Resumo
Este trabalho buscou analisar as relações de cuidado no campo da Atenção Psicossocial, atual política de assistência em saúde mental pelo SUS, na dimensão de sua familiarização e feminização a partir do processo de Reforma Psiquiátrica. Considerando que o Estado atua na cogestão do cuidado em saúde mental com o núcleo familiar, partimos da hipótese de que a sustentação desta estratégia de cuidado em âmbito comunitário reforça a histórica feminilização do cuidado, fortemente racializada e atravessada por desigualdades de classe e territórios. O objetivo da pesquisa foi analisar a relação entre gênero e cuidado a partir do trabalho etnográfico em um CAPS, observando o cotidiano de mulheres cuidadoras familiares nesse serviço. Entre os objetivos específicos, buscou-se investigar a gestão do cuidado em saúde mental, apontando para as discussões entre gênero, cuidado e trabalho, e observando aproximações e distanciamentos entre categorias êmicas e analíticas. A familiarização do cuidado na Atenção Psicossocial aponta para uma ocupação bastante desigual dos encargos do cuidado, que reproduz as bases de um modelo societário em que essa tarefa é delegada às mulheres que se encontram em condições vulnerabilizadas, contribuindo para seu duplo apagamento, tanto como cuidadoras sem o suporte adequado, como sujeitos que demandam cuidado.
Palavras-chave:
Mulher; Cuidado; Gênero; Reforma Psiquiátrica; CAPS
Abstract
This work sought to analyze care relationships in the field of Psychosocial Attention, the current mental health assistance policy by the SUS, in the dimension of its familiarization and feminization based on the psychiatric Reform process. Considering that the State acts in the co-management of mental health care with the family nucleus, we hypothesized that the reformulation of mental health policy is grounded in and reinforces the historical feminization of caregiving, strongly influenced by racialization and intersected by class and territorial inequalities. The objective of the research was to analyze the relationship between gender and care through an ethnographic study in a CAPS, observing the daily lives of female family caregivers in this service. Among the specific objectives, we sought to investigate the management of mental health care, pointing to discussions between gender, care and work, and observing similarities and distances between emic and analytical categories. The familiarization of care in Psychosocial Attention points to a very unequal occupation of care responsibilities, which reproduces the bases of a societal model in which this task is delegated to women who find themselves in vulnerable conditions, contributing to their double erasure, both as caregivers without adequate support, such as subjects who require care.
Keywords:
Women; Care; Gender; Psychiatric Reform; CAPS
Este artigo tem como ponto de partida inquietações e reflexões das autoras sobre as formas de gestão do cuidado acionadas pelo mandato da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que se constitui como política de assistência em saúde mental no país (Brasil, 2011). Buscamos observar especificamente as relações de cuidado que envolvem mulheres que tiveram suas vidas atravessadas pela experiência de acompanhar sujeitos em sofrimento psicossocial2 no âmbito de suas relações privadas. O dia a dia das cuidadoras familiares (ou da rede socioafetiva) não remuneradas de usuários de um CAPS3 é tomado como vetor para pensar os atravessamentos entre gênero, cuidado e políticas públicas nesse campo. Partindo da perspectiva de que toda reprodução é política e toda política é reprodutiva (Briggs, 2017), propomos analisar o cuidado enquanto campo atravessado por relações de poder que reproduzem dinâmicas de opressão e exploração, modulando e sendo modulado pelas políticas de Estado. Apostamos que o olhar para aspectos ordinários do acompanhamento dos usuários da RAPS pode oferecer pistas sobre o papel da gestão estatal do cuidado em saúde mental, especialmente no que diz respeito à divisão sexual e social do trabalho e mecanismos de regulação de gênero, considerando a centralidade do trabalho de cuidado exercido por mulheres na sustentação deste modelo.
A pesquisa situa-se, portanto, no campo da Atenção Psicossocial, composto por múltiplos saberes e instituições a partir da reorganização da lógica de atenção em saúde mental, pautada pelo movimento da Luta Antimanicomial e instituída como política pública no início dos anos 2000, processo conhecido no Brasil como Reforma Psiquiátrica (Amarante, 1998). A Reforma (RPB) mobiliza não apenas a implementação de uma rede de serviços de saúde que substituam o modelo de assistência centrada no hospital psiquiátrico, mas convoca a uma mudança paradigmática na relação com o adoecimento psíquico e suas formas de apreensão pela cultura e pelo tecido social, provocando reflexões e deslocamentos em relação às noções de tratamento e cuidado de pessoas que convivem com essas questões.
Nessa experiência, a produção de novas formas de acolhimento e gestão do cuidado se deu a partir da compreensão do território e do cotidiano, tanto como elementos que atuam na produção de circuitos de vulnerabilização e exposição a fatores risco para o sofrimento, mas também como componentes fundamentais na organização de redes de suporte e proteção que sustentam a vida e a permanência na cidade (Silva, 2009). Ao se deslocar de uma abordagem essencialmente medicalizada para a noção de cuidado contínuo nos espaços de sociabilidade, a família e a rede socioafetiva vão sendo convocados e responsabilizados pelo seu exercício em âmbito comunitário, compondo os mais diversos “arranjos de cuidado” (Fazzioni, 2018), que implicam a participação massiva de figuras femininas. Essa categoria é acionada para pensar na dimensão da organização do cuidado para além das redes reguladas pelo Estado, mercado ou relações de parentesco. Esses arranjos podem ficar mais evidentes quando o Estado se retira em alguma medida da partilha desses encargos, ou quando as ações prescritas em contornos institucionais são insuficientes.
Uma das hipóteses levantadas é de que a feminização nesse contexto se apresenta como reflexo da estrutura social, que tende a restringir as relações de cuidado ao âmbito privado, sendo este um trabalho invisibilizado e majoritariamente feminino (Tronto, 2007; Hirata; Kergoat, 2007; Biroli, 2018). O cotidiano da Reforma aponta para mulheres como principais cuidadoras dos usuários, as mães em maioria, seguidas das avós, tias, irmãs, entre outros arranjos. Esse cenário varia de acordo com o grau de autonomia dos usuários, a composição de suas redes de apoio e outros marcadores sociais. Nesse sentido, as análises aqui partem de uma perspectiva interseccional, tendo em vista que a população assistida nos serviços públicos de atenção em saúde mental convive com processos históricos de opressão, na medida em que suas condições de existência vão sendo precarizadas pelo racismo, sexismo, violência e pobreza, que implicam formas diferenciadas de acesso a recursos para cuidar de si e dos seus (hooks, 2019; Collins; Bilge, 2021).
A familiarização e feminização do cuidado como desdobramentos da RPB, na medida em que evidenciam as desigualdades constitutivas da atribuição social dos encargos do cuidado, não representam uma tendência particular deste campo, mas que encarna a divisão generificada do trabalho de modo mais amplo. Não se trata aqui de uma crítica ao novo modelo de assistência à saúde mental no país, considerando o contexto neoliberal em que se situa o processo, no qual a própria implementação da rede substitutiva se dá em um cenário de precarização e sucateamento dos serviços públicos de saúde. No entanto, o que se pretende abordar com esta pesquisa é o modo como essas diferenças estruturais e gendradas nos processos de responsabilização de familiares e cuidadores são invisibilizadas no cotidiano da Reforma, ainda que representem uma parcela central para sua sustentação. A permanência desses usuários no território implica atos de cuidado contínuos e constantes, que demandam uma gestão complexa de recursos - que envolvem tempo, disponibilidade afetiva, e que parecem ter ficado à parte das análises e olhares para a cogestão da saúde mental a partir dos serviços substitutivos. Desse modo, é preciso considerar o contexto de implementação da Reforma à luz de processos históricos que resultam em um grau mais acentuado de precarização das relações de cuidado, já subalternizadas e pouco valorizadas, sendo assumidas geralmente pelo núcleo familiar e comunitário.
Nessa perspectiva, o presente trabalho buscou privilegiar em suas análises o diálogo entre diferentes noções de cuidado como categoria analítica e as categorias êmicas do campo da Atenção Psicossocial, que se tornaram mais evidentes, sobretudo, no trabalho de pesquisa empírica. Para isso, compartilhamos parte do percurso etnográfico realizado na dissertação de mestrado da primeira autora, que buscou observar as relações de cuidado no cotidiano de um CAPS, dialogando com noções presentes na literatura como categorias analíticas para pensá-las em sua dimensão política, social e normativa, na medida em que participa não só de dinâmicas de suporte social e manutenção da vida, mas também de exploração e controle, que assumem contornos gendrados e racializados.
Metodologia
Inspiradas pelo percurso etnográfico de Das (2020), consideramos que a proposta de investigar as reverberações da mudança na lógica de assistência aos sujeitos em sofrimento psíquico sugere uma “descida ao ordinário”, atentando para como a vida se organiza a partir dessas transformações das relações de cuidado, no cotidiano do local de tratamento que substitui o espaço asilar. Ao realizar uma etnografia nesse contexto, apostamos na observação das formas de gestão do cuidado, que são atravessadas por múltiplos discursos e práticas, por questões sociais e culturais, que convocam os atores a participar em diferentes níveis desse cuidado compartilhado em comunidade. Propusemos uma análise partindo dos arranjos de cuidado que vão sendo construídos no cotidiano dos serviços, na relação entre os profissionais, usuários e mulheres que atuam como agentes nesses arranjos (Fazzioni, 2018).
Desse modo, a pesquisa empírica foi realizada em um CAPS III4 da zona norte do município do Rio de Janeiro. A aposta no CAPS como campo de observação se deu pela sua função como ordenador do cuidado na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no sentido de oportunizar o contato com múltiplos pontos de atenção, o que consideramos como critério relevante para favorecer a observação dos arranjos de cuidado. A metodologia utilizada foi a observação participante, entendendo que a inserção no serviço e interação com o grupo pesquisado seria importante para apreender os sentidos e discursos que estão implicados no cotidiano das relações de cuidado (Queiroz et al., 2007).
O campo de observação privilegiou os espaços e dispositivos coletivos do CAPS, especialmente a convivência, a assembleia e os grupos de acolhimento a cuidadores e familiares disponíveis naquele serviço. Consideramos como interlocutores da pesquisa parte dos trabalhadores do serviço e das cuidadoras que compõem a rede socioafetiva dos usuários, atores com os quais a pesquisadora pôde interagir de forma direta e indireta, pela circulação nos espaços públicos do serviço no período do campo. Entendendo que os arranjos de cuidado incluem, além dos familiares e representantes legais, amigos, parcerias amorosas, pessoas envolvidas na gestão do cuidado no território, consideramos que estão inclusas na categoria de “cuidadoras da rede socioafetiva” todas as mulheres que circulavam pelo CAPS como acompanhantes de algum usuário do serviço, e que tivessem entre 18 e 60 anos.
A pesquisa empírica teve duração de quatro meses, com frequência de dois dias semanais em campo. Teve início após aprovação pelos Comitês de Ética em Pesquisa do IMS/UERJ e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. As vivências em campo foram registradas a posteriori em um diário. Os dados coletados foram analisados e relatados na dissertação garantindo o anonimato dos participantes e da instituição.5
A familiarização e feminização do cuidado em saúde mental a partir da RPB
É importante ressaltar que, para esta elaboração, não se pretende partir da categoria “mulheres” como um grupo homogêneo, mas de considerar que a universalização estereotipada de um feminino branco, cisgênero, heterossexual, ocidental, especialmente nas produções acadêmicas, traz desvantagens importantes para muitas mulheres nas práticas sociais (Mohanty, 2008). Portanto, a proposta foi acompanhar como, em suas marcas e posições sociais diferenciadas, essas cuidadoras vão sustentando os arranjos de cuidado em saúde mental no cotidiano dos serviços e das relações que viabilizam tais arranjos no território. Essa tarefa implica considerar não apenas as alianças entre mulheres, incluindo a ampliação de suas redes de apoio e cuidado no território, mas que essas relações também compostas por tensões e desigualdades constitutivas desses arranjos, com os quais sustentam a aposta política do cuidado dos sujeitos em sofrimento psíquico na comunidade.
Diversos autores têm discutido como, na desinstitucionalização do cuidado promovido a partir da RPB, há um apelo à responsabilização da família de forma mais direta no cuidado dos usuários da rede substitutiva. Silva (2009) sinaliza que a tentativa de manter esses sujeitos em comunidade, recuperando seu direito ao exercício da cidadania, envolve a gestão do sofrimento com os recursos disponíveis no território, a partir de ações de mediação e negociação nas relações sociais. Ou seja, os serviços de atenção, enquanto referência institucional, têm como mandato a articulação de uma rede que se estruture pela corresponsabilidade com os encargos do cuidado. Ressalta que a construção dessa rede a partir da adesão das famílias é parte importante na operacionalização do cuidado em saúde mental, mas que acionam mecanismos de regulação social da população, enredando-os nos processos de gestão do sofrimento psicossocial em âmbito comunitário.
Passos (2015, p. 188) atenta para o fato de que a figura do cuidador na proposta da RPB é convocada pela ideia de um “saber/não saber”, buscando superar a centralidade da atenção em conhecimentos especializados. Fazendo um paralelo aqui entre os cuidadores profissionais e aqueles que se ocupam do cuidado em suas relações de afeto e parentesco, chama a atenção que estes encargos sejam delegados a mulheres, em sua maioria negras, pobres e moradoras de regiões periféricas, que devem utilizar seus supostos atributos maternais para executá-los, perpetuando uma ideia de cuidado atrelada ao trabalho reprodutivo,6 evidenciando a precarização e subalternização dessa atividade. A pesquisadora endossa a ideia de que o Estado brasileiro, ao operar com um modelo de proteção social centrado na maternidade, em que as políticas públicas voltadas para esse fim são pautadas na transferência do cuidado para mulheres, estas se tornam, a um só tempo, objeto e agentes de controle social.
Apesar de o movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil contribuir para a instituição de aparatos administrativos relacionados ao cuidado de pessoas em sofrimento psicossocial, além do fortalecimento de uma base de compromissos sociais como um dever ser coletivo diante do imaginário social da loucura, as tecnologias de governo a partir das quais se materializam os ideais de cuidado e proteção dessa população são diferencialmente atravessadas por marcas de gênero. Em que medida essa nova organização da política de saúde mental se apropria desses atributos culturalmente forjados como femininos para fazer valer as diretrizes da Reforma, enquanto as condições para sua efetiva implementação vão sendo precarizadas e negligenciadas? Como isso aparece nas relações entre as profissionais, enquanto agentes do Estado, e as familiares e cuidadoras? Nesse sentido, procuramos apreender como os caminhos tomados pela política de saúde mental, dentro de uma perspectiva mais ampla de proteção social, reforçam práticas maternalistas no contexto do cuidado de base comunitária, produzindo não só alianças entre mulheres na composição dos arranjos de cuidado, mas também lugares de disputa, sobrecarga e adoecimento.
Nessa perspectiva, consideramos que a reprodução, incluindo o trabalho do cuidado, pode ser um vetor para a investigar as dinâmicas de coprodução entre gênero e Estado (Vianna; Lowenkron, 2017). Para essas autoras, compreender o Estado na dimensão de sua processualidade e pluralidade de instituições, agências e normas implica necessariamente considerá-lo como produção contínua de sentidos, possibilidades de agir e estar no mundo, bem como mecanismos de interdição e controle modulados por dinâmicas de gênero. Nessa dinâmica de coprodução é que se estabelecem fronteiras e institucionalidades, que definem e afetam não só a ordem da macropolítica, mas as rotinas e regulações da vida cotidiana.
Portanto, a forma como mulheres vão ocupando os lugares centrais desses arranjos, estruturados para “dar conta” da demanda de cuidado, reflete a maneiro como a política de saúde mental foi “arranjando” espaço no cotidiano, reforçando a invisibilidade da economia do cuidado e seus impactos na constituição subjetiva de mulheres enquanto cuidadoras e suscetíveis a processos de vulnerabilização. Diante disso, é importante ressaltar que o cuidado, como parte da tessitura das relações sociais que envolvem dinâmicas de distribuição diferenciada de poder, não deve ser observado apenas em sua dimensão moralmente positiva e culturalmente valorizada, mas também em seu viés normativo, que prescreve, institui, avalia, atribui valor, provoca rupturas e constrangimentos (Drotbohm, 2022).
É nesse ponto que a articulação entre as noções de cuidado trazidas aqui enquanto categorias nativas do campo da Atenção Psicossocial, bem como as categorias analíticas presentes na literatura são profícuas para investigar suas múltiplas facetas, seja na familiarização como estratégia fundamental de sustentação da Reforma (Passos, 2011); como trabalho não remunerado exercido por mulheres em diversos contextos, levando a níveis importantes de sobrecarga e adoecimento (ou não cuidado) (Hirata; Kergoat, 2007; Hirata, 2010); e em sua dimensão disciplinar, como forma de governo e tecnologia de gênero (Lauretis, 1984).
Cuidado, gênero e Estado: o ordinário na construção da Reforma
Para o presente artigo, trago alguns fragmentos e reflexões acerca do período da pesquisa de campo, em especial na circulação pelo espaço da “convivência”, termo comum no campo da Atenção Psicossocial, mas que pode ser desdobrado em múltiplos sentidos ao tomá-lo como lócus de uma pesquisa etnográfica. A aposta na convivência como espaço de observação se dá por ser lugar de passagem e trânsito de pessoas, discursos, saberes, normativas, prescrições, no qual se presentifica o exercício da gestão do cuidado a partir de dispositivos fundamentais para esse campo, como o acolhimento e a construção dos projetos terapêuticos (PTS) e do vínculo com a equipe. Ocupar esse espaço permitiu presenciar interações, mediações e pactuações importantes no cotidiano das relações de cuidado, que são objetos deste estudo.
A simples observação da circulação de pessoas por esse espaço já aponta um dado central para as questões que pretendemos desenvolver, no que diz respeito às dinâmicas que envolvem a responsabilização de diferentes atores nos arranjos de cuidado. Uma das coisas que ficaram mais evidentes ao longo do campo é o movimento de mulheres como acompanhantes dos usuários. Isso envolve estar presente nos atendimentos regulares ou no acolhimento inicial, mediar a administração de medicamentos ou a adesão aos PTSs, além das visitas aos usuários em acolhimento noturno.7 A aproximação da pesquisadora com essas familiares em campo se deu, a princípio, pela mediação da equipe no espaço da convivência, e a partir da inserção em atividades coletivas, como a assembleia e os grupos destinados aos familiares. É importante sinalizar que algumas interações foram mais regulares, especialmente com as participantes dos grupos, enquanto outras foram pontuais e se davam geralmente na convivência.
Ao longo da pesquisa, observamos que as acompanhantes dos usuários quase sempre eram da própria família, sendo a principal referência de cuidado geralmente atribuída às mães e parceiras amorosas. A maior parte dessas mulheres assumiam a chefia de famílias monoparentais, eram negras, entre 40 e 60 anos, se encontravam em contextos vulnerabilizados, cuja renda provinha basicamente de programas de transferência de renda, convivendo com a pobreza, a falta de suporte social, a dificuldade de conciliar o trabalho de cuidado com uma atividade remunerada (mesmo com vínculos informais), os atravessamentos do racismo e da vida precarizada em bairros periféricas da cidade.
Desse modo, o seguimento do cuidado era atravessado por essas condições, que envolviam também a disponibilidade de tempo das cuidadoras e a mobilização de recursos materiais para chegada e permanência no CAPS. Ainda que esses elementos fizessem parte da elaboração dos PTSs, de modo a viabilizar recursos que pudessem facilitar a adesão e o vínculo dos usuários e familiares, como a gratuidade no transporte público ou a realização de refeições no serviço, as negociações em torno da frequência no CAPS não deixavam de ser alvo de tensionamentos. Por vezes, a equipe questionava os acompanhantes quando compareciam ao serviço apenas para buscar medicação, sem que o usuário estivesse presente para ser avaliado, ou que só buscassem assistência em momentos de agudização do quadro. Ainda que de forma mais sutil, era possível observar o movimento da equipe tentando sensibilizar os familiares sobre outras dimensões do cuidado além do suporte medicamentoso, que muitas vezes esbarravam em limites das condições de vida.
Outro dado observado na convivência em relação ao movimento dos acompanhantes é que no início do quadro, quando ainda não se tem muita clareza do diagnóstico e nem do manejo que a situação demanda, a família parece estar mais presente em número, incluindo figuras masculinas. Talvez pelo entendimento da necessidade de contenção, não só do quadro psíquico do sujeito, mas também da angústia de quem acompanha, que essas figuras fossem ou se sentissem convocadas nesse momento a participar do cuidado. Mas ao observar a circulação dos usuários mais antigos e suas cuidadoras, com o quadro mais estabilizado, ainda que com sintomas graves, é possível perceber que as acompanhantes são em sua maioria mulheres, adultas ou idosas, e quase sempre solitárias. É mais provável que os homens compareçam como acompanhantes em casos mais graves e de difícil manejo, que supostamente demandariam o uso da força física. Mesmo que com menor incidência, o que pudemos observar é que dificilmente estarão sozinhos nesse lugar, possivelmente serão acompanhados por uma mulher que também está presente no cuidado desse usuário.
Fernandes (2018) fala da importância de se considerar as relações de cuidado e seus marcadores de gênero nas disputas cotidianas sobre o tempo, tanto para dar conta das demandas da vida, como para “correr atrás” de melhores possibilidades de fruição do tempo e condições de existência. A invisibilidade associada ao tempo do cuidado, principalmente quando comparada ao trabalho remunerado fora do domicílio, evidencia o não reconhecimento de atividades que envolvem o âmbito privado, ainda que representem uma dimensão central na manutenção da vida. As disputas pelo tempo envolvem moralidades e expectativas distintas entre homens e mulheres, e o tempo do cuidado, historicamente delegado às mulheres, contribui para a manutenção de desigualdades de gênero, na medida em que reduz as condições de mobilidade social e autonomia, expressando a colonização das possibilidades de existência.
No contexto da Atenção Psicossocial, é possível observar que na cogestão do cuidado com a família, o CAPS responde à demanda assistencial de cuidado técnico, que pode ser realizado em diferentes níveis de intensidade, dependendo do PTS do usuário. Em âmbito doméstico, o trabalho do cuidado, incluindo a limpeza e organização da casa, alimentação e higiene, é geralmente executado por mulheres. Dependendo das condições psíquicas do usuário, de seu grau de autonomia e da divisão do trabalho reprodutivo e da responsabilidade financeira entre os membros da família, a gestão do tempo para essas cuidadoras pode ser mais ou menos conflituosa em relação a outros aspectos da vida.
No caso da maioria das cuidadoras que conheci durante o trabalho de campo, que constituíam famílias monoparentais chefiadas por elas, o que se observa é uma extrema sobrecarga de mulheres em múltiplas jornadas de trabalho, ou em situações mais complexas, no impedimento de exercer qualquer atividade laboral, o que resulta em condições materiais muito precarizadas, além das implicações de todos esses elementos na saúde física e mental das cuidadoras. Desse modo, o relato de abandono parental era bastante frequente, principalmente por homens, evidenciando a forma como as relações de cuidado remetem a uma disponibilidade quase infinita do tempo de mulheres, enquanto a ausência paterna é relativamente tolerada socialmente, ou o que parece ser mais presente nesse campo, naturalizada.
O trabalho reprodutivo não tem o mesmo valor social de outras ocupações, o que implica que aqueles que se ocupam do cuidado de outros nem sempre terão suas demandas de cuidado atendidas ou validadas, ou poderão contar com algum suporte social. Segundo Biroli (2018), o tempo dedicado a ele, longe de estar no campo das “escolhas voluntárias”, deve ser analisado a partir do reconhecimento das estruturas que sustentam a responsabilização de certos atores, enquanto problema político. É preciso, portanto, ter em perspectiva a dimensão interseccional dos sistemas de poder, do que podem nos informar sobre aqueles que buscam e recebem cuidados, quais os arranjos possíveis entre os profissionais de saúde e a rede socioafetiva desses sujeitos na sustentação do cuidado em seu território, suas disposições afetivas e materiais.
Uma das mães que conhecemos ao longo do campo chamava a atenção por não trazer a sobrecarga enquanto cuidadora como um problema. Ao contrário, com frequência compartilhava como conseguia dar conta de cuidar de toda a família, das tarefas domésticas e ainda trabalhar de forma autônoma, envolvendo o filho usuário do CAPS em seu pequeno empreendimento. Ela dizia que havia nascido para ser “dona de casa” e se vangloriava de seus dotes culinários. Até que esse filho começou a dar sinais de que estaria entrando em “crise”, se apresentando de modo mais agressivo em casa e no serviço. O pai do usuário, seu marido, começou então a entrar em cena, solicitando à equipe que o rapaz fosse internado, apesar das tentativas de conter a crise com a intensificação do PTS no CAPS e a indicação de acolhimento noturno. A mãe era completamente contra à internação, sabia que levaria tempo para que o filho apresentasse melhora, e principalmente, que não se tratava de uma estabilização apenas, mas de questões crônicas que envolviam toda a dinâmica familiar. A relação do pai com a equipe vai ficando mais tensa, uma vez que a desestabilização do pai de alguma forma se reflete no comportamento do usuário.
A mãe chega ao CAPS em um fim de tarde, exausta com a vinda diária ao serviço (havia ido a pé, pois não tinha dinheiro para o ônibus), e encontra os dois discutindo no pátio. Tenta mediar a briga junto à equipe e outros usuários, até que em certo momento começa a gritar e todos no entorno se calam. Fala de seu cansaço, da dificuldade em lidar com as agressões verbais do filho nesse momento agudo, da dificuldade do pai em suportar com ela essa crise, de como estava cansada de ambos. Em seguida, ao ser acolhida por alguns profissionais, pede desculpas à equipe por achar que estava “dando trabalho”. Sentia-se culpada por estar cansada e por verbalizar o desejo de se afastar da família. Foi quando conseguiu falar de si, não como mãe, esposa e dona de casa, mas como sujeito, com uma história, desejos de vida e suas faltas. Fala de seu passado, da relação com os pais, dos abusos e violências que já havia sofrido na relação conjugal, das coisas que gostaria de ter feito se não tivesse se casado, de como esteve sozinha no cuidado e educação dos filhos, enquanto o marido exercia sua função de provedor do lar.
Queixa-se de que o marido não reconhece o trabalho doméstico e de cuidado como algo que “dá trabalho”, assim como ela, em certa medida, parecia banalizar essa tarefa em suas falas. Pelo seu relato, o pai não tem muita tolerância aos momentos de crise do filho, e costuma reagir “como ele”. Quando está tudo bem, não se queixa de sua forma de gerir o espaço doméstico e até colabora no compartilhamento de algumas tarefas. Mas se algo sai do controle, não costuma poupar ninguém, nem ela e nem o filho. Sente-se culpabilizada pelas coisas que dão errado, por não ter trazido o filho para avaliação médica antes. Conta que já foi criticada por outros familiares pelas escolhas que faz pelos filhos, como bancar a não internação durante as crises e incentivar que fizessem as próprias escolhas ao invés de tomar todas as decisões por eles.
O que chama a atenção nesse fragmento é que um lugar comum no cotidiano dessas cuidadoras é a sensação de incompletude, de algo que parece estar sempre em falta, ainda que estejam totalmente investidas no cuidado. De acordo com a noção de “dispositivo materno”, proposta por Zanello (2018), no processo de tornar a mulher responsável pelo trabalho reprodutivo colonizam-se os afetos, de modo que o amor passa a estar vinculado à função de cuidar do outro, internalizado através do sentimento de culpa, que funciona como baliza moral de suas ações. Esta tarefa é então alçada a um lugar de importância, mas também de vigilância e controle, no qual o sacrifício e autoabnegação são promovidos como dever social, que se constitui como estratégia para um “empoderamento colonizado”.
A eficácia desse dispositivo na introjeção de valores e identidades fica bastante evidente quando se coloca em relevo que, para algumas mulheres, a única possibilidade de realização pessoal está relacionada ao lugar de cuidado, o que indica a necessidade de olhar para esses afetos em sua dimensão produtiva, em termos de disputa de espaços de poder. Nesse sentido, a maternidade constitui um importante vetor no processo de subjetivação de mulheres, de modo que a função de cuidado garante um lugar que precisa ser constantemente reafirmado, ainda que esse lugar também seja produtor de adoecimento.
No entanto, o referido lugar social da maternidade não está dado para todas as mulheres, ainda que esse seja um lugar quase que compulsório para elas no geral. O fato de mulheres negras não poderem usufruir do mito do amor materno, por frequentemente se ocuparem do cuidado dos filhos de outras pessoas, evidencia o caráter racista e colonialista da sociedade brasileira na produção e reprodução do sofrimento pela negação da maternidade. Como afirma Passos (2021), trata-se de uma herança do cuidado colonial que, quando não as impede de gestar e cuidar de seus filhos, torna as condições para o exercício dessa maternidade muito precarizadas, sem o devido suporte, como forma de penalização por seu direito reprodutivo.
No contexto em que se realiza a pesquisa de campo, essas questões comparecem especialmente quando tais condições não são questionadas ou estranhadas pela equipe, que também vai depositar nessas mulheres a responsabilidade por garantir o cuidado de seus familiares no território. Essa naturalização pode ser percebida pela forma como os profissionais constroem as narrativas sobre as trajetórias dos pacientes, como se o abandono paterno, ainda que haja essa referência em seu núcleo familiar, fosse presumido na maior parte dos casos acompanhados. O cenário frequente de redes de apoio muito precarizadas torna comum a afirmação de arranjos provisórios, o que, no cotidiano atribulado, parece empurrar o problema para segundo plano. Na maior parte dos casos, é com essa figura que o usuário pode contar e, consequentemente, o serviço também, direcionando expectativas e cobranças em relação ao manejo e seguimento do tratamento, que se presentificam nas disputas entre esses atores em torno do “melhor” cuidado.
Recordamo-nos da discussão de um caso, em que se falava de uma usuária que se colocava bastante em risco em função de seu quadro clínico, que causava grave prejuízo em seu juízo crítico da realidade. A psicóloga que a acompanhava relatava que ela vivia com a mãe e a filha em condições bastante precarizadas em uma região de conflito deflagrado, o que aumentava ainda mais os riscos de sua circulação errante pelo território, que muitas vezes envolvia o uso prejudicial de drogas e prostituição. Conta que a maternidade parecia ser uma questão complexa para ela, que pela desorganização psíquica, apresentava muita dificuldade em cuidar de seus filhos. A técnica enfatiza o papel central da mãe da usuária nas articulações que sustentaram muitas vezes sua permanência em vida, e de como essa dupla maternidade, uma vez que exerce esse papel para a neta, traz inúmeros desgastes no cotidiano dessa mulher. No entanto, em um episódio mais recente que envolvia importante risco no território, compartilha seu estranhamento em relação ao fato dessa mãe não ter acionado a equipe. Conta que, ao falar com ela, podia sentir sua exaustão com o cenário de precariedade em que se encontra a família, o que poderia explicar também sua apatia diante de mais uma “crise” da filha.
Nesse sentido, ainda que a equipe seja sensível às múltiplas camadas da sobrecarga familiar com a difícil tarefa de sustentar o cuidado em comunidade, os profissionais não escapam em encarnar, mesmo que de forma sutil, cobranças e prescrições em relação a essas maternidades, presentificando moralidades e normatividades no exercício do cuidado compartilhado com essas cuidadoras. Os discursos que embasam essa prática dizem não só de diferentes noções de cuidado em saúde mental, que podem ser amplamente ancoradas no saber técnico e no compromisso ético com a Reforma, mas em certa medida revelam a carga moral impregnada nas orientações, explicações e proposições feitas pelos agentes do Estado, que por vezes se aproximam de um ideal de maternidade e autonomia materna que dificilmente encontra lugar na realidade vivida por essas mães.
Desse modo, aparecem no campo não só relações de cumplicidade, confiança e parceria, mas também os desencontros, as frustrações e ressentimentos com o real da sobrecarga de sustentar esse ideal nas “costas”. Alguns aspectos dessa disputa entre diferentes concepções e mandatos do cuidar entre evidenciam não só as contradições do próprio processo da Reforma, incluindo as demandas das cuidadoras por estruturas manicomiais, como também sua produção enquanto política pública e tecnologia de gênero, ao recriar nas formas contemporâneas de maternalismo padrões culturalmente conservadores nas relações de proteção primária (Passos, 2011). Parece-nos que algo desse desconforto com a posição que assumem na Reforma não tem lugar na configuração atual das redes de cuidado e suporte, que prevê dispositivos de assistência em diversos níveis de intensidade, mas pouco avançou nas questões de proteção social que estão na base das necessidades dessa população.
Considerações finais
Ao longo desta exposição, buscamos trazer algumas questões vivenciadas em campo que evidenciam as múltiplas dimensões do cuidado na Atenção Psicossocial, a partir da perspectiva das cuidadoras familiares, tentando explorar aproximações e diferenças às categorias analíticas sobre o cuidado no campo socioantropológico. Essas cenas trouxeram à tona as diferenças na distribuição do cuidado na rede socioafetiva dos usuários, remetendo ao debate sobre o cuidado como trabalho não remunerado e majoritariamente executado por mulheres. Ao falar sobre a convocação de mulheres à centralidade desse cuidado, dialogamos com categorias de análise que buscam compreender como as cuidadoras assumem essa função e os impactos da sobrecarga nas condições socioeconômicas e subjetivas que atravessam suas trajetórias. Ao relatar as cobranças e prescrições que aparecem nas relações entre familiares e profissionais, trouxemos a discussão sobre a dimensão normativa do cuidado e as contradições de um modelo privatista de proteção social.
Pensando na familiarização e generificação do cuidado dos sujeitos em sofrimento psíquico com os desdobramentos da RPB, essa gestão feminina do cuidado como um atributo necessário à sustentação da política pública de saúde mental, fomentada por tecnologias de gênero que constituem o dispositivo materno proposto por Zanello (2018), produz as noções de atribuição de responsabilidade que conformam o cotidiano dessas cuidadoras e suas trajetórias de vida a partir dessa função. Portanto, as escolhas que marcam os corpos e subjetividades dessas cuidadoras são ancoradas em uma ética do cuidado e refletem o cotidiano atravessado pela exceção ordinária (Pierobon, 2022).
A contradição entre a centralidade e invisibilidade do trabalho feminino e não remunerado de cuidado familiar na sustentabilidade de processos históricos e políticos evidencia os limites de tomar a relação público/privado como esferas separadas. Analisar o cuidado como elemento fundamental da organização social não significa compreender os arranjos observados como solução privada para problemas macropolíticos, mas ressaltar os aspectos políticos e moralizadores que envolvem seu exercício, na linha tênue entre a concepção de um direito a ser garantido pelo Estado e os arranjos interpessoais que sustentam o bem-estar e condições básicas de existência desses sujeitos e suas famílias.
No contexto neoliberal em que essas mudanças são implementadas, de redução do aparato estatal e consequente sucateamento dos serviços públicos, o que se observa é um duplo apagamento dessas mulheres, na medida em que a política avança sem se atentar para a precariedade das condições para o exercício do cuidado, não sendo vistas nem como cuidadoras, nem como cidadãs que necessitam do apoio do Estado. A política de transferência dos encargos do cuidado para o âmbito privado, forma de gestão estatal da proteção social que se apresenta no contexto brasileiro, contribui para a invisibilização da sobrecarga das mulheres e de sua importância como pauta política. Em que medida essa forma de governar pela ausência de políticas públicas adequadas à realidade social dos usuários da RAPS e de seus cuidadores pode ser analisada enquanto forma de negligenciar e tornar inviável o exercício do cuidado nesse contexto?
É importante trazer aqui a dimensão produtiva dessas ausências, do que apontamos como desinvestimento do Estado na construção de uma agenda que inclua o trabalho do cuidado como condição para a sustentabilidade da Reforma e da recusa dos homens à responsabilização pela divisão dos encargos do cuidado de seus familiares. Partindo da formulação de Fernandes (2020), propomos analisá-las enquanto “ausências ativas”, que remetem a uma falta estrutural que mulheres constantemente se sentem convocadas a suprir, uma vez que disso depende, em muitos casos, a manutenção da vida. Ativas no sentido de produzirem, além da sobrecarga materna e vulnerabilização psicossocial, julgamentos e cobranças em relação à forma como essas mulheres lidam com o sofrimento gerado pelo desamparo, como as categorias do “nervoso” e da “agressividade” apontadas pela autora.
Nesse sentido, entendendo que as instituições estatais reproduzem as múltiplas formas de violência e discriminação, Passos (2021) afirma que o Estado e suas formas mais cotidianas e burocratizadas de governo exercem papel importante na manutenção do cuidado colonial no contexto brasileiro, reforçando o lugar da mulher negra na política da reprodução. A autora ressalta a crescente patologização e medicalização do sofrimento dessas mulheres como consequência do racismo estrutural e das hierarquias reprodutivas, que tornam essas maternidades inviáveis. Instituições que deveriam cuidar e garantir os direitos básicos dessa população, como os serviços de saúde, podem atualizar práticas de desumanização e coisificação de pessoas negras, bem como a criminalização de demandas básicas de sobrevivência.
No campo da Atenção Psicossocial, essa hierarquização ganha contornos específicos, uma vez que se trata de uma população extremamente vulnerabilizada, tanto por questões econômicas e raciais, como pelo isolamento social provocado pelo estigma do adoecimento psíquico. Fica evidente que a reprodução dessas camadas sociais passa por múltiplos constrangimentos e não é apoiada socialmente, como as de famílias de outros estratos sociais que não demandam apoio do Estado. A forma como essas configurações familiares são tornadas ilegítimas e mesmo alvo de políticas de extermínio evidencia que racializar e generificar o debate sobre as questões relacionadas à reprodução é uma agenda urgente e necessária para pensar as políticas de saúde mental no país e a sustentabilidade deste projeto.8
Referências
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Todos os dados da pesquisa estão disponíveis neste texto
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1
Esta pesquisa foi realizada pela primeira autora e orientada pela segunda autora. Para sua execução, contou com o suporte financeiro do programa Jovem Cientista do Nosso Estado, pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
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Acionamos a noção de sofrimento psicossocial proposta por Pereira (2019), que considera as experiências de sofrimento como situadas em relações sociais de opressão e exploração, decorrentes de lugares sociais subalternizados que dizem de uma vivência que é compartilhada, não sendo possível situar a expressão desse sofrimento apenas em sua dimensão psíquica.
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Centro de Atenção Psicossocial, um dos dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial instituída pela Portaria GM/MS nº 3088 (Brasil, 2011). Serviço de atenção diária composto por uma equipe multiprofissional, para cuidar de pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, em diferentes regimes de intensidade, de acordo com as necessidades de seus usuários.
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Trata-se de um CAPS que funciona 24 horas por dia, dispondo de leitos de atenção à crise.
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Os dados referentes à pesquisa de campo no espaço da convivência estão disponíveis neste texto. Para acessar a pesquisa completa, ver Andrade (2023).
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Hirata (2010) chama a atenção para a utilização na literatura do termo reprodução ou trabalho reprodutivo para designar o trabalho realizado em âmbito doméstico, entendendo que o cuidado está incluído nessa categoria, enquanto trabalho sem remuneração, executado de forma gratuita e lido como forma de expressão de amor das mulheres com seus familiares e parcerias amorosas.
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Dispositivo de atenção à crise, são leitos disponíveis em CAPS do tipo III, nos quais o usuário pode pernoitar no serviço até a estabilização ou melhora do quadro.
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V. C. H. de Andrade: concepção, análise e interpretação dos dados; redação do artigo. L. Lowenkron: redação do artigo e revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada. As autoras são responsáveis por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.
Disponibilidade de dados
Todos os dados da pesquisa estão disponíveis neste texto
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
19 Ago 2024 -
Revisado
09 Dez 2024 -
Aceito
17 Dez 2024
