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Além do pagamento: abordando questões éticas na pesquisa qualitativa em saúde

Remunerar sujeitos de pesquisa é ilegal no Brasil, ao contrário das práticas habituais nos Estados Unidos e em outros países anglo-saxões. O pagamento a indivíduos que participam de pesquisas suscitou muitos debates sobre bioética e proteção de seres humanos. De um lado, estão aqueles que argumentam que pagar aos participantes é uma realidade inevitável da pesquisa contemporânea e que os sujeitos estão devidamente protegidos por fortes dispositivos éticos e legais. Do outro, há aqueles que sustentam que esses pagamentos são uma forma de coerção indevida, com potencial de impactar significativamente os processos decisórios de pessoas que muitas vezes são pobres e vulneráveis. E já que a questão do pagamento ocupa lugar central nos debates éticos, temos a intenção de usá-la como ponto de partida para explorar outros problemas éticos levantados pela participação de seres humanos na pesquisa biomédica, no Brasil e no exterior.

Comitês que avaliam a ética na pesquisa com seres humanos - conhecidos no Brasil como Comitês de Ética em Pesquisa, similares aos Conselhos Institucionais de Pesquisa ou IRBs, nos Estados Unidos - tendem a analisar os protocolos de pesquisa que envolvem seres humanos sem distinguir pesquisa biomédica de pesquisa qualitativa. Seu principal critério para aprovar um estudo prospectivo é se os benefícios deste para a sociedade ultrapassam os riscos decorrentes para os participantes individuais. Além disso, os indivíduos devem ser capazes de tomar uma decisão independente, livre e informada sobre sua participação no estudo. Para este fim, os comitês de ética exigem que os pesquisadores apresentem "termos de consentimento livre e esclarecido", que devem ser preenchidos e assinados pelos participantes, para garantir que eles divulgarão plenamente os objetivos, riscos, benefícios e procedimentos do estudo. Alguns argumentam que um modelo de regulação baseado em pesquisa biomédica (onde os casos mais ultrajantes de abuso têm historicamente ocorrido) constitui um bom aparato regulatório para proteger seres humanos - os direitos das pessoas que participam da pesquisa são universais. Outros, particularmente os cientistas sociais, têm argumentado que o modelo de avaliação ética atual não é adequado à pesquisa qualitativa, e que os riscos enfrentados em pesquisas qualitativas não são comparáveis aos da pesquisa biomédica.

A questão do pagamento aos sujeitos da pesquisa levanta uma série de perguntas: será que a proibição da compensação financeira no Brasil é a maneira mais eficaz de proteger os participantes da pesquisa? Ou trata-se, pelo contrário, de uma barreira para a realização de pesquisa qualitativa no país? Quem está protegido pela aplicação legalista de normas éticas, como as rotineiramente praticadas por tais comitês: os participantes da pesquisa, ou as comissões e as instituições que os abrigam? Será que precisamos de determinado conjunto de diretrizes e procedimentos éticos projetado especificamente para supervisionar a participação de seres humanos na pesquisa qualitativa? Ou seria suficiente seguir os procedimentos padrões atualmente utilizados para a proteção dos seres humanos envolvidos em pesquisa biomédica? Finalmente, se são necessárias alterações nos quadros normativos, reguladores e institucionais existentes no Brasil, quem iria capitanear essas mudanças e onde seriam colocadas as barreiras para tais transformações?

O tema deste número da Physis apresenta estudos empíricos, bem como uma análise teórica para ajudar a explorar algumas das principais questões levantadas nos debates éticos sobre a proteção dos seres humanos em pesquisas qualitativas em saúde.

Roberto Abadie discute as questões éticas levantadas pela remuneração de seres humanos saudáveis que participam em ensaios clínicos de Fase I em Filadélfia, Pensilvânia, nos Estados Unidos. Em "'The mild-torture economy': exploring the world of professional research subjects and its ethical implications ["A tortura da economia moderada": explorando o mundo dos sujeitos de pesquisa profissionais e suas implicações éticas], baseado em seu livro mais recente, The professional guinea pig: Big Pharma and the risk of human subjects, Abadie argumenta que a "profissionalização" de seres humanos não apenas explora e desumaniza indivíduos pobres e vulneráveis que participam de estudos, como os expõe a riscos potencialmente graves dos quais podem não estar cientes.

O texto seguinte, "Pesquisas genéticas, prognósticos morais e discriminação genética: um estudo de caso sobre traço falciforme", de Cristiano Guedes e Danielle Reis, utiliza o estudo de caso de mulheres expostas a testes genéticos para a condição de traço falciforme no futebol brasileiro, apresentando um argumento muito maior sobre as questões éticas levantadas pelos testes genéticos e as proteções e salvaguardas que devem ser postas em prática para evitar a discriminação ou outras formas de dano.

O artigo "Tecnologias de reprodução assistida (TRA) no Brasil: opções para ampliar o acesso?", de Marilena Correa e Maria Andrea Loyola, examina como, apesar da afirmação do Estado brasileiro de que acesso é para todos, a privatização da tecnologia de reprodução assistida cria barreiras para mulheres pobres e suas famílias. Essa exclusão reforça não apenas as desigualdades sociais existentes, mas também desafia os princípios éticos básicos. As autoras analisam duas maneiras de expandir o acesso, bem como suas implicações éticas.

E por fim, "Pesquisas envolvendo seres humanos: reflexões a partir da antropologia social", de Ceres Victora e Patrice Schuch, analisa a institucionalização da ética em pesquisas brasileiras. As autoras argumentam que estruturas legais regulamentares, procedimentos e organismos não só fazem cumprir as diretrizes éticas, mas também contribuem para a definição de um certo tipo de ética que acaba sendo administrado e executado. Elas criticam esse modelo e, em particular, o impacto que tem sobre a pesquisa qualitativa, e propõem modelos alternativos de bioética para a proteção dos seres humanos, inspirados pelos arranjos e processos éticos de tribos e outros grupos marginalizados.

Embora alguns desses temas tenham sido levantados anteriormente, tanto no contexto brasileiro como internacional, as discussões apresentadas aqui são uma contribuição valiosa para as questões éticas na pesquisa qualitativa em saúde, incluindo seus problemas, promessas e desafios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    July-Sep 2015
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