas em cotidianos permeados pelo Estado que se faz presente de forma mágica e burocrática, na oscilação da legalidade e da performance de ilegalidades.

Cena 2: sobre precariedade e cuidado

Dona Rosa, 69 anos. Mulher, nordestina e negra, mais do que sua aparente idade, é do tipo de pessoa que transmite sabedoria com o olhar, fala serena e firme. Chegou ao CAPS trazida por pessoas que perceberam sua dor e ofereceram cuidados. Ela estava à beira da Av. Brasil,4 ainda indecisa, mas aparentava estar mais inclinada para a morte, tentava suicídio quando foi socorrida. Quando eu a indaguei, ela me explicou:

Meu filho, vim da Bahia para cá há muitos anos, vim tentar a vida, tive dois filhos - um morreu de bala perdida, o outro foi de bala achada, esse se perdeu no crime. Minha casa [que depois soubemos que era de um cômodo] fica aos fundos de um lugar onde os bandidos torturam e matam as pessoas. Não consigo dormir, eu escuto o barulho do sofrimento. Não durmo, não tenho trabalho, não tenho família, não tenho como mudar de endereço, não quero viver assim. [Dona Rosa, segundo o autor].

Reflexões a partir da cena: sobre precariedade e cuidado

Ao abordar a questão da precariedade, Butler (2015) provoca a reflexão sobre as vidas que são passíveis de luto. Ao fazê-lo, a autora indaga sobre a própria vida, sobre as vidas que são reconhecidas como tais. A afirmação de que uma vida é precária exige não só o reconhecimento de que uma vida é uma vida, mas também de que a precariedade é condição da existência. Segundo a autora, a possibilidade da morte é imanente à vida, é justamente porque um ser vivo pode morrer que se deve cuidar para que ele possa viver. O que nos permite concluir que a precariedade é condição de todo vivente e que todos precisam, em maior ou menor grau, de uma rede social de suporte. A autora ainda afirma que “a possibilidade de ser enlutada é um pressuposto para toda vida que importa.” (Butler, 2015, p. 32).

As vidas perdidas dos dois filhos de Dona Rosa importaram a quem? As vidas de seus filhos, assim como a vida da Dona Rosa, são passíveis de luto? A precariedade que os acompanha desde o início de suas vidas encontra uma rede de suporte social? Quais são as necessidades de suporte e como produzir um cuidado possível diante da realidade vivida por Dona Rosa? Nas palavras de Butler, que dedica um capítulo do livro discutindo sobre o tema: “É possível viver uma vida boa em uma vida ruim?” (Butler, 2023, p. 213).

As perguntas que formulo nos confrontam com um desafio que considero necessário enfrentar para que possamos explorar possíveis respostas - sempre com a devida precaução para não reduzi-las a meros protocolos. Afinal, de que é feito um cuidado?

É necessário reconhecer que o cuidado não se dá no vazio. Em países como o Brasil, ele é frequentemente atravessado por estruturas sociais desiguais que moldam as possibilidades de existência. Ortega e Wenceslau (2019) mencionam que, orientadas por uma leitura marxista, as políticas públicas de saúde no Brasil historicamente trataram as desigualdades socioeconômicas como centrais em sua formulação. Contudo, outros marcadores sociais - como raça, gênero, sexualidade, etnia, localização geográfica e religião -, embora sejam importantes marcadores de diferenças, são frequentemente desconsiderados. Tais omissões não se restringem a uma limitação técnica, mas carregam implicações políticas, pois indicam quais vidas tendem a ser acolhidas e quais permanecem à margem das políticas e práticas de cuidado.

É nesse ponto que o conceito de necropolítica, desenvolvido por Achille Mbembe (2003), nos oferece um deslocamento fundamental. Ao refletir criticamente sobre os limites da biopolítica foucaultiana, Mbembe propõe que o poder contemporâneo opera não apenas regulando a vida, mas produzindo a morte como instrumento de governo. A necropolítica evidencia que certas populações - racializadas, empobrecidas, deixadas à margem - são sistematicamente expostas a condições de morte, muitas vezes lenta e invisível, como se fossem existências descartáveis.

Essa lógica da descartabilidade também se infiltra no campo da saúde mental, especialmente nas práticas clínicas que desconsideram o peso das desigualdades históricas na produção do sofrimento. David e Vicentin (2023), citando Rachel Gouveia Passos (2019) e Deivison Faustino (2020), ao discutirem a perspectiva “antimanicolonial”, observam que tanto Frantz Fanon quanto Franco Basaglia identificaram, na clínica dita tradicional, “uma expressão colonial em suas manifestações de violência e exclusão” (David; Vicentin, 2023 apud Faustino, 2020, p. 3). Nesse sentido, os autores afirmam: “Por isso, ambos, antimanicoloniais, propuseram uma clínica que não se abstenha da política, em momento algum, e que compreenda o sofrimento psíquico como efeito da colonialidade” (David; Vicentin, 2023).

Assim, pensar o cuidado em contextos marcados por precariedade exige mais do que protocolos técnicos: exige escuta, posicionamento político e disposição para enfrentar estruturas excludentes. Isso implica compreender que o cuidado não é apenas o que se faz, mas como se faz e com quem se faz. É nesse entrelaçamento entre o sofrimento e a história, entre o corpo e o território, que o cuidado pode se tornar gesto ético e político - capaz de resistir às lógicas de morte e afirmar a dignidade das vidas que insistem em existir.

Fazzioni (2023) nos apresenta a ideia de arranjos, como categoria analítica para pensar o cuidado, ela situa que o cuidado envolve sempre diferentes níveis de arranjos, que podem ser de longa duração - em geral definidos por relações de parentesco e que envolvem mudança em dinâmicas de convívio; de média duração - que envolvem a ajuda pontual de um vizinho, parente, do trabalho ou de um serviço de saúde; e de curta duração - como uma carona, um empréstimo de dinheiro, um prato de comida. A autora nos lembra que há momentos em que os arranjos, sejam eles de longa, média ou de curta duração, se fragilizam, justamente pela ausência de relações que os sustentem.

Dona Rosa carecia de arranjos de cuidados, uma vida precária, sem suporte, que não encontrava sustentação para ser vivida. Daí que o cuidado para ela, pensando os níveis de sua existência precária, foi conduzido pelas equipes envolvidas,5 tendo como principal objetivo a criação de uma rede de suporte que pudesse propiciar a garantia de direitos e serviços básicos, mas, sobretudo, que a incluísse em uma rede de afetos.

É contraditório, mas, como vimos no caso do Leonardo, o Estado que produz violência é o mesmo que dá garantias e se inclina ao cuidado. Leonardo sofreu a violência do Estado, assim como Dona Rosa e seus filhos. Podemos entender que as violências aqui narradas são a maximização política da condição precária, arbitrariamente imposta pelo Estado a estas pessoas. Ocorre que são igualmente os agentes do mesmo Estado, agora profissionais da Saúde e da Assistência Social que vão agir na tentativa de produzir algum cuidado. Cabe a provocação: o que o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único da Assistência Social (SUAS), enquanto Estado, vão fazer com a violência de Estado? Neste ponto, Das (2020) e Butler (2015) convergem na ideia de que populações expostas a condições precárias de existência buscam amparo no Estado em busca de proteção, mesmo que paradoxalmente o Estado seja a própria fonte de perigos dos quais precisam ser resguardadas.

Concluindo

Bellacasa (2023) citando Joan Tronto e Bernice Fischer (1993), menciona que o cuidado “inclui tudo o que fazemos para manter, reparar e continuar o nosso mundo”, a autora segue dizendo que se trata de “tudo que podemos entrelaçar em uma teia sustentadora da vida” (Bellacasa, 2023, p. 111). Penso que é possível afirmar que as equipes que cuidaram dos casos aqui apresentados, seguiram nesta direção, mas o fizeram primeiro reconhecendo a existência de vidas, reconhecendo a existência de condições precárias de existências, e trabalharam para dar suporte aos níveis de precariedade, e o fizeram sustentadas num propósito coletivo.

Butler (2015) nos convida a refletir sobre nossa natureza social, destacando que somos seres intrinsecamente dependentes do que existe fora de nós. Essa interdependência nos conduz à percepção de nossa precariedade. A manutenção da vida, portanto, demanda a constante criação e defesa das condições que a tornam possível, com o compromisso de renová-las e fortalecê-las de forma contínua.

Em Corpos em Alianças e a Política das Ruas, Butler (2023) menciona que “nenhum de nós age sem as condições para agir, mesmo que algumas vezes tenhamos que agir para instalar e preservar essas condições.” (Butler, 2023, p. 22). Tal reflexão nos leva a considerar que o cuidado também é ato político, que criar condições para agir pode ser o guia das ações de cuidado em territórios violentos e precarizados. Em “Quadro de Guerras”, Butler (2015) menciona que deveria haver uma maneira mais inclusiva e igualitária de reconhecer a precariedade, afirma que a precariedade, de forma positiva, uma vez reconhecida, impulsiona as ações do Estado para a criação e manutenção de políticas que pretendem minimizar tais condições.

As cenas relatadas aqui e as reflexões trazidas pelos autores mencionados não têm a pretensão de encerrar o debate, nem buscam orientar condutas de cuidado. No entanto, são apresentadas como estímulos para provocar discussões que envolvam pesquisadores e operadores do cuidado, sem que deixemos de fora os participantes das cenas cotidianas, uma vez que estes compartilham experiências de precariedade e arranjos singulares de cuidado em territórios onde sujeitos-corpos precisam frequentemente reivindicar a condição de serem enlutáveis.

Agradecimentos

Registro meu agradecimento aos usuários e trabalhadores do CAPS, cujos encontros e transferências possibilitaram as reflexões aqui desenvolvidas.

Referências

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  • Todos os dados da pesquisa estão disponíveis neste texto
  • 1
    À semelhança dos operatori destacados por Basaglia no contexto da Psiquiatria Democrática Italiana, é comum que trabalhadores do campo da Atenção Psicossocial e Saúde Mental no Brasil se apresentem como técnicos de saúde mental, independente da formação e da profissão que exerçam. Ver em: “A instituição negada” (Basaglia, 1975) e “Escritos Selecionados” (Basaglia, 2005).
  • 2
    De maneira geral, os moradores das favelas no Rio de Janeiro costumam se referir às áreas periféricas localizadas em regiões mais inclinadas dos bairros como 'morro'.
  • 3
    Atividade de trabalho informal, muitas vezes desempenhada por jovens residentes de áreas periféricas e frequentemente envolvendo a realização de ligações clandestinas de água e a prestação de serviços de lavagem de carros.
  • 4
    Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2025), a Av. Brasil é a maior via expressa da cidade e do país, com 58 quilômetros de extensão, ela passa por 27 bairros da capital fluminense.
  • 5
    O caso foi discutido em um espaço de trabalho compartilhado entre equipes de diferentes serviços da Área Programática de Saúde do município do Rio de Janeiro, espaço este chamado de Supervisão de Território. Se envolveram no caso, equipes da Assistência Social, da Atenção Básica de Saúde e da Saúde Mental e Atenção Psicossocial.
  • Editora responsável:
    Jane Russo

Disponibilidade de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2024
  • Revisado
    04 Jun 2025
  • Aceito
    04 Jun 2025
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