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Rodas de conversa sobre o trabalho na rua: discutindo saúde mental

Conversation groups on outreach work: discussing mental health

Resumos

O artigo narra uma experiência de ensino com agentes comunitários de saúde em uma unidade do Programa de Saúde da Família da periferia de São Paulo. Com o objetivo de discutir temas de Saúde Mental relevantes para o trabalho cotidiano desses profissionais, criou-se um espaço de aprendizagem e construção de sentido para esses agentes. Em grupos de encontro quinzenais com uma psiquiatra e cerca de 20 agentes, discutiam-se casos clínicos e situações de vida e trabalho a partir dos quais era possível aprender conceitos básicos de Saúde Mental e pensar o papel e a identidade desses profissionais na comunidade. Ao final de um ano de experiência, avaliou-se que tal atividade é fundamental como apoio para o desenvolvimento do trabalho desses profissionais, e para o aprendizado de como lidar com aspectos subjetivos próprios e dos usuários, especialmente na periferia de grandes centros urbanos.

humanização; ensino-aprendizagem; agentes comunitários de saúde; Programa de Saúde da Família; Saúde Mental


This article describes a teaching experience with health community agents in a Family Health Program unit. In order to discuss important everyday mental health themes, a space for these agents was created, intended for learning and building up senses. Groups of 20 agents and a psychiatrist met every two weeks, to discuss clinical cases, and life and work situations which helped apprehend basic Mental Health concepts and to reflect on the role and identity of these professionals in the community. After one year, this activity was considered fundamental to support the work developed by the agents and to help them learn how to deal with their and the users' subjective aspects, especially in the periphery of large urban centers.

humanization; teaching-learning; Mental Health; Family Health Program; health community agent


Rodas de conversa sobre o trabalho na rua: discutindo saúde mental

Conversation groups on outreach work: discussing mental health

Izabel Cristina Rios

Médica e pesquisadora no Centro de Desenvolvimento de Educação Médica da FMUSP Professor Eduardo Marcondes; doutoranda no Programa de Pós–graduação do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP. Endereço eletrônico: izarios@usp.br

RESUMO

O artigo narra uma experiência de ensino com agentes comunitários de saúde em uma unidade do Programa de Saúde da Família da periferia de São Paulo. Com o objetivo de discutir temas de Saúde Mental relevantes para o trabalho cotidiano desses profissionais, criou–se um espaço de aprendizagem e construção de sentido para esses agentes. Em grupos de encontro quinzenais com uma psiquiatra e cerca de 20 agentes, discutiam–se casos clínicos e situações de vida e trabalho a partir dos quais era possível aprender conceitos básicos de Saúde Mental e pensar o papel e a identidade desses profissionais na comunidade. Ao final de um ano de experiência, avaliou–se que tal atividade é fundamental como apoio para o desenvolvimento do trabalho desses profissionais, e para o aprendizado de como lidar com aspectos subjetivos próprios e dos usuários, especialmente na periferia de grandes centros urbanos.

Palavras–chave: humanização; ensino–aprendizagem; agentes comunitários de saúde; Programa de Saúde da Família; Saúde Mental.

ABSTRACT

This article describes a teaching experience with health community agents in a Family Health Program unit. In order to discuss important everyday mental health themes, a space for these agents was created, intended for learning and building up senses. Groups of 20 agents and a psychiatrist met every two weeks, to discuss clinical cases, and life and work situations which helped apprehend basic Mental Health concepts and to reflect on the role and identity of these professionals in the community. After one year, this activity was considered fundamental to support the work developed by the agents and to help them learn how to deal with their and the users' subjective aspects, especially in the periphery of large urban centers.

Key words: humanization; teaching–learning; Mental Health; Family Health Program; health community agent.

Introdução

Um dos aspectos mais interessantes do Programa de Saúde da Família (PSF) é a mudança no processo de trabalho, que nos chama de volta para o lugar de profissionais da saúde num tempo em que já estávamos acostumados a ser profissionais da doença.

No modelo proposto pelo PSF, as pessoas – pacientes e profissionais – estão mergulhadas na realidade local e nela resgatam espaços de subjetividade que há muito se perderam nas práticas assistenciais ancoradas no modelo queixa–resposta médica. Nessa condição, ficam reforçados o encontro e o vínculo, e as pessoas podem se ver como gente que tem nome, origem, história, família, personalidade, defeitos e qualidades humanas.

A qualidade da relação é outra, em particular no que se refere ao trabalho do agente comunitário de saúde (ACS), personagem que desponta como elemento indispensável na lógica de atenção do PSF.

No meio rural e em cidades de pequeno e médio porte, onde o PSF acumula experiência, o agente comunitário é um membro da comunidade, integrado à cultura local, capacitado para desenvolver ações educativas e preventivas, atuando na interface dos espaços público e privado. Entretanto, nos grandes centros urbanos não é bem assim. Os aglomerados populacionais podem não se constituir em comunidades politicamente organizadas e muitas vezes são áreas de exclusão social, carentes da ação do poder público, submetidas ao domínio de "autoridades marginais".

Muitas vezes, o campo de trabalho do ACS é também um campo de batalha em todos os sentidos. Batalha contra a miséria, a doença, a ignorância, a violência, o desprezo pela vida humana e a morte. Nesse cenário, o cotidiano do ACS – às vezes o único elo da população com o poder público – se torna carregado de tensões sociais e psíquicas que fazem parte do exercício de sua tarefa e interferem no seu próprio bem–estar e vida pessoal.

O contato muito próximo e recorrente com situações graves de sofrimento e degradação, além do fato de que temas de Saúde Mental, apesar de sua presença constante, são sempre complexos e pouco conhecidos para a maioria dos profissionais da saúde que não são da área psi, tornam o trabalho ainda mais penoso.

Vários estudos com profissionais da área da saúde têm demonstrado ser esta uma população particularmente susceptível ao sofrimento psíquico e estresse, devido ao trabalho, apontando para a necessidade de se criar dispositivos institucionais para seu cuidado. Há muito se sabe que tais dispositivos começam pela criação de espaços de fala e escuta, nos quais a palavra circula, provoca descobertas, faz o conhecimento e tece sentidos para a vida e o trabalho.

Partindo dessas premissas, desenvolvemos a atividade descrita neste artigo, cuja intenção foi criar um espaço de acolhimento e aprendizado para os ACS de uma região periférica do Município de São Paulo. Na perspectiva da humanização, criamos as Rodas de Conversa sobre o Trabalho na Rua.

População acolhida

O trabalho aqui relatado se desenvolveu durante o período de setembro de 2002 a setembro de 2003, na subprefeitura de Perus, no Município de São Paulo, com o grupo de ACS do PSF "Recanto dos Humildes".

A subprefeitura de Perus era a menor do município em população, algo em torno de 150.000 habitantes. Uma região de grandes áreas de ocupação recente, sem infra–estrutura e planejamento urbano e com poucos equipamentos públicos de saúde. Os que existiam eram insuficientes para suprir a demanda crescente e, para piorar a situação, havia muita dificuldade em se manter profissionais qualificados numa região distante, sem qualquer atrativo de remuneração, carreira ou desenvolvimento profissional. O único atrativo era a beleza da paisagem verde, que ainda não havia sido destruída pelas invasões e pela falta de compromisso governamental com sua preservação.

O PSF "Recanto dos Humildes" se instalou numa área complexa, onde coabitavam pessoas de classe média baixa e nichos de população em estado de exclusão social. A maioria era migrante. Grandes famílias de gente jovem subempregada, sem moradia decente, sem estudo, sem acesso a bens e serviços, sem esperanças. Os ACS, provenientes dessa comunidade, eram em geral mulheres jovens, casadas e com filhos pequenos, migrantes de outros estados, que se destacavam dos demais por um certo grau de instrução que lhes permitiu passar no concurso e constituir uma "elite" trabalhadora local, alvo de admiração, respeito e, às vezes, cobiça.

Durante todo o trabalho, contamos com o apoio da coordenadora da unidade do PSF – condição essencial para que esse tipo de trabalho dê certo.1 1 Maria Madalena Ferreira Alves, uma assistente social cuja sensibilidade e coragem moldaram não só a excelente gestora, mas a criatura humana da categoria dos imprescindíveis.

Rodas de conversa sobre o trabalho na rua

Criamos dois grupos abertos que se reuniam quinzenalmente, com a coordenação dessa psiquiatra e a presença variável de oito a 20 ACS por encontro. Nos primeiros encontros estabelecemos o enquadre, o contrato ético e a proposta de trabalho: "conversar um pouco sobre saúde mental para atender melhor à população e cuidar da gente mesmo também".

Caracterizamos os grupos como espaços para falar das inquietações decorrentes do trabalho cotidiano dos ACS e para discutir situações clínicas sob o ponto de vista da Saúde Mental.

A experiência viva

Grupos abertos de tema livre (ou mais ou menos livre, como era o nosso caso) não costumam ser espaços institucionais facilmente ocupados pelos profissionais de saúde. Apesar da consciência de que é por meio da fala e da escuta que conseguimos elaborar vivências e lidar com emoções, vários comportamentos defensivos irrompem frente a tal oferta. Nossa experiência nesse tipo de trabalho revela a dificuldade que as pessoas têm para tratar aspectos da subjetividade sua e do outro, que se manifesta na forma de freqüência baixa aos encontros, dificuldades em estabelecer vínculos e identidade grupal, superficialização de temas problemáticos que possam envolver a pessoa do profissional, esvaziamento da atividade ao longo do tempo.

Nossa primeira surpresa foi observar um comportamento dos grupos de ACS totalmente diverso do descrito. Logo de início, os grupos estabeleceram vínculo com a coordenadora e ocuparam o espaço e tempo com a abordagem de questões espinhosas, difíceis, e nas quais o envolvimento emocional do ACS ficava não só explicito, como era o próprio tema a que se pedia discussão, exigindo manejo cuidadoso para que o grupo não se tornasse um grupo de psicoterapia, mas pudesse oferecer suporte social para as vivências ali manifestas. Os participantes mostravam–se confiantes e à vontade para falar de suas angústias e sentimentos vários, interessados em compreender as razões psicológicas dos protagonistas das situações–problema, incluindo eles próprios.

Durante um ano, vários casos clínicos foram discutidos, chegando–se a condutas mais adequadas do ponto de vista da Saúde Mental, como também foram discutidas teorias e técnicas que instrumentalizavam os ACS para um melhor reconhecimento dos aspectos subjetivos presentes nas diversas situações cotidianas.

Pela freqüência e importância, destacamos alguns dos temas mais trabalhados:

1. impacto emocional do encontro com a realidade de cada família;

2. dificuldades inerentes ao papel do ACS;

3. dificuldades para trabalhar em equipe;

4. preconceitos em relação à loucura e aos problemas mentais.

Para ilustrar esses campos temáticos, vamos relatar fragmentos de discursos dos ACS recolhidos de alguns dos nossos encontros.

Relato 1 – Os ACS são mesmo pessoas da comunidade? Impacto emocional do encontro com a realidade de cada família

ACS1: A primeira coisa que eu vi quando cheguei aqui foi um rapaz novo, assassinado, em pleno meio dia o corpo exposto no meio da rua, largado como um cão. Só foi retirado dali pela polícia no fim da tarde. Ninguém se importou e isso foi o que mais me chocou. No Norte tinha muita seca, muita fome, mas parecia mais humano.

ACS2: Se eu pensar em tudo de ruim que eu vejo, enlouqueço. Tem que saber conviver com essas coisas. Eu nasci numa favela, cresci vendo essas coisas. Isso não me choca mais. Sigo minha religião e me fecho para esse mundo.

ACS3: O que mais corta o coração é ver criança passando fome. Quando pela primeira vez entrei numa casa que não tinha nada para as crianças comerem, pensei na minha filha e comecei a chorar. Nesse dia, não consegui comer. Fui em casa e peguei comida para dar para aquela menina. Não é certo, mas eu fiz.

ACS2: Eu choro depois....

ACS4: O pior é que a gente não tem o que fazer. A gente se sente totalmente incapaz, então a gente chora mesmo, ou acaba se acostumando....

ACS1: Eu pensava que trabalhando na saúde podia ajudar muita gente, mas agora... Os pacientes são muito carentes. Tem muita depressão. Falta de com quem conversar e as pessoas querem conversar. Fico escutando sem saber o que dizer.

ACS5: É, só que depois eles começam a achar que a gente é empregada deles. Começam a exigir: tem que arranjar o remédio custe o que custar, tem que fazer tudo na hora que eles querem e se não fizer eles vão correndo falar mal da gente para a diretora. Dá pena, mas dá raiva também!

ACS1: Alguns são assim, mas a maioria não. Tem muita gente precisando de atenção e carinho porque a vida aqui é muito mais dura que a vida que a gente leva lá no Norte. A gente tem que se acostumar, mas não dá para não ficar assustada.

Relato 2 – Não dá para resolver tudo. Dificuldades inerentes ao papel do ACS

ACS1: Não dá para resolver tudo, e então a gente vive ouvindo desaforos. Outro dia apareceu um que queria que eu arrumasse uma cesta básica. Aí vem outra querendo que eu arranje um advogado para ela conseguir uma pensão do cara que a largou com os filhos. Teve até um que queria que eu botasse esgoto na rua! Aí quando você diz que é só um ACS, eles chamam a gente de folgado!

ACS2: Eu não levo desaforo para casa, não! Se me desacatam eu parto para a briga ali mesmo, na frente de quem quiser ver e é bom que vejam mesmo, que se a gente é muito mansa eles montam em cima e aí é bem pior. Se tiver que sair no braço, não quero nem saber se é paciente ou não, parto para cima e seja o que Deus quiser!

ACS3: Levar na ignorância é pior. Eu converso e se não resolver mando ir conversar com a equipe do posto. A gente não é uma equipe? O pessoal fica protegido dentro do posto e nós agüentamos o rojão na rua, precisa mandar o povo ir reclamar com o pessoal do posto também que é para eles sentirem na pele o que a gente passa.

ACS4: Eu gosto do trabalho na rua. Não suporto o dia que tenho que ficar o dia inteiro no posto. Gosto de conhecer as pessoas. Tem gente briguenta, mas tem muita gente legal. Tem gente que vê a gente na rua e vem bater papo, agradecer as coisas que a gente faz. Dá gosto.

ACS5: Tem que ver também que tem muito ACS que não quer nada com nada. Não está nem aí com o povo. Eu faço tudo para resolver o problema das pessoas, aí me chamam de exibida, que eu faço porque quero ser melhor que os outros. Não é verdade. Eu gosto de ser ACS e acho que é minha obrigação fazer o impossível para resolver os problemas da população. Vou atrás mesmo, cobro e não sossego enquanto não consigo o que quero. O povo vive na minha casa. Não tem hora.

ACS6: Eu já não gosto do povo indo a qualquer hora na minha casa. Às vezes, estou na minha folga e não consigo botar o feijão no fogo de tanto que batem naquele portão. Também não gosto de atender à noite e de fim de semana. A gente também tem direito de ter sossego para a gente e para a família da gente.

ACS7: Nas minhas férias eu pus uma placa na frente da minha casa: estou de férias, procure o posto. Teve gente que reclamou, mas eu não quis nem saber, estava de férias, não tinha dinheiro para sair dali e se a gente está em casa ninguém respeita sábado, domingo, feriado... E não é para urgência não, é porque acha que a gente tem que atender qualquer hora, qualquer dia.

Relato 3 – Enquanto isso, dentro da "nossa casa"... Dificuldades para trabalhar em equipe

ACS1: Para mim o problema pior é com a gente mesmo. Não falo só da gente ACS, mas da equipe toda. Falta união. O pessoal da enfermagem se acha melhor do que nós, os médicos se acham melhores que os enfermeiros.

ACS2: Eu acho que os enfermeiros são os piores. Tem médico bem legal, como aquela doutora que acabou de chegar e os pacientes já fazem fila na frente do posto para passar com ela. Aquela tem vocação, até o jeito de se vestir é de médica que gosta de pobre. Ela não tem frescura não, vai com a gente nas visitas, entra nas casas, conversa com todo mundo, não tem nojo. O povo diz que ela é como Jesus, até os olhos são azuis...

ACS3: E Jesus tinha olhos azuis? Esse povo não tem jeito mesmo... Mas a doutora é legal. O outro médico novinho também é bem legal, e é bonito... Vocês viram? Está assim de mulher querendo passar com ele! Ah, como eu queria estar na equipe dele...

ACS4: Que assanhamento é esse? Sossega, mulher, que ele é novo, mas já é casado! (risos)

ACS3: É casado, mas não está morto! Mas não é por isso que eu queria estar na equipe dele, quer dizer, não é só por isso, mas é que aquela equipe funciona melhor que a minha. Tem entrosamento, todo mundo ajuda todo mundo, não tem essa coisa de um ver o outro no sufoco e não ajudar porque não é função dele, ou por que ele se sente mais que a gente para fazer o que a gente faz, entende?

ACS5: Isso acontece bastante na minha equipe também. Eles dizem que cada um tem sua tarefa. É verdade, porque a gente não vai saber fazer o que eles fazem, então por que eles deveriam ajudar a gente?

ACS3: Por que o nosso trabalho é mais pesado. Somos nós que vamos para a rua todo dia.

ACS5: Eu gosto de ir para a rua. Não acho que é mais pesado, é diferente. O que falta é a gente combinar melhor as coisas. Por exemplo, eu vou na casa de uma pessoa, explico que a consulta só pode ser marcada depois de tal dia do jeito que falaram que era para eu fazer, aí o paciente vai no posto e consegue passar na frente. Com que cara eu volto na casa dele? Ele me vê na rua e diz que fulano sim é que é bom e eu não sirvo para nada. Isso é trabalhar em equipe?

ACS1: Também já passei por isso. Dei uma informação para o paciente e depois falaram outra coisa para ele no posto. Parece que é a gente que não sabe trabalhar direito.

ACS3: Eu acho que tem gente que faz isso de propósito. Para parecer que é melhor que os outros. Tem muita competição entre as equipes e entre os próprios ACS para ver quem é melhor. Não acho certo, mas é isso que acontece.

ASC2: E por que ninguém fala nada na reunião com todo mundo? Aqui, todo mundo fala pelos cotovelos, mas lá ficam quietinhos como se nada tivesse acontecido.

ACS6: Aqui é diferente, dá para falar. Lá eu tenho medo de que fiquem com raiva de mim e me ferrem ainda mais depois. E olha que a coordenadora fala que é para a gente dizer tudo o que está sentindo, mas na hora não dá. Eu acho isso muito ruim porque acaba não mudando nada. Eu queria saber falar no meio de muita gente e de gente com mais estudo que eu, mas acho difícil.

Relato 4 – Loucura ou sem–vergonhice? Preconceitos em relação à loucura e aos problemas mentais

ACS1: Sabe, para mim o que mais tem é pessoa com problema de cabeça mesmo. Acho que é a miséria que faz isso. Tem uma moça na minha área que é linda, parece uma bonequinha, mas todo mundo diz que é louca. Foi abandonada pelo marido. Ele arrumou outra dizendo que ela não sabe fazer nada direito, fica o dia inteiro na cama, as crianças todas emporcalhadas na rua pedindo esmola, comendo na casa dos outros. Fiquei com tanta pena que tomei como minha filha e comecei a cuidar dela. Vocês acham que ela é louca mesmo?

ACS2: Muito certa é que não é mesmo. Por que não levanta daquela cama e vai trabalhar? É moça, é bonita, vai à luta, ora! Mas não, fica ali jogada como um trapo enquanto o marido dá no pé e as crianças ficam abandonadas. Que doença o quê! Para mim isso é sem–vergonhice mesmo.

ACS3: Eu não acho. Você sabe como foi a infância dela? Essas coisas de cabeça são muito complicadas. Até a gente mesmo, tem dia que parece que vai pirar... Eu já tomei antidepressivo e não acho que sou louca. Tem muito preconceito. Se vai ao psiquiatra e toma remédio é louco? Não é assim. Todo mundo de vez em quando precisava vir aqui conversar com a doutora.

ACS4: Eu tenho uma vizinha que ficou com câncer de tanto rancor que ela sentia do marido. A gente acha que não, mas engolir veneno faz mal para a saúde. Eu vi um médico na televisão que falava que as coisas que a gente vai guardando, um dia acabam virando doença mesmo.

ACS5: E esse povo que bebe até cair ou que usa droga. Aqui está cheio de gente assim. É uma desgraça. O pior é que você fala, fala e pensa que eles param de encher a cara? Que nada... Nem querem tratamento. Eu tenho pena é da família. Meu primo mesmo é um desses. Está metido com o pessoal da droga, vive se metendo em rolo, qualquer dia aparece morto na porta de casa e quem vai fazer o quê? Vai ficar todo mundo de boca fechada porque ele se meteu nisso porque quis, a gente cansou de avisar que ele estava se metendo onde não devia.

Nesses recortes podemos observar muitas das questões que fazem parte do cotidiano de trabalho dos ACS que atuam em área de exclusão social. Os temas de Saúde Mental, tanto no que se refere à população quanto ao profissional da saúde, são preocupações importantes do agente comunitário. Os espaços para falar, pensar e aprender um pouco mais sobre si mesmo, o outro e a subjetividade tornam–se parte essencial da própria tarefa de promover a educação da população para a saúde.

Reflexões sobre a experiência: asas do pensar...

Pierre Levy, (1993, p. 36) diz que inteligência coletiva é "a valorização, a utilização otimizada e a colocação em sinergia das competências, imaginações e energias intelectuais, independentemente de sua diversidade qualitativa e de sua localização", propriedade que se faz através da comunicação humana.

A escultura da identidade profissional parte dos elementos da experiência cotidiana e da reflexão lapidar sobre os mesmos. Não existe um manual que padronize o que cada um deve sentir, até quando ouvir os reclamos do coração (ou do estômago) das famílias, o que fazer com os segredos que lhes são confiados em espaço doméstico.

Os recortes de discurso apresentados mostram sujeitos em ação inteligente. Ao mesmo tempo em que nos falam de histórias, buscam compreendê–las pelo exercício do pensar compartilhado que se vai transformando em possibilidade de significação dos acontecimentos.

Nos relatos, percebemos várias manifestações emocionais que emergem quando do encontro com a realidade concreta das pessoas em suas casas. Os ACS vivem naquele meio, mas não se isentam do mal–estar causado pelas condições de vida do ambiente. A ACS recém–migrante fala do choque cultural entre a vida pobre no interior do Nordeste e a vida violenta na periferia da cidade. Os colegas tecem soluções individuais: fechar–se em si mesmo, voltar–se à religião, calar as emoções. A crueza do que se vê e a impotência frente à complexidade dos problemas vão escurecendo os olhares e endurecendo os sentimentos.

Ao mesmo tempo, quando percebidos como legítimos representantes do escasso poder público local, aos ACS chegam pedidos que transcendem suas funções e, diante da não–resposta desejada, passam a ser vistos como incompetentes e desnecessários. Reação irrefletida, que se reverte à medida que a população vai entendendo melhor o campo de atuação do PSF (mas não sem antes causar mais sentimento de impotência e mais frustração para o ACS).

Raiva e piedade se acumulam e recaem no cotidiano dos ACS nas situações em que ora se oferece até o que é da sua vida particular (caso da ACS que tira comida de sua mesa para dar à família necessitada), ora se apela para a ignorância, quando o assunto é desaforo (caso da ACS que briga na rua com quem quer que a ofenda).

Vida pessoal e atitude profissional em muitos momentos se confundem, e definir os limites do que é uma atitude acolhedora ou uma defesa à invasão de privacidade nem sempre é tarefa simples, mas é sempre tarefa necessária. E quando, nessa turbulência de emoções, o assunto chega aos temas psiquiátricos, as discussões pegam fogo.

Se, em qualquer circunstância, os aspectos psíquicos do viver humano estão pulsando à flor da pele, quando o problema em questão é um caso que envolva a doença mental propriamente dita, então as cores do cenário se tornam bem mais intensas. A visão moral dos sintomas mentais se choca com as idéias científicas de saúde e doença que a mídia ou o conhecimento médico veiculam, compondo o saber popular em tempos atuais. Tristeza da vida, preguiça ou depressão? Dependência, fraqueza da vontade ou falta de vergonha na cara?

O que foi feito: pensamos as pessoas e as situações de vida, começando pelo senso comum, depois percorrendo alguns conhecimentos sobre a mente humana e os efeitos sociais sobre o comportamento. E assim buscamos ampliar a capacidade de cada um para entender melhor o outro e a si mesmo, e agir de forma mais próxima à ética da humanização. Afinal, se de médico e de louco todo mundo tem um pouco, no PSF, então...

No PSF, o contato diário e próximo não se dá só com a comunidade, mas com as pessoas dentro do equipamento de saúde, que é tão lugar de ações para a saúde, quanto casa, lugar de histórias de amor e ódio. Disputas para ver quem vai ser o melhor e mais queridinho do grupo, olhares sedutores que buscam seus pares, antipatias gerais, amizades a toda prova, embates de poder, preconceitos, fofocas, muitas fofocas... Pano de fundo sobre o qual as equipes vão experimentando o seu jeito de fazer saúde.

E como "roupa suja se lava em casa", de tempos em tempos, na instituição, é preciso lavar o pano de fundo, para que o trabalho em equipe possa acontecer de forma eficiente e verdadeiramente humanizada. Em muitas situações, é imprescindível que se fale do que está nas entrelinhas dos discursos que permeiam as relações entre as pessoas, definindo o que é do direito pessoal e do dever profissional, na arrumação dessa casa que precisa de muitos espaços: ambientes reservados para as especificidades, os lugares comuns e as muitas interfaces nas quais se pactuam responsabilidade e compromisso coletivos. Afinal, trabalhar com pessoas, no território da vida, é um desafio que, nas palavras de Guimarães Rosa (1979, p. 15), encontra sua mais pura expressão:

Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil–e–tantas misérias... Tanta gente — dá susto se saber — e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons...

Recebido em: 16/02/2007.

Aprovado em: 20/03/2007.

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  • 1
    Maria Madalena Ferreira Alves, uma assistente social cuja sensibilidade e coragem moldaram não só a excelente gestora, mas a criatura humana da categoria dos imprescindíveis.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      20 Mar 2007
    • Recebido
      16 Fev 2007
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