Open-access O regime de saúde global e os desafios da pandemia: política sanitária brasileira para o controle da fronteira aérea

The global health regime and the challenges of the pandemic: Brazilian health policy for air border control

Resumo

Este estudo buscou analisar o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde como gestor do regime da saúde global (regime para o controle da propagação internacional de doenças), por meio da política sanitária brasileira para o transporte aéreo durante a pandemia do SARS-CoV-2, através do método qualitativo com foco documental no período de 2021-2022. A análise de dados demonstrou que, apesar do cenário de adversidade e do discurso de controvérsias científicas do governo de Jair Bolsonaro, o Brasil implementou políticas sanitárias de controle de fronteiras no transporte aéreo em concordância com as recomendações da Organização Mundial da Saúde e regras do Regulamento Sanitário Internacional sobre direitos humanos, vacinação, testagem, quarentena e exames solicitados. Embora com visíveis dificuldades e fragilidades relacionadas às características do sistema internacional, às preferências políticas dos países e estruturas econômicas que afetam o orçamento da organização, consideramos que os requisitos para um regime internacional da saúde global foram atendidos através da coordenação internacional de políticas para o Sars-Cov-2 e a análise do caso brasileiro. Ataques à democracia, a cientistas e as instituições científicas podem nos ajudar a diagnosticar problemas do sistema democrático e enxergar o papel da ciência em fortalecer o sistema de freios e contrapesos ao prevenir políticas autoritárias e discriminatórias.

Palavras-chave:
Regimes Internacionais; Saúde Global; Cooperação Internacional; Sul Global; Democracia; Covid-19

Abstract

For this study, the main purpose was to analyze the recognition of the World Health Organization as the manager of the Global Health Regime (regime for the control of the international spread of disease) through the Brazilian health policy for the air border control during the SARS-CoV-2 pandemic, using a qualitative method with a documentary focus in the period from 2021 to 2022. The data analysis demonstrated that, despite the adverse scenario and the use of scientific controversies by the Jair Bolsonaro administration, Brazil implemented health policies for border control in air transport following advises from the World Health Organization and the International Health Regulations on human rights, vaccination, testing, quarantine, and requested exams. Despite the visible difficulties and weaknesses related to the features of the International system, political preferences and economic structures that may affect the organization’s budget, the requirements for an international global health regime have been met through international policy coordination for Sars-Cov-2 and the analysis of the Brazilian case. Attacks on democracy, scientists and scientific institutions can help us understand and diagnose problems in the democratic system and see the role of science in strengthening the system of checks and balances by preventing authoritarian and discriminatory policies.

Keywords:
International Regimes; Global Health; International Cooperation; Global South; Democracy; Covid-19

Introdução

Nossa sociedade é parte de um mundo conectado pelos avanços na educação, ciência e tecnologia. Para definir essa ideia, utilizamos o conceito de interdependência complexa, cujos desdobramentos fundamentam o entendimento de dependência mútua, “efeitos recíprocos entre países ou entre atores em diferentes países [...] frequentemente resultam das transações internacionais - fluxos de dinheiro, bens, pessoas, e mensagens através de fronteiras internacionais.” (Keohane; Nye, 1977, p. 7). A pandemia do SARS-CoV-2 é um exemplo importante e que exploraremos neste trabalho, para considerar como a interdependência funciona e quais as alternativas para gerir situações de conflito que são intensificadas pelo ambiente em que estamos inseridos na forma de indivíduos, estados e instituições internacionais.

Houve uma época em que as instituições internacionais ocupavam uma posição periférica na compreensão de sistema internacional, cujos resultados estavam reduzidos a políticas de segurança e comportamento egoísta dos estados em meio ao domínio da anarquia como “o reino do poder, da luta” (Waltz, 1979, p. 113). Contudo, com o avanço do processo de globalização e o estreitamento das fronteiras, instituições internacionais passaram a obter mais espaço na teoria das relações internacionais por sua habilidade em interferir na distribuição global do poder na forma de instrumentos de cooperação e agentes dos regimes internacionais. O entendimento da literatura sobre regimes é vasto, e seu principal propósito é estabelecer algum nível de governança global, permitindo governabilidade de uma data área das relações internacionais através de instituições, regras, normas e outros procedimentos que alteram a maneira como estados interagem e se percebem internacionalmente.

A pandemia da Covid-19 foi um teste de resistência para os regimes, particularmente para o regime da saúde global que, através da Organização Mundial da Saúde (OMS), precisou desenvolver estratégicas apoiadas no multilateralismo para melhorar a distribuição global de vacinas e estabelecer recomendações baseadas em evidências científicas. Apesar das políticas de cooperação que permitiram uma coordenação global para o enfrentamento da pandemia, desafios forma eminentes e substanciais para a governança global; especialmente em sociedades de princípios democráticos em que o aumento de fake news, crimes contra a saúde pública e o uso de controvérsias científicas para negar evidências sustentaram medidas autoritárias e discriminatórias contra minorias (Brandão et al., 2023; Mian; Khan, 2020; Singh et al., 2020; Velásquez et al., 2020; Cinelli et al., 2020; Ortega; Orsini, 2020).

Movimentos antivacinas, falta de regulação das redes sociais, uso de medicamentos sem eficácia comprovada e ataques à democracia foram alguns dos temas mais discutidos durante a pandemia, demonstrando fraquezas na governança pública, no sistema de freios e contrapesos e na confiança pública aos achados científicos. Em todo o mundo, as variáveis que alimentam as desigualdades na produção e acesso aos bens e a distribuição de renda potencializam as discrepâncias históricas que existem em realidades polarizadas nas relações entre o Sul global e o Norte global. Como veremos no decorrer deste trabalho, o Brasil, de renda média alta, com uma elevada concentração de renda (World Bank, 2024a), enfrentou muitos desafios que foram aprofundados pela gestão federal pautada no descrédito em agências de cooperação, instituições científicas, descumprimento de recomendações de cientistas e pessoal especializado local, além das desigualdades socioeconômicas expressas nas dificuldades de acessar insumos de proteção e serviços de saúde por grupos marginalizados e pessoas mais pobres.

A cooperação internacional é um objeto de estudo necessário para compreender as possibilidades tanto no ambiente externo quanto interno, incluindo aquelas fundamentadas em estabelecer direitos e obrigações. Seu entendimento, enquanto definição, não é suficiente para responder, por exemplo, por que estratégias de cooperação fracassam, apesar dos acordos preestabelecidos entre as partes? Para alcançar este propósito, é necessário considerar que a cooperação está inserida em um sistema que a disciplina de relações internacionais, a partir de demonstrações de preceitos realistas, frequentemente tem associado ao reino da anarquia, cuja estrutura limita comportamentos em direção a políticas de autopreservação. Apesar da força dessa abordagem, no debate acadêmico, existe uma diversidade de escolas que desafiam teorias que ocupam melhores posições na disciplina, incluindo a concepção materialista e inflexível de sistema de autoajuda. Como poderá ser visto durante este trabalho, tanto o construtivismo como o liberalismo, em que nos fundamentamos para iluminar nossos argumentos, desenvolvem suas contribuições focadas em mostrar que há mais para a humanidade além de política de segurança individual e receio da cooperação.

Para auxiliar no entendimento de alguns dos fenômenos que desafiaram a coordenação de políticas do regime da saúde global durante o período pandêmico, nos propomos a analisar a política sanitária brasileira para o controle de fronteiras com foco nos procedimentos para o transporte aéreo, segundo acordos e recomendações do regime. Partimos da questão central que investiga em que medida a política sanitária brasileira para o controle da fronteira aérea se apoiou em instrumentos do regime da saúde global? Nossa abordagem teórica busca auxiliar os leitores, não através de uma visão fixa e imutável dos fatos, mas em direção a uma combinação de abordagens que nos ofereça uma compreensão mais nítida dos processos complexos que envolvem a política internacional. A contribuição deste trabalho é fundamentada nas escolas do pensamento realista, construtivista e liberal da disciplina de relações internacionais, incluindo estudos valiosos de outras áreas, cujas abordagens teórico-metodológicas são adequadas para analisar aspectos variados da política mundial.

Métodos e procedimentos

Este estudo foi desenvolvido como uma pesquisa documental, uma vez que recorreu a fontes diversas, sem tratamento analítico, a exemplo de jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais dentre outros (Goldenberg, 1997; Fonseca, 2002). Foram escolhidos os anos 2021-2022 para considerar a análise dos documentos, tempo em que se poderia avaliar os efeitos das políticas e medidas sanitárias de contenção da Covid-19.

A busca envolveu documentos disponíveis em meio eletrônico pela OMS em: Coronavírus disease (COVID-19) travel advice: WHO advice for International traffic in relation to the SARS-CoV-2 Omicron variant (B.1.1.529) - Updated with correction; Policy consideration for implementing a risk-based approach to international travel in the context of COVID-19, 2 July 2021; e Interim position paper: considerations regarding proof of COVID-19 vaccination for International travellers. Foram escolhidos como documentos suplementares à análise: COVID-19 natural immunity (Scientific Brief, 2021) e Updated WHO recommendations for International traffic in relation to COVID-19 outbreak (2020).

Para evidências científicas disponíveis sobre riscos proporcionais à saúde pública, consideramos os estudos da OMS mencionados acima: COVID-19 natural immunity (Scientific brief, 2021); Policy considerations for implementing a risk-based approach to international travel in the context of COVID-19, 2 July 2021; e Updated WHO recommendations for international traffic in relation to COVID-19 outbreak (2020).

Para os documentos do lado brasileiro, foram consideradas leis e portarias sobre vigilância epidemiológica, decretos e demais orientações sobre a política sanitária nacional para viagem internacional durante a pandemia do SARS-CoV-2 disponíveis on-line no Ministério da Saúde: Nota Técnica n° 59/2021-CGPNI/DEVIT/SVS/MS - recomendações quanto à nova variante do SARS-CoV-2 no Brasil; Portaria n° 1.865, de 10 de agosto de 2006; Lei n° 6.259, de 30 de outubro de 1975; Lei nº 13.730, de 08 de novembro de 2018; e Portaria Interministerial n° 670, de 1° de abril de 2022. Foram escolhidos como documentos suplementares à análise: Epidemiological Update: Occurrence of variants of SARS-CoV-2 in the Americas (26 Jan. 2021); Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Orientações aos viajantes: portaria altera regras para entrada no país; e tirar o Certificado Internacional de Vacinação (CIVP).

Os documentos foram analisados obedecendo as seguintes categorias para o controle de fronteiras, com foco no transporte aéreo: direitos humanos, vacinação, testagem, quarentena e exames solicitados.

Resultados e Discussão

As seguintes recomendações da OMS e medidas estabelecidas no Regulamento Sanitário Internacional foram adotadas para a política sanitária brasileira de controle de fronteiras, com foco no transporte aéreo.

O Brasil estabeleceu medidas de controle de fronteiras com base em evidências disponíveis para facilitar viagens internacionais, e a vacinação foi o principal ponto da política de controle de viajantes internacionais, na qual a OMS foi citada como uma das autoridades responsáveis pelo reconhecimento das vacinas aceitas para entrada em território brasileiro. Seguindo as recomendações da OMS sobre prova de vacinação Covid-19, o país estabeleceu o cumprimento do esquema vacinal primário (duas doses ou dose única, de acordo com o imunizante) como pré-requisito necessário para a entrada no território através dos procedimentos adotados segundo status de vacinação completo ou não completo. A administração do imunizante deveria ser feita no mínimo 14 dias antes do embarque, como recomendou a OMS.

Sobre a testagem, a OMS recomendou oferecer alternativas a viajantes individuais não vacinados ou sem provas de infecção prévia, através do uso do teste rRT-PCR negativo ou teste de diagnóstico rápido de detecção de antígeno (Ag-RDTs) que está na lista da OMS para uso emergencial ou aprovado por uma rigorosa autoridade regulatória. Seguindo essa recomendação, o Brasil ofereceu a seguinte alternativa para viajantes não totalmente vacinados, não elegíveis ou com contraindicação para administração da vacina: apresentação de documento comprobatório de realização de teste para rastreio da infecção pelo Sars-CoV-2, com resultado negativo ou não detectável, do tipo teste de antígeno ou laboratorial RT-PCR realizado um dia antes do embarque. O país também ofereceu alternativas para viajantes que tiveram Covid-19 nos últimos 90 dias, contando a partir da data de início dos sintomas, que estejam assintomáticos e persistam com teste RT-PCR ou teste de antígeno detectável para o coronavírus Sars-CoV-2: apresentação de dois testes RT-PCR detectáveis com intervalo mínimo de 14 dias.

A OMS recomendou que as políticas de quarentena e testagem deveriam ser constantemente avaliadas para que fossem suspensas quando não forem mais necessárias. Dessa maneira, o Brasil suspendeu a necessidade de quarentena com base em evidências disponíveis sobre riscos proporcionais para a saúde pública no controle de aeroportos. O cumprimento do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) pôde ser observado nos canais de comunicação oficiais estabelecidos entre o Brasil e a OMS através da legislação e notas técnicas do Ministério da Saúde.

Sobre direitos humanos, o Brasil, seguindo o Regulamento Sanitário Internacional e recomendações da OMS sobre respeito à dignidade, direitos e liberdades fundamentais dos viajantes, estabeleceu procedimentos de apoio para pessoas provenientes de países com baixa cobertura vacinal e para questões humanitárias em relação a imigrantes em situação de vulnerabilidade social. Para o certificado internacional de vacinação, em concordância com o Regulamento Sanitário Internacional, até a data de coleta dos dados, o Brasil não havia estabelecido certificado de vacinação como uma exigência para a entrada ou saída do país. O governo brasileiro ofereceu a emissão do certificado para viajantes brasileiros que pretendem entrar em um território no qual o documento é solicitado como exigência de entrada.

Para políticas sanitárias de controle de fronteiras durante a pandemia do SARS-CoV-2, não encontramos dados robustos sobre recomendação da OMS para aceitação de atestado de recuperação. No entanto, devido à recomendação de órgãos regionais ou globais intergovernamentais em que certificados de Covid-19 estavam sendo utilizados, e buscando dar soluções interoperáveis à mobilidade internacional, a agência ofereceu para status de vacinação contra a Covid-19 de viajantes internacionais a apresentação do Certificado Internacional de Vacinação e Profilaxia, conforme orientado pelo Regulamento Sanitário Internacional.

Ainda que a literatura disponível neste estudo sobre gestão da pandemia tenha demonstrado que o governo federal agiu com medidas arbitrárias e autoritárias, o que dificultou a vacinação e medidas de contenção em um cenário de falta de governabilidade, os achados deste estudo demonstraram que, no caso da fronteira aérea, os acordos e recomendações da OMS foram cumpridas pelas instituições brasileiras no período de investigação dos dados. Nossos achados aproximam-se da literatura sobre regimes internacionais ao demonstrar que a OMS exerceu sua posição de liderança democrática como ator do regime da saúde global no período estabelecido neste estudo.

Regimes internacionais e saúde global

Regimes internacionais é um objeto de estudo complexo, e uma vez inseridos em um mundo globalizado, não podemos escolher apenas os benefícios das estruturas internacionais que oferecem, por exemplo, através do comércio internacional, um meio para dispor de condições adequadas para aproveitar um dia de sol fazendo compras na cidade do Rio de Janeiro. Para além disso, precisamos considerar que a conexão global que seguiu com o fim da II Guerra Mundial e da Guerra Fria trouxe novas variáveis de análise que seriam importantes para explicar aspectos das relações internacionais; uma delas tem sido chamada pelos acadêmicos de “interdependência complexa”, que expressa de maneira sofisticada a ideia de que auferir algum grau de desenvolvimento ao compartilhar bens e ideias também significa compartilhar desafios, obstáculos e crises.

O ambiente e a definição de interdependência complexa são bastante usados para justificar a necessidade de “governo”, e para trabalhar com mais exatidão, utilizamos o termo “governança global”. A pandemia da Covid-19 talvez tenha sido o exemplo mais emblemático em nosso século sobre como rapidamente condições domésticas podem escalar e comprometer o funcionamento estrutural do mundo, como pôde ser visto com a implementação das barreiras que afetaram os acordos que garantem o livre comércio internacional e o fornecimento de bens essenciais ao redor do mundo (Nicita; Saygili, 2021), mostrando que “onde há efeitos recíprocos (não necessariamente simétricos) de custos de transações, há interdependência” (Keohane, Nye, 1977, p. 8). A essas estruturas, entendidas neste trabalho como meios de cooperação e resolução de conflitos, atribuímos a característica de regimes internacionais. Os regimes são engenhosos e funcionam como um ambiente no qual a governança é possível através de mecanismos que materializam as ideias e os interesses dos atores. Ao responder a estas ideias e interesses mais específicos ou mais gerais, a definição de regimes que adotamos envolve

[...] conjuntos de princípios implícitos ou explícitos, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão ao redor do qual as expectativas dos atores convergem em uma dada área das relações internacionais. Princípios são crenças de fato, causalidade e retidão. Normas são padrões de comportamento definidos em termos de direito e obrigações. Regras são prescrições específicas ou prescrições para ação. Procedimentos de tomada de decisão são práticas predominantes para fazer e implantar a escolha coletiva (Krasner, 1983, p. 2).

A definição acima caracteriza regimes fundamentados em interesses próprios; no entanto, a bibliografia de apoio considera normas como padrão de comportamento, baseados no interesse próprio ou não. Tal escolha consiste na observação de que alguns regimes podem possuir normas e regras fundamentadas em valores que vão além de autointeresses, e consideradas obrigatórias na forma de compromissos morais pelos governos. Por exemplo, assumindo escolhas fundamentadas na racionalidade, os regimes internacionais são valiosos para as unidades, uma vez que reduzem custo de transações e reduzem incertezas no ambiente externo. Cada governo é mais capaz, através dos regimes, de prever que seus parceiros seguirão políticas cooperativas; “sacrificando a habilidade de maximizar seu interesse próprio míope, fazendo cálculos a cada questão na medida em que surgem, em troca de adquirir maior certeza sobre o comportamento dos demais” (Keohane, 1984, p. 115). No fim, apoiar regimes é mais atrativo e oferece mais segurança do que suas alternativas, devido aos constrangimentos estruturais do sistema.

No geral, os princípios dos regimes definem os propósitos que se espera que os membros persigam (Krasner, 1983). “Por exemplo, os princípios dos regimes comercial e monetário do pós-guerra enfatizaram o valor da abertura e a adoção de padrões não discriminatórios de transações econômicas internacionais; o princípio fundamental do regime de não proliferação é que a difusão de armas nucleares é perigosa” (Keohane, 1984, p. 58). As normas contêm lei/ordem (injunção) mais visíveis sobre comportamento legítimo e ilegítimo, ainda definindo responsabilidades e obrigações em termos relativamente gerais. As normas do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, General Agreement on Tariffs and Trade) não exigiam que os membros adotassem imediatamente o livre comércio, mas incorporavam lei/ordem (injunção) para que os membros praticassem a não discriminação e a reciprocidade, movendo-se em direção a uma crescente liberalização.

O conceito de regimes internacionais é complexo porque é definido em termos de quatro componentes distintos: princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão. É tentador selecionar um desses níveis de especificidade [...] como característica definidora dos regimes (Keohane, 1984, p. 59).

O desafio mais substancial para os regimes é assegurar o apoio necessário para construir decisões baseadas em algum aspecto que assume a forma de interesses compartilhados - a política perseguida pela unidade A é entendida como facilitadora para realizar os objetivos das unidades B, C, D e E - uma vez que o nosso entendimento de cooperação internacional “requer que a ação de indivíduos ou organizações separadas sejam colocadas em conformidade umas com as outras através de um processo de negociação, que é frequentemente referido como coordenação de políticas” (Keohane, 1984, p. 51). As decisões podem ser coordenadas se as unidades ajustarem seus comportamentos para corresponder às preferências atuais ou antecipadas dos parceiros através do processo de coordenação de políticas. Quando ajustes de adaptação aos interesses não são possíveis, instala-se um estado de insegurança e conflito, como pôde ser visto em 1919, após a I Guerra Mundial, com a criação da Liga das Nações, cujo objetivo primordial era conduzir o mundo em direção a uma época de paz e confiança (Nogueira; Messari, 2005). No entanto, sua inabilidade em gerir o ambiente global para assuntos de paz, a confiança muito ingênua da fé idealista liberal clássica no papel das instituições e da cooperação, punições extensivas e a falta de compromisso com a ratificação do Tratado de Versalhes culminaram na II Guerra Mundial e conflitos subsequentes.

Pela destruição evidenciada nas duas grandes guerras e em conflitos menores, desde a Conferência de São Francisco, que conduziria a assinatura da Carta das Nações Unidas (WHO, 2025a) e a criação da OMS (WHO, 2025b), a comunidade internacional já previa que a saúde seria uma área prioritária para diminuir desigualdades e manter o mundo em um período de paz mais duradouro. Ainda que em 1946, na primeira Assembleia Mundial da Saúde, soubessem que havia muito a ser feito, foi em 1951, na quarta Assembleia Mundial da Saúde, que surgiram ideias e instrumentos para concentrar informações de saúde pública e implementar vigilância epidemiológica, incluindo medidas internacionais de saúde para que adversidades não afetassem significativamente economias nacionais e sistemas de comércio e transporte internacionais (Rushton, 2009; Lakoff, 2017).

Para cumprir metas de minimizar interferências no fluxo global, a estrutura de coordenação internacional para a saúde foi fundamentada em três princípios: método biomédico, a precedência da racionalidade econômica e saúde como uma questão de segurança no contexto da interdependência. No primeiro princípio, observamos que as recomendações da OMS, que é o ator que coordena o regime, e as ações dos governos têm favorecido a utilização de instrumentos farmacêuticos - uso de vacinas, antibióticos e outros medicamentos - para enfrentar problemas mundiais de saúde. No segundo e terceiro princípios, como estamos vendo, as políticas de saúde têm levado em consideração os custos e riscos para economias nacionais e o sistema político e econômico internacional (Lee, 2009; Kamradt-Scott, 2013).

A observação dos fatos nos ajuda a entender que questões relacionadas às políticas de saúde podem afetar de maneira positiva ou negativa o funcionamento das relações em sua natureza independentes de diferentes unidades em diferentes espaços. Quando os aspectos negativos são potencializados, observamos a maximização de perdas coletivas. Imagine que um ambiente de perdas é como uma teoria do jogo de soma zero, em que o ganho da unidade C implica perda para a unidade F. Após a análise de custos e perdas, a soma do que foi alcançado pelo estado C será igual às perdas do estado F (Gilpin, 1981), implicando um resultado geral de impacto líquido zero. Considerando o ambiente e as unidades, evitar a racionalidade competitiva e individualista do jogo de soma zero, criando um jogo de soma não zero, é o aspecto mais consistente para vincular a saúde a questões de segurança internacional.

Parte dos princípios normativos que sustentam o regime da saúde global foram formalizados através do Regulamento Sanitário Internacional, um instrumento vinculativo que compreende todos os Estados-Membros e foi desenvolvido com o propósito de prevenir, preparar, proteger contra, controlar e fornecer uma resposta de saúde pública à propagação internacional de doenças de maneiras que sejam proporcionais e restritas ao risco para a saúde pública, evitando interferências desnecessárias no tráfego e comércio internacionais, apoiando-se em cooperação, comunicação global e um Sistema de Gestão de Eventos para gerir eventos agudos de saúde que ameaçam a segurança sanitária regional e internacional (WHO, 2005; 2020a; 2020d).

Ao considerar os quatro componentes para caracterizar de maneira genérica regimes internacionais - princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão - deduzimos que a OMS e os instrumentos para o controle da disseminação de doenças compõem o regime da saúde global ao possuir lei/ordem (injunção) sobre a gestão internacional da saúde pública ao redor do princípio (crença) de que a saúde é um direito humano e bem elementar ao desenvolvimento da humanidade. Para tanto, estipula a norma (injunção para padrão de comportamento), através de um procedimento de tomada de decisão democrático na Assembleia Mundial da Saúde, de que todos os países, apoiados pela cooperação internacional com a agência e outros parceiros, devem desenvolver políticas que garantam proteção à saúde de suas populações; e regras (direito e obrigação) para a resposta durante qualquer situação definida como risco para à saúde pública. Por exemplo, a notificação à OMS de evento extraordinário em território nacional, definido pelo Regulamento Sanitário Internacional como aquele que constitui um risco para outros estados devido à disseminação internacional de doença, classificado como evento de saúde pública de interesse internacional, requerendo uma resposta internacional coordenada.

A pandemia pressionou a estrutura organizacional de organizações internacionais em diversos aspectos; agências das Nações Unidas, mesmo aquelas que estavam habituadas a lidar com situações de conflito precisaram adequar suas políticas e ressaltar a necessidade do multilateralismo. Os três princípios normativos base do regime da saúde global foram ressaltados através da Resolução 73.1 (WHO, 2020c, 2020d), ratificada através da 73 Assembleia Mundial da Saúde, que destacou a importância da cooperação multilateral para minar os impactos da Covid-19 que afetou especialmente pessoas mais pobres e mais vulneráveis que estão majoritariamente localizadas em países de renda baixa, renda média e em desenvolvimento; recomendando o uso de tecnologias para diagnóstico, tratamento, desenvolvimento de medicamentos e vacinas contra a Covid-19.

Alguns anos após a declaração de emergência de saúde pública que mudaria aspectos significativos das interações sociais, conseguimos perceber com mais cuidado o trabalho da OMS, e observar que a coordenação de resposta ao redor do mundo apenas foi possível através de instrumentos como Regulamento Sanitário Internacional, que fortaleceu decisões e recomendações baseadas em procedimentos técnicos e conhecimento científico disponível (WHO, 2020d). Devido ao status de dependência financeira da doação de colaboradores na forma de Estados-Membros, instituições internacionais, fundações filantrópicas e setor privado, a OMS enfrentou alguns obstáculos substanciais cujas origens estavam nas mudanças das agendas de governos, aspectos ideológicos e na disponibilidade de recursos frente aos desafios da pandemia. A Covid-19 forçou o regime a responder de maneira adaptável e a corrigir falhas de experiências anteriores, e apesar de suas fragilidades, com tanto que os estados permaneçam dependentes da sua estrutura para a coordenação de políticas, o regime da saúde global perdurará.

É essencial ter em mente que “os problemas de políticas públicas são crescentemente globais: meio ambiente, saúde pública, migrações [...] Problemas geograficamente distantes podem afetar o contexto doméstico [...]. As soluções, portanto, precisam ser compartilhadas globalmente, e por uma diversidade de atores” (Krause, 2017, p. 170). Avançar em redes de colaboração com o regime para o controle da propagação internacional de doenças implica fortalecer as bases da cooperação internacional brasileira, oferecendo ao Brasil a oportunidade de não apenas reafirmar sua presença em organismos internacionais, como também de melhorar as capacidades técnicas, científicas e em idiomas de profissionais brasileiros e engajar o país na ideia de desenvolvimento global; ressaltando “a noção de comunidade global, de problemas compartilhados, da necessidade de colaborar para resolver problemas que são, cada vez mais, interligados” (Krause, 2017, p. 170); e cujas soluções podem nos conceder um lugar de destaque em questões problemáticas e negligenciadas ao redor do mundo.

Cooperação internacional e os desafios da vacinação para o Sul Global

A pandemia de coronavírus trouxe à superfície questões complexas e historicamente negligenciadas que foram alvo de controvérsias tanto na academia quanto nas decisões dos policy-makers. A observação histórica nos mostra que, em momentos de crise, políticas de segurança costumam assumir posição prioritária nas agendas dos governos. Apesar disso, políticas de segurança individualista, em sua face de força econômica e militar, são frequentemente insuficientes para atingir o propósito quando é necessária uma ação coordenada de diversas partes. Um exemplo é a crise de outubro (1962), também conhecida como crise dos mísseis em Cuba, quando o trabalho em cooperação evitou um conflito nuclear e estabeleceu o Tratado de Tlatelolco (1967).

A cooperação internacional tornou-se um tema bastante sensível durante o período pandêmico, especialmente por espelhar medidas de segurança no contexto da governança global e controle de externalidades. Na disciplina de relações internacionais, o estudo da cooperação é um objeto de debates significativos por sua natureza espelhar diferentes perspectivas de sistema internacional e a expansão internacional do poder. Entre as tradições teóricas que escolhemos para trabalhar, a escola realista tradicionalmente assume uma posição pessimista quanto às possibilidades de cooperar, e uma vez que as unidades estão constrangidas estruturalmente por um sistema de autoajuda, composto pelo nível da estrutura (A) e o nível das unidades em interação (B), a cooperação cede lugar à prioridade dada às políticas de segurança com foco na construção material individual do mundo.

Para realistas, a estrutura da política internacional limita a cooperação entre unidades de duas formas: ao constranger os estados a se “preocuparem com a divisão de ganhos que podem favorecer mais a outros do que a si mesmos [...] também se preocupam em não se tornar dependentes de outros por meio de esforços cooperativos e trocas de bens e serviços” (Waltz, 1979, p. 106). O sistema de política de poder realista (competitivo) consiste na identificação negativa sob a anarquia. Neste ambiente, na medida em que os “atores avessos ao risco que inferem intenções de capacidades e se preocupam com ganhos relativos e perdas [...] na guerra hobbesiana de todos contra todos - a ação coletiva é quase impossível” (Wendt, 1992, p. 400).

No meio está a escola liberal, capturada pelos sistemas individualistas (sistema de segurança individual), a estrutura continua a constranger os estados a adotarem um comportamento egoísta. “Estados ainda se preocupam com sua segurança, mas estão preocupados principalmente com ganhos absolutos em vez de ganhos relativos. A posição de alguém na distribuição do poder é menos importante e a ação coletiva é mais possível [...] ambos são autoajuda” (Wendt, 1992, p. 400). Em sistemas liberais, devido à aceitação de preceitos realistas, os estados continuam tendo dificuldades para estabelecer conexões de segurança de uma maneira coletiva; e ainda que seja mais possível dentro dos regimes, a abordagem comunica-se através de um sistema de autoajuda, implicando a proeminência individualista da maneira como o Eu enxerga a segurança, em termos de autointeresse. A prioridade dada à concentração de insumos pelos estados durante a pandemia é um exemplo visível do entendimento sobre segurança que unidades podem compartilhar.

Escolas realistas e liberais “contrastam com o sistema de segurança cooperativa, em que os estados se identificam positivamente uns com os outros [...] a segurança de cada um é percebida como responsabilidade de todos. Isso não é autoajuda [...] pois o eu em termos do qual os interesses são definidos é a comunidade” (Wendt, 1992, p. 400). Podemos pensar que esse raciocínio age como um princípio estruturante para a teoria social construtivista, trazendo implicações diversas para aspectos importantes das relações internacionais. A contribuição da abordagem construtivista assenta-se em fenômenos sociais resultantes do plano da interação, capazes de estimular a criação compartilhada de ideias, características e interesses que serão utilizados para formar identidades, que usamos em nossa lógica de jogo de soma não zero - cooperação a partir da perspectiva de comunidade. A ideia de identidade refere-se a quem ou o que as unidades são (tipos sociais ou estados do ser), e para ser coletivo é preciso identificação, pois “a identificação é um processo cognitivo no qual a distinção Eu-Outro se torna indistinta e, no limite, completamente transcendida. O eu é categorizado como o Outro” (Wendt, 1999, p. 229).

O Eu é uma estrutura de conhecimento, como uma totalidade de sentimentos e percepções que faz referência a si mesmo como um objeto. “Identidades são organizadas hierarquicamente nessa estrutura pelo grau de comprometimento de um ator com elas [...] quando surgem conflitos, as identidades de primeira linha tendem a prevalecer [...] refletindo a importância relativa da política interna para moldar seu caráter” (Wendt, 1999, p. 230-231). Pegando o exemplo realista de sistema anárquico e distribuição do poder, o conhecimento que possuímos e que confere significado à ação dos estados em direção a autoajuda e a distribuição de capacidades como resultados estruturais, influenciando a adoção de apolíticas mais ou menos cooperativas, depende dos entendimentos e expectativas que dão origem à forma institucional de identidades e interesses das unidades no sistema.

Colocando de outra maneira, os estados demostram ter qualidades que apenas poderiam possuir na interação em sociedade. Supondo que é uma construção social, a autoajuda não é uma característica indispensável da anarquia, a não ser que, de fato, após interações e entendimentos, o autointeresse seja o resultado final (prevalência da autoajuda como característica que estabelece a vitória dos constrangimentos estruturais sobre processos). O status de construção social significa que incentivos à cooperação para a segurança coletiva, em termos de comunidade, também podem compor uma possibilidade institucional no sistema, à parte do materialismo da autoajuda.

É importante perceber que estamos trabalhando com questões que surgem como resultado das relações sociais (interação) e dos desdobramentos (significados que direcionam a ação) que estas produzirão. “A autoajuda é uma dessas instituições, constituindo um tipo de anarquia, mas não o único tipo [...] isso tem implicações importantes para a forma como concebemos estados [...] porque estados não possuem concepções de eu e outro, como interesse de segurança, além ou antes da interação” (Wendt, 1992, p. 401).

Observe que se desejar vender um produto precisa conhecer as possibilidades do mercado. Quais consumidores comprariam? Qual o nível de preço mais atrativo? As teorias estão sendo apresentadas para responder a estas perguntas se olharmos para a cooperação como um bem a ser apresentado e negociado no mercado de possibilidades das relações internacionais. Uma vez que a cooperação ocupa algum espaço entre o plano A e o plano B, estamos considerando os meios adequados para a abordagem das questões.

A teoria social construtivista, ao fundamentar seu objeto de estudo em termos dos atributos dos estados, “bem como em termos de suas inter-relações, a abordagem revela-se reducionista [...] As proposições oferecidas são sobre unidades de tomada de decisão e as regras que elas seguem, em vez de se concentrar nos efeitos de diferentes sistemas internacionais sobre tais unidades (Waltz, 1979, p. 56). Esta é uma apresentação de método analítico (o todo entendido pelo estudo dos seus elementos em propriedades e conexões) que olha para interações e comportamentos dos estados, focando em função e processo, ao invés de efeitos de sistemas.

A crítica do realismo estrutural, que destacamos para o método analítico construtivista, assenta-se na presunção de que, como a política internacional é dominada por constrangimentos estruturais de segurança individual e ações autodirecionadas, apenas abordagens sistêmicas (focadas em mostrar como a estrutura se distingue das unidades em interação) podem oferecer uma compreensão mais satisfatória da política mundial. Lembramos que foi o engano do idealismo institucional clássico de que as instituições internacionais haviam alterado amplamente a natureza do sistema por meio de “leis” e cooperação que mais tarde estabeleceria a consistência da escola realista, ao demonstrar, através dos acontecimentos no período entreguerras, a distinção dos planos (A e B) e a proeminência da teoria materialista do sistema de autoajuda. “Se a organização das unidades afeta seus comportamentos e suas interações, então não se podem prever resultados ou compreendê-los meramente através do conhecimento das características, propósitos, e interações das unidades do sistema” (Waltz, 1979, p. 39).

Dissecar as partes para considerar a influência do jogo de variáveis no plano de interações das unidades (B) nem sempre permitirá uma análise sofisticada de todos os processos no nível da estrutura (A), e poderíamos dizer que o mesmo argumento se aplica a situações que não cabem na lógica de segurança material individualista. Como veremos mais adiante, no caso da distribuição global de vacinas, o constrangimento estrutural afetou o comportamento dos estados (mantendo padrões de comportamento ou se interpondo entre unidades e resultados), que inicialmente, diante das incertezas, adotaram políticas de autopreservação e segurança individualista (resultados similares prevalecem, mesmo alterando as unidades que produzem os resultados), ao invés de apoiar as políticas de cooperação e regras de livre comércio, o que retardou a recuperação global e ampliou o número de mortes.

Essas observações são úteis para a academia e um problema maior a ser estudado dentro da teoria das relações internacionais. Não é propósito deste trabalho detalhar aspectos ontológicos e epistemológicos mais profundos e extensos da disciplina; no lugar disso, buscamos demonstrar brevemente o conjunto da teoria que explica o funcionamento e o lugar que a cooperação e outras coisas ocupam no mundo.

Apesar do nosso aceno ao realismo ao empregar formulações importantes do estruturalismo como sistema internacional anárquico e constrangimento estrutural, nossa escolha teórica que mescla abordagens nos permite enxergar que apenas medo da distribuição de ganhos e política de segurança em seu aspecto econômico e militar não nos oferecem uma compreensão satisfatória dos fenômenos que estamos considerando. Como vimos ao trazer a abordagem liberal sobre interdependência complexa e regimes internacionais, vivemos em uma época de perceptíveis alterações nas interações entre unidades, o que exige mais tempo para que possamos avaliar a extensão e se há mudanças a nível estrutural, em termos de função.

Para este momento, o construtivismo e sua abordagem focada na construção social do mundo nos oferecem considerações valiosas para o desenvolvimento teórico deste estudo, na medida em que identidades compartilhadas podem resistir a dificuldades estruturais, minimizando incertezas e fazendo a cooperação perdurar. A ideia de Sul global e cooperação Sul-Sul (CSS) pode nos ajudar a entender com mais precisão aspectos que conectam cooperação e regimes com a relação Eu + Outro = identidade coletiva. Vejamos como isso é possível: a cooperação Sul-Sul é uma instituição que resulta da participação dos países em desenvolvimento no compartilhamento do conhecimento, das crenças e expectativas que criam e correspondem às suas identidades e interesses (necessidades) de desenvolvimento. Primeiro, a identidade (base do interesse) do que significa ser um país do Sul global (característica compartilhada) é moldada quando o país participa (interação) de processos históricos coletivos de desenvolvimento internacional entre países com condições similares; e se fortalece com o estabelecimento do interesse (ideia) que esses países precisam mudar suas posições (desvantagem) na ordem internacional, pois interesses se referem ao que os atores desejam.

Na distribuição internacional do poder, que espelha a concentração de recursos (capacidades) entre nações ao redor do mundo, os países mais desenvolvidos (Norte global) têm ocupado o centro do sistema internacional, enquanto os países em desenvolvimento (Sul global) estão na periferia desse sistema. As relações Norte-Sul ultrapassam a localização geográfica e as definições para questões de desenvolvimento; envolvendo relações desiguais de poder econômico e político baseadas na dominação e na exploração a nível mundial (Fiori, 2014). “Sul Global [...] Faz referência a toda uma história de colonialismo, neoimperialismo e mudanças econômicas e sociais diferenciadas através das quais são mantidas grandes desigualdades nos padrões de vida, esperança de vida e acesso aos recursos” (Dados; Connell, 2012, p. 13).

É de conhecimento da academia que países em desenvolvimento enfrentam obstáculos substanciais e compartilhados em temas como a distribuição de renda, acesso à educação, água potável, segurança alimentar e organização de sistemas de saúde universal. Essas são algumas das áreas cujas variáveis poderíamos utilizar para mensurar algum grau de desenvolvimento da sociedade, atrelando-se ao índice de desenvolvimento humano. Pelas condições históricas e socioeconômicas, prevíamos, mesmo antes do status de pandemia, que os países do Sul global seriam particularmente mais afetados pela carência de recursos de controle do vírus SARS-CoV-2. Dados do Banco Mundial sobre Extrema Pobreza - 2015-2021 (Mahler, 2021), mensurada em número de pessoas vivendo com menos de US$1.90 por dia, alertaram que a desigualdade socioeconômica cresceu na América Latina e Caribe, África Subsaariana, Oriente Médio e Norte da África; e apesar do número global de pessoas vivendo em pobreza extrema ter diminuído em relação à última estimativa, a desigualdade continua sendo um problema crescente para a humanidade.

Muitas doenças, especialmente aquelas provocadas por agentes infecciosos, possuem um status especial, o que significa que a proteção das pessoas é necessariamente uma proteção coletiva. Esse foi o caso do Sars-CoV-2, cuja condição de pandemia levou profissionais especializados e cientistas a estabelecerem a recomendação da vacinação como a maneira mais adequada de diminuir a propagação do vírus, hospitalizações e mortes (Lotfi et al., 2023; WHO, 2025c). No entanto, disparidades econômicas e as diferenças de poder político dentro e entre países e regiões ampliaram a desigualdade na distribuição global de vacinas. Por exemplo, metodologias que utilizaram o coeficiente de Gini como indicador para mensurar a relação entre o grau de desigualdade na distribuição de renda e o acesso a vacinas Covid-19 encontraram um coeficiente de 0.88 para vacinações Covid-19, comprometendo a distribuição e tornando a desigualdade no acesso à vacina mais severa ao longo do tempo (Tatar et al., 2021; Khairi, 2022).

Na distribuição global de vacinas, países mais desenvolvidos, com maior poder econômico e alianças políticas mais sólidas, puderam se beneficiar dos acordos de compra antecipada para garantir o fornecimento prioritário em relação a outros compradores que estavam no mercado de bens, uma vez que as vacinas produzidas são categorizadas como um bem comercial, estando sujeitas às leis do mercado, que envolvem procura, demanda e quem está disposto a pagar mais e cobrir os riscos para ter acesso a um bem escasso. Durante a pandemia, o problema na distribuição ficou mais evidente quando os países mais desenvolvidos (Norte global), ao garantirem o esquema vacinal primário, normalmente composto de duas doses do imunizante, começaram a proibir exportações (prática de competição desregulamentada) para assegurar reservas para doses de reforço. Enquanto isso, muitos países em desenvolvimento não conseguiram ao menos garantir o acesso ao imunizante para grupos prioritários (Fidler, 2020; So; Woo, 2020; Khairi, 2022; Aakash et al., 2020).

As diferenças mais notáveis da desigualdade na distribuição de vacinas estavam entre os países, mesmo aqueles localizados no mesmo continente, a exemplo da Ásia (0.86) e Oceania (0.88). As menores desigualdades na distribuição de vacinas foram observadas na Europa (0.73) e na América do Sul (0.68), mesmo comparadas a Ásia, Oceania e América do Norte (Tatar et al., 2022). Apesar das diferenças dentro das regiões, nada se compara às diferenças regionais entre Norte global e Sul global, que já no final de 2020 mostravam a tendência global na distribuição de vacina com cerca de 50% das doses cobertas pelos acordos de compra antecipada reservadas para 14% da população mundial em países mais ricos e industrializados (So; Woo, 2020).

Não podemos esquecer que fatores estruturais na organização social como a vulnerabilidade socioeconômica e as desigualdades na distribuição de renda refletem a capacidade de organização dos sistemas de saúde e as oportunidades diferenciadas de acessar serviços de saúde entre diferentes grupos da sociedade. Países de renda alta que direcionam recursos para o desenvolvimento da ciência e infraestrutura de produção de tecnologias saíram na frente nas políticas de vacinação (Marley, 2020; FDA, 2021). Pequenas exceções foram observadas no Sul global, destacando os países BRICS (Brasil, Índia, Rússia e África do Sul), que conseguiram despontar inicialmente na vacinação - incluindo através da cooperação, no caso da parceria Brasil-China para o desenvolvimento da vacina CoronaVac - com as vacinas da Índia Covaxin (Bharat Biotech, 2025), China Sinopharm BIBP Covid-19 (Beijing Institute, 2025), Rússia Sputnik V (Sputnik, 2022), e o Brasil, mais tardiamente, com a vacina SpiN-TEC (UFMG, 2025). O quintil da população que vivem em países de baixa renda e em países de renda média baixa tinha uma probabilidade 32% maior de morrer de Covid-19 em comparação com o quintil mais rico, em parte por falta de acesso ao tratamento disponível, mas também por falta de medidas de proteção e maior exposição ao vírus (Winskill et al., 2020).

Segundo estimativas do relatório Accelerating COVID-19 vaccine deployment (2022), entre países de renda média baixa, 1.6 bilhão de pessoas (47.9%) foram totalmente vacinadas. Em países de renda baixa, esse número caiu para 73 milhões (11.2%) da população; um terço da população mundial continuava não vacinada. Ressaltando a discrepância da distribuição global de vacinas destacamos a relação entre vacinas aplicadas (dados da OMS), renda e número de habitantes (dados do Banco Mundial) nos seguintes países: Nigéria (África Ocidental), de renda média baixa, com uma população de 227.882,945 milhões de pessoas (World Bank, 2024c), vacinou 93.824,435 milhões com ao menos uma dose da vacina para a Covid-19 (WHO, 2024); 41% da população do país. Por outro lado, a Alemanha (Europa Ocidental), de renda alta, com uma população de 83.280,00 milhões de pessoas, vacinou 64.868,618 milhões com ao menos uma dose da vacina para a Covid-19, 78% da população do país. Outro exemplo emblemático é a África do Sul, apesar de ser um país de renda média alta, possui um coeficiente de Gini de 63 (World Bank, 2024c), uma população de 63.212,384 milhões de habitantes e vacinou apenas 24.210,953 milhões de pessoas com ao menos uma dose da vacina para Covid-19, 38% da população do país.

Conforme as discrepâncias no acesso a bens de saúde tomou forma, para amenizar as discrepâncias globais no acesso a vacinas, foi criado o elemento de vacinação COVAX (Acesso Global às vacinas da Covid-19), do programa ACT - Accelerator - 2020-2023 (WHO, 2023; 2022), cuja estratégia era estabelecer uma cooperação internacional que pudesse atingir uma cobertura de vacinação global de 70% até o ano de 2021. No entanto, interrupções nas cadeias de suprimentos globais, restrições de exportação aplicadas a insumos e produtos acabados relacionados a vacinas, desafios de fabricação, competição intensa por vacinas e atrasos nas aprovações regulatórias significaram que muitos países de renda baixa e renda média baixa foram deixados para trás, à medida em que as entregas e desenvolvimento de vacinas da Covid-19 aumentaram em países de renda alta. Diferenças perigosas foram observadas nos incentivos públicos e privados para a expansão da produção de vacinas, colocando os países mais pobres em desenvolvimento em uma competição desigual com países mais ricos. Estes obstáculos impossibilitaram o planejamento, a testagem e a implementação dos sistemas de entrega das vacinas para a Covid-19 em escala em inúmeros países mais pobres em desenvolvimento WHO, 2022; WTO, 2021).

A distribuição global de vacinas ainda é um desafio, e a pandemia de Covid-19 desestabilizou as fronteiras globais de serviços de saúde, derrubou as finanças e redefiniu normas de convivência social. Em meio ao cenário global de incertezas, iniciativas do regime da saúde global asseguraram a disponibilidade, ainda que limitada, de bens em momentos de escassez. O mecanismo COVAX arrecadou mais de US$12 bilhões, possibilitando a entrega de mais de 1,8 bilhão de doses gratuitas e dispositivos de injeção segura, representando mais de 50% do fornecimento de vacinas na maioria dos países de baixa renda, evitando mais de 2.7 milhões de mortes (Gavi, 2025). Essas iniciativas permitiram que milhões de pessoas ao redor do mundo, especialmente aquelas que vivem em países de renda média baixa e renda baixa, obtivessem a oportunidade de vacinação quando as incertezas pressionaram governos a restringir o fluxo de insumos através de medidas arbitrárias contra o comércio internacional.

Apenas aumentar os cuidados de saúde não é suficiente para melhorar adequadamente a saúde geral ou reduzir disparidades sem abordar questões socialmente complexas e multifatoriais como cultura, construção social e geografia. O desenvolvimento de políticas de saúde precisa considerar determinantes sociais como nível de renda, educação, recursos econômicos e padrões de discriminação se quiser atingir um nível satisfatório de resolução de conflitos (Braveman et al., 2011, Khairi, 2022). A pandemia nos mostrou de maneira dolorosa que decisões políticas arbitrárias e dificuldades em cooperar dificultam não apenas a recuperação de uma região, ao passo em que nos encontramos inseridos em um mundo globalizado, políticas individualistas aumentam os números de mortes e prolongam o período de confinamento e recessão em todo o mundo. Enquanto existirem regiões e países às margens, cujos entraves de desenvolvimento não permitem a elaboração e implementação de políticas adequadas, nos encontraremos em situações difíceis e conflitos iminentes relacionados ao surgimento, mutação e propagação de patógenos que representam um risco para a saúde pública global devido a disseminação internacional de doenças.

Negacionismo na pandemia

O regime da saúde global auferiu conquistas valiosas ao coordenar uma resposta global fundamentada em cooperação multilateral. Em contraste, a Covid-19 ampliou o escopo de atuação de medidas arbitrárias e discriminatórias quando grupos negacionistas e movimentos antivacinas viram nas incertezas da pandemia um momento adequado para instigar rupturas institucionais em países de tradição democrática. Desinformação, negacionismo, manipulação de informações e métodos científicos, falta de regulação das redes sociais e ausência de instrumentos para garantir confiabilidade aos dados foram alguns dos temas que permearam debates públicos e agendas de governo, tornando visíveis as fragilidades na organização social (Mian; Khan, 2020; Singh et al., 2020; Velásquez et al., 2020; Cinelli et al., 2020).

A maior parte da desinformação passa pelas redes sociais, cujos números de usuários têm crescido globalmente, ocupando o posto de principal fonte de informação para um número crescente de pessoas. “Redes sociais [...] como Facebook [...] YouTube e outras [...] diferentes das tradicionais mídias de massa, unidirecional em sua interação e com poucos provedores [...] os novos meios de comunicação permitem múltiplas vozes, com pouca ou nenhuma curadoria” (Camargo, 2020, p. 2). Chamaremos este fenômeno de infodemia, que significa uma propagação generalizada de fake news (informação enganosa), especialmente em meio digital (Singh et al., 2020; Velásquez et al., 2020; Cinelli et al., 2020).

A facilidade com que a desinformação corre de um lado para o outro é assombrosamente importante para o nosso debate, uma vez que fake news têm influenciado tanto no processo eleitoral democrático quanto na agenda de governo subsequente. No Brasil, por exemplo, a desinformação como via de descrédito institucional é uma atividade de muitas faces, “em sete anos, foram identificadas 337.204 publicações que colocavam sob suspeição a lisura das eleições brasileiras. A maior parte, 335.169, foi localizada no Facebook e soma 16.107.846 interações. O restante corresponde a 2.035 posts no YouTube com 23.807.390 visualizações” (Ruediger; Grassi, 2020, p. 1).

A infodemia tem sido atraída especialmente por questões de saúde, como foi observado durante a pandemia quando a difusão de fake news afetou as políticas de contenção em inúmeros países. No Brasil, a gestão federal do período pandêmico foi descrita como trágica. A combinação entre autoritarismo neoliberal, negacionismo e capacitismo do até então presidente Jair Bolsonaro rompeu com direitos fundamentais da população brasileira, ampliando a marginalização de grupos socialmente fragilizados. A falta de governança em saúde obrigou grupos periféricos em áreas urbanas e povos originários a recorrerem a métodos alternativos de sobrevivência, revelando limitações da governança democrática no país (Serra et al., 2021; Ortega; Orsini, 2020).

Diversos são os objetos de negação e engano, mas afinal, há semelhanças entre fake news e negacionismo? A resposta mais apropriada seria “sim”, a informação enganosa possui aspectos ideológicos que podem ser notados em outros fenômenos sociais. De acordo com o modo de produção (capitalista) no qual estamos inseridos na forma de sociedade (ambiente), a ideologia hegemônica pertencente ao domínio da superestrutura (composta por aspectos institucionais de organização social) que fixa os homens onde estão (de cima para baixo), em decorrência do domínio individualista dos modos de ver, viver e produzir por um grupo ou uma classe social sobre as demais (Marx; Engels, 1998). De alguma maneira, todos nós estamos implicados em algum aspecto ideológico, uma vez que o mundo material é reflexo do mundo que se constrói através das ideias, em um status de construção social. Mas não é exatamente como dizem sobre os fins justificarem os meios; pensando no objetivo de desenvolvimento de um país de princípios democráticos, entre os meios e os fins, existem diferenças lógicas, éticas e morais de resultados na estrutura social entre acreditar que políticas que distribuem terras tem as mesmas implicações econômicas e sociais de políticas que apoiam a concentração de terras e causam dependência, fome e insegurança alimentar.

Aspectos estruturais ideológicos que sustentam a desinformação frequentemente estimulam e se alimentam do negacionismo, cuja estratégia é “usar táticas que frustram discussão legítima [...] é sobre como você se engaja em um debate no qual não possui dados” (Hoofnagle; Hoofnagle, 2007, p. 2). Uma vez capturada por estas estruturas que incidem sobre comportamentos, a ação do indivíduo na interação entre as partes refletirá a visão de mundo de grupos socialmente dominantes ou emergentes que se beneficiam ou tentam se beneficiar de suas posições de vantagem em determinada ordem socioeconômica, muitas vezes concentrando o domínio dos meios de produção (projeção da luta de classes).

Destacamos cinco táticas usadas por negacionistas para confundir o público e deslegitimar o debate: “conspiração, seletividade (seleção criteriosa), falsos especialistas, expectativas impossíveis (também conhecidas como metas móveis) e falácias gerais da lógica” (Hoofnagle; Hoofnagle, 2007, p. 1). A academia é como um amplo espaço de debate, onde teorias oponentes são apresentadas e colocadas à prova de fatos; teorias mais consistentes ganham as rodadas que se repetem até o esgotamento de possibilidades. No meio, conforme o debate se aprofunda, podemos identificar aquelas cujos testes e fundamentos envolvem a manipulação de resultados, a exemplo do caso da indústria do tabaco que já em 1974 enfrentava problemas envolvendo controvérsias científicas ao contratar falsos especialistas para gerar pareceres favoráveis à visão de negócio das empresas. Na Alemanha, por exemplo, a indústria do tabaco criou redes complexas e influentes de cientistas e instituições científicas, nas quais a ciência foi distorcida através da supressão, diluição, ocultação e manipulação de dados; permitindo o retardo das políticas de implementação de controle do tabaco por muitos anos (Gruening et al., 2006).

Políticos negacionistas frequentemente utilizam a contestação do conhecimento científico como plataforma de governo na tentativa de atrair grupos extremistas e indecisos para se perpetuar no poder. Negacionistas podem desenvolver estratégias sutis para confundir o público, não em direção a uma negação generalizada da ciência, mas na utilização de controvérsias para desacreditar descobertas em uma espécie de “batalha ideológica” contra evidências científicas. A negação de evidência não é algo recente, mas em todos os tempos pode nos destruir; como mostrou a posição do ex-presidente sul-africano, Thabo Mbeki, que governou o país de 1999 a 2008 e cujo negacionismo contra evidências científicas de que o HIV causava Aids impediu que milhares de mães soropositivas na África do Sul recebessem antirretrovirais, de modo que transmitiram a doença aos seus filhos, custando cerca de 343 mil vidas (Duarte; Benetti, 2022; Bateman, 2007).

Na administração do presidente George W. Bush, suas políticas frequentemente estavam baseadas em crenças religiosas e práticas de deslegitimação de evidências científicas, a exemplo do trabalho do seu consultor em saúde reprodutiva da Food and Drug Administration, que sugeria orações e leitura da Bíblia como tratamento para a síndrome pré-menstrual (Marchetti, 2002). Um fenômeno muito similar é a marginalização de especialistas, em alguns casos através de uma aliança entre a indústria e o governo, estimulando meios de produção de interesse. Essa estratégia foi vista recentemente no Brasil quando o governo de Jair Bolsonaro, contrariando evidências científicas que demonstraram falta de eficácia e segurança para o tratamento ou prevenção (Reis et al., 2023; Rodriguez-Tanta et al., 2023; Elshafie et al., 2022; Gonzalez et al., 2022; Popp et al., 2021; Brandão et al., 2023;), recomendou o que ficou conhecido como “kit Covid”, uma combinação de medicamentos utilizados como profilaxia ao contágio e/ou aos primeiros sintomas de infecção pelo coronavírus (SARS-CoV-2), dos quais destacamos a cloroquina, hidroxicloroquina e a ivermectina.

O Brasil possui uma longa tradição de contribuição para o direito internacional público, na formação dos principais tratados de direitos humanos e das instituições multilaterais, várias tendo Cooperação Técnica e Desenvolvimento Internacional como foco central (Krause, 2017). Apesar de o país ser signatário do Regulamento Sanitário Internacional (Decreto Legislativo nº 395, de 9 de julho de 2009), e ratificado o texto revisado do RSI (Decreto nº 10.212, de 13 de janeiro de 2020), a gestão pública federal negacionista foi decisiva para estímulos a comportamentos de risco e descumprimento de recomendações de autoridades especializadas locais. Internacionalmente, assumiu um caminho antidiplomacia, recusando aconselhamento e acusando a OMS de “uso ideológico da pandemia” (Agência Brasil, 2020), especialmente após a agência não reconhecer benefícios no uso da hidroxicloroquina por não ser capaz de diminuir a mortalidade em comparação a terapias tradicionais para o tratamento da Covid-19 (WHO, 2020b).

O negacionismo desdobrou-se com profundas implicações para as lutas de classe ao operar em aspectos estruturais ideológicos do modo de produção capitalista. Desdobramentos dessa teoria foram observados nas defesas pelo uso da cloroquina e hidroxicloroquina em processos no Congresso, fundamentadas em supostas evidências científicas de viés negacionista, privilegiaram-se das incertezas e medos do momento para garantir apoio e sustentar “convicções pessoais e ideológicas”, formando uma aliança do uso político da medicação (Caponi, 2021; Penaforte, 2021) que beneficiou ações e a produção de parceiras de campanha como a Apsen, SEM e Cristália, incluindo o Exército brasileiro, que ocupou cargos importantes no governo de Jair Bolsonaro. Esses agentes detinham os meios de produção; produziram e venderam ivermectina, cloroquina, hidroxicloroquina e biossimilares a partir de “informações privilegiadas” da direção da política do governo; aquelas que poderiam afetar diretamente suas posições no mercado em determinada área (Exame, 2020; CNN Brasil, 2020; Junqueira, 2020).

Alguns anos após o início das primeiras infecções, no Brasil foram registrados mais de 39 milhões de casos confirmados e 716.448 mortes por Covid-19 (Painel Coronavírus, 2025). Apesar de todos os conflitos de interesse e divergências que emergiram ou se intensificaram através do governo durante a pandemia e que dificultaram a vacinação e a distribuição de insumos (Lavor, 2021; Brandão et al., 2023), o Brasil aplicou até o momento, 523.750.923 doses, incluindo primeira, segunda e terceira doses, dose única, dose de reforço e dose adicional (Brasil, 2025). O êxito na vacinação brasileira se deve a diversas iniciativas de cooperação, inicialmente de governos estaduais, como aconteceu com o caso das vacinas Coronavac e Sinovac (Portal Butantan, 2021), logo após aquisições do governo federal, e incluindo contribuições do regime da saúde global com o Mecanismo COVAX, através do qual o Brasil recebeu 1.022.400 doses do imunizante Covid-19 (PAHO, 2021). As instituições também permaneceram alertas em suas responsabilidades sobre notificação e monitoramento durante a pandemia, como aconteceu com a notificação das variantes da linhagem B.1.1.28 identificadas em Manaus - GAMA (28.1) e Rio de Janeiro - ZETA (28.2) (Naveca et al., 2020; Michelon, 2021; Yadav et al., 2021; Yadav et al. 2021), classificadas como variantes de preocupação e interesse, respectivamente.

Estamos implicados em deduzir que a ideologia negacionista se alimenta da desigualdade, em sua forma econômica e social, e de fragilidades na educação do público que pode considerar inteligente apoiar-se em suas crenças de grupo para duvidar dos resultados e meios de publicação por não ter acesso ao “entendimento prático de como a ciência funciona como disciplina” (Hoofnagle; Hoofnagle, 2007, p. 3). Não é errado duvidar, a dúvida não nos torna ignorantes; as considerações estão direcionadas às tentativas de formar verdades absolutas contra evidências, frequentemente através de bolhas epistemológicas; estruturas sociais epistémicas que isolam e desacreditam outras fontes epistêmicas através de um sistema de compartilhamento de crenças (Jamieson; Cappella, 2008; Nguyen, 2018). Talvez, nesta parte, a crítica mais consistente envolva perceber como a organização social que inflige desigualdades crescentes no Brasil (World Bank, 2024a) fortalece estruturas sociais de crenças excludentes que posicionam as pessoas de cima para baixo, roubam sua criatividade, minam a democracia e a legitimidade das instituições.

Trazendo o raciocínio à luz da nossa abordagem teórica, com um pouco de imaginação, deduzimos que uma característica estruturante (base da ação) no negacionismo de evidências é a crença por parte de membros do grupo minoritário de que podem acessar o poder ao vestir-se com símbolos do grupo dominante, do qual assimilam padrões de comportamento desejados. Como os estados, as pessoas estão inclinadas a responder a constrangimentos estruturais, e apesar disso, como considerou a teoria social construtivista ao olhar para as pequenas coisas, interações é uma chave para acessar a construção social de identidades e estruturas que respondem à identificação e ao compartilhamento de ideias entre o Eu+Outro, sem anular as diferenças em termos de capacidade. “As identidades pertencem ao lado da crença da equação intencional (desejo + crença = ação)” (Wendt, 1999, p. 231).

Considerações finais

O Brasil, como parte do regime da saúde global, adotou estratégias seguindo os compromissos estabelecidos no Regulamento Sanitário Internacional e as recomendações da Organização Mundial da Saúde para a formulação e implementação de políticas sanitárias de controle de fronteira, em nossa análise sobre o transporte aéreo. Como pôde ser visualizado em nossa bibliografia, ainda que o Executivo tenha adotado um discurso desafiador para as políticas de contenção ao criar discursos de controvérsia científica e apoiar a comercialização e administração de medicamentos inadequados, o país se empenhou em cumprir seus compromissos internacionais, facilitando o tráfego aéreo e apoiando as políticas em evidências científicas disponíveis.

A adoção das medidas sanitárias em um cenário de adversidade revela a força das instituições democráticas e científicas brasileiras, que resistiram em cumprir o seu propósito de combater a implementação de políticas autoritárias e discriminatórias, ao fortalecer os freios e contrapesos que devem existir em países de tradição democrática. O exemplo brasileiro, que manteve instituições científicas atuantes e cooperantes em meio a adversidades na pandemia, nos oferece uma visão mais ampliada da relevância da autonomia institucional que, em momentos de dúvida, recorreram aos fatos científicos ao invés de crenças que fortalecem a adoção de políticas autoritárias e o comportamento arbitrário dos políticos.

Algumas das análises feitas durante este trabalho nos convidam a questionar concepções tradicionais sobre ciência, como “objetividade” e “neutralidade”, dadas as evidências de que instrumentos científicos podem ser capturados por grupos extremistas para minar a ciência sólida contra os interesses do público. A relação entre o governo brasileiro e a regulação de medicamentos e outros bens durante a pandemia, os discursos de controvérsias e negacionismo que retardaram o êxito das políticas de vacinação, barreiras na administração de medicamentos para infecções sexualmente transmissíveis e a manipulação de pesquisas pela indústria do tabaco são exemplos úteis para refletir sobre a responsabilização de políticos e outros agentes na governança pública, e perceber que a sociedade deve redobrar os esforços para desencorajar tentativas de enfraquecer evidências científicas e combater políticas que relativizam a ciência, aprisionam cientistas e silenciam suas contribuições.

As instituições internacionais conquistaram um espaço muito importante como atores que fornecem contribuições que muitos países não poderiam auferir sem esse suporte na cooperação internacional. A pandemia da Covid-19 derrubou algumas barreiras e revelou fragilidades na governança de um mundo que precisa estabelecer estratégias adequadas para o sistema interdependente no qual se insere. Ainda que o regime da saúde global tenha desempenhado um trabalho muito importante reduzindo as discrepâncias globais na distribuição de vacinas Covid-19, as desigualdades no acesso a bens que afetam a saúde das pessoas ainda são um desafio ao redor do mundo, e as iniciativas de cooperação existentes são insuficientes para suprir a demanda global por soluções na área.

O que conseguimos notar são nossas posições em um sistema internacional que distribui desigualmente os recursos e oportunidades; e apesar disso, precisamos lembrar ao leitor que nosso clamor não está envolto em quão diferentes sejamos uns dos outros ou se esse sistema perdurará por mais três mil ou cem mil anos. Nossos anseios se fundamentam no entendimento de que cooperar implica desenvolver políticas coletivas quando ações individuais não forem capazes de ofertar uma resolução apropriada. A cooperação é um entendimento negociável, e certamente é uma daquelas pequenas partes, como os átomos, que no resultado final compõem algo consistente, transformável e durável.

Por fim, esperamos que este trabalho inspire mais pessoas a debater este objeto e buscar respostas para questões que não foram tratadas neste momento, que renovarão o conhecimento e pelo conhecimento serão renovadas.

Referências

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    Agradeço à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, aos docentes e servidores técnico-administrativos do Instituto de Medicina Social IMS/UERJ.
  • Editora responsável:
    Jane Russo

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2024
  • Revisado
    26 Maio 2025
  • Aceito
    29 Abr 2025
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