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Da anulação no discurso à eliminação em ato: o sofrimento do sujeito e o ato suicida no autismo

From annulment in discourse to elimination in act: the subject's suffering and the suicidal act in autism

Resumo

As altas taxas de ideações, tentativas e mortes por suicídio entre a comunidade de pessoas autistas é um tema que vem sendo investigado com frequência e profundidade. No interior de determinado segmento da ciência, que instrumentaliza a lógica neoliberal de gestão do sofrimento, se faz destacar o fenômeno do suicídio no âmbito do autismo, na mesma medida em que o lugar reservado ao sujeito autista se torna ausente de sua prática discursiva. Nesse contexto, este trabalho buscou produzir um levantamento bibliográfico sobre o tema em questão, com o objetivo de evidenciar as principais linhas de força atuantes nesta dimensão específica de sofrimento em pessoas autistas. Quando o enfoque da análise recaiu sobre as formas de expressão desses sujeitos em sofrimento, tornou-se incontornável assumir que o ato suicida faz ressaltar as marcas do ser, da falta-a-ser e da angústia frente ao real - atributos de uma experiência singular de sofrimento que o discurso da ciência tenta eliminar.

Palavras-chave:
Autismo; Sujeito; Sofrimento; Suicídio; Psicanálise.

Abstract

The high rates of ideations, attempts and deaths by suicide among the community of autistic people is a topic that has been investigated frequently and in depth. Within a certain segment of Science, which instrumentalizes the neoliberal logic of suffering management, the phenomenon of suicide in the scope of autism is highlighted, to the same extent that the place reserved for the autistic subject becomes absent from his discursive practice. In this context, this work sought to produce a bibliographic survey on the subject in question, with the objective of highlighting the main lines of force acting on this specific dimension of suffering in autistic people. When the focus of the analysis fell on the forms of expression of these suffering subjects, it became essential to assume that the suicidal act highlights the marks of being, of lack of being and of anguish in face of the real - attributes of an experience suffering that the discourse of science tries to eliminate.

Keywords:
Autism; Subject; Suffering; Suicide; Psychoanalysis

Introdução

O reconhecimento do problema do suicídio entre a comunidade de pessoas autistas, na contemporaneidade, trouxe consigo algo que parece ter-lhes sido destituído: um lugar de sujeito que precisa ser escutado. Colocado em evidência em função da alta taxa de mortes prematuras no interior desta comunidade, o tema parece vir sendo abordado de modo sistemático desde 2014, como afirma Veenstra-Vander Weele (2018), após o trabalho de Cassidy, Bradley, Robinson, Allison, McHugh & Baron-Cohen (2014CASSIDY, S. et al. Suicidal ideation and suicide plans or attempts in adults with Asperger’s syndrome attending a specialist diagnostic clinic: a clinical cohort study. The Lancet Psychiatry, v. 1, n. 2, p. 142-147, 2014.) despertar o interesse para esta questão.

Que o ato suicida seja, em sua inteireza, um fenômeno instigante, complexo e multifatorial, parece razão insuficiente para compreender a atenção que se volta do campo da ciência1 1 Em referência à abordagem da psicologia cognitivo-comportamental. Juntamente com as abordagens da psiquiatria organicista e das neurociências do comportamento, a psicologia cognitivo-comportamental é uma das que se apresentam como dominantes na apreensão dita “científica” dos fenômenos relacionados ao autismo, incluindo o tema do suicídio nos estudos aqui selecionados. Assim, sempre que utilizarmos o termo “ciência” ou “científico”, neste artigo, este fará referência ao modo de funcionamento presente nestas abordagens, em particular a psicologia cognitivo-comportamental. para este problema, na atualidade. Entretanto, o fato em destaque nas altas taxas de mortes prematuras, em uma comunidade de pessoas que parece ser apreendida, essencialmente, em função daquilo que se diz sobre elas - são autistas, ganha um contorno diferente, na medida em que passa a ser investigado dentro de um contexto específico: o ato suicida no autismo.

Com efeito, a seriedade do problema vem sendo absorvida, de modo privilegiado, no interior da perspectiva da psicologia cognitivo-comportamental que, ao abordar a dor do viver humano, implicada em condições como o autismo, busca eliminar qualquer vestígio de subjetividade para dar conta dos fenômenos de um corpo que se vê regido, em sua tese, pelo comando da cognição e do comportamento. Assim, tendo em vista a grande dificuldade que se coloca no interior deste modo de fazer ciência em se escutar os autistas, e, mais precisamente, em uma atitude de recusa em considerar a existência de um sujeito que sofre, e que se vê apartado do discurso e do método que se operam - dificuldade já exposta por Maleval (2017MALEVAL, J. C. O Autista e sua Voz. São Paulo: Blucher, 2017.), este trabalho buscou produzir um levantamento bibliográfico, por meio dos termos indexadores em inglês “autismo”, “suicídio”, “autolesão” e “sofrimento”.

Deste levantamento foram eleitas algumas pesquisas, publicadas entre o início dos anos 2000 até os dias de hoje, das quais buscou-se destacar as principais linhas de força atuantes nesta dimensão específica de sofrimento em sujeitos autistas. O critério utilizado para a seleção dos estudos foi a busca de discussões sobre o tema do suicídio entre a comunidade de pessoas autistas, que versassem ou fizessem menção à perspectiva destas últimas quanto às suas experiências de sofrimento. No entanto, uma análise preliminar do material selecionado colocou em evidência a presença de um interesse maior na investigação do fenômeno, por meio da busca de uma possível relação entre suicídio, problemas de saúde mental, autolesão e autismo (não de um sujeito em sofrimento), em detrimento do trabalho com as narrativas destes sujeitos sobre suas próprias experiências no assunto.

Assim, quando o enfoque da análise recaiu sobre as formas de expressão do sofrimento em curso, tornou-se incontornável assumir que o ato suicida evidencia as marcas do ser, da falta-a-ser e da angústia frente ao real - atributos de uma experiência singular de sofrimento que a abordagem da psicologia cognitivo-comportamental, como uma modalidade de discurso científico, tenta eliminar. Neste contexto, nos propomos a trabalhar neste artigo os desdobramentos do que se opera nos termos de uma “elisão do sujeito”, especificamente no caso do autismo, uma vez que o definimos como uma posição subjetiva - um modo de estar na linguagem e de tratar aquilo que é da ordem do insuportável, seu pathos.

Em nome do método e de sua legitimidade: a apreensão reducionista do autismo

Se para Veenstra-VanderWeele (2018)VEESTRA-VANDERWEELE, J. Recognizing the problem of suicidality in autism spectrum disorder. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, v. 57, n. 5, 2018. parece surpreendente, a partir de um olhar retrospectivo, a falta de foco no problema do suicídio entre a comunidade de pessoas autistas, uma vez que comportamentos auto lesivos já vinham sendo investigados nesta área, observa-se que, mais que surpreendente, esta falta se apresenta como um efeito. Efeito de uma forma específica de se abordar e compreender o autismo a partir da convicção pragmática de que se trata de uma condição, em teoria, etiologicamente localizada (sistema neurológico). E que faz produzir, por sua própria origem, uma série de comportamentos disfuncionais sem a menor implicação subjetiva.

Ao considerarmos a dimensão patológica em que o autismo é frequentemente tomado no campo biomédico, faz-se necessário enfatizar que, diferente deste último, a psicanálise apreende uma patologia, fundamentalmente, como um estatuto de afetação, que produz em alguém uma dimensão subjetiva de dor, um pathos. Assim, se por um lado é possível afirmar que não existe unanimidade consensual em torno da etiologia do autismo no campo da ciência - pois trata-se, em essência, de hipóteses de trabalho - por outro lado, na psicanálise, mais precisamente, no campo lacaniano, esta discussão se direciona para a formulação estrutural da linguagem em curso no autismo, o que nos permite trabalhar nesta dimensão.

É desta apreensão psicanalítica que vem a concepção do autismo como uma posição subjetiva, como manifestações de um sujeito que se movimenta de modos singulares no campo da linguagem e que é, muitas vezes, levado a se posicionar de formas rígidas e fechadas. Tais pontos abrem espaço para questões relativas à causação e constituição do sujeito, retomando a legitimidade de suas manifestações. É, ainda, desta mesma perspectiva que se pode acolher o sofrimento em curso no autismo como um estatuto de afetação.

Francisco Martins (1999MARTINS, F. O que é pathos? Rer. Latinoam. Psicop. Fund, v. 11, n. 4, p. 62-80, 1999.), em um estudo que busca recuperar o sentido etimológico do termo pathos, bem como o caminho percorrido pelas concepções e práticas em que ele é empregado, identifica que o termo foi transformado em um radical que, quando presente, envia quase diretamente a uma concepção de doença em sua forma médica atual. Entretanto, como o autor demonstra ao longo do trabalho, o conceito de pathos traz consigo possibilidades e problemas mais amplos que o sentido de doença, não fazendo parte de somente um campo de estudos como a palavra “patologia” indica.

O autismo, como observaremos, mesmo sendo tomado pelo viés reducionista de apreensão da patologia, parece não produzir este efeito “daquilo que afeta alguém”. Fenômeno que pode ser identificado no amplo destaque às considerações referentes ao índice patológico em que se faz reconhecer a condição autística, produzindo como resultado a ocultação das marcas significantes, singularizadas nas experiências de dor e de sofrimento do sujeito. Deste ponto de vista, destacaremos que discutir a dimensão do pathos no âmbito do autismo, é se reportar ao mal-estar que é intrínseco à existência humana e que se encontra na base da condição do desamparo fundamental a que todo humano está submetido.

Não surpreende que o campo da ciência não se reporte a esta dimensão de dor, dada sua estrutura de objetividade. Cabe aqui destacar que a crítica direcionada a esta modalidade específica do fazer científico (abordagem metodológica da psicologia cognitivo-comportamental) não perfaz o campo integral das ciências, uma vez que nele podemos encontrar ressonâncias de legítimas preocupações com os aspectos fundamentais do sujeito em diversas áreas, como na Antropologia, na Linguística, na História, nas Ciências Sociais, na Medicina Social, etc.

Entretanto, no campo em que a discussão é centrada, chama a atenção o modo como o fenômeno do suicídio se torna instigante quando relacionado ao autismo. Estudos como os de Camm-Crosbie et al. (2018)CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018.; Cassidy et al. (2018CASSIDY, S. et al. Risk makers for suicidality in autistic adults. Molecular Autism, v. 9, n. 1, p. 1-14, 2018.); Hadley & Uljarević (2018)HEDLEY, D.; ULJAREVIĆ, M. Systematic review of suicide in autism spectrum disorder: current trends and implications. Current Developmental Disorders Reports, v. 1, n. 12, 2018.; Cassidy & Rodgers (2017)CASSIDY, S., & RODGERS, J. Understanding and prevention of suicide in autism. The Lancet Psychiatry, v. 4, n. 6, p. 11, 2017.; Zahid & Upthegrove (2017ZAHID, S.; UPTHEGROVE, R. Suicidality in autistic spectrum disorders: a systematic review. Crisis, v. 38, n. 4, p. 237-246, 2017.); e Hull et al. (2017HULL, L. et al. “Putting on My Best Normal”: Social camouflaging in adults with autism spectrum conditions. Journal of Autism Developmental Disorder, v. 47, n. 8, p. 2.519-2.534, 2017.) apontam de modo urgente para a escassez de pesquisas envolvendo o tema do suicídio entre a comunidade de pessoas autistas.

Camm-Crosbie et al. (2018)CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018., por exemplo, afirmam que adultos diagnosticados em condições do espectro autista (autism spectrum conditions) estão em alto risco de ocorrer simultaneamente problemas de saúde mental, bem como alto risco de autolesão não suicida e suicídio. Porém, de acordo com os autores, saúde mental, autolesão e suicídio em autismo são pouco compreendidos e pesquisados.

Cassidy et al. (2018CASSIDY, S. et al. Risk makers for suicidality in autistic adults. Molecular Autism, v. 9, n. 1, p. 1-14, 2018.) afirmam que, além de pouco compreendidos, há uma escassez de pesquisas explorando a razão de adultos em condições do espectro autista incorrerem em alto risco de ideações suicidas e morrerem por suicídio. De modo semelhante, Cassidy & Rodgers (2017)CASSIDY, S., & RODGERS, J. Understanding and prevention of suicide in autism. The Lancet Psychiatry, v. 4, n. 6, p. 11, 2017. apontam que um pequeno corpo de pesquisas demonstra, preocupantemente, as altas taxas de suicídio entre a comunidade de pessoas autistas adultas, e que, além disso, “um estudo em larga escala de populações demonstrou que o suicídio é a principal causa de morte prematura em pessoas com autismo” (CASSIDY; RODGERS, 2017CASSIDY, S., & RODGERS, J. Understanding and prevention of suicide in autism. The Lancet Psychiatry, v. 4, n. 6, p. 11, 2017.). Entretanto, os autores também afirmam que o suicídio em pessoas com autismo permanece pouco compreendido e pouco pesquisado.

Segundo Hedley & Uljarević (2018HEDLEY, D.; ULJAREVIĆ, M. Systematic review of suicide in autism spectrum disorder: current trends and implications. Current Developmental Disorders Reports, v. 1, n. 12, 2018., p. 2):

atualmente não está claro até que ponto os fatores de risco para o suicídio na população geral são generalizáveis para pessoas com autismo, na medida em que muitos dos fatores que afetam a população geral (presença de comorbidades médicas e psiquiátricas, dependência ou abuso de substâncias, sentimentos de desamparo e desesperança, baixa qualidade de sono, histórico familiar de comportamentos suicidas, acontecimentos da vida, estressores recentes e disponibilidade de apoio social) são predominantes em pessoas com autismo (tradução nossa).

Mediante estes pontos iniciais na abordagem do tema, torna-se claro o pragmatismo de um fazer “dito científico” que busca operar uma pretensa separação entre autismo, enquanto uma condição patológica, e a pessoa que dele padece, enquanto um vivente em sua dimensão de existência. De modo que, o tema do suicídio torna-se “pouco compreendido” quando relacionado ao autismo e à abrangência quantitativa e qualitativa de suas características clínicas e demográficas.

Elia (2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012.), ao identificar este problema - a dominância do discurso da ciência em sua tentativa de eliminar a positividade do autismo como uma posição subjetiva - afirma que a psicanálise está presente e decidida na tomada do autismo como uma questão clínica e teórica marcada pela crucialidade. Para o autor, tanto a psicanálise quanto a ciência se perfilam na linha de frente deste embate, em que ambas entretêm com cientificidade relações igualmente diversas.

Um ponto central da crítica de Elia (2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012.), e que nos interessa destacar aqui, diz respeito ao processo de redução da perspectiva científica ao que ele nomeia de “aprisionamento miserável do objeto a uma só categoria de realidade” (ELIA, 2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012., p. 60). A chamada “perspectiva científica” refere-se ao modo com o qual o campo da ciência, na abordagem de fenômenos como o autismo, opera no sentido de degradar seu objeto de estudo para que o método “dito científico” seja mantido. Em suas palavras:

Para a psicologia cognitivo-comportamental, qualquer investigação ou tratamento de fenômenos como o autismo implicará a sua redução a padrões comportamentais em interação com fatores biológicos, ainda que estes permaneçam na mais completa e vaga imprecisão. Por não distinguir adequadamente objeto e método, a psicologia comportamental se vê na injunção de degradar o objeto para manter o seu método que, para ser tido como “científico”, deve “objetivar” o sujeito e reduzi-lo a repertórios comportamentais manipuláveis por modelagem experimental (ELIA, 2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012., p. 58).

Nesse contexto, para Elia (2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012.), a ciência que se apresenta hoje pode ser descrita como uma espécie de “medicina do comportamento” - uma aliança da psicologia cognitivo-comportamental com a chamada medicina baseada em evidências, que se inspira no modelo neurocientífico para responder a todas as questões do comportamento humano (ELIA, 2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012.).

Tal inspiração conflui, no pensamento de Elia (2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012.), para o que o autor identifica como uma espécie de homologia de posições entre o autismo nos dias de hoje e a histeria da época de Freud. Para o autor, o autismo está para a contemporaneidade em posição homóloga àquela em que a histeria ocupou há mais de cem anos atrás, no que diz respeito à emergência do fenômeno frente à investigação científica. Entretanto, mesmo diante desta homologia de posições, Elia (2012) enfatiza uma diferença entre a ciência com a qual a histeria se defrontou e a ciência com a qual o autismo se defronta hoje:

[...] enquanto que a histeria desafiava a ciência de sua época, rebelava-se contra ela, apontando sua impotência em trata-la, o que exigiu de Freud o esforço suplementar de se inventar como psicanalista, superando a ciência e indo além de sua condição inequívoca de um cientista de mão cheia, a “ciência” de hoje tenta enquadrar o autismo, adestra-lo, reduzi-lo, eliminar sua particularidade positiva (ELIA, 2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012., p.56).

Assim, fazendo uma retomada do movimento que levou Freud a inventar a psicanálise, Elia (2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012.) demonstra como, diante do fenômeno, Freud não degradou seu objeto de estudo, mas renovou sua perspectiva:

Para Freud, nada parecia mais razoável ao espírito científico do que enfrentar trevas a fim de lhes levar as luzes da razão. [...] Se, mais adiante, ele compreendeu penosa, porém frutiferamente, que a histeria exigiria mais do que a ciência como resposta, e inventou a psicanálise através da transferência - que não cabia na lógica da ciência, isso não invalida a via estritamente científica pela qual ele chegou ao impasse que o levou a esgarçar o tecido científico - aliás, é por estar nele até o mais extremo confim que ele pôde esgarçá-lo, e não por ter partido de outra malha [...] (ELIA, 2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012., p. 58).

É desta perspectiva que partimos quando nos propomos a investigar os efeitos da anulação do sujeito e de sua dimensão de sofrimento no autismo. A degradação do objeto de estudo da ciência, especificamente no tema em discussão, elege autismo e suicídio como elementos que precisam ser dissecados pormenorizadamente, fazendo com que a perspectiva do sujeito, frente à sua condição existencial, tenha um valor menor diante da positividade da patologia (autismo) e sua extensão de danos (suicídio).

O enigma do fenômeno como causa de segregação

O que apontamos em relação ao processo de degradação do objeto de estudo no caso do autismo, pode ser observado nas abordagens sistemáticas operadas em alguns trabalhos, diante de objetivos tão específicos como “identificar marcadores de risco únicos para o suicídio entre este grupo de pessoas” (CASSIDY et al., 2018CASSIDY, S. et al. Risk makers for suicidality in autistic adults. Molecular Autism, v. 9, n. 1, p. 1-14, 2018.), ou ainda “compreender melhor como esta população única experiencia e expressa tendências suicidas” (SEGERS; RAWANA, 2014SEGERS, M.; RAWANA, J. What do we know about suicidality in autism spectrum disorders? A systematic review. Autism Research, v.7, p. 507-521, 2014.).

Camm-Crosbie et al. (2018)CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018., ao explorarem as experiências de pessoas autistas adultas, que receberam o diagnóstico de Síndrome de Asperger (reconhecida como uma forma de autismo, a partir do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais 5ª Edição - DSM-VAMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION . Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5. São Paulo: Artmed, 2013.), em relação a tratamento e apoio para problemas de saúde mental e suicídio no Reino Unido, identificaram que os participantes do estudo se sentem excluídos dos serviços de saúde mental por um número de razões.

Primeiramente, os participantes descreveram uma ausência na disponibilidade de serviços de saúde mental para autistas adultos sem “déficit intelectual” (intellectual disability). Em segundo lugar, pressuposições foram feitas sobre estas pessoas terem “alto-funcionamento” e serem percebidas como quem estavam lidando bem com suas dificuldades, quando, na verdade, estavam lutando com elas. Em terceiro lugar, longas listas de espera e falta de financiamento para apoio ou tratamento foram descritas, mesmo para pessoas autistas experienciando ideações suicidas.

Para Camm-Crosbie et al. (2018)CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018., estes achados são consistentes com pesquisas anteriores e relatos clínicos em relação à falta de especialização em autismo no que diz respeito à saúde mental e ambientes psiquiátricos. É notável, entretanto, como os problemas de saúde mental e o suicídio são contextualizados em relação à condição autística desses adultos, como algo para o qual é necessário especialidade em conhecimento sobre o que se passa no autismo.

Com efeito, este não parece ser um ponto de discussão arbitrário, uma vez que um dos principais temas identificados no trabalho de Camm-Crosbie et al. (2018)CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018. sobre as experiências de pessoas autistas adultas na busca de apoio e tratamento para dificuldades de saúde mental, autolesão e suicídio é nomeado pelos autores como “Pessoas como eu não recebem apoio”. Este tema é resultado de uma série de relatos que se caracterizaram por descrições dos participantes do estudo (pessoas autistas adultas sem déficit intelectual) em relação às dificuldades em encontrar tratamento e apoio apropriados. Dentre estes relatos, encontra-se:

Eu não solicitei nenhum, porque pessoas como eu não recebem apoio. Toda vez que eu perguntei sobre estas coisas, isso foi deixado bem claro. Neste momento eu nem sei a quem eu poderia pedir ajuda (CAMM-CROSBIE et al., 2018CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018., p.5, tradução nossa).

Pensamentos de encerrar a vida são descritos como uma realidade para outro participante do estudo de Camm-Crosbie et al. (2018, p. 7)CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018.:

Minha sensação é a de que apoio de qualquer tipo simplesmente não vai mudar nada em uma forma prática. De algum modo eu sinto que estou usando a terapia como um cuidado paliativo até que eu tenha a força e compromisso suficientes para morrer de verdade (tradução nossa).

De acordo com Camm-Crosbie et al. (2018)CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018., para muitos participantes, esta falta de tratamento e apoio era explicitamente ligada à co-ocorrência de autismo e diagnósticos de saúde mental, o que os tornava “muito complicados” e inelegíveis para os serviços: “Se você tem Transtorno do Espectro Autista, então a saúde mental diz que não é problema deles”; “a menos que você tenha um déficit de aprendizado comórbido, você está por sua conta própria” (CAMM-CROSBIE et al. 2018CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018., p.5, tradução nossa).

Neste contexto, identificamos também o relato de um dos participantes do estudo de Camm-Crosbie et al. (2018, p. 5)CAMM-CROSBIE, L. et al. ‘People like me don’t get support’: Autistic adults’ experiences of support and treatment for mental health difficulties, self-injury and suicidality. Autism, v. 23, n. 6, p. 1431-1441, 2018., que fala da falta de entendimento e conhecimento sobre autismo:

A maior dificuldade em obter o apoio que eu preciso é a falta de compreensão do autismo. Mesmo após décadas de pesquisas, muitas instituições ainda não possuem a menor pista de como lidar com uma condição como esta e, portanto, eu encontrei apenas lugares selecionados que lidam especificamente com autismo. O apoio que eu recebi, sinto que não é adequado o suficiente. Nenhum conselheiro comum consegue entender autismo, e os aspectos sociais fornecidos por um prestador de apoio não me ajudaram a acabar com os meus sentimentos de rejeição... Se houvesse alguém que compreendesse tanto a condição, quanto a mim, sinto que haveria progresso (tradução nossa).

Nota-se como a necessidade de uma “especialização em autismo” parece estar paralisando a rede de apoio a estas pessoas. E isto é, de fato, o que colocamos em questão: “especialidade em autismo”, parece se apresentar aqui como a presunção em conhecer e produzir um conhecimento que abarque todas as possibilidades explicativas da condição e silencie o sujeito em sua dimensão de sofrimento, de pathos.

A recusa em atribuir a possibilidade do sofrimento psíquico às experiências de dor e dificuldades enfrentadas diariamente por pessoas autistas, e a consequente impossibilidade de acolhê-las em sua dimensão de singularidade, depõem sobre o risco do que Elia (2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012.) chamou de “segregação travestida” no que diz respeito ao lugar do tratamento do autismo:

[...] Entregue às operações da ideologia cientificista da medicina do comportamento, lastreadas pelo poder incalculável dos lucros da indústria de psicofármacos, o autismo não conhecerá outro destino senão o da segregação travestida, como convém, da mais cínica aventura repleta de proezas no desenvolvimento de “competências sociais”, inclusão, benefícios sociais junto às políticas de assistência [...] que não apenas mantêm intacta a posição do sujeito - como um não-sujeito, um objeto que se crê ativo e ativado pelo pragmatismo das conquistas no espaço de suas relações na polis - como engendram incessante e performaticamente essa posição de objeto de manipulação social e política (ELIA, 2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012., p. 62).

A despeito de um discurso segregativo, a inscrição no laço social se torna cada vez menos possível, uma vez que a possibilidade do acolhimento e da produção de relações discursivas se tornam potencialmente rechaçadas e encobertas pelo viés aparentemente razoável de “ausência de especialização em autismo”.

Se entendermos segregação como um ato fundado no real do próximo que não permite que este se constitua, no plano do imaginário, como um semelhante, ou como um ato fundado no real que se prolonga em um imaginário de pura violência e ódio, veremos com clareza que é esse o resultado do ato de estabelecer com os autistas uma relação reducionista, que os elimina da condição de um possível sujeito adveniente (ELIA, 2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012., p. 63).

A dimensão do sofrimento no autismo está intrinsecamente associada ao mal-estar que é próprio à existência humana e que produz para cada vivente um modo de tratar aquilo que é da ordem do insuportável. Todavia, se falamos de propriedade no que se refere a este mal-estar humano, cabe ressaltar que não diremos o mesmo no que se refere ao autismo, pois não existe um modo de sofrer que seja próprio ao autismo, o que existe é sofrimento.

O retorno do pathos no real do ato

Ao se reconhecer que é o sofrimento de um modo de vida, com sua própria gramática de reconhecimento, que parece ser essencialmente descartado no que diz respeito a pessoas autistas, será possível chegar à seguinte formulação: o pathos que afeta o sujeito no autismo retorna no real do ato suicida, voltado para um corpo que se silencia e se torna passível de eliminação. Como colocam Vilanova e Vieira (2014VILANOVA, A.; VIEIRA, M. O Sujeito da psicanálise não é sem corpo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 1, 2014.), o sujeito da psicanálise não é sem corpo. Com efeito, se a existência do sujeito é desconsiderada, para onde mais endereçar o sofrimento escancarado em curso senão à eliminação disto que, em tese, se mantém vivo em função da existência de um sujeito, como efeito do atravessamento da linguagem no corpo?

De modo fundamental, o que a pesquisa acerca do tema do suicídio entre a comunidade de pessoas autistas parece vir sinalizando é que o saber produzido sobre o autismo é imputado ao vivente que recebe tal designação. No entanto, aquilo que escapa a este saber, denuncia a falha deste discurso “dito científico” em produzir um saber, pretensamente pleno e purificado sobre um corpo destituído daquilo mesmo que o anima - a consideração da imersão de seu ser no campo da linguagem. Desta feita, o que é foracluído do discurso (a existência do sujeito e de seu pathos) retorna no real de um ato acéfalo impulsionado a eliminar um corpo que se vê esvaziado das marcas significantes de sua própria existência.

Como se verifica na recusa pragmática em se escutar os autistas, pela via de uma dimensão que não se reporte ao índice patológico e antecipe o lugar de enunciação do sujeito, o que parece vir sendo produzido na investigação do fenômeno do suicídio entre a comunidade de pessoas autistas são, também, informações turísticas, utilizadas para informar sobre o que acontece ou o que se espera do manejo do problema. Um mecanismo por meio do qual, invariavelmente, as observações e as narrativas impostas que delas decorrem funcionam para alocar a pessoa dita autista a um lugar de alienação em que o que se produz como resultado é um desencontro bastante mencionado por pessoas autistas adultas no que diz respeito às suas necessidades pessoais.

Neste sentido, Soler (2018SOLER, C. A querela dos diagnósticos. São Paulo: Blucher , 2018.), ao diferenciar as noções de sintoma para a psicanálise e para a psiquiatria, justifica a razão de se ouvir o que o sujeito tem a dizer sobre sua condição ou, mais especificamente, sobre o sintoma autodiagnosticado que o leva a procurar ajuda. Conforme a autora,

[...] o que o Outro social (e o psiquiatra faz parte do Outro social) não suporta ou estigmatiza nem sempre coincide com o que cada sujeito não suporta. Nesse sentido, a fala, os ditos do sujeito, são constituintes do sintoma que é possível tratar na psicanálise. Somente o sujeito pode dizer o que não vai bem para ele, embora ele ignore a causa disso; naturalmente, ele talvez tente descobri-la (SOLER, 2018SOLER, C. A querela dos diagnósticos. São Paulo: Blucher , 2018., p. 37).

A exclusão da existência do sujeito em função da positividade da patologia, além de reduzir o viver humano da dor a modelos que objetificam o sofrimento a um nível material e localizável, toca também um ponto ainda mais grave no que diz respeito ao autismo: legitima negativamente a questão mais delicada e minuciosa que há para ser trabalhada - a constituição do sujeito.

Ora, ao definir o autismo como uma posição subjetiva, a psicanálise proporcionou sua retirada2 2 A formulação opera, neste contexto, como uma metáfora. A questão do autismo como uma deficiência é uma discussão complexa que se coloca no campo das políticas públicas, cujas principais linhas de força argumentativas que as sustentam dizem respeito à aquisição de direitos fundamentais para uma existência digna no meio social. Esta questão, portanto, não se contrapõe às proposições fundamentais que viemos sinalizando, no sentido de retomar o lugar do sujeito. Todavia, a escolha pelo uso dos termos “retirada definitiva do campo das deficiências” teve como objetivo enfatizar a perspectiva psicanalítica de que os fenômenos no autismo não se reduzem a meras questões orgânicas limitantes ou incapacitantes. definitiva do campo das deficiências, como afirma Barroso (2020BARROSO, S. F. O autismo como uma estrutura clínica. In: TEIXEIRA, A.; ROSA, M. (Orgs.). Psicopatologia Lacaniana. V. 2: Nosologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 217-236.). O acolhimento, por parte da psicanálise, das manifestações no autismo como possibilidades legítimas de compor com o Outro uma relação (mesmo que a dura penas!) restitui o lugar do sujeito como a aposta central e orientadora na abordagem do sofrimento em curso na condição. Uma posição crítica que não se reduz ao caráter epistêmico do que está em jogo, mas que vai além, fazendo frente a uma postura reducionista de apreensão de fenômenos humanos, como o autismo, encerradas tão somente em questões orgânicas.

Segundo Barroso (2020BARROSO, S. F. O autismo como uma estrutura clínica. In: TEIXEIRA, A.; ROSA, M. (Orgs.). Psicopatologia Lacaniana. V. 2: Nosologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 217-236.), a construção lacaniana da hipótese de uma estrutura autística, isto é, uma lógica de funcionamento que situa a emergência do sujeito como um efeito de linguagem, é resultado de um longo período de investigação em diversas fontes de trabalho com autistas, que foram se esboçando a partir dos ensinos de Lacan na clínica, nas instituições, no campo da educação, nas políticas públicas, etc. De fundamental importância para esta construção, afirma a autora, foi a abordagem estrutural e não psicogenética da linguagem.

Para a psicanálise, a leitura de sujeito no âmbito do autismo é a aposta mais essencial do trabalho, pois trata-se de fazer emergir o que há de singular em cada sujeito autista, como cada um se faz e é atravessado pela linguagem. O tratamento psicanalítico do autismo é um trabalho ético que visa auxiliar o sujeito na construção daquilo que se lhe apresenta como essencial, ou mesmo a dar vazão ao gozo que habita todo ser de linguagem, mas que, neste caso específico (autismo), não se faz escoar pela via do significante. É um trabalho que reconhece e legitima a angústia e o terror do autista ao ser confrontado pelo Outro. A suposição de saber nas manifestações destas pessoas permite que o trabalho de acolhimento e escuta seja guiado pelo que o autista tem a dizer e a ensinar sobre suas experiências.

A escuta psicanalítica do sofrimento no autismo coloca em evidência a ideia de que o processo de constituição subjetiva de cada autista se dá de forma árdua e requer uma leitura que legitime sua gramática. Por sua vez, não escutar, não acolher a dimensão singular de sofrimento destas pessoas, não somente as segrega do corpo social de forma travestida, como identificou Elia (2012ELIA, L. Autismo e segregação. A peste, v. 4, n. 1, p. 55-64, 2012.), mas, também, mina a possibilidade de que seus próprios esforços de sobrevivência, seus modos singulares de lidarem com aquilo que lhes é insuportável, sejam legitimados enquanto a dor do viver humano que atravessa sua condição autística. De modo que, a anulação discursiva do sujeito retorne ao autista como a confirmação de que a sua existência não possui valor, e pode ser retirada de cena por meio do ato.

Considerações finais

Em um estudo que buscou sintetizar o que se pôde apreender da ciência do autismo até o momento, Timimi & McCabe (2016TIMIMI, S.; MCCABE, B. What have we learned from the Science of autism? In: RUNSWICK-COLE, K.; MALLET, R.; TIMIMI, S. (Eds.), Re-Thinking Autism: Diagnosis, Identity and Equality, London; Philadelphia: Jessica Kingsley Publishers, 2016, p. 19-29.) colocam em xeque a prática diagnóstica do autismo, ao expressarem suas preocupações de que este diagnóstico não lance nenhuma nova luz ou especificidade sobre como contribuir com as dificuldades da pessoa, ou como ela possa avançar adiante. Como destacam os autores, haverá sempre pessoas que não conseguimos facilmente compreender por senti-las e identificá-las como diferentes. Categorizar, neste contexto, se coloca, muitas vezes, como uma forma de controlar a alteridade e dificultar o estabelecimento do laço social.

A conclusão dos autores parece ressoar de modo específico em nosso trabalho, se nos fizermos a seguinte questão: Se não fossem chamadas de autistas, o sofrimento destas pessoas seria ouvido ou acolhido de modos diferentes? O lugar da palavra é o que parece emergir como incontornável na abordagem da dor humana. Mesmo que, no caso de pessoas autistas, seja necessário talvez recorrer a um circuito tangencial e indireto para acessar o sujeito e seus modos de se fazer com a linguagem.

Lidar com pessoas autistas nas condições em que se apresentam é uma experiência de reconhecimento que lhes confere um lugar numa dimensão coletiva de existência. É dar vez ao seu estatuto de sofrimento como aquele que representa não só a adversidade, mas as particularidades de um modo de existir. Neste sentido, enfatizaremos que, a despeito de um discurso segregativo, a inscrição no laço social se torna cada vez menos possível, uma vez que a possibilidade do acolhimento e da produção de relações discursivas se tornam potencialmente rechaçadas e encobertas pelo viés aparentemente razoável de “ausência de especialização em autismo”.3 3 L. Romano e J. Paravidini foram responsáveis pela análise do material bibliográfico e construção do texto.

Referências

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  • 1
    Em referência à abordagem da psicologia cognitivo-comportamental. Juntamente com as abordagens da psiquiatria organicista e das neurociências do comportamento, a psicologia cognitivo-comportamental é uma das que se apresentam como dominantes na apreensão dita “científica” dos fenômenos relacionados ao autismo, incluindo o tema do suicídio nos estudos aqui selecionados. Assim, sempre que utilizarmos o termo “ciência” ou “científico”, neste artigo, este fará referência ao modo de funcionamento presente nestas abordagens, em particular a psicologia cognitivo-comportamental.
  • 2
    A formulação opera, neste contexto, como uma metáfora. A questão do autismo como uma deficiência é uma discussão complexa que se coloca no campo das políticas públicas, cujas principais linhas de força argumentativas que as sustentam dizem respeito à aquisição de direitos fundamentais para uma existência digna no meio social. Esta questão, portanto, não se contrapõe às proposições fundamentais que viemos sinalizando, no sentido de retomar o lugar do sujeito. Todavia, a escolha pelo uso dos termos “retirada definitiva do campo das deficiências” teve como objetivo enfatizar a perspectiva psicanalítica de que os fenômenos no autismo não se reduzem a meras questões orgânicas limitantes ou incapacitantes.
  • 3
    L. Romano e J. Paravidini foram responsáveis pela análise do material bibliográfico e construção do texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2020
  • Revisado
    26 Nov 2020
  • Aceito
    10 Fev 2021
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