Resumo
Este trabalho examina os fatores que contribuem para o sofrimento entre pessoas trans e travestis, com foco especial no papel do trabalho sexual na marginalização, resistências e agenciamentos. Duas pesquisas etnográficas foram realizadas no Rio de Janeiro em 2019 e 2023. O estudo inicial examinou o material de uma “rede de cuidados trans em (des)construção” e as histórias de vida de quatro mulheres trans e travestis. O segundo estudo, baseado em observação participante, entrevistas e rodas de conversa, envolveu profissionais do sexo, ativistas, profissionais de saúde e ONGs. Os dados coletados nos dois estudos foram então integrados pelos autores, cujos resultados foram encruzilhados, a fim de identificar elementos e temas comuns, chegando a quatro categorias: itinerários de vulnerabilização, trabalho sexual, conhecimento situado nos serviços de saúde e itinerário de encruzilhamento. As pesquisas indicam que o sofrimento vivenciado por mulheres trans e travestis pode ser conceituado como uma forma de "sofrimento encruzilhado” sendo gerado na interseção de caminhos de vulnerabilização e encruzilhamento, que desafiam as noções binárias. Demonstram também que as práticas de autocuidado, as (in)redes formais de solidariedade estabelecidas por esses indivíduos desempenham papel crucial em suas vidas, destacando o papel do conhecimento situado nos ambientes de atendimento.
Palavras-chave:
Mulheres trans; Trabalho Sexual; Saúde Coletiva; Feminismo Decolonial; Resistência
Abstract
This paper examines the factors that contribute to suffering among trans people and travestis, with a particular focus on the role of sex work in marginalisation, resistance and agency. Two ethnographic studies were conducted in Rio de Janeiro in 2020 and 2023. The first study examined the material from a "trans care network in (dis)construction" and the life stories of four trans women and travesti. The second study, based on participant observation, interviews and conversation circles, involved sex workers, activists, health professionals and NGOs. The data collected in the two studies was then integrated by the authors, whose results were then intersected to identify common elements and themes, resulting in four categories: itineraries of vulnerability, sex work, knowledge situated in health services and itineraries of intersections. The research indicates that the suffering experienced by trans women and travesti can be conceptualised as a form of ‘intersection suffering’, generated at the intersection of paths of vulnerability and intersections, which challenge binarisms. It also shows that self-care practices and the formal (in)networks of solidarity established by these individuals play a crucial role in their lives, emphasising the role of situated knowledge in care settings.
Keywords:
Trans women; Sex work; Collective Health; Decolonial Feminism; Resistance
Introdução
Os modelos hegemônicos construídos sobre fenômenos de opressão, como capitalismo, patriarcado, racismo e colonialismo, resultam na marginalização de pessoas que não se identificam com as categorias definidas pelos paradigmas dominantes. Oyèrónké Oyěwùmí (2004) indica que a matriz moderno-colonial é responsável pela expansão da hegemonia cultural da Europa e a construção de um modelo de humanidade, “de cidadão de primeira categoria: europeu, homem, racional, branco, heterossexual, cisgênero e cristão” (Solaterrar, 2024, p. 76).
Nesse sentido, pessoas de “corpos e gêneros inconformes” (Vergueiro, 2016), ou que praticam uma sexualidade que se desvia das normas cis-heteropatriarcais, como as profissionais do sexo (Rubin, 1984), estão expostas a vários mecanismos de opressão, inscritos na ordem social. Para Butler (2003), corpos e gêneros que mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo têm sua inteligibilidade possibilitada pela norma heterossexual que é tida como natural, ao passo que aquelas que desafiam tais normas terão sua inteligibilidade questionada e constituirão as fronteiras da zona de abjeção.
Bento (2003) fala em “a vida precária do gênero” para se referir a essas pessoas com cotidiano marcado pela violência que seguem “na persistência diária de se fazerem habitáveis”, na batalha cotidiana de serem reconhecidas como humanas, cidadãs e habitar uma vida mais possível de ser vivida. Bento (2014) faz referência às noções de “cidadania precária” e “gambiarra legal” para falar das vicissitudes e barreiras de acesso a direitos para pessoas transgêneros,11, em que há uma “máquina da cidadania” que julga e confere, ou não, o acesso a certos direitos (Freire, 2015a).
O campo do acesso e barreira à saúde é um dos campos no quais as violências e desigualdades se fazem fortemente presentes. Isso foi observado em vários estudos no Brasil (Pelúcio, 2005, 2007, 2009, 2011; Lionço, 2009; Peres, 2011, Santos, 2007; Teixeira et al., 2020; Rocon et al., 2020; Oliveira; Sprung, 2022; Vieira; Goldberg; Bermúdez, 2024; Solaterrar, 2020; Da Mosto, 2023). Tais pesquisas demonstram que o espaço das unidades de saúde tem se revelado como reprodutor das diferenças e desigualdades da sociedade mais ampla.
Entretanto, tal cenário não tem se dado sem muitos movimentos e agenciamentos pelas mulheres trans, ativistas e pesquisadores do campo. Logo, faz-se fundamental dar luz às estratégias de agenciamento de outras possibilidades de ser e estar na vida. Para isso, toma-se a noção de agência, em contraposição a noção de resistência2 a partir de uma perspectiva liberal, na direção que orienta Mahmood (2006, p. 121), como “um processo que não só assegura a subordinação do sujeito às relações de poder, mas também produz os meios através dos quais ele se transforma numa entidade autoconsciente e num agente”.
Apostamos que, embora os processos engendrados pelas violências estruturais analisadas aqui resultem na vulnerabilidade (Butler, 2010), em processos de vulnerabilização de pessoas que performam sexualidades e gêneros dissidentes, como as pessoas trans, a margem pode ser ressignificada, pois a “marginalidade é também um espaço de possibilidade radical […] um lugar central para a produção de um discurso contra hegemônico” (hooks, 1989, p. 289).
Nesse mote, para ser possível se aproximar e empreender uma reflexão articulada das diferentes categorias aqui pensadas (gênero, sexualidade, raça, classe e território), propõe-se pensar a diferença como ferramenta analítica (Brah, 2006; Piscitelli, 2008; Moutinho, 2014). Com base nessas considerações, este trabalho tem como objetivo investigar, a partir da perspectiva analítica interseccional (Brah, 2006; Akotirene, 2019), o impacto dos mecanismos de violência estrutural (Farmer, 2006) na saúde de pessoas que habitam sexualidades e gêneros que não se encaixam no paradigma dominante e suas práticas de agência e ação contra-hegemônica.
Especificamente, o trabalho visa investigar quais fatores atuam na gestão3 do sofrimento de mulheres trans e travestis, prestando atenção especial ao papel do trabalho sexual na geração de processos de marginalização e agência.
Metodologia
Partindo do pressuposto de que a justiça social é uma “política do fazer”, suscetível de ser aplicada tanto na esfera política quanto na pesquisa e na prática (FitzGerald; O’Neill, 2020), os trabalhos etnográficos que permitiram a geração deste artigo foram desenvolvidos com o uso de diferentes metodologias e ferramentas que, embora parciais, buscam dar espaço e reconhecimento às realidades concretas e historicamente posicionadas da vida cotidiana, das relações e dos corpos de subjetividades que habitam sexualidades ou gêneros dissidentes. Essa necessidade parte do entendimento do limite da leitura biomédica do sofrimento (Pereira; Passos, 2017) e da necessidade de um aprendizado que parta do conhecimento situado (Haraway, 1988).
Para garantir essas premissas, ambos os trabalhos (realizados no Rio de Janeiro em 2019 e 2023) se baseiam nos princípios da etnografia multissituada, uma etnografia móvel que acompanha as pessoas, suas conexões e relações no espaço (Rajan, 2021; Togni, 2014), e da etnografia colaborativa, que, com base no processo de co-teorização, visa à “produção coletiva de veículos conceituais que se baseiam tanto em um corpo de teorias antropológicas quanto nos conceitos desenvolvidos os interlocutores” (Rappaport, 2007, p. 214).
Reconhecendo seu posicionamento como “estranhos” ao objeto em questão4, os dois autores adotaram um desenho metodológico multifásico, caracterizado por uma primeira fase de mapeamento e aproximação e uma segunda fase de aprofundamento.
O primeiro trabalho foi baseado na imersão em uma “rede de cuidados trans em (des)construção”, uma “rede”, ainda informal e não institucionalizada, que trabalha com a população trans e travesti no Rio de Janeiro5 (Solaterrar, 2020). Posteriormente, foi realizado um estudo aprofundado das histórias de vida de quatro mulheres trans e travestis que trabalham e/ou são usuárias de serviços de saúde mental.
O segundo trabalho baseou-se na abordagem de diferentes realidades que se relacionam com as profissionais do sexo que trabalhan no Rio de Janeiro (Da Mosto, 2023). Graças ao encontro com ativistas, acadêmicas e profissionais de saúde, foi possível entrar em contato com serviços de saúde mental, organizações voluntárias e coletivos que atuam em diferentes áreas da cidade de forma mais ou menos fragmentada, e aproximar a literatura que vinha sendo produzida por diferentes putasativistas (Barreto, 2023; Donini et al., 2022; Moira, 2016). A partir da análise desses materiais e em conjunto com diferentes ativistas e pessoas com experiência, foram definidas as principais áreas de pesquisa: as dimensões estruturais dos processos que atuam sobre a saúde das profissionais do sexo e quais práticas de resistência entram em ação nos contextos de prostituição. Esses temas foram aprofundados com a observação participante em duas zonas de prostituição diferentes no Rio de Janeiro, 12 entrevistas em profundidade e três rodas de conversa envolvendo 20 pessoas no total.
Posteriormente, os resultados dos dois estudos foram mais do que cruzados, encruzilhados, a fim de identificar elementos e temas comuns. Rufino (2019, p. 19) indica que “a encruzilhada nos possibilita a transgressão dos regimes de verdade mantidos pelo colonialismo”. Por isso, a imagem da encruzilhada é tomada aqui como parte das etapas metodológicas deste trabalho, no sentido de promover encontros entre duas pesquisas que, cada uma a seu modo e tempo, buscam colaborar para a construção de novos caminhos que nos tirem da “perpetuação das injustiças cognitivas praticadas a todos aqueles desviados”, pois “as injustiças operadas na destituição ontológica dos seres, atacam diretamente a diversidade que compõe o mundo” (Rufino, 2019, p. 20).
Os dois trabalhos foram realizados para o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2020) e para o mestrado em Antropologia Médica e Saúde Global da Universitat Rovira e Virgili (2023) e foram revisados pelos comitês de ética das respectivas universidades.
Resultados e Discussão
O encruzilhamento dos trabalhos etnográficos revelou uma complexidade de aspectos centrais à vivência das pessoas trans, permitindo a identificação e a articulação de quatro categorias principais que tentam sintetizar essas experiências. A primeira categoria, “Itinerários de vulnerabilização: sobre a gestação do sofrimento”, explora como as trajetórias de vida dessas pessoas são marcadas por múltiplas formas de violência e exclusão; a segunda, “Desafiando a marginalização: o trabalho sexual na construção de nova possibilidades”, destaca como a trabalho sexual se torna como um espaço de ressignificação e configuração. A terceira, “Rede de cuidado trans em (des)construção: o papel do conhecimento situado nos serviços de saúde”, enfoca a criação de novos conjuntos de assistência que, com base no conhecimento experiencial, se esforçam para garantir o direito à saúde. Por fim, a última categoria, “Itinerários de encruzilhamento: as possibilidades de “botar a cara no sol”, investiga as formas de resistência que emergem dessas intersecções.
Itinerários de vulnerabilização: sobre a gestação do sofrimento
Gonzaga (2019) sublinha que o racismo como produtor de sofrimento não deve se restringir a uma perspectiva teórica, mas a um aspecto ético fundamental quando consideramos o marco civilizatório da colonialidade que ordenou a hierarquização das pessoas pela cor da pele (Quijano, 2005) e pela anatomia da genitália (Lugones, 2008). Os encontros com as histórias das mulheres trans e travestis que colaboraram com esta pesquisa serviram de base para a noção de itinerário de vulnerabilização (Solaterrar, 2020), fazendo-nos refletir sobre os processos estruturais que continuam a gerar situações de humilhação social, analisadas em dois aspectos: a dimensão da rua e a dimensão do sofrimento.
Diante da percepção de que a noção de vulnerabilidade ainda se mostra pouco sensível à diversidade de vida e de posição no mundo das pessoas com seus desejos, interesses, possibilidades e registros biográficos muitos distintos, propõe-se uma revisita ao conceito a partir do que propõem Delor e Hubert (2000), ou seja, um fortalecimento de sua relevância política e prática e uma recuperação de sua matriz heurística em três níveis de inteligibilidade: a trajetória social; o nível em que duas ou mais trajetórias se cruzam; e o contexto social. Desse modo, a vulnerabilidade de cada sujeito pode ser reforçada a cada tempo e espaço que estejam, sendo alvo de concomitantes processos. Sendo assim, a análise da vulnerabilidade é, acima de tudo, uma análise das diferenças e de como as mesmas se tornam desigualdades no modo de ser, estar e habitar o mundo.
A vulnerabilidade aqui é vivida como um ato que tem sujeitos dessa ação muito bem definidos. Esses sujeitos, desprovidos de privilégios, são marcados (Haraway, 1988) e, como tal, representam a diferença de tudo o que dela se desvia da norma, como desigualdade, patologia, crime, pecado etc. A vulnerabilidade é aqui narrada como um processo histórico e estrutural que carrega consigo a história não só das pessoas que hoje habitam os seus espaços, mas de todos aqueles que ali viveram.
Olhando para uma dimensão trazida reiteradamente nas histórias aqui acessa, o par de oposição a casa e a rua, olha-se sobretudo para os saberes, sujeitos e poderes que levaram as pessoas para a rua, ou melhor, que levaram as mulheres trans e travesti a experienciar situações e lugares de subalternização. É a essa necessidade de olhar e contar essa história que chamamos aqui de “itinerário de vulnerabilização”. O par “casa/rua”, se faz igualmente importante na compreensão da gestação do sofrimento a que estamos nos referindo. A partir dos relatos, aponta-se para o efeito que o lugar da casa (como significante do primeiro lugar no mundo e da família) tem na produção do sofrimento.
Nas palavras de uma profissional do serviço noturno vinculado a um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPSAd)6 da Zona Norte do Rio de Janeiro, “[...] para muitas dessas pessoas que encontrei na rua, a casa as empurrou para este lugar”. Ou seja, percebe-se que quando a família não expulsou mais diretamente as pessoas trans para a rua, as condições de tensão, hostilidade e violência vivenciadas cotidianamente em casa, acabaram por construir a necessidade de as mesmas irem para a rua como um ato de ruptura com a realidade vivida. No entanto, o contato com essas histórias nos permitiu perceber que não se trata de casais opostos, mas sim de uma relação muito mais ambivalente de coprodução e cogestão.
Jéssica7 (39 anos, parda, estudante de publicidade, heterossexual, mulher trans…) relata que um evento disruptivo em sua vida foi fundamental para a sua ida para a rua - a prisão da sua mãe após o assassinato do seu pai de criação. A partir desse evento, seu processo de vulnerabilização foi se intensificando, e a casa, um lugar para habitar e morar, passou a ser uma questão de constante tensão na sua vida.
Para Lorrani (45 anos, negra, redutora de danos, heterossexual, trabalhadora e usuária de um CAPSAd, pessoa travesti…) um evento disruptivo também marcou seu itinerário de vulnerabilização - a morte de seu pai. Foi a partir dessa perda que a histórica de chegada até a rua enquanto local de moradia se iniciou, mas antes disso a rua já fazia parte de sua vida como local de trabalho, como local que foi construindo seu lugar no mundo enquanto uma travesti. A internação compulsória na comunidade terapêutica,8 articulada por sua família, foi o segundo evento disruptivo decisivo para esse processo.
As reflexões que Lorrani e Jéssica nos apresentaram sobre suas passagens pela rua dão a ver que se faz necessário compreendê-la como exercendo uma dupla função nas suas vidas: a rua é/foi um marcador que instituiu uma identidade; e a rua também foi lugar onde operou o encontro de outros marcadores. Sobre o primeiro ponto, apesar de a rua não ser um atributo físico ou algo parecido, o estar na rua foi vivenciado para essas pessoas como o engendramento de mais uma identidade: a identidade de “moradora de rua” e/ou a identidade de “prostituta” e “travesti de rua”.
Sabe-se que as categorias “travesti”/”transexual”, assim como a “moradora de rua”, são marcas totalitárias que costumam aparecer antes dos sujeitos, servindo para privá-los de sua identidade e destituí-los da condição de humanos.
Para Jéssica e Lorrani, durante muito tempo, foi negociando as políticas de sobrevivência (Biehl, 2007), gestada por elas próprias, por meio das articulações, transações, negociatas e “malandragens” que precisaram criar, que foi possível atravessar a rua sem se deixar capturar inteiramente por ela. A rua é marcada, assim como o universo trans, pela diversidade de experiências. A partir de seu trabalho na rua, Fabiane (35 anos, branca, redutora de danos, heterossexual, mulher transexual…) nos ajuda a entender que entre a casa e a rua cabe muita coisa, nos ajuda a sair do par “casa/rua” enquanto polaridades, a sair da lógica binária da casa versus a rua no sentido de algo bom versus algo ruim:
[...] na Central (do Brasil-RJ) a cena é de dia mesmo, e tem várias situações, tem a diária da cafetina. É muito diversificado: tem pessoas que trabalham e moram na rua, tem outras que só trabalham, tem outras que moram e não se prostituem e conseguem ganhar o seu dinheiro com suas transações e suas negociatas.
As reflexões de Lorrani e Jéssica nos fizeram entender que o “estar na rua” ou o “ir pra rua” pode aparecer como uma experiência de vulnerabilização após eventos disruptivos em suas vidas, uma experiência de violência e medo, mas também como uma outra forma de habitar o mundo (Das, 2007) inventada por elas como resposta à violência e opressão que a casa vinha representando, uma forma de agência (Mahmood, 2006), portanto.
É a partir dos enquadramentos (jurídicos, normativos, políticos, sociais, econômicos) diversos que os saberes-poderes vão se produzindo e que se chega à equação das vidas que importam e das vidas merecedoras de luto (Butler, 2015). As vidas que Jéssica e Lorrani representam, por exemplo, são facilmente lembradas quando nos perguntamos sobre quais vidas têm sido passíveis de luto e luta. As duas relataram as diversas desconstruções que precisaram passar, as várias vezes que foi preciso “abortar” o nascimento de quem verdadeiramente são, repetidas vezes ceifadas pelas repressões e olhares dos Outros que não permitia que fossem quem são de forma plena. Tanto para Jéssica, quanto para Lorrani, por diversas vezes, foi preciso desfazer seus gêneros e performar outros sexos e identidades para ser possível seguir sendo lidas como humanas pelos Outros que a tudo vê e a tudo julga.
No concernente ao tema do sofrimento, Hannah (35 anos, negra, nordestina, redutora de danos, heterossexual, mulher transexual…) conta, ao abordar o tema do uso de drogas nas ruas e encontros que tem tido na sua rotina de trabalho, o seguinte:
[...] sim, muitos casos de uso de drogas. Como não usar, né? Geralmente são pessoas pobres, negras, que sofrem muito preconceito, que não tem contato com a família, é muito comum o uso de drogas, acho que até mesmo para aliviar, né?
Lorrani, ao contar sobre o uso que fazia, diz:
[...] eu me achava só. Sabe o que é que é não ser presente? As pessoas estarem próximas a você pelo que você pode proporcionar? Trabalhar na rua, ganhar dinheiro e usar drogas trazia as pessoas pra perto de mim. Era uma forma de ter as pessoas, de sair da solidão. Além disso, o abuso sexual que sofri, a perca do meu pai foi fazendo eu usar ainda mais drogas. Engraçado que eu me preservava quanto a minha saúde porque eu tinha tanta ambição em droga que eu sabia que se eu ficasse doente eu ia ficar sem usar droga. Você acredita?
A aproximação com tais relatos permitiu refletir sobre o modo como nas experiências dessas mulheres, seja como usuárias dos serviços públicos de saúde mental, seja como profissionais/redutoras de danos, facilmente as categorias psiquiátricas, os diagnósticos, fossem acionados como forma de compreender e nomear o uso e relação com as drogas. Mas seriam tais categorias suficientes para dar conta da complexidade do sofrimento vivenciado por elas? Trata-se apenas de um “sofrimento psíquico”?
Sofia Favero (2022, p. 1) “questiona a pretensa estabilidade dos discursos nosológicos que aparentavam, historicamente, saber “bem” o que estavam fazendo” com a população trans e “apostavam em uma compreensão de gênero fundamentada em estereótipos sexistas”. Por tudo isso, se faz fundamental tomar o sofrimento social (Kleinman; Das; Lock, 1997) enquanto categoria analítica, não perdendo do nosso mirante que o racismo, o passado colonial e a transfobia, são experiências traumáticas que têm sido ignoradas (Kilomba, 2019) sistematicamente pelo saber-poder hegemônico, e que o projeto desse colonialismo e a sua estratégia sempre passou pela desumanização de certos corpos que, ainda hoje, seguem sendo colocados na zona do Não-ser (Fanon, 2008).
Tais relatos nos leva também a novas compreensões com duas categorias transversais nas experiências, tanto de Jéssica e Lorrani enquanto “moradoras e trabalhadoras de/na rua”, sobretudo no contexto da Zona Sul (Glória) e Zona Norte (Avenida Brasil) do Rio de Janeiro, quanto na de Fabiane e Hannah, enquanto profissionais da saúde com o público na rua na Zona Norte da cidade. As categorias da “prostituição” e “uso de drogas”, que historicamente são coladas na figura das pessoas que estão em situação de rua, e nas pessoas travestis aqui se apresentaram como atos de agência possíveis em determinados momentos, como recurso para gestão da precarização, da dor e da barbárie.
Portanto, a aposta segue sendo a de pensar na produção de uma violência a partir de uma estrutura, é empreender leituras situadas e localizadas socio-historicamente, evitando a legitimação de leituras individualizantes para que, possamos chegar em uma compreensão decolonial e “anticistêmica” sobre a “transfobia”, o “sofrimento psíquico”, “os transtornos mentais”, enfim, para que possamos alimentar uma “uma abordagem inclusiva, que repele a noção biologizante que patologiza as identidades trans” (Jesus; Alves, 2010, p. 8).
Desafiando a marginalização: o trabalho sexual na construção de nova possibilidades
A análise das biografias das pessoas que contribuíram aos trabalhos etnográficos destacou como o trabalho sexual pode ser um lugar onde muitas mulheres trans e travesti conseguem encontrar certa segurança econômica, social e cultural. Conforme relatado nas palavras de Indianarae (indígena, vereadore, putaativista, travestigênero que há anos está engajada na luta pelos direitos de profissionais do sexo e pessoas LGBTIQIA+ na cidade do Rio e também internacionalmente):
Ainda bem que a prostituição existe! Caso contrário, nós, transexuais e travestis, seríamos reduzidas à miséria! Pedindo dinheiro na rua…
No contexto brasileiro, de fato, estima-se que: apenas 4% da população feminina trans esteja formalmente empregada, apenas 6% estão engajadas em atividades informais e subempregadas, e 90% da população trans e transexual usa a prostituição como sua principal fonte de renda (Benevides; Nogueira, 2021). Nessa perspectiva, o trabalho sexual é frequentemente visto como uma forma difícil de ganhar dinheiro, mas mais lucrativa do que outras opções disponíveis para as mulheres pobres e/ou com baixa escolaridade (Juliano, 2005). Essa tendência é ainda mais forte no caso de subjetividades que, além da pobreza, são reconhecidas como portadoras de outras opressões e, portanto, são afastadas do acesso à “maquinaria da cidadania” (Bento, 2014):
[...] eu já sou preta, pobre e transexual. As coisas se apertam mais pro meu lado, né? Eu já não tenho um currículo muito grandioso, já morava num lugar que já não era bem-visto (complexo da Maré), então, pra você entrar no mercado de trabalho já é difícil. Então, como é que você vai pagar suas contas? Aí já entra pra esse meio que é a prostituição, né? (Lorrani).
Muitas de nossas interlocutoras apontaram que, devido a vários processos de discriminação, elas não conseguiam ter acesso a diferentes empregos. Para algumas, a violência e a discriminação começaram já no contexto escolar, impossibilitando-as de concluir seus estudos e obter qualificações para acessar diferentes setores de emprego. Outras, como Gabriela (parda, putaativista, heterossexual, mulher trans, nascida e criada em uma comunidade do Rio de Janeiro), relataram como a exclusão do mundo do trabalho e a introdução na indústria do sexo foram associadas a eventos de violência doméstica desencadeados pela adoção de práticas em conformidade com sua identidade de gênero:
Quando minha família descobriu que eu estava fazendo a transição, eles me expulsaram de casa. Disseram-me que eu era uma louca imunda e maltrapilha, que não merecia nada e que merecia morrer. [...] Então, quando eu tinha 19 anos, saí de casa e, como na época não havia muitos serviços que pudessem me apoiar, decidi entrar no mundo da prostituição. Lá encontrei um novo mundo, não apenas os homens não me batiam, mas também me pagavam para ser quem eu era!
Nesse sentido, o trabalho sexual é uma forma de neutralizar os processos de injustiça socioeconômica que afetam as pessoas trans, mas também a injustiça cultural. Para muitas delas, entrar no mundo da prostituição representou a possibilidade de serem aceitas e admiradas (na forma de dinheiro) por sua identidade de gênero. Da mesma forma, a entrada no mundo da prostituição permitiu que elas neutralizassem a solidão causada pela discriminação social à qual estavam expostas. O vínculo gerado com algumas colegas de trabalho foi capaz de lidar com vários processos de marginalização, por meio da geração de redes de ajuda mútua para lidar com as necessidades básicas (como ter um lugar para dormir), mas também com intimidade profunda e compromisso, contribuindo para a formação de novos contextos (s)familiares (Borelli, 2024):9
Para uma travesti na prostituição, a palavra “família” tem um significado especial. Por exemplo, para as travestis que foram expulsas de casa ou que preferiram sair de casa a continuar sofrendo abusos... a prostituição representa um espaço de liberdade, um espaço onde você pode começar sua vida e existir da forma que quiser, começar sua transição, ter seu lugar no mundo… [...] a dona do bordel vai ser chamada de “mãe”, você vai ter “avó”, “tia”... (Jovanna, parda, putaativista, mulher trans…).
Nesse sentido, retomando a paráfrase de Larissa Pelúcio, na obra de Zampiroli, “a prostituição vista como oposta à família é muitas vezes, na realidade, a ponte que permite construir uma” (Zampiroli, 2017 p. 5; Pelúcio, 2011).
Para algumas, por fim, o trabalho sexual representou uma possibilidade de estar fora do condicionamento estabelecido pela violência estrutural e, a partir daí, reconstruir uma nova existência, redefinindo seu mundo e a si mesmas, encontrando caminhos que se opõem ao mundo opressor que as cerca:
Eu sempre vi a prostituição como uma das profissões que mais me libertou do capitalismo de tudo isso me deu total liberdade também para viver minha vida como eu quiser. A prostituição me deu total liberdade para viajar, para fazer as coisas ao meu tempo, para usar o meu tempo, como eu dissesse. Então era uma profissão que o tempo que eu ia trabalhar, eu que escolhia o momento que eu ia trabalhar, eu que escolhia o cliente que eu ia, eu tive as vantagens, linhas, vantagem de poder, sempre escolher, até porque eu tinha um padrão de corpo (Indianarae).
A partir da análise das biografias, o quadro que emerge é o de um grupo de mulheres trans e travestis cercadas pela precariedade e violência, que conseguem transformar a prostituição em uma opção que se compara favoravelmente às outras oportunidades em seu horizonte de possibilidades. De fato, por meio do trabalho sexual, várias pessoas desafiaram as condições de extrema marginalização em que estavam imersas, redefinindo-as, ecoando o slogan da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA): “Resistir pra Existir, Existir pra Reagir”. Isso também ecoa Butler, que relata como há um espaço para resistência e transformação subversiva através da possibilidade de ressignificar os significados das interpelações e discursos que trazem o sujeito para a existência social (1993).
Redes de cuidado trans em (des)construção: o papel do saber situado nos serviços de saúde
O primeiro contato com os serviços de saúde e, de modo mais geral, com os dispositivos biomédicos, das pessoas que contribuíram ao trabalho, estava intimamente ligado ao caminho da afirmação de gênero. Para muitas, isso não foi tanto uma resposta à necessidade de serem reconhecidas como mulheres, mas sim para aumentar suas possibilidades de ganhar a vida na indústria do sexo:
A minha transição começou aos 14 anos, quando comecei a fazer as harmonizações... percebi que eu poderia ganhar algum dinheiro com isso. O único meio de ganhar dinheiro como travesti era me prostituindo (Lorrani).
O processo de “hormonização” também foi associado a outros tipos de intervenção, como a introdução do silicone industrial, como relata Suzy (uma mulher branca, heterossexual e trans nascida e criada em uma comunidade ao norte do Rio):
Caí na rua muito nova, aos 14 anos comecei a fazer um uso muito abusivo de hormônios, [...] por buscar a feminilidade mais rápido para ganhar o dinheiro. E com 15 anos coloquei silicone industrial em meu corpo, que acredito não haver nada pior para ninguém.
Como também discutido na pesquisa de Teixeira e colaboradores (2020), essas práticas eram frequentemente gerenciadas por meio da coparticipação de vários atores não reconhecidos institucionalmente, como as “bomberas”, figuras conhecidas, mas institucionalmente não qualificadas, que injetaram silicone industrial em suas casas ou em clínicas improvisadas, enquanto o fornecimento de hormônios era garantido por círculos informais que adquiriam hormônios comprando-os na Internet ou por meio de mulheres cis que acessavam os programas de “planejamento familiar”.
Hoje, o acesso ao tratamento hormonal ou à cirurgia estética é frequentemente regulamentado e acessível por meio do SUS, seja em clínicas da família - mesmo sem a necessidade de uma consulta psiquiátrica - ou em centros especializados - no entanto, muitos problemas críticos permanecem no SUS, inclusive relativos a sobrecarga do sistema e demora no acesso. De fato, os serviços de saúde costumam ser estigmatizantes em relação às pessoas trans e podem não estar preparados para lidar com os efeitos colaterais das injeções de silicone industrial, além de adotarem uma postura crítica e julgadora:
[...] no Brasil não existe uma lei na Constituição que garanta de fato todo esse cuidado com as mulheres trans, travestis... [...] Existem normas técnicas... mas, é lei provisória… então [...] se a gente não continuar a luta, a gente perde. [...] Alguns profissionais, seja por transfobia, seja por falta de conhecimento, não conseguem fazer esse tratamento para as mulheres trans na clínica. [...] A gente está com um caso que ela mora em outro município. Tem CAPS lá? Sim, perto da casa dela, mas ela não é bem atendida. Ela sofre transfobia lá, ela não consegue ter acesso lá ao cuidado. (Sonia, parda, redutora de danos, mulher cis…).
Eu estava tendo uma crise de silicone, estava com muita febre e muita dor, tinha perdido recentemente uma amiga para o silicone, e o SUS não faz nada pela gente. Você chega no SUS e eles te dão um alho-poró, e você não estava procurando por isso, você foi lá para procurar uma solução para o seu problema e você sai com mais problemas e mais raiva (Suzy).
A presença de necessidades de saúde não atendidas levou à geração de uma “rede de cuidados trans em (des)construção” (Solaterrar, 2020) composta por alguns centros de saúde formais que desenvolveram habilidades e abordagens “mais sensíveis” - com base na introdução de pessoal com conhecimento experiencial - mas também de subjetividades derivadas do mundo do ativismo.
Por exemplo, um CAPSAd da Zona Norte do Rio de Janeiro, por solicitação de uma de suas usuárias, organizou um serviço noturno que, baseado no princípio de redução de danos e educação entre pares, realiza duas saídas por semana em locais de prostituição, oferecendo um local para ouvir as necessidades e fornecer orientação e/ou acompanhamento para outros serviços sociais ou de saúde. Tal estratégia de prevenção e cuidado em saúde através da educação de pares para pessoas trans, travestis e pessoas em contexto de prostituição na rua é amplamente reconhecida e replicada em experiências exitosas pelo Brasil, a exemplo do projeto “Tudo de Bom!”, em São Paulo-SP, pesquisado por Pelúcio (2005, 2009, 2011).
A abordagem do serviço noturno representa um local onde as práticas transformadoras se desenvolvem ao longo de vários eixos. Por um lado, a centralidade da rua como o local onde a maioria das ações ocorre permite encontrar pessoas que não viriam aos serviços. Por outro, o projeto evoca a proposta de educação entre pares, com o objetivo de adquirir conhecimento das próprias pessoas que vivem esses contextos diariamente. Ao colocar as mulheres trans ou travestis como subjetividades centrais na ação de proteção a si mesmas e à sua comunidade, o serviço noturno consegue dar vazão ao senso de reciprocidade e solidariedade que caracteriza as redes de apoio nas comunidades LGBTQIA+, consolidando também a democratização do atendimento e o questionamento do paradigma biomédico (Menéndez, 2016).
Além disso, dentro dessa estrutura de regulamentações e serviços, desenvolveram-se várias práticas de cuidado, automedicação e resistência, inclusive digitalizadas, que tomaram forma em locais horizontais virtuais ou físicos de troca de informações. Entre essas práticas estava a criação de um grupo de Whatsapp no qual mulheres trans e travestis trocavam conselhos sobre acesso a serviços, mas também sobre outros tópicos relacionados à saúde, como “qual hormônio tinha um efeito maior sobre os seios, qual deles poderia garantir uma melhor ereção”:
[...] esse grupo é da gente né? Aqui acabou com isso que o psiquiatra que sabe tudo, nè? Tem isso não! (Lorrani).
Nessa perspectiva, a dinâmica de interação nos grupos de WhatsApp e a organização de encontros entre pares refletem as práticas de cuidado desenvolvidas nas comunidades trans (Spade, 2020), que, em um contexto em que o conhecimento biomédico gera discursos patologizantes e tratamentos inadequados às necessidades das pessoas trans, favorecem a troca de informações e conhecimentos entre pares, gerando um círculo de conhecimento que utiliza as tecnologias desenvolvidas pelo conhecimento biomédico e escapa de sua regulação, dando espaço ao conhecimento situado (Haraway, 1988). Nesse sentido, a mutualização desse conhecimento se configura como uma prática de cuidado com uma abordagem vingativa, ampliada graças às tecnologias contemporâneas (Malatino, 2020).
Os espaços que compõem a “rede de cuidados trans em (des)construção” (Solaterrar, 2020) podem ser pensados também com o conceito deleuziano de instituição, ou seja, modelos de ação positiva, capazes de abrir e fundar novos caminhos, novas formas de ação comum, verdadeiras “criações coletivas” (Deleuze, 1955). Essas criações não se baseiam apenas em disciplinas específicas ou conhecimento situado (Haraway, 1988), mas em uma rede complexa de noções indisciplinadas (Zottola, 2018) que colidem, divergem e se cruzam, gerando práticas de “cuidado criativo” (Franco, 2015) que flutuam dentro de “redes vivas” (Merhy et al., 2014).
O que é importante enfatizar, é que o posicionamento político da subjetividade individual ou coletiva que vivencia ou dá impulso a essas práticas está indissociavelmente ligado à ética do cuidado, que se configura por meio de ações, obras e relações, integrando-se dentro de modos de fazer (Puig de la Bellacasa, 2017).
Itinerários de encruzilhamento: as possibilidades de “botar a cara no sol”
Ainda durante os primeiros encontros e conversas em 2018 com Hannah, ela encerra um dos encontros com a seguinte frase: “O que define as trans é a resistência, é isso que nos define. Precisamos resistir a todo o tempo contra tudo e contra todos”. Por mais que uma aproximação apressada e descontextualizada de tal colocação, o conceito de resistência puro e simples possa ser acessado, propõe-se pensar de maneira um pouco mais reflexiva e aprofundada sobre a trajetória de vida dessas pessoas, o que estão nomeando por “resistência” e os seus atos e ações constantes de tentativas de construção de lugares sociais que escapem à opressão, de outras formas de habitar o mundo, possibilitadas pelos mais diversos agenciamentos.
Mahmood (2006) chama atenção para a necessidade de problematizar “a universalidade do desejo de ser livre das relações de subordinação, da colonialidade e da opressão”, endossando uma noção de agência que considera processos de subjetivação não apenas por oposição às normas, mas habitando-as. Diante da reflexão de Kilomba (2019) sobre a necessidade de não apenas se opor ao projeto societário colonialista, patriarcal e escravocrata, mas sobretudo reinventar outros lugares para as pessoas que são colocadas à margem como operação fundamental e complementar à primeira, a questão que se coloca é a seguinte: como não apenas se opor e resistir às amarras da heterossexualidade compulsória, da cisnormatividade e do cissexismo para as pessoas trans, e sim reinventar e construir outras formas de ser e se tornar sujeito de suas histórias?
Por tudo isso, está se entendendo “o espaço de agência”, “do cuidado de si” como o espaço “da inserção em novas ou renovadas redes de sociabilidade” (Moutinho, 2014). Ou ainda, como propõe Eribon (2008: 20): “o movimento que leva da sujeição à reinvenção de si. Isto é, da subjetividade moldada pela ordem social à subjetividade ‘escolhida’” (Mello; Gonçalves, 2010).
Jota Mombaça (2017) afirma categoricamente que “o mundo é meu trauma”, indicando que para pessoas trans e travestis como ela se faz necessário “fugir do caminho que nos empurra para a morte” (Mombaça; Mattiuzzi, 2019, p. 25). Como fazer isso? Paul Preciado, em conferência realizada em 2019 para a Escola da Causa Freudiana em Paris, intitulada “Mulheres e Psicanálise”, coloca críticas necessárias e urgentes direcionada, na ocasião, a Psicanálise, mas que são pertinentes e urgentes para o campo da saúde como um todo. Ele fala da necessidade de desconstrução, de des-patriarcalização, des-heterossexualização e des-colonização dos saberes psis, das ciências da saúde, propomos aqui, como forma de produzir vida e combater as políticas de morte.
Favero (2022) chama atenção para as fronteiras que nos permitem ir em busca de outras e renovadas epistemologias, métodos e técnicas de cuidado como premissa para ser possível “des-cisgenerizar o cuidado em saúde mental”. Fronteiras que tornem possíveis movimentos de reexistência e autodeterminação (Rodarte, 2022) para as pessoas trans e travestis - afinal, como nos ensina Letícia Nascimento (2021): “Eu travesti, assumi que sou divina. E criei a mim mesma. Somos criadoras, crias de dores. A vida se faz frente à morte voraz” (Nascimento, 2021).
Entretanto, apostar em caminhos de cuidado e vida que possibilitem a autodeterminação não é o mesmo que apostar em um movimento solipsista, individual e de responsabilidade pessoal, mas sim como processos de subjetivação, de “práticas de si” (Foucault, 1984) e ética que envolve ação política, coletiva e compartilhada.
O contato com as mulheres que colaboraram com este estudo nos fez refletir sobre pontos muito caros para os debates aqui costurados. Trata-se de mulheres que estão ocupando cargos de profissionais da saúde, que nos mostram que a história de chegada a tal posição passa, sobretudo por caminhos e uma rede de apoio (família, ONGs, Projeto da Fiocruz - “Preparadas”, “Transcrição”, “Transcender”, “Damas”, “Prepara Nem”, instituições de saúde, colegas da rua e da vida, dentre outros), que foram sustentando o acesso a outras formas de ser e estar na vida.
A experiência de serem, a um só tempo, usuárias e profissionais da rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro, nos dão notícias de que estão assumindo o lugar de sujeito de suas próprias realidades e estão tentando, não sem vicissitudes, nomear as suas histórias. Nomeia-se essa experiência como uma dupla dobra, uma intersecção importante para nos fazer refletir sobre caminhos de possibilidade para a compreensão da gestão do sofrimento, em seu duplo sentido, do gestar e do gerir.
A rua, entendida a partir dessas histórias, como o trabalho sexual pode ser lida pela chave da vulnerabilização, da subalternização e da dor, mas aparece como lugar de exercício do movimento, do trânsito, do ser nômade como condição para seguir (re)existindo. Butler (1997) e Foucault (1983) nos ajudam a compreender o paradoxo da subjetivação, por meio do qual os mesmos processos e condições que garantem a subordinação de um sujeito são também os meios através dos quais ele se transforma numa identidade e agência autoconsciente.
Para cotejar tal necessidade, o conceito de “tornar-se” trabalhado pelos estudos culturais e pós-coloniais (Kilomba, 2019) para elaborar a relação entre o eu e a/o Outra/o, torna-se fundamental para pensarmos no desafio de construção de outros espaços, tempos e lugares para as pessoas de gênero, sexo e corpo inconformes e dissidentes, para as mulheres transexuais e travestis, como as que dialogam nesta etnografia. O tornar-se, na forma como acionamos neste trabalho, nos informa sobre o desafio das diversas e incessantes travessias que as pessoas de gênero, corpo e sexo inconformes, precisam fazer para movimentar os seus (não) lugares no mundo e se afina com o desafio de construção do processo de subjetivação.
Kilomba (2019, p. 13) afirma que “só quando se reconfiguram as estruturas de poder é que as muitas identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de conhecimento: Quem sabe? Quem pode saber? Saber o quê? E o saber de quem?”. É justamente sobre as rupturas e reconfigurações das estruturas de poder, por meio de atos e agenciamentos das mulheres trans que encontramos, que se chega à noção de itinerários de encruzilhamento (Solaterrar, 2020). Segundo Rufino (2019, p. 18), a encruzilhada-mundo emerge como horizonte, “a encruza é o umbigo e também a boca do mundo, é morada daquele que tudo come e nos devolve de maneira transformada”.
É nesse sentido que retomamos aqui a ideia do itinerário de encruzilhamento como mais um dos atravessamentos que as mulheres trans precisaram percorrer. Os itinerários de encruzilhamento falam, então, sobre as estripulias que as mulheres trans precisaram fazer para subverter o “cistema”, atravessar o status quo e inventar novos caminhos e possibilidades de vida. Fala sobre por onde caminharam, pelas redes, cenários, serviços, pessoas e processos acessados para ser possível “botar a cara no sol”, como disse Jéssica, como metáfora e horizonte do itinerário de encruzilhamento.
O “botar a cara no sol” como horizonte utópico e constante dos itinerários de encruzilhamento experienciados por nossas interlocutoras, é um modo de vivenciar uma “função desintoxicadora”. O caminho desta função, de acordo com Mbembe (2011, p. 2), é “acolher o lamento e o grito do homem mutilado, daqueles e daquelas que, destituídos, foram condenados à abjeção; cuidar, e eventualmente, curar aqueles e aquelas que o poder feriu, violou ou torturou ou, simplesmente, enlouqueceu.”.
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem devia tá aqui. Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nóiz? Alvos passeando por aí. Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência. É roubar o pouco de bom que vivi. Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes. É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir. (Música AmarElo, Emicida com Majur e Pabllo Vittar).
É com esse grito e exigência trazido pela canção entoada por Emicida, Pabllo Vittar e Majur que finalizamos esta seção, lembrando que os itinerários de encruzilhamento são a potência, são o ponto de virada, a oportunidade de contar a história de vulnerabilização que afetou essas mulheres trans a partir de outra miríade, de outro ponto. Os itinerários de encruzilhamento são, por fim, “uma mistura da vida real do amargo e do doce, e não uma fala sobre nossa capacidade de suportar a dor, mas sim uma celebração da nossa capacidade de se mover além da dor” (hooks, 2016, s.p.).
Sobre fins que também são começos
O encruzilhamento dos dois trabalhos destaca como os processos de opressão se manifestam e se infiltram nas dimensões relacionais e materiais das mulheres trans e travestis, agindo direta ou indiretamente em sua saúde. No entanto, a exposição aos fenômenos de marginalização segue padrões internacionais, destacando como diferentes elementos da identidade das pessoas determinam a geração de diferentes experiências de sofrimento, mas também de resistência, agenciamentos (Brah, 2006) e de outras formas de habitar o mundo, com base nos eixos de opressão e privilégio.
O tema do trabalho sexual, sofrimento e o marcador da rua aparecem nos dois trabalhos como analisadores importantes de um processo em que a violência estrutural (Farmer, 2005) empurra essas mulheres para lugares de precarização que elas ressignificam por meio de práticas de agenciamento distintas e, às vezes, contraditórias. Entretanto, por meio de diferentes práticas e redes de resistência e agência, elas conseguem se ressubjetivar, gerando um conjunto de identidades fluidas e contraditórias que conseguem coexistir. Nesse sentido, as práticas de autoatenção (Menéndez, 2016), as redes formais de solidariedade, mas também as informais geradas por subjetividades dissidentes, são fundamentais.
Propõe-se que a produção do sofrimento com que tivemos contato é um sofrimento encruzilhado (Solaterrar, 2020), gestado na intersecção entre os itinerários de vulnerabilização e os itinerários de encruzilhamento. Por fim, ambos os trabalhos destacam como o envolvimento do conhecimento situado (Haraway, 1988) em locais de atendimento permite o empoderamento de subjetividades dissidentes e o desenvolvimento de práticas que são capazes de compreender e responder à complexidade das necessidades de saúde das pessoas envolvidas (Da Mosto, 2023; Da Mosto, 2024).
Esta pesquisa oferece uma perspectiva profunda e intersetorial sobre saúde, transexualidade e prostituição, examinando estratégias de enfrentamento, resistência e autoatenção. Ela contribui para uma maior compreensão dos desafios enfrentados pelas pessoas envolvidas e oferece perspectivas para promover uma visão mais inclusiva e respeitosa de suas experiências e identidades, indicando a urgência de pesquisas que sigam compreendendo as complexidades colocadas e aproximando campos que têm tido desafios para estabelecer diálogo, o campo da saúde mental e atenção psicossocial e o campo dos estudos de gênero e sexualidade, os estudos queers ou transviad@s (Bento, 2017).10
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Todos os dados da pesquisa estão disponíveis neste texto
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1
Será adotado o termo “pessoas trans” para se referir a pessoas que se autodefinem como travestis e transexuais. Parte importante da militância indica o uso do termo “transgeneridade” (Freire, 2015a) por contemplar uma aproximação para além do “sexo” e abarcar diferentes posições, “identidades de gênero”, buscando se contrapor a perspectiva reducionista e patologizante que toma tais formas de ser a partir da “gestão biomédica das subjetividades” (Arán, 2012). Por sua vez, afasta-se também da perspectiva que compreende tais pessoas como “sujeitos apenas do sexo-gênero” (Freire, 2015a); portanto, se endossa a aposta em não reificar o entendimento de termos como “travestis” e “transexuais” como identidades ou substantivo que totalizam o ser (Teixeira, 2009, 2013).
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2
Importante destacar que há diferenças significativas em termos teóricos ao considerar as categorias de agência e resistência a partir de autoras como Mahmood e bell hooks, por exemplo. Se, por um lado, a resistência seria o movimento de se opor às normas, por outro, a agência é entendida como o movimento incessante que se constitui a partir da norma, e não necessariamente contra ela. Defendemos que apesar das diferenças destacadas, se faz importante um exercício de sairmos do binarismo do “isso” ou “aquilo” e tentar articular essas duas perspectivas a partir do encontro e análise com histórias de vida como a das mulheres trans e travestis interlocutoras deste trabalho.
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Gestão sendo entendida no seu sentido duplo de gestar e gerir (Souza Lima, 2002).
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Os dois autores deste trabalho não se identificam como pessoas trans, embora compartilhem sua luta. Falamos aqui a partir do nosso lugar de profissionais do campo da Saúde e da Luta Antimanicomial que defendem que as pessoas cis precisam assumir a parte que lhe cabe na (re)produção da cisnormatividade. Defendemos a importância de nos somarmos ao desafio coletivo de construção do acesso à saúde digna, integral de qualidade e interseccional para as pessoas de sexo e gênero dissidentes, como um modo de “promover práticas justas de atenção à saúde”, como defende a Associação Brasileira de Profissionais pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos.
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Apesar de os trabalhos aqui discutidos terem sido realizados no contexto do Rio de Janeiro, Sudeste do país, indica-se a necessidade e importância de diálogo com estudos de pesquisadores da Região Norte como forma de enriquecer o debate e evitar análises centralizada no Sul e Sudeste do Brasil. Cidades como Manaus e Belém, por exemplo, possuem serviços de cuidado a pessoas trans que podem contribuir para a complexificação e ampliação do debate aqui proposto. Pelos limites do presente texto, indicam-se as pesquisas de Neves e Sívori (2023) e Oliveira, Gomes e Mathis (2023), sobre o contexto de Manaus e Belém, respectivamente.
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Serviço que compõe a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no SUS no Brasil, voltado para pessoas com “sofrimento grave, severo e persistente” decorrente, nesse caso, do uso “abusivo e prejudicial de álcool e outras drogas”. Regulamentado, no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, pela Lei 10.216/2001 e Portarias 336/2002 e 3088/2011.
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Jéssica, Gabriela e Jovanna são nomes fictícios escolhidos por essas mulheres para se apresentar neste trabalho. Todas as outras pessoas que colaboraram com a pesquisas optaram por manter seus nomes pessoais aqui na pesquisa: Hannah, Fabiane, Lorrani Sabatelly, Indianarae, Suzy, Sonia. As autodefinições de raça, gênero, sexualidade e geração foram mantidas do modo como foram faladas pelas pessoas. Faz-se uso de reticências como forma de marcar que são pessoas/existências múltiplas e muito além das categorias classificatórias, sejam elas quais forem.
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Trata-se de dispositivo utilizado no Brasil como resposta aos casos de pessoas em uso prejudicial e abusivo de drogas. Contudo, resposta ainda fortemente atrelada à lógica manicomial, da internação e isolamento como formas de “cuidado”, geridas por organizações religiosas, sem vinculação ao saber científico, ferindo, dessa forma, a premissa de um Estado, cuidado e política pública de saúde laicos.
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O conceito de (s)famiglia foi desenvolvido dentro do movimento LGBTQIAPN+ italiano para desconstruir o conceito de família tradicional e repensar novas redes de cuidado e envolvimento.
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D. Da Mosto e U. Solaterrar: resumo; metodologia; resultados e discussão; conclusões; formatação final.
Disponibilidade de dados
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Ago 2024 -
Revisado
21 Jan 2025 -
Aceito
31 Jan 2025
