Resumo
A infecção pelo vírus Zika na grávida resulta em alterações do desenvolvimento neuropsicomotor nas crianças afetadas, sendo importante fator de estresse para essas mulheres. O objetivo deste estudo foi avaliar a estratégia de enfrentamento das mães a essa situação e como isto se refletiu no neurodesenvolvimento dos seus filhos. Estudo transversal com 46 mulheres e seus filhos. A estratégia de enfrentamento foi avaliada pelo Inventário Brief Cope, aplicado às mães, e o desenvolvimento neuropsicomotor das crianças, foi avaliado aos 24 meses de idade pelas Escalas Bayley III. A estratégia predominante de enfrentamento mais frequentemente usada pelas mães foi a de aproximação (73,9%), com destaque para o componente planejamento. A utilização da estratégia de negação esteve associada aos escores mais baixos na escala Bayley III, sendo nessa escala o componente mais utilizado o de auto culpabilização. A religião foi o componente de apoio auxiliar mais utilizado pelas mães. A utilização da negação como estratégia predominante de enfrentamento pelas mães mostrou associação com os piores resultados na avaliação do desenvolvimento infantil e reforça a necessidade do apoio a estas mulheres, para que possam lidar mais diretamente com os sentimentos decorrentes das situações vivenciadas.
Palavras-Chave: Vírus Zika; Brief Cope; Transtorno do neurodesenvolvimento; Psicometria
Abstract
Zika virus infection in pregnant women results in changes in neuropsychomotor development in affected children, being an important stress factor for these women. This study aimed to evaluate the mothers' coping strategy in this situation and how this was reflected in the neurodevelopment of their children. Cross-sectional study with 46 women and their children. The coping strategy was assessed using the Brief Cope Inventory, applied to mothers, and the children's neuropsychomotor development was assessed at 24 months of age using the Bayley III Scales. The predominant coping strategy most frequently used by mothers was approach (73.9%), with emphasis on the planning component. The use of the avoidant coping was associated with lower scores on the Bayley III scale, with self-blame being the most used component on this scale. Religion was the auxiliary support component most used by mothers. The use of avoidant as the predominant coping strategy by mothers was associated with the worst results in the assessment of child development and reinforces the need to support these women, so that they can deal more directly with the feelings arising from the situations they experience.
Keywords: Zika virus; Brief Cope; Neuropsychomotor development disorder; Psychometrics
Introdução
A epidemia pelo vírus Zika trouxe uma série de desafios para a saúde pública, principalmente para as grávidas que tiveram diagnóstico da doença na gestação e que se depararam com a possibilidade de seus filhos serem gravemente afetados por condições diretamente ligadas ao seu neurodesenvolvimento. Surtos de infecção pelo vírus Zika sempre foram relatados no mundo, porém em 2015 houve uma grande epidemia no Brasil. Concomitantemente, houve aumento de casos de microcefalia no nordeste do país, que foi associado à infecção pelo vírus Zika em grávidas (Souza et al., 2016; 2018).
Essa epidemia se espalhou para outros países, sendo declarada emergência em saúde pública no mundo pela Organização Mundial da Saúde (OMS). As manifestações severas do desenvolvimento cerebral fetal nas grávidas que foram infectadas causaram grande preocupação nas gestantes. Ser o responsável pelos cuidados de uma criança com alguma condição que afeta seu neurodesenvolvimento traz efeitos socioemocionais significativos para os pais, repercutindo na dinâmica familiar.
Em busca de dar um significado e reduzir a sensação de desamparo, essas mulheres passam a buscar nas suas crenças o apoio necessário para ajudá-la a enfrentar a situação de insegurança em relação ao futuro do seu bebê. A esperança é viabilizada através de uma força que tem potencial de favorecer a manutenção de decisões, determinação para superar a doença, além de dar sentido à vida (Ribeiro; Minayo, 2014; Simas et al., 2020). Bishop et al. (2015), avaliando indivíduos com esquizofrenia e seus familiares, através de um questionário para medir possíveis fatores de resiliência, verificaram que o suporte social, seja de familiares ou amigos e de grupos comunitários, permitiu o compartilhamento de experiências. O conhecimento adquirido através dessas trocas ajudou os pacientes a não se sentirem isolados, e aos seus familiares a se ajustarem melhor à situação da doença. O aprendizado decorrente das trocas de experiências contribui para melhor aceitação da situação de uma doença crônica. A habilidade em buscar e acreditar em suas forças sugere que ela se torna mais capaz de resistir ao estresse e suportar a situação, e de se adaptar à crise vivenciada (Bishop; Greeff, 2015).
No Brasil, a infecção pelo vírus Zika afetou com maior frequência a população de mulheres jovens e de maior vulnerabilidade social, principalmente na Região Nordeste do país (Nunes et al., 2016). Além disso, as redes de apoio para as famílias das crianças com comprometimento neurológico ficaram sobrecarregadas, tornando mais evidente a desigualdade social, de gênero e racial. Este fator se tornou um agravante para muitas dessas mulheres grávidas, que além da preocupação com o desenvolvimento futuro do seu bebê, apresentavam apreensão em relação ao seu sustento.
As teorias mais recentes acerca do estresse e do enfrentamento defendem que o processo entre o indivíduo e as situações envolve constantes interações e ajustamentos, sendo o indivíduo um agente ativo capaz de influenciar o impacto de um estressor através do uso de estratégias de enfrentamento. Assim, quanto melhores as estratégias do indivíduo, menor será sua vulnerabilidade ao estresse (Dias et al., 2020).
Diversos fatores interferem com o desenvolvimento da criança, além das ações diretas no cérebro durante o crescimento intrauterino ou decorrentes de insultos após o nascimento, que devem ser considerados ao se avaliar o desenvolvimento de uma criança (Walfisch et al., 2013; Appleyard et al., 2005). As experiências vividas pelas crianças no seu entorno, familiar ou social, assim como as desigualdades sociais, interagem entre si e com todo o processo do neurodesenvolvimento durante a infância (Bronnfenbrenner et al., 2007). Entretanto, o ambiente familiar e principalmente o cuidador mais próximo da criança, geralmente a mãe, são fatores primordiais para induzir os estímulos positivos necessários para que o processo de neurodesenvolvimento da criança ocorra em direção a um futuro adulto saudável.
Como a estimulação materna influencia o desenvolvimento neuropsicomotor da criança, e o estado emocional materno modula sua capacidade estimuladora, foi levantada a hipótese de que a forma como essas mulheres enfrentaram o diagnóstico de zika na gestação influenciaria o neurodesenvolvimento de seus filhos. Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar a forma de enfrentamento utilizada pelas mães e verificar o quanto a forma adotada influenciou o perfil de neurodesenvolvimento das crianças.
Metodologia
Realizou-se estudo de corte transversal em uma coorte de crianças cujas mães foram infectadas pelo vírus Zika durante a gestação, que nasceram assintomáticas e estavam em acompanhamento no Instituto Fernandes Figueira – FIOCRUZ (IFF) no projeto “Exposição vertical ao Zika vírus e suas consequências no neurodesenvolvimento”. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição com o número CAAE 52675616.0.0000.5269 e foi realizado no período de 2018 a 2019 no Ambulatório de Pediatria do IFF. As mães e crianças foram incluídas no estudo após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Critério de inclusão: crianças comprovadamente expostas ao vírus Zika pelo PCR positivo na gestação, assintomáticas ao nascimento, e que foram acompanhadas do nascimento até os dois anos de vida no ambulatório do IFF. Foram excluídas crianças com microcefalia, síndrome de Zika congênita, malformações congênitas, infecções pelo grupo TORCHS.
Neste estudo foram avaliados o tipo de enfrentamento utilizado pelas mães ao se saberem infectadas pelo vírus Zika na gestação, com potencial de comprometimento do neurodesenvolvimento dos filhos. As avaliações foram realizadas quando as crianças completaram dois anos de idade.
Avaliação do tipo de enfrentamento
Para a avaliação do tipo de enfrentamento, foi utilizado o instrumento Brief COPE, aplicado às mães das crianças no momento da consulta. Esse instrumento é um inventário de estratégias multidimensionais composto por 28 itens, para avaliar como as pessoas respondem a situações estressantes (Carver, 1997). Estes 28 itens estão contidos em 14 escalas (Pais Ribeiro; Rodrigues, 2004), com informações sobre os seguintes componentes das estratégias: planejamento, utilização de suporte instrumental ou de suporte social emocional, busca de apoio na religião, reinterpretação positiva, autoculpabilização, aceitação, expressão de sentimentos, negação da situação, autodistração, desinvestimento comportamental, o uso de substâncias (e.g., medicamentos/ álcool) e uso do humor.
O instrumento Brief COPE foi validado para a língua portuguesa (Pais Ribeiro; Rodrigues, 2004). Os itens são somados em cada escala, sendo que a nota obtida determina os escores que definem a estratégia para o enfrentamento.
Os questionários foram aplicados individualmente, por um único examinador, seguindo as instruções padronizadas, conforme a versão original do instrumento. Cada questão ganha uma pontuação de acordo com a resposta dada pela mãe: 1 = Não tenho feito de jeito nenhum; 2 = Tenho feito um pouco; 3 = tenho feito mais ou menos; 4 = Tenho feito bastante. Estas pontuações são somadas, formando um escore para cada estratégia: negação ou aproximação, considerando os componentes de cada uma delas, descrito a seguir.
Os componentes autodistração, negação, uso de drogas, comportamento de descompromisso, desabafo e autoculpabilização foram usados para definir a estratégia de negação. Utilização de suporte emocional, utilização de suporte de rede de apoio, reenquadramento positivo, planejamento e aceitação foram usados para definir a estratégia de aproximação. A utilização de apoio da religião e o uso do humor como distração dos problemas não fazem parte dos componentes das estratégias de aproximação e de negação. São avaliados separadamente.
Avaliação do neurodesenvolvimento
Para a avaliação do neurodesenvolvimento, foram utilizadas as Escalas Bayley de Desenvolvimento Infantil 3a Edição (Bayley III) (Bayley, 2006) aplicadas na consulta de 24 meses. Essa escala avalia crianças nas idades de 1 a 42 meses, abrangendo os domínios cognitivo, linguagem (subdividida em receptiva e expressiva) e motora (subdividida em motor fino e motor grosso). A faixa de variação dos escores considerada adequada é de 85 a 115.
Foram considerados como atrasos moderados os escores compostos para os domínios de linguagem, motor e cognitivo menores que 85 (1 desvio padrão) e severos aqueles menores que 70 (2 desvios padrão). As escalas fornecem também avaliações dos componentes social-emocional e adaptativo, que não foram avaliados neste estudo.
Foram considerados como fatores de confundimento: escolaridade e idade maternas e a amamentação durante os primeiros dois anos de vida.
Foram coletadas nos prontuários, ou em entrevista com as mães, informações sobre raça materna (autodeclarada), trabalho durante a gestação, hipertensão arterial e diabetes na gestação, renda familiar, tipo de parto, variáveis antropométricas ao nascer (peso, perímetro cefálico e comprimento), idade gestacional e APGAR de 1o e 5o minutos.
Análise
Os dados foram armazenados no software Microsoft Access e analisados no software SPSS Statistics versão 2.3. Foi realizada análise descritiva das variáveis de interesse, por meio de tabelas de frequência, médias e medianas. Os resultados do Inventário Brief COPE foram categorizados de acordo com a predominância da estratégia utilizada pelas mulheres, considerando aquela de maior pontuação entre as estratégias de negação ou de aproximação. Uma mãe apresentou pontuação idêntica para ambas as estratégias, sendo excluída das análises de associação dos fatores e dos escores do Bayley com as estratégias. Foram calculadas as frequências das estratégias predominantes utilizadas pelas 46 mulheres restantes do estudo. Foram calculadas as médias dos escores dos domínios de linguagem, cognitivo e motor, assim como de seus subescores – linguagem receptiva e expressiva, e motor fino e grosso. A presença de amamentação durante os primeiros dois anos de vida foi categorizada em dois grupos: i) a criança nunca foi amamentada; ou ii) recebeu algum leite materno (exclusivo ou complementado com fórmula) no primeiro ano de vida.
Foram realizadas análises multivariadas para avaliar fatores que estariam contribuindo para a estratégia de enfrentamento utilizada pelas mães nesta população. Foram considerados os seguintes fatores como variáveis independentes: apoio na religião, presença de comorbidades na gestação (hipertensão arterial materna e diabetes), uso do humor como componente auxiliar de enfrentamento, utilização de suporte emocional para o enfrentamento da situação, utilização de rede de apoio como suporte para o enfrentamento, a renda familiar em salário mínimo (variável contínua) e a idade materna (variável contínua). Foram realizados dois modelos considerando como variável dependente as duas categorias de enfrentamento predominante: negação e aproximação.
Resultados
A amostra inicial foi composta por 47 mães, com idade média de 31,1 ± 5,6 anos, sendo 30 (63,8%) delas autodeclaradas amarela (1), pretas (9) ou pardas (20), e 17 (36,2%) autodeclaradas brancas. O parto vaginal ocorreu em 12 mulheres (25.5%) e por cesariana em 35 mulheres (74,5%). Hipertensão arterial na gestação ocorreu em 12 (26.7%) mães e diabetes em 4 (8.9%). A média da idade gestacional de nascimento destas crianças foi de 38.1 (DP 2.09) semanas, de peso de nascimento foi 3.137g (DP 592.2), de comprimento 48.7 cm (DP 3) e de perímetro cefálico 34.4 cm (DP 1.5). A mediana de APGAR no 1o minuto foi 9 (IQR 2) e no 5o minuto 9 (IQR 1). Na data da entrevista, as crianças tinham em média 26,9 ± 15 meses, sendo 26 (55,3%) do sexo feminino e 21 (44.7%) do sexo masculino. A maioria das crianças (84,4%) foi amamentada, de forma exclusiva ou complementada com fórmula. A renda familiar média foi de 3 ± 4,9 salários-mínimos; 10 mães (21.3%) tinham ensino superior completo, 31 (66%) ensino médio completo e 6 (12.8%) ensino fundamental. Em relação ao trabalho durante a gestação, 25 (53,2%) das mulheres declararam ter trabalhado e 22 (46,8%) não trabalharam. A estratégia predominante de enfrentamento utilizada pelas mães, ao se saberem infectadas pelo vírus Zika na gestação, foi de negação em 12 (26.1%) mulheres e de aproximação em 34 (73.9%) mulheres. Uma mulher apresentou a mesma pontuação para o uso de ambas as estratégias, sendo excluída das análises, por não poder ser classificada dentro de uma categoria de estratégia predominante.
Os componentes das estratégias de enfrentamento predominante utilizadas estão descritos na Tabela 1. Pode-se observar que o componente da estratégia de negação com maior pontuação média, de 4,9, foi a “Autoculpabilização”, enquanto o componente de destaque da estratégia de aproximação” foi o “Planejamento”, com pontuação média de 5,9. “Religião”, embora não seja considerada componente de nenhuma das duas estratégias, também foi um aspecto relevante no enfrentamento da situação avaliada nesse estudo, com média 4,9.
Média das pontuações nos componentes das estratégias de enfrentamento utilizadas pelas mães das crianças do estudo determinadas pelo Inventário Brief COPE. (N=46)
A estratégia de negação foi significativamente associada com a raça preta ou parda (p-valor = 0,043) e a estratégia de aproximação com o fato de a criança ter sido amamentada (p-valor = 0,053) (Tabela 2). Analisando a distribuição das proporções de utilização de estratégia, entre as mulheres pardas e pretas, observamos que as mulheres pardas utilizavam mais a estratégia de aproximação (Tabela 2). Como raça é um marcador social importante, foi avaliado se essa diferença não se devia a outro fator, como escolaridade ou renda. A análise do termo de interação entre raça branca/(preta ou parda), escolaridade de nível superior/nível inferior em relação ao tipo de estratégia utilizada para o enfrentamento e renda mostrou que mulheres de raça branca, com maior escolaridade (ensino superior) e maior renda média mensal adotaram a estratégia de aproximação.
Nessa amostra, a média dos escores de linguagem estava abaixo do esperado. Nas subescalas, encontramos maiores pontuações na linguagem expressiva e na motora fina. As crianças cujas mães usaram predominantemente a estratégia de negação apresentaram menores médias em todos os domínios abordados pelas Escalas Bayley, quando comparadas com as mães que utilizaram a estratégia de aproximação, de forma significativa (Tabela 3).
Média dos escores dos domínios de desenvolvimento avaliados pelas Escalas Bayley 3ª Edição na população total e entre os dois tipos de estratégia predominante de enfrentamento utilizadas pelas mães (N=46)
No modelo multivariado, o apoio da religião (B: 2.24, p-valor <0.0001) e a utilização de rede de apoio como suporte para o enfrentamento (B: 1.95, p-valor 0.015) foram associados positivamente com a estratégia predominante de aproximação, ajustados para idade materna, renda familiar, comorbidades, uso do humor e utilização de suporte emocional. Para a estratégia predominante de negação, os fatores significativos foram o uso do humor (B: 3.55, p-valor 0.008) e a utilização de suporte emocional (B: 2.01, p-valor 0.013) com associação positiva, e o apoio da religião (B: -2.49, p-valor <0.0001) com associação negativa, ajustados para idade materna, renda familiar, comorbidades, utilização de suporte de rede de apoio.
Discussão
Nessa população, a estratégia predominante de enfrentamento utilizada pelas mães foi a de aproximação. Ao enfrentar as adversidades, as pessoas buscam uma maneira de se adaptar aos acontecimentos. Esses mecanismos adaptativos podem trazer diversas consequências. Estas podem focar no enfrentamento positivo do problema ou na negação, dependendo da forma como o indivíduo vai lidar com a situação. Na estratégia de aproximação, há uma definição do problema que se vivencia e buscam-se soluções alternativas. Na negação, há esforços cognitivos e comportamentais para evitar pensar sobre a situação estressante em que a pessoa se encontra, com tendência de afastamento da atenção dos episódios negativos e indutores de estresse (Rodgers et al., 2012).
Essas ações de estratégias dependem do contexto, recursos e da construção pessoal de cada pessoa. Braunstein-Bercovitz (2014) diz que é importante ter em conta os recursos físicos, mentais, financeiros, materiais e sociais que as pessoas têm disponíveis para lidar com as diversas situações e determinar as estratégias de enfrentamento que irão usar para fazer frente a essas mesmas situações. Entretanto, apesar da disponibilidade de uma rede apoio, sua utilização vai depender tanto da expectativa do indivíduo em relação a esta própria rede, quanto do modo como o indivíduo será inserido nela (Rapoport; Piccinini, 2006). Suas decisões e escolhas serão resultantes do equilíbrio entre essas percepções, entre o que ele espera e o que lhe é oferecido.
Dentro da estratégia de aproximação, os componentes mais utilizados pelas mães foram o planejamento, reenquadramento positivo e enfrentamento positivo. O planejamento é utilizado como forma de confrontar o estressor, planejando as ações adotadas; já o reenquadramento positivo seria uma maneira de lidar com a situação tentando ver o problema de forma mais otimista. No caso do enfrentamento positivo, a pessoa busca informações sobre o problema a ser enfrentado, de forma a modificar a representação cognitiva da situação e agir de acordo.
A utilização das estratégias são ações próprias para lidar com o estresse numa situação particular, como tentativa de manter o controle sobre a situação (Pires; Santos, 2011). São apoiadas em três mecanismos: resolução do problema (percepção de que há uma solução para o problema), controle das emoções (quando se pensa que a solução é “aguentar”) e obtenção de apoio social (busca de compreensão, apoio emocional e afetivo). A busca de apoio social e de ajuda de outras pessoas, e o enfrentamento emocional, são comuns e considerados mecanismos importantes (Kuo, 2013).
Na estratégia de negação, os componentes mais utilizados foram a autoculpabilização e o desabafo. O desabafo é entendido como uma estratégia de descarregar os sentimentos, enquanto na autoculpabilização a pessoa se sentiria responsável pelo que está acontecendo. No desabafo, as mães estariam expondo suas angústias em relação ao risco da deficiência no seu filho, e na autoculpabilização, elas estariam se questionando se este teria sido o melhor momento para engravidar.
Quando as mães com maior vulnerabilidade sofrem forte pressão, elas podem perceber que suas habilidades são limitadas para lidar com a situação, e inconscientemente adotam estratégias de negação (Liga et al. 2020). Algumas mães procuraram desenvolver atividades alternativas, de autodistração, como ler, conversar, ver televisão, para, assim, desligar-se do foco estressor e evitar pensar sobre o problema. A expectativa de uma possibilidade de nascimento de um bebê com malformação cerebral severa, criada em torno da maternidade durante a epidemia de vírus Zika, e de incertezas em relação à sua vida pessoal e a todas as dificuldades a serem enfrentadas pela criança com deficiência, para algumas mulheres se tornou uma grande sobrecarga emocional (Moreira et al., 2022). A partir dessa sobrecarga emocional, estas utilizaram a negação como fuga, uma ferramenta de defesa inconsciente (Clímaco, 2020).
Houve uma procura bastante frequente de apoio na religião. Os pais encontram na religiosidade e na espiritualidade uma significação e resposta a todas as dúvidas existentes diante da doença e ameaça de vida de seus filhos (Zani et al., 2015). A religião é considerada como tendo forte fator de impacto na saúde, fortalecendo a pessoa, aumentando suas iniciativas positivas, contribuindo para a aprendizagem de estratégias para lidar com as diversas situações (Alves et al., 2010). Dessen, Domingues e Queiroz (2015) concluíram que recorrer à espiritualidade através da fé traz conforto e favorece a construção de um sentido para sua experiência, e ressaltam que a fé facilita o confronto com as mudanças e coopera para a reordenação das prioridades. A espiritualidade aciona processos subjetivos, ressignificando as situações de adversidade e propiciando atuações resilientes junto à realidade.
As pontuações em todos os domínios do Bayley III foram significativamente mais baixas quando as mães utilizaram a estratégia de negação. A ansiedade gestacional traz consequências negativas para o crescimento e desenvolvimento infantil (Brouwers; Van Baar, 2001; O’Connor, 2003; Buss et al., 2010; Beltrami; Moraes; Souza, 2013), e podemos supor que essa ansiedade tenha persistido nesse grupo de mulheres que usaram a estratégia de negação. Entretanto, o desenvolvimento da criança envolve fatores diversos, tanto biológicos quanto ambientais, além da estimulação recebida na família (Walfisch et al., 2013; Appleyard et al., 2005).
As crianças avaliadas neste estudo apresentaram exame normal ao nascimento. Nos países em desenvolvimento, diversos fatores de risco, como déficits nutricionais, pobreza, violência, escolaridade dos pais, acesso a recursos sociais, dentre outros, são influências negativas para o neurodesenvolvimento (Walker et al., 2007). Contudo, foi significativo o encontro de escores mais baixos em todos os domínios do Bayley III entre as crianças cujas mães adotaram a estratégia de negação.
As mulheres com maior escolaridade e maior renda média mensal utilizaram mais frequentemente estratégias de aproximação. Este resultado é semelhante ao achado de Fernandes (2011), que afirma que mulheres com elevado nível de escolaridade e maior nível socioeconômico tendem a adotar estratégias de enfrentamento mais positivas e utilizam menos frequentemente estratégias de enfrentamento negativas.
A idade materna, o nível de escolaridade, e o estresse influenciam a relação mãe/filho e o futuro da criança (Nogueira; Altafim; Rodrigues, 2013). Desde o nascimento, existe um processo contínuo de aquisição de capacidades com o avanço da idade, provocado pela interação entre as exigências da tarefa, a biologia do indivíduo e as condições ambientais (Medina Alva et al., 2015). Nesse período, os laços afetivos entre as crianças e seus pais são fundamentais (Lago, 2010). A saúde mental da mãe e alterações emocionais, como ansiedade e depressão, podem afetar a relação mãe-bebê, tornando a criança insegura e desprotegida, o que se reflete no seu desenvolvimento no médio e longo prazos (Sameroff, 2010; Flores, 2013). É através desse vínculo que a criança irá desenvolver sua linguagem (Flores, 2013), e a área de linguagem foi a mais comprometida.
Foi encontrada associação significativa entre a raça materna e o tipo de estratégia utilizada pelas mães, sendo a estratégia de aproximação majoritariamente empregada por mães brancas e de maior escolaridade. Esta estratégia de enfrentamento se refletiu em maiores escores no Bayley III. Esses resultados refletem provavelmente uma desigualdade social.
As raças preta ou parda e a baixa escolaridade são importantes indicadores de desigualdade social. O ambiente desfavorável em que as famílias das classes sociais mais baixas vivem possivelmente favorecem uma estratégia de enfrentamento mais negativa. Essa atitude, buscando a negação de um problema, talvez decorra de um sentimento de impotência em relação a achar uma saída. Essa estratégia foi associada a piores resultados na avaliação em todos os domínios do desenvolvimento. Além disso, a pobreza e a desigualdade social impedem que crianças atinjam o seu potencial de desenvolvimento, como já foi demonstrado em estudos nos países em desenvolvimento, inclusive no Brasil (Walker et al., 2007; Davidson et al., 2003; Paiva et al., 2010; Mancini, 2004). Desta forma, os resultados encontrados no nosso estudo provavelmente refletem o efeito cumulativo de situações desfavoráveis nessas crianças, como discutido por Appleyard et al. (2005).
A associação significativa entre a estratégia de aproximação e a amamentação pode indicar que as mães com uma estratégia positiva de enfrentamento apresentam maior disponibilidade ou tranquilidade emocional para amamentar. Podemos supor que a estrutura emocional dessas mulheres propicie atitudes mais positivas em diversas situações, tanto no enfrentamento de riscos potenciais, quanto no investimento emocional ou no reconhecimento da importância da amamentação para seus filhos.
Uma outra questão foi que, enquanto houve uma grande visibilidade das crianças que nasceram com microcefalia, envolvendo associações criadas e apoio governamental, não houve a mesma estratégia para as crianças expostas que não nasceram com microcefalia, mas que apresentaram outras formas de atrasos de desenvolvimento posteriormente.
Entre as limitações do estudo está o fato de que muitas famílias enfrentaram dificuldades em manter as consultas programadas. A ausência de grupo controle é uma limitação, já que impede a comparação com crianças não expostas ao vírus Zika.
Como pontos positivos do estudo, destaca-se o fato de ser realizado com crianças que já estavam em acompanhamento, e cujas mães foram orientadas em relação a medidas de estimulação. Entretanto, os resultados das avaliações psicométricas, apesar de influenciados parcialmente pelas orientações recebidas, poderiam refletir a situação emocional dessas mães, que estaria influenciando a sua capacidade de estimulação dos próprios filhos.
Em conclusão, este estudo mostrou que a estratégia de aproximação predominante usada pelas mães foi um auxiliar importante para que essas mães pudessem estimular seus filhos. A religião e o uso das redes de suporte se mostraram como importantes apoios para essas mulheres. Os resultados encontrados indicam a importância do suporte a mulheres e mães em situações semelhantes. O reconhecimento das estratégias utilizadas por mães em situações de risco similares pode dar subsídios para um trabalho de orientação e acompanhamento de gestantes e mães mais direcionado, além de contribuir para o melhor desenvolvimento das crianças.
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Editora responsável: Jane Russo
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
30 Mar 2023 -
Aceito
02 Nov 2023 -
Revisado
30 Out 2023 -
Corrigido
24 Maio 2024