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A percepção da equipe de trabalhadoras do SRT acerca do domicílio e da produção do cuidado no contexto da pandemia de Covid-19

The perception of the RTS team of workers about the home and the production of care in the context of the Covid-19 pandemic

Resumo

Introdução:

Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) são pontos da Rede de Atenção Psicossocial alinhados com a lógica da desinstitucionalização. O objetivo deste estudo foi analisar a percepção de 'casa' pela equipe de cuidadoras de SRT e suas implicações para a produção do cuidado durante a pandemia de Covid-19.

Métodos:

Estudo qualitativo de abordagem cartográfica que teve como cenário de estudo 4 SRT do município do Rio de Janeiro. Para a coleta dos dados, foram realizadas entrevistas com 9 trabalhadoras e observação participante de reuniões.

Resultados e discussão:

Os analisadores Lugar de Casa e Efeitos da Pandemia emergiram do processamento. O primeiro mostra a percepção das trabalhadoras acerca do ambiente da casa, enquanto o segundo traz a influência da pandemia na produção do cuidado nas SRT. O ambiente das residências é múltiplo, diverso e, por vezes, contraditório, permeado por diferentes modos de vida e influenciado por aspectos culturais, percepções e experiências vividas.

Palavras-chave:
Serviços de Saúde Mental; Cuidadores; Covid-19; SUS.

Abstract

Introduction:

The Residential Therapeutic Services (RTS) are places of the Psychosocial Care Network aligned with the logic of deinstitutionalization. This study aimed to analyze the perception of 'home' by the SRT team of caregivers and its implications for the production of care in the Covid-19 pandemic situation.

Methods:

Qualitative study of cartographic approach, which had 4 SRT in the city of Rio de Janeiro as scenario. Data collection involved interviews with 9 workers and participant observation of the SRTs' meetings.

Results and Discussion:

The analyzers Home and Pandemic Effects emerged from analysis. The first analyzer shows the workers' perception of the home environment, while the second analyzes the production of care and the influence of the Covid-19 pandemic on the SRT. The residence environment is multiple, diverse, sometimes contradictory, composed of different lifestyles and influenced by cultural aspects, perceptions and life experiences.

Keywords:
Mental Health Services; Caregivers; Covid-19; SUS.

Introdução

No final do ano de 2019, o mundo foi surpreendido com surtos de um tipo diferente de pneumonia na cidade de Wuhan, China. O agente etiológico, um novo Coronavírus causador de Síndromes Respiratórias Graves, foi nomeado SARS-CoV-2 (RAFAEL et al., 2020RAFAEL, R. de M. R. et al. Epidemiologia, políticas públicas e pandemia de Covid-19: o que esperar no Brasil? Revista Enfermagem UERJ, [S.l.], v. 28, p. e49570, abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/49570 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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). A Organização Mundial da Saúde (2020)ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA. OMS Declara Emergência Global: coronavírus. São Paulo: Mar 2020. Disponível em: <Disponível em: https://amb.org.br/noticias/oms-declara-emergencia-global-coronavirus/ >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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deu à síndrome causada por esse vírus o nome de 2019-nCoV ou Covid-19 e declarou situação de emergência mundial de Saúde Pública em janeiro de 2020.

Com a propagação do vírus pelo mundo, o Brasil teve o primeiro caso confirmado no mês de fevereiro de 2020, e um rápido espalhamento da doença em território nacional (RAFAEL et al., 2020RAFAEL, R. de M. R. et al. Epidemiologia, políticas públicas e pandemia de Covid-19: o que esperar no Brasil? Revista Enfermagem UERJ, [S.l.], v. 28, p. e49570, abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/49570 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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). No momento que este artigo é finalizado, outubro de 2021, o somatório ultrapassa 21 milhões de casos confirmados (Portal COVID-19 Brasil, 2021Portal COVID-19 Brasil. COVID-19 BRASIL. Disponível em:Disponível em: https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/ . Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

As dificuldades no enfrentamento da epidemia, tanto pela alta transmissibilidade da doença, quanto pela negligência do governo federal face à gravidade da situação e à necessidade de intensificar as medidas de proteção e distanciamento social, resultaram em uma alta e veloz propagação do vírus. Estes elementos também colaboraram para a sobrecarga do sistema de saúde público, que já apresentava fragilidades importantes (SEIXAS et al., 2020SEIXAS, C. T. et al. A crise como potência: os cuidados de proximidade e a epidemia pela Covid-19. Interface, Botucatu, v. 25, supl. 1, e200379, 2020. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832021000200200&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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). Nesse contexto, pessoas em situação de maior vulnerabilidade estão mais expostas ao adoecimento e, de certo modo, também são consideradas grupo de risco (BARBOSA et al., 2020BARBOSA, A. da S. et al. O processo de trabalho e cuidado em saúde mental no Centro de Atenção Psicossocial da UERJ na pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro, RJ: Set 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/bjhbs/article/viewFile/53527/34568 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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). No Brasil, conta-se, ainda, com um grave disparate social, onde o isolamento e outras medidas de prevenção-proteção são mais acessíveis às camadas mais privilegiadas da sociedade.

Na conjuntura pandêmica, os serviços de Saúde Mental foram classificados como essenciais pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, destacando o contexto brasileiro, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), destacam-se os pontos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (BARBOSA et al., 2020BARBOSA, A. da S. et al. O processo de trabalho e cuidado em saúde mental no Centro de Atenção Psicossocial da UERJ na pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro, RJ: Set 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/bjhbs/article/viewFile/53527/34568 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Diante destas situações os serviços de Saúde Mental têm enfrentado desafios para o atendimento de novas demandas relacionadas à experiência cotidiana do medo do adoecimento, da perda do emprego, da necessidade de isolamento social e da morte. Nesse bojo, os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) também têm enfrentado desafios na lida com os moradores, que precisam se adaptar a uma nova dinâmica de vida.

O SRT é uma estratégia de desinstitucionalização inserida na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que se constitui através de moradias localizadas em espaços urbanos que visam atender pessoas com transtornos mentais graves, tendo elas passado ou não por instituições de longa permanência. O objetivo é tornar o indivíduo capaz de tomar decisões, de conviver com pessoas, de transitar pelas ruas e de ser visto na sua individualidade. Além disso, considera-se o SRT como uma importante modalidade assistencial substitutiva ao modelo manicomial, ensejando os avanços da reforma psiquiátrica em direção à preservação da autonomia e garantia dos direitos dos usuários dos serviços de saúde mental (RIBEIRO; CASTRO, 2013RIBEIRO, V.; CASTRO, A. 2013. Repetição de pseudo-palavras: que variáveis linguísticas considerar. Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal (ESS-IPS), Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa (CLUNL). Disponível em: <Disponível em: https://apl.pt/wp-content/uploads/2017/09/RIBEIRO_CASTRO_2013.pdf >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Alinhados à lógica de modelos substitutivos de saúde, a Atenção Domiciliar (AD) também é considerada uma potencialidade no que tange à desospitalização, sobretudo por fortalecer o cuidado dentro do domicílio, na casa (SILVA et al., 2018SILVA, L. R. da. Vivendo em Liberdade: desinstitucionalização em um Centro de Atenção Psicossocial. 77p. Trabalho de Conclusão (Graduação em Enfermagem) - Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.). Caracterizada como o conjunto de ações de promoção, prevenção, tratamento, reabilitação e paliação oferecido no domicílio do usuário, a AD é realizada de modo compartilhado por uma equipe multiprofissional e um ou mais cuidadores, de acordo com as necessidades e demandas de cuidado singulares dos usuários. Nesse modelo de assistência, leva-se em consideração a estrutura familiar, a infraestrutura do domicílio e a estrutura oferecida pelos serviços (BRASIL, 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Serviço de Atenção Domiciliar - Melhor em Casa. Brasília, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/melhor-em-casa >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

A busca por material científico relacionando a compreensão do domicílio pela equipe de trabalhadoras e as implicações no contexto de pandemia de Covid-19 mostrou-se escassa, evidenciando a necessidade de estudos nesta área.

Nesse sentido, ao considerar o SRT como um espaço de produção de cuidado, coloca-se em relação o campo da saúde mental e da Atenção Domiciliar como modelos substitutivos à centralidade hospitalar. Deste modo, o estudo justifica-se pela necessidade de compreender esta relação a partir da percepção das trabalhadoras inseridas no referido dispositivo de saúde mental, destacando-se suas implicações na situação de pandemia pela Covid-19.

Portanto, tomou-se como objeto do presente estudo a percepção do domicílio pela equipe de trabalhadoras de um SRT e suas implicações para a produção do cuidado em situação de pandemia pela Covid-19. Em vista disso, definiu-se como questão de pesquisa: Como se deu a produção do cuidado nos SRT durante a pandemia?

O objetivo geral do estudo foi analisar a produção do cuidado em Serviços Residenciais Terapêuticos na conjuntura da pandemia de Covid-19 pelo olhar de trabalhadoras de SRT. Os objetivos específicos foram analisar a relação entre a percepção de moradia por trabalhadoras de SRT e o cuidado produzido nesses serviços; e identificar a percepção de trabalhadoras de SRT acerca da influência da pandemia de Covid-19 na produção do cuidado nesses serviços.

Metodologia

Trata-se de pesquisa qualitativa de abordagem cartográfica pautada nas considerações de Rolnik (2006)ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Editora Sulina UFRGS, 2014. e de Benet e colaboradores (2016BENET, M.; MERHY, E. E.; PLA, M. Devenir cartógrafa. Athenea Digital. Revista de pensamiento e investigación social, [S.l.], v. 16, n. 3, p. 229-243, nov. 2016. ISSN 1578-8946. Disponível em: <Disponível em: https://atheneadigital.net/article/view/v16-n3-benet-pla-merhy >. Acesso em: 29 nov. 2021
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). Esta escolha torna-se pertinente por permitir considerar os dados objetivos e subjetivos existentes na percepção de domicílio por trabalhadoras de Serviços Residenciais Terapêuticos.

Adotar o método cartográfico representa uma aposta na produção de conhecimento de maneira compartilhada, onde as trabalhadoras também são consideradas pesquisadores levando em conta os afetos e intercessões vividos no processo de investigação (BERTUSSI et al., 2016BERTUSSI, D. C. et al. Viagem Cartográfica: pelos trilhos e desvios. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde. Rio de Janeiro, RJ: 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Debora_Bertussi/publication/318380478_Arranjos_regulatorios_como_dispositivos_para_o_cuidado_compartilhado_em_saude/links/5966753c0f7e9b80917ff100/Arranjos-regulatorios-como-dispositivos-para-o-cuidado-compartilhado-em-saude.pdf#page=50 >. Acesso em: 29 nov. 2021
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). Desta maneira, o processo é tão interessante quanto o produto, pois é possível o compartilhamento de experiências e itinerários.

O cenário de estudo foram 4 SRT (modalidades I e II) localizados na área programática 2.2. do município do Rio de Janeiro.

A inserção da pesquisadora se deu, inicialmente, por ocasião das reuniões semanais realizadas com a presença de Cuidadoras, Técnicas de Enfermagem, Acompanhantes Terapêuticas, a Coordenação e a Supervisão dos SRT. Esta reunião é um instrumento institucional estabelecido para a discussão sobre o cotidiano dos SRT, suas dinâmicas, compartilhamento de experiências e tomadas de decisões, com vistas a direcionar o cuidado produzido no dispositivo. Assim, é priorizado que as trabalhadoras tragam demandas para a construção da pauta do dia.

A pandemia redirecionou a organização dos encontros, determinando que fossem realizados de maneira virtual, tendo sido preservado, contudo, o espaço de discussão do cotidiano dos SRT, somado agora às questões relacionadas às medidas de isolamento social e ao quanto exigiram novas dinâmicas na produção do cuidado.

A pesquisadora participou de doze reuniões - 2 presenciais e 10 virtuais - utilizando a observação participante como método de coleta de dados, com registro em diário de campo, que permite a aproximação real do pesquisador ao grupo, incorporando-o e confundindo-se com ele. Desta maneira, o observado também se faz pesquisador, como entendemos na pesquisa cartográfica (LAKATOS; MARCONI, 2003MARCONI, M. de A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas 2003. Disponível em: <Disponível em: https://docente.ifrn.edu.br/olivianeta/disciplinas/copy_of_historia-i/historia-ii/china-e-indi >. Acesso em 29 nov. 2021.
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).

Em um segundo momento, realizaram-se entrevistas virtuais individuais com as trabalhadoras, com roteiro semi-estruturado composto por 13 perguntas norteadoras. A entrevista semi-estruturada apoia-se nas orientações trazidas por Minayo (2014MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec , 2014. Disponível em: <Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/33023325_O_desafio_do_conhecimento_Pesquisa_qualitativa_em_saude >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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), que define este tipo de entrevista com perguntas combinadas entre abertas e fechadas, com possibilidades de exploração "em ato" das respostas.

A equipe de trabalhadoras responsáveis pelo cotidiano das 4 SRT, tendo 26 moradores em cada casa, sob a supervisão do CAPS de referência, é composta por 26 trabalhadoras que se revezam nas casas em escala específica dos dispositivos, organizadas pela coordenadora das moradias. Destas, nove trabalhadoras foram selecionadas a partir do aceite do convite feito pela pesquisadora a toda a equipe nas reuniões supracitadas. Os critérios de inclusão foram: ser trabalhador(a) do SRT; estar inserido(a) no cotidiano do SRT ocupando cargo de maior proximidade e tempo com o morador; ter disponibilidade para a realização de entrevistas de forma virtual usando ferramentas de comunicação por vídeo ou por chamada telefônica. Não houve restrição quanto ao quantitativo mínimo e máximo de participantes de cada um dos 4 SRT do território, sendo que três trabalhadoras estavam inseridas em mais de uma casa.

As entrevistas ocorreram entre os meses de setembro e outubro de 2020, com duração média de 37 minutos. Os áudios foram gravados e, posteriormente, transcritos na íntegra. A pesquisa respeitou os preceitos éticos da Resolução 466/2012 que normatiza as pesquisas com seres humanos, com objetivo de proteção de seus direitos (BRASIL, 2012CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução CNS nº 466/2012. Trata de pesquisas em seres humanos e atualiza a resolução 196. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, ano 2013, nº12, 12 dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob o número CCAE: 26551319.6.0000.5282. Explicitados os objetivos da pesquisa e sua finalidade, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Os resultados foram analisados por meio de processamentos coletivos, configurados como espaços-tempo em que a pesquisadora principal trazia para a cena suas vivências do campo, descrição de cenas, trechos de diário de campo e de entrevistas, impressões e esses eram coletivamente "processados" pelos participantes desses espaços - orientadores e pesquisadores do Observatório de Políticas e o Cuidado em Saúde - Polo UERJ/ CNPq, produzindo afetações e deslocamentos nos participantes (CRUZ et al., 2016CRUZ, Kathleen Tereza da et al. Na cozinha da pesquisa: conversações sobre os encontros do trabalho e o trabalho dos encontros. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.researchgate.net/Arranjos_regulatorios_como_dispositivos_para_o_cuidado_compartilhado_em_saude/links/5966753c0f7e9b80917ff100/Arranjos-regulatorios-como-dispositivos-para-o-cuidado-compartilhado-em-saude.pdf#page=50 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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). Do recolhimento dos processamentos, emergiram dois analisadores, isto é, elementos-chave para a compreensão do objeto de pesquisa, por trazerem à tona as contradições, as interseções e a complexidade das questões analisadas: “Lugar de Casa” e “Efeitos da Pandemia”.

Resultados e Discussão

O analisador Lugar de Casa traz análises associadas à percepção das trabalhadoras acerca do lugar de domicílio no SRT e a relação deste com o cuidado produzido. Por sua vez, o analisador Efeitos da Pandemia revela como a produção de cuidado e de vida foram influenciados por esse acontecimento.

Lugar de Casa

Como será demonstrado, o analisador Lugar de casa aponta para dois caminhos inte- relacionados: a associação deste à ideia de moradia, de residência, de habitação, de domicílio, de receber correspondências, realizar refeições, assistir TV; e à noção de ocupação, de espaço de trabalho das profissionais e alinhado à ideia de um lugar físico/geográfico. Somado a estes, aparecem caminhos que apontam para o lugar de aconchego, descanso, repouso, que tem ligação com afetos, sentimentos, rotinas, experiências, vivências e compartilhamentos, apontando para sentidos mais subjetivos.

Acerca da percepção de domicílio, destacam-se, inicialmente, as seguintes falas:

Nosso endereço, até mesmo de correspondência, referência... (Trabalhadora I).

Ter sua residência, que você pode dizer “é minha”. (Trabalhadora III).

Local do seu aconchego, local de descanso, local onde ela faz as suas necessidades... (Trabalhadora IV).

Demonstra-se, assim, que a percepção de domicílio varia entre as trabalhadoras e que essa é uma construção subjetiva. Martin Heidegger (1954HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. 1954. Bauen, Wohnen, Denken. 1951 Conferência pronunciada por ocasião da "Segunda Reunião de Darmstadt", publicado em Vortage und Aufsatze, G. Neske, Pfullingen, 1954. Disponível em: <Disponível em: www.prourb.fau.ufrj.br/jkos/p2/heidegger_construir,%20habitar,%20pensar.pdf >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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) nos traz a reflexão de que não existe uma maneira única de morar, tendo a forma de morar relação com cada cultura e como esta se relaciona com a natureza e com o mundo através do seu modo de viver.

Desta forma, a partir da trajetória e da inserção da pesquisadora nas reuniões e entrevistas, o que se evidencia é a relação estabelecida entre o entendimento de casa e a produção de cuidado das trabalhadoras. Seus modos de viver podem ser trazidos para o espaço do trabalho, relacionando-se com a postura assumida nos SRT. Assim, o entendimento do lugar de casa é um elemento relevante para a produção do cuidado, visto que influencia as práticas cotidianas desenvolvidas nas residências.

A trajetória da pesquisa demonstrou que, em alguns momentos, as trabalhadoras se colocam num lugar de auxiliares das atividades diárias dos moradores. Dentro das casas, os moradores são incentivados a participar e conduzir tarefas, como varrer, lavar a louça, cozinhar, descascar legumes e regar as plantas, de acordo com os arranjos internos acertados entre eles, com o demonstrado na fala seguinte:

Ó, você já lavou a louça, fulano? Tem que retirar lá o prato da mesa. Olha lá, você deixou cair feijão no chão. (Trabalhadora I).

Assim, o que se apresenta são funções das trabalhadoras, pautadas em uma programação diária a ser cumprida dentro e/ou fora das casas. As tarefas internas são relacionadas à organização e manutenção da residência, sendo que nas casas onde os moradores apresentam mais dependência, as atividades são menos compartilhadas, ficando à cargo sobretudo das trabalhadoras. Desta forma, a limpeza, o preparo das refeições, o cuidado com as roupas e a dispensação das medicações aparecem como funções, conforme descrito na fala abaixo:

A função de cuidadora que eu faço: comida, roupa, tem que lavar a roupa e ajudar a olhar o que precisa ser feito na casa. Se for uma coisa que não dá para eles fazerem, eu faço. E se for alguma coisa que dá para eles fazerem, eu os auxilio, orientando. (Trabalhadora V).

Ora, se a percepção de domicílio influencia na produção do cuidado, questiona-se se desempenhar essa função é resultado do entendimento de Lugar de Casa para as trabalhadoras, qual a intencionalidade dessas ações no cotidiano e, sobretudo, o quanto esse entendimento interfere no sentimento de apropriação da casa pelos moradores. Para Saraceno (2016SARACENO, B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: PITTA, A. Reabilitação psicossocial no Brasil. 4 ed, São Paulo: Hucitec , 2016. Disponível em: <Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4439432/mod_resource/content/1/0929_0001.pdf >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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), no processo de Reabilitação Psicossocial, o morar não envolve apenas o espaço físico e material, mas também o sentimento de acolhida, de apropriação da moradia e do ambiente doméstico.

Nessa direção, ao serem questionadas sobre a sua percepção acerca do sentimento de pertencimento dos moradores, as trabalhadoras relatam variações e singularidades: enquanto alguns moradores reforçam que o SRT é a casa deles, outros manifestam o desejo de morar com algum familiar ou até mesmo sozinhos. Situações como desejar ter um cachorro e não poder, como ter que pedir autorização para realizar alguma atividade, ou mesmo o fato de não poder decidir quem vai morar nas casas são exemplos que reforçam a dificuldade de se criar um sentimento de pertencimento, de lar. Acerca desta questão, as trabalhadoras III e IV referem que os moradores têm falas como:

Aqui não é a minha casa não, não mando em nada, tenho que pedir tudo. (Trabalhadora III).

Tá, mas aqui é minha casa. Eu posso porque é minha casa. (Trabalhadora IV).

O que se evidencia é que, da mesma forma que a história pessoal de cada trabalhadora influencia sua representação de moradia, a trajetória de cada morador também influencia na sua possibilidade de construir, para si, sentimentos de pertencimento em relação àquele espaço. Contudo, independente dessas falas, as trabalhadoras acreditam que os moradores estão na casa deles, já que 'fazem o que gostam', possuem liberdade de sair (mesmo que necessitem avisar previamente), podem comer algo que tenham vontade se considerarem que é possível. Porém, ao mesmo tempo, há o reconhecimento de que essas vontades são limitadas, já que é o ambiente de trabalho delas e elas precisam direcionar o cuidado.

Acerca das atitudes de um dos moradores e a postura de trabalho, destacam-se as seguintes falas:

Olha, não sobe neste banco porque está quase quebrando, essa cadeira aí vai acabar quebrando! (Trabalhadora IV).

[...] por exemplo, eu chego na minha casa, se eu quiser dormir, se eu quiser deitar, se eu quiser comer [...] Eles têm horário pra comer, eles têm o horário de jantar, que é o horário quando eles estão com fome. “Ah, eu quero suco”, a gente dá. É assim, a gente faz a vontade deles mas, é tudo direcionado tudo arrumado. “Olha, hoje vocês querem passear?” Mas, é tudo perguntado, nada é obrigado. (Trabalhadora VII).

Tornam-se presentes certas contradições entre a fala/desejo de alguns moradores e a percepção das trabalhadoras sobre estas narrativas, vivências e, consequentemente, a condução do cotidiano dos SRT. Se por um lado existem moradores que expressam a não compreensão daquele espaço como casa, dada a liberdade limitada que lhes é ofertada; por outro, as trabalhadoras seguem afirmando que eles se sentem sim em casa e, a dispar da mensagem ofertada pelo cotidiano, por vezes, seguem conduzindo o espaço por meio de regramentos que cerceiam a autonomia e interditam o processo de reabilitação psicossocial.

Nesse sentido, faz-se relevante o caso de uma moradora que, após ser internada em um hospital geral por questões clínicas, não expressou o desejo de retornar à residência:

Ocorre então um movimento da equipe para trazê-la de volta. Uma pessoa que passou por longas internações psiquiátricas pode se sentir mais em casa dentro de um hospital, do que no local que é dito sua casa. (Registro do diário de campo).

Esse relato expõe questões a serem problematizadas: ora, o fato de estar em um local de internação ou qualquer instituição nos moldes hospitalares ser reconhecido como espaço de desejo, nos mostra que a construção do morar não é simples. O que se destaca é a singularidade do processo e que sentir-se em casa é algo vivo e em constante relação com as conexões com a vida e com as pessoas com que compartilhamos, com seus contextos históricos, experiências e vivências.

Nesse sentido, instituições hospitalares, incluindo as com características de instituições totais, podem assumir um lugar de pertencimento, ainda alinhado à ideia de diminuição da autonomia, cidadania e demais pressupostos defendidos pela Reforma Psiquiátrica. Em outras palavras, o que podemos afirmar é a necessidade de alinhamento ao cuidado desinstitucionalizante de todos os atores em prol da (re)construção do significado do morar enquanto processo subjetivo, influenciado pela singularidade cultural e histórica de cada um. E essa reflexão convoca um horizonte inegociável: a construção processual do sentimento de pertencimento nas casas de modo a produzir deslocamentos que ressignifiquem as histórias e as vivências em prol de uma existência autônoma e cidadã e dos SRT como lugar de pertencimento-moradia.

Com a intenção de aprofundar a reflexão, faz-se pertinente discutir a diferença entre o estar e o habitar, no quesito morar. O estar traz consigo o ocupar, porém não pressupõe a apropriação, seja ela material, simbólica ou emocional. Já o habitar engloba todos esses quesitos (SARACENO, 2016SARACENO, B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: PITTA, A. Reabilitação psicossocial no Brasil. 4 ed, São Paulo: Hucitec , 2016. Disponível em: <Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4439432/mod_resource/content/1/0929_0001.pdf >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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). Nota-se que essa apropriação é positiva para o sujeito e para os demais a sua volta, haja vista que ele consegue interagir afetivamente a partir desse acontecimento (MÂNGIA; RICCI, 2011MÂNGIA, E. F.; RICCI, E. C. “Pensando o Habitar” - Trajetórias de usuários de Serviços Residenciais Terapêuticos. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, SP. v. 22, n. 2, p. 182-190, maio/ago. 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rto/article/view/14136/15954 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

A duplicidade deste local aparece em diversos momentos das entrevistas e reuniões, uma vez que a casa dos moradores é também o ambiente de serviço vinculado à saúde. Desta forma, fica a cargo das trabalhadoras mediarem situações de tamanha complexidade que atingem não só a dinâmica da casa, mas também o poder de decisão dos moradores: uso de cigarro, consumo de bebidas alcoólicas, utilização ou não de tapetes, ingesta de alimentos ditos saudáveis, horário das refeições, vigilância de objetos pessoais para verificar se o morador guardou algo indevido, etc.

Ah, o cuidado de colocar pouco sal nas comidas, incluir mais legumes na alimentação, dar preferência a alimentos cozidos e não fritos. É… deixa eu ver o que mais a gente faz: evitar refrigerante. Assim, a gente mantém uma dieta mais balanceada. Então são esses cuidados que a gente prioriza com eles. (Trabalhadora IV).

Por exemplo, eu não gosto de tapete no chão, é até bonito é, mas para a nossa clientela não é. Isso é um cuidado que nós temos para com eles, que aí pode tropeçar, cair, eles não têm noção de como andar direito, pelo menos aqui não tem. (Trabalhadora VI).

A gente tem que cuidar, preservar de tudo deles. Não deixar acontecer nada... (Trabalhadora III).

Kinoshita (2016KINOSHITA, R. T. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: PITTA, A. (Org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. 4 ed. São Paulo: Hucitec, 2016. Disponível em:<Disponível em:https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/534884/mod_resource/content/1/1sem2015/Contratualidade_Reabilitacao_psicossocial_no_Brasil.pdf > Acesso em: 29 nov. 2021.
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) nos traz à memória que a pessoa que tem o atributo do transtorno mental, tem o seu valor contratual anulado. Visto que este é conceituado como um valor previamente atribuído para cada indivíduo no campo social e as relações de trocas são baseadas nele, a pessoa com transtorno mental é reduzida, anulada no campo social.

O diálogo, importante ferramenta para a clínica de saúde mental, é, segundo Paulo Freire (1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17 ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 52 p. Disponível em: <Disponível em: https://docs.google.com/a/fcarp.edu.br/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZmNhcnAuZWR1LmJyfG51cGVkaXxneDpmMzFhOWM0YzA3YTg2OWE >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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), fundado no amor, na humildade e na fé nos homens, tornando uma relação horizontal. Assim, se houver horizontalidade nas relações com a presença do diálogo haverá mais possibilidades de autonomia dos moradores (MÂNGIA; RICCI, 2011MÂNGIA, E. F.; RICCI, E. C. “Pensando o Habitar” - Trajetórias de usuários de Serviços Residenciais Terapêuticos. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, SP. v. 22, n. 2, p. 182-190, maio/ago. 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rto/article/view/14136/15954 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Nesse sentido, a relação de simetria, torna-se ainda mais pertinente. Numa relação simétrica, não se busca negar as diferenças e a singularidade dos interlocutores, mas considerar ambos como interlocutores-válidos, o que significa enxergar que o outro tem necessidades, desejos, expectativas e que a sua diferença é fonte de enriquecimento da prática (SEIXAS et al., 2019SEIXAS, C. T. et al. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface, Botucatu, v. 23, e170627, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832019000100205&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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). Assim é, muitas vezes, o encontro entre as trabalhadoras e os moradores: um encontro de mundos distintos.

Desta forma, acreditamos que o ambiente domiciliar do SRT tem a potência de aumentar o poder contratual dos moradores, bem como estabelecer relações de simetria entendendo todos os sujeitos envolvidos como interlocutores-válidos. Para tal, se faz necessária a reflexão permanente sobre as ações que necessitam ser antimanicomiais. Quando não permitimos os diferentes modos de viver, o poder de decisão, desvalorizamos as falas e desejos, estamos contribuindo para a nulidade do poder contratual.

Percebe-se que essas questões cercam a todo tempo a equipe. Alguns moradores decidiram parar de fumar, após serem alertados quanto às consequências desta prática. Porém, um deles não compartilhou desta decisão. Esse caso acaba sendo discutido pela equipe, reforçando a necessidade de controle desta prática, visto que o morador possui restrições clínicas.

Pela proximidade das relações que esse ambiente proporciona e até mesmo por situações que por vezes estão alinhadas à tutela dos moradores, o sentimento de pertencimento perpassa as trabalhadoras e também toda a equipe, influenciando positivamente e/ou negativamente na tomada de decisões.

É como se fosse a minha casa, a gente já chega ali como se fosse a nossa casa também. A gente é tratado como se fosse a nossa casa, a gente trata eles como se saísse da minha casa e fosse para casa de um parente. (Trabalhadora III).

Ou a gente cuida ou a gente deixa fazer o que quer [...] (Trecho do Diário de Campo, em referência à fala de uma trabalhadora).

[...] que é igual cuidar de criança, pois criança quando tem que tomar vacina, chora e tudo mais, mas é necessário fazer. É necessário medir até que ponto o morador toma atitude sabendo das reais consequências [...] (Trecho do Diário de Campo).

Desinstitucionalização é desconstruir, é mudar o pensamento reducionista que associa a loucura à doença mental e à anormalidade (SILVA, 2019SILVA, L. R. da. Vivendo em Liberdade: desinstitucionalização em um Centro de Atenção Psicossocial. 77p. Trabalho de Conclusão (Graduação em Enfermagem) - Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.). A "desinstitucionalização é um trabalho terapêutico que objetiva a reconstrução das pessoas que sofrem ao lugar de sujeitos" (ROTELLI, 2020, p.33ROTELLI, F.; LEONARDIS, O. de; MAURI, D. Desinstitucionalização, uma outra via. 2 ed. São Paulo: Hucitec , 2019, p. 33. Disponível em: <Disponível em: https://docero.com.br/doc/nc1xse >. Acesso em: 27 nov. 2021.
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). Assim, segundo a mesma, não basta desospitalizar, é preciso também uma mudança de paradigma, já que o modelo centrado no agenciamento da loucura social também é excludente. Desinstitucionalizar vai para além dos muros do manicômio.

Rotelli (2020) aponta que os principais atores deste processo de desinstitucionalização são os trabalhadores que estão dentro das instituições. As dificuldades de equilíbrio entre “Ser Serviço” e “Ser Casa” ao mesmo tempo, a responsabilização das cuidadoras evidenciada pelas ações de tutela, são todas variáveis que aparecem neste ambiente. Assim, entendemos que operar a desinstitucionalização no cotidiano das casas é desafiador e que se faz necessária a presença destas trabalhadoras para o seu desempenhar.

Portanto, considerando o mandato social dos SRT, a transformação da desconstrução do manicômio é produzida por gestos elementares, como: restabelecer a relação do indivíduo com o seu corpo; restituir o direito à palavra; reconstruir a possibilidade de uso dos objetos pessoais; liberar sentimentos; produzir relações; restituir os direitos; e outros (ROTELLI, 2020ROTELLI, F.; LEONARDIS, O. de; MAURI, D. Desinstitucionalização, uma outra via. 2 ed. São Paulo: Hucitec , 2019, p. 33. Disponível em: <Disponível em: https://docero.com.br/doc/nc1xse >. Acesso em: 27 nov. 2021.
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).

Autonomia é a capacidade do indivíduo de gerar normas e ordens para a sua vida nas diferentes situações que vivencia. Assim, não se trata de autossuficiência e independência, mas sim, através da dependência das relações ocorre a ampliação das possibilidades de se criar novas ordens e normas para a vida, sendo autônomo (KINOSHITA, 2016KINOSHITA, R. T. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: PITTA, A. (Org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. 4 ed. São Paulo: Hucitec, 2016. Disponível em:<Disponível em:https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/534884/mod_resource/content/1/1sem2015/Contratualidade_Reabilitacao_psicossocial_no_Brasil.pdf > Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Desta forma, percebemos que o SRT tem potencialidade para contribuir no desenvolvimento da autonomia dos moradores e notamos isso ocorrendo em diversos momentos. É um serviço territorial que atua na perspectiva antimanicomial, porém em alguns momentos as práticas tutelares e normativas cerceiam a autonomia e a liberdade dos sujeitos. O desafio a ser visto nesse ambiente em especial, é o de como se dão esses processos dentro do Serviço/Casa.

Efeitos da pandemia

O analisador Efeitos da Pandemia nos mostrou que os SRT estudados tiveram afetações decorrentes da pandemia. Nota-se, através dos resultados coletados, que os moradores começaram a ser mais convocados a se envolverem nos afazeres domésticos. As trabalhadoras trazem informações demonstrando que procederam dessa forma para evitar que ficassem com tempo ocioso. Assim, destaca-se a fala da trabalhadora III:

Aí um varre, o outro pendura a roupa, o outro tira a roupa, o outro joga lixo fora. Para a gente poder fazer com que eles façam alguma coisa. (...) [a gente] pede mais, para chamar a atenção deles. Para eles não ficarem à toa só vendo TV, TV, TV, o tempo todo. (Trabalhadora III).

De fato, a pandemia pela Covid-19 trouxe para o cotidiano de muitas pessoas, um esforço para evitar a contaminação, tendo o isolamento social como uma das medidas mais restritivas. Assim, algumas atividades domésticas tornam-se mais planejadas para que se amenize o enclausuramento (BITTENCOURT, 2020BITTENCOURT, R. N. Pandemia, isolamento social e colapso global. Revista Espaço Acadêmico, n221, mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/52827/751375149744 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Por uma outra perspectiva, em uma sociedade em que prevalece um certo automatismo produtivista (ROSÁRIO et al., 2020ROSÁRIO, N. M. do. Explosões Semióticas na Pandemia de Covid-19. In: Porque Esperamos [notas sobre a docência, a obsolescência e o vírus]. 2020. Rio Grande do Sul: Porto Alegre. Disponível em: <Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/210678/001115593.pdf?sequence=1 >. Acesso em: 27 nov. 2021.
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), o fato de ficar em casa mantendo o isolamento social, leva muitos indivíduos a precisar preencher o tempo com afazeres passíveis de serem realizados naquele ambiente: limpar a casa, arrumar armário, fazer exercícios físicos, etc. Para Rosário e colaboradores (2020ROSÁRIO, N. M. do. Explosões Semióticas na Pandemia de Covid-19. In: Porque Esperamos [notas sobre a docência, a obsolescência e o vírus]. 2020. Rio Grande do Sul: Porto Alegre. Disponível em: <Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/210678/001115593.pdf?sequence=1 >. Acesso em: 27 nov. 2021.
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), isso tem influência e dificulta o pensar e refletir sobre os sistemas impostos, relações familiares, produções científicas, entre outros.

Em nossa pesquisa, percebemos que os afazeres domésticos foram mais estimulados no momento da pandemia, não com a intencionalidade de apropriação do lugar de casa, mas sim como uma forma de preencher os vazios causados pela pandemia. No entanto, percebemos que este acontecimento pode ser um potencializador para a produção do sentimento de apropriação deste ambiente. Assim, infere-se que se há um novo comportamento sendo produzido a partir deste potencializador, ele pode ser perpetuado para além do período de isolamento. A depender da intencionalidade e da elaboração coletiva das intervenções, as tarefas domésticas podem ser produtoras de sentido na casa, de pertencimento.

Desta forma, a equipe percebeu a necessidade de criar atividades dentro das casas para que os moradores ficassem mais entretidos e que diminuíssem os sintomas de ansiedade. Destaca-se algumas atividades que foram mais incentivadas nesse período, como: dia do bolo, escutar música, praticar exercício físico em casa através de aulas na internet, jogos. Percebe-se, porém, que os moradores sentem muita necessidade de sair de casa, e que a privação tem consequências não positivas na vida destes. Antes estavam acostumados a transitar pela cidade e hoje estão sendo tolhidos

Outra situação que nos chama a atenção, é o relato das trabalhadoras que dizem que nesse momento de ficar em casa, alguns moradores fazem associação com o tempo que passaram no manicômio. Visto que em ambos os momentos, estão privados da liberdade de sair. Destaca-se a seguinte fala da trabalhadora III:

Ele senta de cócoras no corredor do apartamento e fica falando lá com as vozes dele sozinho e fala “É, estamos aqui de novo né. Aqui de novo!" (Trabalhadora III).

É sabido que as instituições manicomiais cerceiam a liberdade, a autonomia e contribuem para a degradação humana (ALENCAR; LIMA, 2014ALENCAR, M. R.; LIMA, A. F. A violação ao princípio da dignidade da pessoa humana em instituições manicomiais: uma análise à luz do direito. Scientia, v. 2, n. 3, p. 01 - 217, nov. 2013/jun.2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.faculdade.flucianofeijao.com.br/site_novo/scientia/servico/pdfs/VOL2_N3/MONALISAROCHAALENCAR.pdf >. Acesso em: 29 nov. 2021
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). O sequestro manicomial, com toda ausência de liberdade e demais privações são parte da história desses moradores. Essas experiências não são esquecidas e podem ser resgatadas subjetivamente no momento de isolamento social, o que confirma a complexidade da produção do cuidado no SRT na pandemia.

Anteriormente à eclosão da epidemia, os moradores com menor grau de dependência tinham o costume de sair sozinhos: ir ao mercado, ao salão de beleza, a passeios, a igrejas, ao trabalho e estudar. E os moradores que possuem maior grau de dependência também tinham atividades acompanhadas e programadas no território, contudo, mediadas pelas trabalhadoras. Sobre esse assunto, destacam-se as falas das trabalhadoras V e VI:

Porque todo mundo ficou estressado. Os moradores daqui, como eu te falei, eles têm baixíssima complexidade, então eles estão muito acostumados a sair. (Trabalhadora V).

[...] iam ao mercado, compravam as coisinhas deles, compravam o que eles queriam, iam comprar roupa deles ali na Americanas. Mas eles saiam sozinhos. (Trabalhadora VI).

Partimos da premissa que o território se constitui como principal local de cuidado, pois é nele que se constroem histórias, processos, lutas, disputas, conflitos e relações. É nele que a vida acontece e é ele o substrato potente para o convívio entre os diferentes. É preciso, porém, levar em conta que a instituição manicomial, as práticas de isolamento e a exclusão, ainda estão presentes no imaginário social e têm um impacto nessa reterritorialização dos moradores dos SRT (SILVA; PINHO, 2015SILVA, A. B. da; PINHO, L. B. de. Território e saúde mental: contribuições conceituais da geografia para o campo psicossocial. Rev enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2015 maio/jun. Disponível em: Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/129915 . Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Assim, a circulação dos moradores do SRT no território da vida comum, carrega em si uma potência desinstitucionalizante capaz de gerar efeitos positivos nos moradores, mas também no seu entorno que, ao aproximar-se da experiência-vivência da loucura, em um contexto desmanicomializado, tem a oportunidade de desconstruir preconceitos. Eles (os moradores) são vistos em relação com o território, em circulação possível, com suas limitações e potências, de forma muito próxima aos percalços que todos enfrentamos de forma cotidiana. Isso proporciona um encontro de mundos com potência produtora de efeitos e afetos em todos os envolvidos, (re)construindo, mobilizados pelo direito à vida cidadã, um mundo outro a partir do laboratório da vida real.

O reconhecimento do território como um importante elemento para o cuidado, com possibilidades de construção de vínculos, de reconhecimento e de ressignificação, sobretudo para moradores dos SRT que, em sua maioria, passaram por longas internações, com privação de liberdade, não é difícil imaginar as perdas causadas pela pandemia.

Antes das medidas de isolamento social, quando chegavam para assumir o plantão nas casas, as trabalhadoras sempre eram abordadas pelos moradores contando novidades que tinham feito na rua e elas percebiam como isso era positivo, tanto para os moradores que podiam transitar pela cidade, quanto para elas que eram ouvintes dessas novidades cotidianas. As consequências do isolamento no cotidiano de casa/serviço são perceptíveis na fala da trabalhadora I:

Eu chegava aqui sempre tinha uma novidade, "ah, saí hoje, fui no shopping, fui fazer as unhas bonitas" (...) Sempre tinha uma novidade para me contar, felizes, contavam "comprei uma bermuda" (Trabalhadora I).

Evidencia-se que há um movimento de conversa com os moradores explicando da necessidade de ficarem reclusos nas casas. Destaca-se, contudo, que a decisão de permanecer dentro da residência não passa pelos moradores, o que para a maioria das pessoas fica a critério de um certo "bom senso". O manejo dessa situação é muito discutido nas reuniões de equipe, onde não há a participação dos moradores.

A equipe que estava na casa do morador colocou-o para aparecer [na reunião online]. A princípio isso foi bem aceito por alguns, até que o morador começou a xingar alguns membros da equipe. Então foi colocado um recado avisando que os moradores não poderiam participar das reuniões. (Trecho do Diário de campo).

No que tange aos comportamentos e hábitos dos moradores, as falas da equipe, tanto nas entrevistas quanto no Diário de Campo, apontam para mudanças significativas, como o aumento do consumo de alimentos e do peso corporal de alguns moradores, alterações dermatológicas - mudanças essas que a equipe associava à quadros de ansiedade e que lhes demandava maior atenção.

Nesse sentido, trazemos o caso de um morador que tem o costume de ficar ajoelhado por muito tempo, segundo as trabalhadoras, como uma forma de agradecimento a Deus. Porém, após uma ocorrência durante a pandemia que o remete à um acontecimento passado de sua vida, isso se intensifica e esse começa a passar a maior parte do dia ajoelhado. Nesse momento, a equipe entende a necessidade de uma intervenção e se mobiliza para fazer rede com o CAPS de referência e com um padre, que aceita ir até à residência para conversar com o morador.

Esse caso continua sendo discutido durante a participação nas reuniões. Com base nesse relato, o que se percebe é a potência do SRT mobilizada pela proximidade cotidiana com os moradores e a capacidade de agenciamento de serviços para além dos CAPS e demais dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial. A rede, construída a partir do ofertado pela vida real, é ampliada, incluindo no plano do cuidado elementos como os espaços de expressão da fé. Em outras palavras: é por meio do vínculo e do conhecimento das histórias e trajetórias individuais que as intervenções podem ser propostas.

As trabalhadoras também tiveram suas vidas afetadas e relatam questões como o medo e a insegurança de se expor ao irem trabalhar, encontrando dificuldades no deslocamento. A quantidade de pessoas que estão nas ruas e muitas vezes sem a devida proteção, assusta. Destaca-se a seguinte fala:

Eu fiz um plano funerário. Eu fiz [risos]. No crematório, eu fiz. Fiz para ser cremada (...) Vejo aí o que tá acontecendo, quanta gente morre e é uma dor de cabeça. Então, eu me sinto assim desprotegida pela sociedade, não é pela RT não é pela sociedade. (Trabalhadora VII).

Uma pandemia traz consigo não apenas efeitos físicos decorrentes do patógeno em si, mas também repercussões de ordem psicológica. Para entender essas repercussões, é necessário notar as emoções. Além disso, tragédias passadas apontam que os efeitos na saúde mental de indivíduos são mais duradouros que a própria situação originária (ORNELL et al., 2020ORNELL, F. et al. “Medo pandêmico” e COVID-19: carga e estratégias de saúde mental. Braz. J. Psychiatry, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 232-235, junho de 2020. Disponível em<Disponível emhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462020000300232&lng=en&nrm=iso >. Acesso em 29 nov. 2021.
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).

Estudos apontam que pessoas infectadas com a Covid-19 ou com suspeita experienciam reações como medo, tédio, solidão, ansiedade, insônia e/ou raiva, podendo evoluir para transtornos como ansiedade e pânico (ORNELL et al., 2020ORNELL, F. et al. “Medo pandêmico” e COVID-19: carga e estratégias de saúde mental. Braz. J. Psychiatry, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 232-235, junho de 2020. Disponível em<Disponível emhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462020000300232&lng=en&nrm=iso >. Acesso em 29 nov. 2021.
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), o que ficou evidente na produção do cuidado dentro do SRT.

A exposição dessas trabalhadoras também é uma questão a ser analisada, sobretudo em um cenário em que a maioria das mortes é de pessoas de posições sociais menos favorecidas, entre elas trabalhadores pouco reconhecidos e valorizados (PINHEIRO et al., 2020PINHEIRO, L.; TOKARSKI, C.; VASCONCELOS, M. Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de COVID-19 no Brasil. Brasília: IPEA, jun. 2020. Disponível em: <Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10077 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Sabe-se que o trabalho de cuidar exerce papel importante para o funcionamento da sociedade. A diversidade de afazeres que acontecem no decorrer da vida, que são administradas e realizadas pelas pessoas que cuidam, influenciam na manutenção física e emocional das pessoas, ainda que muitas vezes não haja valorização deste trabalho (PINHEIRO et al., 2020PINHEIRO, L.; TOKARSKI, C.; VASCONCELOS, M. Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de COVID-19 no Brasil. Brasília: IPEA, jun. 2020. Disponível em: <Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10077 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Nota-se então a vulnerabilidade aumentada no momento de pandemia vivenciada por essas trabalhadoras. Estas aparecem durante o trajeto de ida e volta ao trabalho, no aumento de demanda dentro do SRT e até mesmo com a dupla sobrecarga, acumulando tanto o trabalho remunerado, quanto o de dentro das suas próprias casas. Existe também a preocupação da possibilidade de expor a própria família a risco, visto que não podem fazer o isolamento social (PINHEIRO et al., 2020PINHEIRO, L.; TOKARSKI, C.; VASCONCELOS, M. Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de COVID-19 no Brasil. Brasília: IPEA, jun. 2020. Disponível em: <Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10077 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

Então tipo assim, a gente que está ali na linha de frente, a gente não vai está com paciência para ficar ouvindo todo dia, o dia inteiro [...]. A pandemia influenciou tanto a vida dos cuidadores, quanto a deles neste sentido. Está tudo muito focado, achei a palavra, tudo muito focado, muito nas costas dos cuidadores. O cuidador virou bombril. (Trabalhadora V).

Onde você entra no ônibus e tem um monte de gente já andando sem máscara, eu sinto muito medo [...]. Então, eu me sinto assim desprotegida pela sociedade, não é pela RT não é pela sociedade. (Trabalhadora VII).

Destaca-se aqui o movimento do morador querendo saber da trabalhadora se a situação já tinha voltado ao normal, perguntando se o filho dela já havia voltado a estudar, visto que ele (o morador) estudava antes da pandemia. A intenção era saber se só ele estava parado. Uma outra trabalhadora nos conta que ouviu outro morador dizer “Você que é feliz, vai para casa, vai sair, vai passear” quando chega o fim do expediente.

É interessante pensar o SRT, em um momento delicado como o da pandemia, visto que é um ponto da RAPS que não reproduz a lógica do isolamento e empreende esforços para que não haja retrocessos referentes à institucionalização e exclusão de pessoas. Porém, a situação decorrente da pandemia pela Covid-19 impõe o isolamento como forma de proteger os sujeitos (MARTINS, 2020MARTINS, D. S. et al. Da proximidade ao distanciamento social: desafios de sustentar a lógica da atenção psicossocial em tempos de pandemia. Health Residencies Journal, v. 1, n. 1 (2020): Edição Inaugural. Disponível em: <Disponível em: https://escsresidencias.emnuvens.com.br/hrj/article/view/21 >. Acesso em: 29 nov. 2021.
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).

As trabalhadoras tiveram uma demanda aumentada no sentido de ser necessário conversar mais com os moradores, escutar mais, prestar mais atenção nas individualidades, visto que no isolamento o sofrimento psíquico se intensificou, como pode ser observado na fala da trabalhadora V e no relato do diário de campo:

Então assim, tem sido muito complicado nesses últimos meses ficar trancafiado, dentro do apartamento com ele toda hora botando a mão, botando a mão, botando a mão, entendeu? Mas isso tudo devido à pandemia, a gente entende que ele não está bem e a gente tenta lidar com isso. (Trabalhadora V).

Foi falado de um morador que fica procurando coisas para fazer. E naquele momento que acontecia a reunião, ele estava tirando a lâmpada do banheiro e guardando dentro do guarda-roupas. (Diário de Campo).

Com a flexibilização do isolamento no Estado do Rio de Janeiro, discutiu-se nas reuniões de equipe a necessidade de os moradores estarem no território. Com bastante restrição, foram organizadas as saídas, aos poucos e sempre acompanhados das trabalhadoras, mesmo daqueles que antes não tinham esse costume. Destaca-se a seguinte fala da trabalhadora V:

Eles estão muito dentro de casa, agora que estão voltando às atividades, cada um está saindo pelo menos uma vez por semana sozinho, com uma cuidadora. (Trabalhadora V).

A decisão de sair com um morador por vez foi justificada pela necessidade de aumentar o cuidado com a Covid-19. Para isso, algumas medidas foram necessárias: saídas com uso de máscara, higienização das mãos e, ao invés de utilizar ônibus para os deslocamentos, uso do táxi. Destaca-se a seguinte fala da trabalhadora IV:

Agora caminhar de vez em quando. Agora que voltou um pouco mais. Hoje foi dois caminhar e depois foi para o shopping. (...) Agora já teve que reduzir porque não pode muita gente até para a gente ter um pouco mais de atenção com eles. Tem que colocar a máscara, não colocar a mão em qualquer lugar, tem que colocar álcool gel. (Trabalhadora IV).

Ressaltamos a importância das estratégias criadas pelas trabalhadoras e pelos moradores no enfrentamento coletivo de crises como a causada pela pandemia de Covid-19, inclusive reconhecendo a impossibilidade de estar bem a todo tempo, e mediando permanentemente as situações de acordo com as necessidades individuais. As atividades grupais podem ser potência, tanto quanto os momentos de estar sozinho. Assim cabe ativar todos os sentidos para entender e respeitar as individualidades e os momentos de cada um.

Considerações finais

Os Serviços Residenciais Terapêuticos integram a política de saúde mental como uma das mais ousadas estratégias de desinstitucionalização da RAPS, ao possibilitar que pessoas com transtornos mentais graves recuperem direitos, autonomia e exerçam o morar.

O estudo possibilitou uma reflexão de que não existe uma forma única de significar o morar, sendo esta constituída pelas experiências vivenciadas por cada indivíduo ao longo da vida. Assim, nota-se que a compreensão de domicílio influencia as práticas de cuidado produzidas por estas trabalhadoras dentro dos SRT e que há uma tensão permanente entre a sua função de moradia ou de serviço.

A partir do exposto acerca do cotidiano das casas e do entendimento dos SRT como espaço de múltiplas influências advindas de diferentes culturas, percepções e vivências, o que se evidencia é uma linha tênue entre o que é a produção do cuidado em liberdade, na direção do advogado pela reabilitação psicossocial e pela luta antimanicomial, e o que é necessário para a manutenção e funcionamento de um serviço que está atrelado à preservação da saúde dos moradores. Destaca-se, para este último, os riscos de captura pelo modelo biomédico que determina regramentos e normativas do que deve ou não ser feito por cada indivíduo para alcançar uma vida considerada saudável. O desafio que está colocado para as trabalhadoras é o de resolver cotidianamente essa delicada equação, a fim de validar os desejos dos moradores e construir sentidos de pertencimento, ao mesmo tempo em que são condicionadas por um modelo normativo de saúde que oferece poucas possibilidades de desvio em relação ao que considera 'normal'.

Os SRT, exatamente por sua característica multifacetada e, por vezes, contraditória, são fábricas de mundos, espaços que proporcionam encontros de histórias, culturas, e modos de existir que, agenciados pela potência do cotidiano e do território subjetivo, abre possibilidades de deslocamentos alinhados à desinstitucionalização como proposta radical da transformação societária que traz para a cena atores envolvidos diretamente (trabalhadoras e moradores-usuários) ou indiretamente (casa, vizinhos, rua, bairro, serviços de saúde, mercados, bancos, motoristas de ônibus, etc). É a partir do modo como os encontros, afetos e conflitos são experienciados que a existência pode se reinventar de modo a produzir uma desinstitucionalização coletiva - dos moradores, mas também das trabalhadoras e do território.1 1 R. de O. de C. Sodré: coleta de dados; conceitualização; investigação; metodologia; redação original; preparação e apresentação do trabalho. C. T. Seixas e T. B. do Espírito Santo: conceitualização; gerenciamento do projeto; metodologia; redação - revisão e edição; supervisão.

Referências

  • 1
    R. de O. de C. Sodré: coleta de dados; conceitualização; investigação; metodologia; redação original; preparação e apresentação do trabalho. C. T. Seixas e T. B. do Espírito Santo: conceitualização; gerenciamento do projeto; metodologia; redação - revisão e edição; supervisão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2021
  • Revisado
    31 Out 2021
  • Aceito
    16 Fev 2022
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