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Apresentação: a interdisciplinaridade na Saúde Coletiva

APRESENTAÇÃO

A Interdisciplinaridade na Saúde Coletiva

Joel Birman

A introdução recente do termo saúde coletiva no nosso vocabulário teórico implicou certamente em muito mais coisas do que uma mera inovação vocabular. Em verdade, implicou uma invenção conceitual de primeira ordem. Aquelas palavras remetem para uma renovação epistemológica profunda do campo da saúde, no qual as linhas de força que o perpassavam foram remanejadas pela introdução naquele de outras dimensões até então ausentes. Com isto a noção de saúde se transformou completamente, delimitando uma outra paisagem para o campo sanitário, que se apresenta agora num cenário imantado por outros eixos teóricos e novos investimentos sociopolíticos.

Antes de mais nada, é preciso evocar que a concepção de saúde coletiva transcende em muito o conceito de que foi oriunda, isto é, o de saúde pública. Na derivação daquele do campo inicial da saúde pública foram introduzidos outros referenciais teóricos de leitura do que aqueles provenientes da Medicina e das ciências da vida. Além disto, nesta ramificação criativa foram introduzidas na saúde pública outras perspectivas analíticas sobre as enfermidades e os processos de cura além daquelas até então legitimadas pela Medicina oficial e pelo Estado. Com isto, a posição da Medicina como sendo um conjunto de saberes e práticas clínicas e assistenciais foi relativizada no campo mais vasto da saúde, pois teve de incorporar no seu criar, no seu pensar e no seu fazer os diferentes pontos de vista das diversas ciências humanas e os códigos culturais diferenciados das populações assistidas no que tange às concepções sobre o normal, o anormal e o patológico.

Isso tudo implicou uma profunda mudança de mentalidade, que ainda está se realizando, em escala internacional. Se essa transformação de mentalidade foi a condição concreta que possibilitou o agenciamento desse processo, o seu a priori, a continuidade dessa transformação de fundamentos implicou também a insistência demandada para a implementação das mudanças em curso. Sem pretender explorar aqui todas as dimensões desse processo, gostaria de enfatizar, contudo, a pregnância da pesquisa interdisciplinar neste contexto renovado da saúde coletiva. Vale dizer, a perspectiva interdisciplinar de investigação é o correlato deste remanejamento profundo do campo da saúde, sem o qual esta reestruturação seria impossível. Portanto, a noção de disciplina foi implodida para que o conceito de saúde coletiva pudesse se constituir, sendo esta uma das condições de possibilidade para a invenção de um novo campo sanitário. Passa-se, então, a valorizar as leituras de problemáticas abrangentes, em que os diferentes saberes poderiam, sem dúvida, explorá-las sob ângulos analíticos diversos, mas nas quais se privilegiavam principalmente as interseções e as fronteiras dos diferentes registros disciplinares. Enfim, a constituição de novas problemáticas de investigação demandava não apenas a inserção de diversas outras disciplinas teóricas, como também a mudança de estratégias de pesquisa.

Desta maneira, a concepção da saúde não mais se identifica apenas com o registro biológico e seus derivados mediatos e imediatos, pois inscreve no seu corpo multifacetado os registros psíquico, sociológico, antropológico, histórico e filosófico. Além disso, não pode prescindir da leitura lingüística e literária, pois no que tange ao organismo humano este é impensável sem que se considere que se trata de um organismo falante, permeado por um sujeito que fala e que se inscreve no campo do discurso. A inauguração destes diversos registros, contudo, não implica uma acoplagem exterior e superficial, mas uma inserção orgânica na tessitura mesma da saúde. Com isto, a saúde se postula como sendo um outro campo de positividade, no qual as problemáticas abrangentes, a que me referi acima, delineiam a sua organicidade e substancialidade. Enfim, esta positividade reinventada não é apenas um affaire teórico, mas sim uma retórica que incide substancialmente sobre as práticas sanitárias.

Gostaria de indicar, em seguida, como esses pressupostos acima destacados se encontram presentes na elaboração deste novo número da Physis, não apenas na sua elaboração editorial como também nas preocupações teóricas que orientaram espontaneamente os diversos autores, na leitura que fizeram de suas pesquisas e artigos.

Pela mediação destas três palavras-chave - saúde mental, direitos e justiça - este número da Physis pretende explorar campos temáticos bastante diversos e estanques: psicopatologia, saúde mental, nosografia psiquiátrica, medicina do trabalho, direitos sexuais, direitos reprodutivos, direitos humanos, corpo, erotismo, justiça etc. Entretanto, não obstante esta aparente dispersão de temáticas, o que se pode depreender imediatamente da leitura dos artigos deste número é a superposição espantosa das preocupações teóricas de seus autores nas suas diferentes pesquisas. Portanto, se as temáticas em pauta são bastante diferenciadas, sem dúvida as problemáticas teóricas de fundo se condensam de maneira surpreendente, com certeza.

Vejamos, assim, como as coisas se organizaram. O fio da meada para a leitura deste número foi o campo da saúde mental. Há muito estávamos pensando em realizar um número sobre este tema, não só pela relevância teórica deste para a saúde coletiva, mas também pela atualidade de certas questões: reforma psiquiátrica, a crise do campo psicanalítico, as formas públicas de assistência etc. Na construção da revista, contudo, fomos percebendo a pregnância de certas problemáticas que se delineavam nos artigos sobre saúde mental, tais como: a idéia de reprodução social no campo da assistência pública, o deslocamento da Medicina para a Antropologia, a idéia de justiça. Estas problemáticas cruciais foram as nossas vigas mestras para a introdução de outras temáticas de pesquisa que indicavam suas inscrições nessas problemáticas fundamentais. Uma leitura sumária dos artigos, à guisa de introdução, nos indicará isso facilmente.

Iniciando-se este número com o artigo intitulado "Proposta para uma Etnografia da Psicanálise", de Cíntia Á vila de Carvalho, quisemos dar a relevância devida a uma linha de pesquisa ainda muito pouco explorada no Brasil. Neste texto, oriundo de uma tese de doutoramento em Antropologia Social, a autora propõe uma discussão prévia, de caráter metodológico, e um mapeamento inicial sobre a Psicanálise no Brasil. Com isto, a Antropologia Social pôde também ultrapassar um novo limiar, isto é, passar a explorar o campo da Psicanálise no Brasil como uma totalidade orgânica e sistemática, em vez de ficar restrita a tópicos específicos de interseção com os saberes sobre o psíquico, como fazia até então. Portanto, a proposta interdisciplinar de pesquisa ganha, assim, uma outra desenvoltura nesta confluência crítica entre Psicanálise e Antropologia Social.

O artigo do psicanalista Jaime Araújo Oliveira, intitulado "De Doenças a Estruturas, ou, da Medicina a uma Antropologia: A Constituição e Desconstituição da Nosologia Psiquiátrica entre Pinel e Lacan", pretende ser uma releitura psicanalítica da idéia de enfermidade, com o intuito de pensar a acolhida dos que sofrem do psiquismo. Para isto, propõe que se desloque a análise do registro da doença para o da estrutura psíquica, para fundamentar assim uma modalidade de assistência mais flexível e funcional com as novas demandas clínicas de uma sociedade em processo de modernização. Não obstante as críticas atuais ao conceito de estrutura psíquica, oriundo das tradições estruturalista e lacaniana, o autor procura ainda se valer deste conceito discutível para se deslocar da visão nosográfica do fato psicopatológico para uma perspectiva eminentemente antropológica. Propõe, pois, um deslocamento da Medicina mental para a Antropologia. Contudo, esta não se restringe à Antropologia Social, mas se delineia também como Antropologia filosófica. Enfim, se no artigo inicial a autora visa ler a psicanálise pela grade conceitual da Antropologia Social, neste artigo o autor pretende promover o deslocamento da Psiquiatria para a Antropologia, pelo viés da psicanálise.

Em "Agenciamentos Sociais, Subjetividade e Sintoma", Erimaldo Matias Nicacio procura nos mostrar como se realiza a seleção hierarquizada da clientela em um ambulatório público de saúde mental. Oriundo de uma dissertação de mestrado em Saúde Coletiva, o artigo tematiza o campo das forças e de investimentos sociopolíticos que perpassam os técnicos e a burocracia de um ambulatório, de maneira que podem freqüentemente selar por antecipação os destinos psíquico e social dos pacientes que demandam assistência psiquiátrica. Ter uma escuta psicoterápica, isto é, ser reconhecido como discursividade, ou ser inscrito no seu corpo sofrente pelos psicofármacos, é uma questão de classe social, que define os destinos diferenciais para os diversos sujeitos através da experiência crucial da enfermidade. Além disto, o que se evidencia bem aqui é como as categorias nosográficas utilizadas no campo assistencial determinam os destinos sociais dos pacientes, que serão marcados de maneira indelével pelos instrumentos terapêuticos postos em ação na sua forma de acolhida. Enfim, o sistema de assistência é perpassado pela lógica diferencial dos sistemas de reprodução social, de fio a pavio, de maneira insofismável.

Em "Profissão: Identificação e Projeto", Silvia Rodrigues Jardim e João Ferreira da Silva Filho realizam um estudo particularizado das desordens psíquicas em pilotos de trem do metrô do Rio de Janeiro. Com isto, desenvolvem algumas hipóteses interessantes para se pensar nas relações entre trabalho e saúde mental, delineando uma linha de trabalho fundamental em uma sociedade em franco processo de modernização, como a brasileira. A clínica aqui tem a intenção deliberada de pensar nos efeitos corrosivos dos processos sociais e instrumentais do trabalho.

Em "A Economia do Gozo e os Impasses da Justiça", Joel Birman tem a intenção de pensar psicanaliticamente a idéia de justiça. Ao sublinhar a disparidade existente, em países como o Brasil, entre o conceito universal de lei e as práticas particularizadas da justiça, o autor propõe que se considere um outro conceito de sujeito do inconsciente, diferente daquele que nos foi legado pelas tradições psicanalíticas francesa e anglo-saxônica. Nestas, existe uma harmonia entre as idéias de lei e de justiça, que implica uma certa concepção de sujeito diferente da que existe no Brasil. Com isso, poder-se­ia aceder a uma outra escuta de certas construções do imaginário brasileiro e de suas formações discursivas.

Com este último artigo se realiza uma transição temática do campo estrito da saúde mental para aqueles ligados aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos. Se a revista iniciou o seu percurso procurando oferecer uma leitura antropológica do campo psicanalítico, nesta viragem a psicanálise pensa nas imposturas da justiça e de um suposto sujeito universal, propondo um outro discurso sobre o sujeito. Impõe, pois, aqui e agora, a relativização do conceito de sujeito.

No artigo "Saúde Pública e Direitos Humanos", o epidemiologista Jonathan Mann enuncia, logo no seu início, o encontro surpreendente que se realizou recentemente entre os campos da Saúde Pública e do Direito. Se, até há muito pouco tempo, estes se mantiveram incólumes, como séries discursivas isoladas e autônomas, a problemática dos direitos humanos acabou por se tomar o caminho privilegiado para operar a costura inevitável entre esses diferentes domínios do social. Essa tessitura veio para ficar, definitivamente, traçando inequivocamente um outro desenho para o campo da Saúde Pública. A emergência de novas enfermidades, como a AIDS, assim como as atuais exigências da clientela frente às práticas médicas e assistenciais, acabaram por conduzir inapelavelmente o discurso epidemiológico a dar o devido destaque ao valor da "dignidade humana". Pela mediação deste último a intenção deliberada do autor é a de repensar uma nova paisagem ­política, ética e clínica - para o campo da Saúde Pública. É por este viés, evidentemente, que esta se transforma inapelavelmente em Saúde Coletiva, como indicamos logo no início desta Apresentação.

Em "Direitos Sexuais e Reprodutivos: Uma Perspectiva Feminista", Sonia Corrêa e Rosalind Petchesky realizam uma leitura crítica da idéia de direitos sexuais reinserido-os no registro mais amplo dos direitos sociais. Empreenderam, assim, a crítica do conceito de direitos sexuais inscrito no pensamento individualista, encaminhando-se então para uma abordagem feminista desta questão. Enfim, trata-se de relativizar a concepção de direitos sexuais e de inseri-los numa perspectiva política mais ampla e consistente.

De um ponto de vista próximo, mas diferenciado, Gita Zen sustenta, em "Reprodução: O Desafio Feminista para uma Política Social", que os programas sociais de bem-estar social, tanto na atualidade quanto ao longo da história, são o resultado de forças políticas que freqüentemente reforçam as disparidades de. gênero, classe e raçaletnia na sociedade, através da forma com que se referem ou não à reprodução.

Nos dois últimos artigos o conceito de reprodução é problematizado de uma perspectiva feminista, sendo inscrito na encruzilhada entre direitos sexuais, direitos sociais e políticas de bem-estar social. Colocam, pois, em pauta alguns dos fundamentos políticos das práticas sociais da justiça, que se materializam nas práticas de reprodução. Contudo, como a reprodução biológica se amalgama com as práticas de reprodução social, é isto que se evidencia em última instância em alguns de seus meandros. .

Finalmente, em "Os Horizontes de Prometeu", Carlos Alberto Plastino desenvolve hipóteses de trabalho bastante ricas para se pensar criticamente no conceito da Modernidade. A intenção do artigo, em última instância, é a de indicar os efeitos incisivos da Modemidade para a problemática do sujeito e para as novas modalidades de subjetivação. Tendo uma formação acadêmica diversificada (Teoria Política, Economia e Psicanálise), a interdisciplinaridade se encontra presente no fundamento da escritura do autor, indubitavelmente. Qual é o preço que pagamos, nós os modernos, pelo desafio prometéico dos deuses? Qual é o custo, ético e político, que o Ocidente tem com a constituição da razão instrumental? Estas são as questões que, em surdina, regulam este ensaio crítico. Assim, procurando explicitar os efeitos do atual projeto neoliberal, o autor acaba por puxar o fio da meada da construção da Modernidade. Indica, nesta, não apenas os seus custos éticos e políticos, como também a modelagem epistêmica das Ciências Humanas.

Com isso, pois, relançamos no fim do percurso deste número de Physis o que se enunciou desde o seu início, de maneira velada e paulatina: a dimensão trágica dos processos contraditórios de subjetivação a que estamos submetidos, de forma melancólica, e que se nos impõe de maneira implacável. Pagamos caro por tudo isso, em todos os domínios e registros de nossa existência, com a nossa racionalidade monológica, com os desgastes insofismáveis da nossa saúde mental e com o nosso erotismo.

Para Concluir

Portanto, numa leitura eminentemente interdisciplinar dos campos da saúde mental, da justiça e dos direitos, os diferentes artigos que compõem este número da Physis, indicam a superposição de interesses teóricos e a interseção das problemáticas de pesquisa. Apesar de os diversos autores terem formações diferentes - médicos, psicanalistas, antropólogos e sociólogos -, as pretensões das disciplinas se esmaecem cada vez mais diante de problemáticas mais abrangentes de nossa atualidade. É como se constitui hoje o campo da saúde coletiva. É nesta direção teórica que a pesquisa se realiza na atualidade, permitindo, pela interdisciplinaridade, a redefinição de conceitos e a renovação de antigas temáticas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    1996
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