Open-access Elaboração de uma cartilha como ferramenta para desmistificar o cuidado em saúde mental na Atenção Primária

The development of a booklet as a tool to demystify mental health care in Primary Care

Resumo

Compreender o papel da Estratégia de Saúde da Família (ESF) em demandas de saúde mental (SM) ainda é um desafio na Atenção Primária. O cotidiano dos serviços é permeado por questões como: quando compartilhar o cuidado, com que serviço compartilhar, o que fazer e quais as ferramentas disponíveis. As consultas e a prescrição de psicofármacos surgem como únicas respostas ao sofrimento, embora o cuidado não se limite a intervenções biológicas, e os profissionais devam estar preparados para lidar com demandas de SM. Visando ampliar a concepção de saúde e o escopo de atuação dos profissionais da ESF, foi construída uma cartilha que aborda o cuidado em SM para as Equipes de Saúde da Família. O presente artigo descreve a experiência de elaboração da cartilha, empreendida pela equipe multiprofissional de uma Clínica da Família. Através do trabalho na instituição, foram identificados elementos a serem transformados mediante material educativo, na perspectiva da pesquisa-intervenção. O material apresentou grande repercussão entre profissionais e serviços, indicando ressonância das dificuldades enfrentadas e possibilidade de apropriação de ferramentas de cuidado alternativas à medicação, ampliando o escopo interventivo da ESF. Propõe-se que a experiência seja replicada em outras Áreas Programáticas, construindo o material a partir do território adscrito.

Palavras-chave:
Saúde Mental; Atenção Primária; Estratégia Saúde da Família; Determinação Social da Saúde

Abstract

Understanding the role of the Family Health Strategy (ESF) in mental health (MH) demands is still a challenge in Primary Care. The daily routine of services is permeated by questions such as when to share care, with which service to share, what to do and what tools are available. Consultations and the prescription of psychotropic drugs appear as the only responses to suffering, although care is not limited to biological interventions and professionals must be prepared to deal with MH demands. Aiming to expand the conception of health and the scope of action of ESF professionals, a booklet was created that addresses MH care for Family Health Teams. This article describes the experience of preparing a booklet, undertaken by the multidisciplinary team of a Family Clinic. Through work at the institution, elements to be transformed through educational material were identified, from the perspective of intervention research. The material had great repercussions among professionals and services, indicating resonance of the difficulties faced and the possibility of appropriating alternative care tools to medication, expanding the interventional scope of the ESF. It is proposed that the experience be replicated in other Program Areas, building the material from the assigned territory.

Keywords:
Mental health; Primary Health Care; Family Health Strategy; Social Determination of Health

Introdução

Este estudo descreve a experiência empreendida pela equipe multiprofissional de uma Clínica da Família no município do Rio de Janeiro, visando à orientação de profissionais das Equipes de Saúde da Família acerca do cuidado em saúde mental. As atividades na instituição, de matriciamentos a articulações intersetoriais, revelaram a permanência de uma visão biologizante sobre a saúde, desconsiderando sua determinação social. A dificuldade de compreensão do papel da Estratégia Saúde da Família (ESF) no que tange às questões de saúde mental e a abordagem destas ainda constitui um desafio para a prevenção e promoção da saúde preconizadas pela Atenção Primária, traduzindo-se em condutas inadequadas no manejo dos casos. Dessa forma, o cotidiano das unidades básicas de saúde é permeado por questões como: quando compartilhar o cuidado, com que serviço compartilhar, o que fazer e quais as ferramentas possíveis para exercer o cuidado.

Embora a determinação social da saúde e a integralidade do cuidado estejam postas nos documentos normativos e legislações do campo (Brasil, 1990; 2009; 2013a), diversos autores apontam a persistência de estratégias medicalizantes no âmbito da Atenção Primária (Fegadolli; Varela; Carlini, 2019; Santos, 2023; Tesser; Poli Neto; Campos, 2010). O reducionismo das ferramentas de cuidado dos profissionais à prescrição de medicação está ancorado no entendimento histórico de que a saúde está circunscrita à doença (Czeresnia, 1999) e de que a saúde mental é um tópico exclusivo dos campos tradicionalmente associados a esse cuidado, como a Psicologia e a Psiquiatria. Juntamente, a formação e os treinamentos contínuos deficitários impactam a atuação profissional, na qual a ausência de conhecimento técnico e apropriação das ferramentas de cuidado se torna aparente na insegurança ao lidar com demandas de saúde mental (Almeida et al., 2020).

Nesse sentido, as equipes multiprofissionais, anteriormente conhecidas como Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), visam atuar de forma complementar e integrada às demais equipes da Atenção Primária. Embora a Portaria nº 635 do Ministério da Saúde tenha alterado a nomenclatura das equipes, mantém-se seu papel corresponsável pela população e pelo território, em articulação intersetorial com a Rede de Atenção (Brasil, 2023). Dentre as funções exercidas pela equipe multiprofissional, constam facilitar o acesso da população aos cuidados em saúde, ampliar o escopo de práticas em saúde no âmbito da Atenção Primária, contribuir para aprimorar a resolubilidade deste nível de atenção, garantir a longitudinalidade do cuidado e auxiliar na superação da lógica de fragmentação do cuidado (Brasil, 2023).

Tendo em vista a desconstrução da lógica de cuidado marcada pelo especialismo e a reiteração da função de prevenção e promoção da saúde da Atenção Primária, em consonância com os objetivos da equipe multiprofissional, foi construída uma cartilha com o intuito de instruir sobre o cuidado em saúde mental por profissionais das Equipes de Saúde da Família. O artigo busca descrever a experiência de construção da cartilha e seu uso com profissionais de saúde, enquanto ferramenta para desmistificar o cuidado em saúde mental e ampliar o escopo de atuação dos profissionais da ESF.

Inicialmente elaboradas a partir do território adscrito, propõe-se que as cartilhas sejam estruturadas com base no território de referência de cada Área Programática, considerando suas especificidades, balizadas por tópicos principais a serem abordados com as equipes, como urgências em saúde mental, apresentação da rede de serviços no território em questão e ferramentas das quais os profissionais de saúde dispõem para exercer o cuidado.

Método

A identificação das dificuldades do trabalho na instituição impulsionou a produção de material educativo sob a forma de cartilha, na perspectiva da pesquisa-intervenção. Esta metodologia compreende que a produção do conhecimento se dá na própria ação junto aos grupos e comunidades, estando todos implicados em seu campo (Chassot; Silva, 2018). A partir dessa concepção de implicação, que retoma o lugar do pesquisador como não isento de efeitos sobre o processo de pesquisa-intervenção, entende-se que pesquisar é estar implicado em um campo e ocupar um determinado lugar nas dinâmicas de força sobre as quais se busca pesquisar e intervir (Chassot; Silva, 2018). Sendo assim, o lugar ocupado pela equipe multiprofissional não é externo às dinâmicas da instituição de saúde, e, portanto, não se trata de um lugar neutro.

Compreender que pesquisador e campo de pesquisa se produzem mutuamente é fundamental para o exercício de constante análise de implicação, particularmente devido aos efeitos que as dinâmicas de manejo dos casos pelas Equipes de Saúde da Família também produzem sobre os fluxos de trabalho da equipe multiprofissional. Dessa forma, não se está intervindo sobre um objeto exterior à realidade da qual se está inserido, mas se constrói uma intervenção em conjunto. Portanto, as dificuldades das equipes foram identificadas na constatação da realização de encaminhamentos desnecessários de demandas de saúde mental para outros níveis de atenção - frequentemente sem buscar a avaliação da equipe multiprofissional inicialmente -, bem como na dificuldade de compreender e esclarecer para os usuários o papel da equipe multiprofissional em casos nesse atravessamento. Assim, havia a tentativa de estabelecer um fluxo de trabalho na contramão da corresponsabilização pelo usuário e do compartilhamento.

Cabe frisar que a equipe multiprofissional responsável pela construção da cartilha não era composta apenas por profissionais com formação em saúde mental, de modo a enfatizar que o cuidado de tais demandas ultrapassa as barreiras dos núcleos de saber. Composta por profissional de educação física, nutricionista, assistente social, psicóloga, fisioterapeuta, enfermeira obstétrica e médica pediatra, a equipe rotineiramente lidava com demandas de saúde mental não apenas em matriciamentos, mas também em suas atividades nucleares, como as aulas do Programa Academia Carioca e consultas individuais. Isso facilitou a construção de uma cartilha com um olhar ampliado para os múltiplos aspectos que envolvem a saúde.

A produção do material educativo ocorreu em etapas: 1) identificação das dificuldades das equipes, definição dos tópicos a serem abordados e mapeamento dos serviços para o cuidado em saúde mental do território; 2) pesquisa bibliográfica sobre os tópicos definidos; 3) elaboração da cartilha intitulada “Como cuidar das demandas de saúde mental nas unidades básicas de saúde - orientações na atenção básica”, utilizando a plataforma virtual Canva. A construção da cartilha contou ainda com contribuições não somente de profissionais, como também de usuários, como será explorado adiante.

Os tópicos abordados foram divididos em seções: 1) explicação dos elementos que constituem uma urgência; 2) esclarecimento da Rede de Atenção Psicossocial referente às unidades e à Área Programática; 3) explicação da função de cada serviço da rede de cuidado em saúde mental; 4) determinação social da saúde, interseccionando questões de raça, gênero e classe e seu impacto na saúde das populações; 5) medicalização da vida e a função da estratégia de saúde da família no cuidado em saúde mental, apresentando as ferramentas das quais todos os profissionais dispõem, como o acolhimento e a escuta.

A pesquisa bibliográfica acerca dos tópicos se deu a partir das políticas, legislações e documentos instituídos pelo Ministério da Saúde, como a Política Nacional de Humanização (Brasil, 2013b); a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (Brasil, 2017a); a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013c); e a Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2017b). Além disso, foram utilizados artigos encontrados na base BVS Saúde acerca de temáticas como a medicalização da vida e a determinação social da saúde no âmbito da Atenção Básica, com preferência para a inclusão de artigos recentes - cinco anos ou menos. Foram excluídos artigos que tratassem somente de experiências específicas nas unidades de saúde, sem ampla discussão teórica acerca dos tópicos predefinidos na etapa inicial.

Na sequência, a cartilha foi apresentada para os profissionais da Clínica da Família e divulgada para os serviços e profissionais da rede básica de saúde. O material foi construído entre junho e agosto de 2023 e sua divulgação ocorreu a partir do final de agosto.

Resultados

A cartilha apresentou grande repercussão e compartilhamento entre os profissionais de saúde, cabendo destacar que a gerência da unidade e outras instâncias da Área Programática também dispararam o material. Houve solicitação de unidades básicas de saúde de outros municípios para troca de experiência, bem como uma rápida difusão do material entre os serviços, indicando a ressonância das dificuldades enfrentadas a partir das lacunas formativas na Atenção Primária à Saúde para o cuidado em saúde mental, conforme observado na literatura.

A cartilha foi apresentada para os profissionais das equipes da Clínica da Família em reunião, na qual os tópicos foram abordados individualmente, com espaço para colocação de dúvidas e contribuições. Inicialmente pensada para ser trabalhada em um processo contínuo com as equipes, as intensas demandas dos profissionais tornaram necessário adaptar a apresentação do material para um único encontro, com possibilidade de trazer possíveis dúvidas em outros momentos à equipe multiprofissional. Isso chama atenção para a problemática da formação continuada, uma vez que o volume de trabalho frequentemente resulta no descumprimento da reserva de carga horária para Educação Permanente, conforme os preceitos da Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2017).

Posteriormente, o material foi adaptado e incluído no ambiente virtual de aprendizagem da Organização Social de Saúde (OSS) responsável pela unidade como curso. Foi ainda constituído, no âmbito da OSS, um coletivo para construir uma educação permanente em todas as clínicas sob responsabilidade da organização, baseada na cartilha.

Discussão

A intervenção possibilitou maior apropriação dos recursos disponíveis para o cuidado em saúde mental pelos profissionais da ESF, sobretudo o uso de tecnologias leves, aumentando a segurança para assumir a corresponsabilização com os usuários. À medida que as equipes se percebem como atores capazes de identificar e responder às demandas de saúde mental, propicia-se maior filtragem dos casos compartilhados com a equipe multiprofissional e, consequentemente, maior aproveitamento dos matriciamentos, uma vez que será possível elaborar os casos que necessitem, de fato, do apoio matricial.

Adicionalmente, espera-se maior resolutividade das demandas dos usuários pelos agentes comunitários de saúde, pois o conhecimento dos serviços com os quais é possível compartilhar o cuidado e as situações em que tal compartilhamento é necessário permite dar direcionamentos com maior clareza na comunicação. Em especial, almeja-se contribuir para a transformação e ampliação da visão dos profissionais de saúde sobre o papel da ESF no cuidado em saúde mental, possibilitando segurança na atuação em rede, a partir das ferramentas de cuidado existentes para além da medicação, como grupos, articulações intersetoriais na Rede de Atenção Psicossocial; articulações intersetoriais com o esporte, a cultura, o lazer, a escola, dentre outros; a utilização da rede comunitária, como as atividades oferecidas e os equipamentos presentes no território; e o Programa Academia Carioca.

A necessidade de maior apropriação das ferramentas de cuidado pelos profissionais perpassa o trabalho voltado para a formação, contribuindo com conhecimentos e possibilidades de atuação acerca do cuidado em saúde mental. Em que pese o papel da educação permanente em saúde (EPS), apontada com frequência na literatura como estratégia de fomentar a reflexão e a transformação das práticas (Almeida et al., 2020; Brasil, 2018; Rezio; Carneiro et al., 2022; Conciani; Queiroz, 2020), a pesquisa bibliográfica realizada para a confecção da cartilha indicou a escassez de artigos que explorem ferramentas de auxílio ao processo da educação permanente, como cartilhas, sobretudo no campo da saúde mental.

A Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2017) aponta a formação continuada como parte fundamental do processo de trabalho das equipes no âmbito da Atenção Primária. Dada a importância de que a EPS se desenvolva em espaços institucionalizados, determina-se que seja garantido seu espaço na carga horária dos trabalhadores, contemplando todos os profissionais na qualificação do trabalho. Conforme exposto, uma das dificuldades encontradas foi garantir tempo para apresentação e discussão do material com os profissionais, de modo que a relevância da EPS para qualificação do cuidado esbarra nas demandas de trabalho de profissionais sobrecarregados. O grande volume de demandas exigidas das equipes de referência na ESF impacta também no uso de material educativo como ferramenta, pois embora seja pensado para uma leitura fácil e dinâmica, soma-se ao grande número de materiais ofertados aos profissionais em capacitações e cursos. Portanto, a garantia de um espaço para debater e o uso da cartilha enquanto material para consulta posterior torna-se uma aposta para contornar o acúmulo de conteúdos sem repercussões significativas para o público-alvo das intervenções.

Nesse sentido, a EPS ganha particular importância como estratégia de articulação entre trabalho e formação. Segundo a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Brasil, 2018), a EPS é definida como aprendizagem no trabalho, em que aprender e ensinar se incorporam ao cotidiano do trabalho, baseando-se na possibilidade de transformar práticas profissionais no exercício laboral. Assim, compreende

[...] mecanismos e temas que possibilitam gerar reflexão sobre o processo de trabalho, autogestão, mudança institucional e transformação das práticas em serviço, por meio da proposta do aprender a aprender, de trabalhar em equipe, de construir cotidianos e eles mesmos constituírem-se como objeto de aprendizagem individual, coletiva e institucional. (Brasil, 2018, p. 10).

Em consonância com o exposto, Matos, Pina e Ribeiro (2018) destacam que a equipe multiprofissional atua em duas dimensões: assistencial, voltada para a ação clínica com usuários em conjunto com as equipes de saúde da família; e teórico-pedagógica, auxiliando as equipes no âmbito educativo a partir do compartilhamento de saberes para resolução dos casos. Com isso, distancia-se do modelo biomédico fragmentado em saúde, priorizando o entendimento do usuário como um todo a partir da discussão de casos com compartilhamento de saberes de áreas distintas. O apoio matricial como potencializador do trabalho das equipes também ressoa em Almeida et al. (2020), definindo-o como um arranjo organizacional para ampliar a resolubilidade das ações de saúde, possibilitando a corresponsabilização entre as equipes e a diversidade de ofertas terapêuticas. Os autores apontam o apoio pedagógico sistemático como uma das ações empreendidas pela equipe multiprofissional, capaz de garantir uma formação em serviço que produza melhorias na assistência prestada.

A condução do processo de educação permanente se dá pelos facilitadores, cujas atribuições incluem promover a participação inclusiva, o respeito às falas e aos saberes adquiridos a partir das diferentes vivências e estimular a elaboração de novos conhecimentos por meio do pensamento crítico (Rezio; Conciani; Queiroz, 2020). Nessa linha, as discussões podem ser fomentadas pela equipe multiprofissional através do uso de ferramentas, como os materiais educativos. A cartilha mostra-se um método didático e dinâmico para a difusão da informação e reflexão crítica, devendo seguir alguns princípios para sua elaboração: 1) linguagem clara e objetiva; 2) visual leve e atraente; 3) adequação ao público-alvo e 4) fidedignidade das informações (Almeida, 2017). É frequentemente utilizada para difusão de informação em saúde direcionada aos usuários, e seu uso como ferramenta auxiliar no processo de educação permanente com os profissionais da ESF mostrou-se potencializador da facilitação empreendida pela equipe multiprofissional.

A busca por inovação nos recursos utilizados para a facilitação é impulsionada pelo contexto de fragmentação do cuidado e manutenção de uma perspectiva biomédica no âmbito da Atenção Primária, cuja persistência dificulta a assistência adequada neste nível de atenção. Os desafios encontrados pelas Equipes de Saúde da Família para o cuidado em saúde mental podem, frequentemente, conduzir à medicalização da vida e à prescrição de psicofármacos como respostas a um sofrimento que não se limita a um desequilíbrio bioquímico, contrariando a proposta da criação do Programa de Saúde da Família para superação da tradição medicalizante (Tesser; Poli Neto; Campos, 2010). Isso recai em agravos à saúde, como no uso inadequado de benzodiazepínicos, que encontra na Atenção Primária condições favoráveis, por problemas como a pouca apropriação de ferramentas de cuidado alternativas à medicação pelos profissionais, a sobrecarga com outras necessidades de saúde consideradas prioritárias e o baixo investimento em formação específica (Fegadolli; Varela; Carlini, 2019). Deste modo, contribui-se para gerar uma imbricação entre medicação e sujeitos que limita as possibilidades de vida, na medida em que os psicotrópicos serão o recurso privilegiado para alívio dos sintomas (Pereira et al., 2021).

Portanto, as dificuldades no cuidado em saúde mental geram práticas profissionais contrárias à prevenção e promoção da saúde preconizadas pela Atenção Primária. As lacunas na formação geram empecilhos para atuação profissional no cuidado integral em saúde, fazendo-se urgente que os profissionais se apropriem de novas práticas para o cuidado e a assistência integral (Correia; Barros; Colvero, 2011). Nesse sentido, a EPS permite o contato com a cartilha, ampliando a possibilidade de apropriação das ferramentas de cuidado pelas Equipes de Saúde da Família.

A versão inicial do material já apontava a importância do atravessamento de questões sociais no sofrimento psíquico. Entretanto, a partir de críticas à ausência de tópicos específicos abordando questões raciais na cartilha, realizadas por um usuário durante a apresentação do material em uma conferência distrital de saúde, foi elaborada uma nova versão, contendo uma seção dedicada à determinação social de gênero, raça e classe na saúde. O exposto corrobora o propósito da pesquisa-intervenção e com a noção de implicação, compreendendo o papel do pesquisador não como mero observador, mas como agente que também produz e é produzido na atividade.

Retoma, ainda, a participação social enquanto diretriz fundamental do Sistema Único de Saúde nas esferas deliberativas, recusando a concepção de que o profissional de saúde detém o monopólio do conhecimento. A ausência inicial de uma perspectiva interseccional nos processos de saúde e doença denuncia a invisibilidade das temáticas e chama atenção para a importância de reafirmar a determinação social da saúde.

O material visa transformar a realidade, ao passo que também se espera que seja transformado por contribuições dos profissionais que diariamente constroem o sistema de saúde coletivamente. A construção da cartilha, tendo em vista a realidade singular do serviço, aumenta o potencial de ressoar com os profissionais, levando em consideração particularidades do cotidiano de trabalho que podem não ser comuns a todas as unidades de saúde. A repercussão da cartilha entre os profissionais indica a oportunidade de apropriação de ferramentas de cuidado alternativas à medicação, ampliando o escopo interventivo na Atenção Primária, conforme pretendido no planejamento da ação.

Conclusão

A elaboração da cartilha, em consonância à função pedagógica da equipe multiprofissional, foi uma experiência piloto de construção de estratégias para desmistificar o cuidado em saúde mental pelas Equipes de Saúde da Família na Atenção Primária. A escolha da pesquisa-intervenção como metodologia atendeu ao propósito de construção coletiva da cartilha, incluindo contribuições de profissionais, gestores e usuários na inclusão de elementos fundamentais a serem abordados, como a seção acerca da determinação social da saúde. A proposta de replicação da experiência para outras Áreas Programáticas compreende que o material deva sempre ser adaptado considerando as particularidades de cada território, pois embora muitas das dificuldades sejam compartilhadas na Rede de Atenção, cada território e serviço possui uma realidade singular.

A repercussão do material entre profissionais e serviços indica não apenas a ressonância das dificuldades enfrentadas, como também o sucesso da escolha metodológica para divulgação de informação. Uma vez apresentadas através da linguagem acessível e do formato didático propiciado pela cartilha, os profissionais podem utilizar as tecnologias leves de cuidado, com vistas também a garantir resolubilidade neste nível de atenção. Em um contexto de grande volume de demandas no exercício profissional, incluindo de materiais didáticos para estudo, a cartilha se mostra uma ferramenta objetiva, capaz de contribuir para a qualificação profissional sem prejuízo à profundidade das informações apresentadas.

Ressalta-se, por fim, a necessidade de garantir o espaço formativo dos profissionais de saúde, possibilitando que experiências como a apresentada possam ser empreendidas, impedindo a continuidade do ciclo de tecnicização do trabalho na Atenção Primária e seus impactos prejudiciais na assistência à saúde mental. Embora a cartilha seja uma ferramenta na desmistificação do cuidado às demandas de saúde mental, a Educação Permanente em Saúde não se resume à construção de materiais e posterior repasse aos profissionais-alvo das intervenções, sendo preciso a garantia de um espaço dentro das jornadas de trabalho para a qualificação da atenção, conforme preconizado nas políticas públicas.1

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    G. S. M. Bomfim: concepção e redação do manuscrito; aprovação da versão final. R. L. Ravazzi: concepção, revisão crítica e redação final do artigo; aprovação da versão a ser publicada.
  • Editora responsável:
    Jane Russo

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2024
  • Revisado
    07 Maio 2025
  • Aceito
    18 Maio 2025
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