Resumo
Este texto aborda uma reflexão sobre a formação de vínculo entre trabalhadores e usuários dos serviços de saúde no território de abrangência, considerando o momento pandêmico e pós-pandemia, com o objetivo de contribuir para a construção do cuidado na Atenção Primária à Saúde (APS). A experiência descrita foi baseada em observações realizadas durante encontros ocasionais com usuários do serviço, em visitas feitas pela pesquisadora na unidade entre maio e setembro de 2023. Busca compreender a formação de vínculos entre trabalhadores e a comunidade durante o período pandêmico e o atual. Nesse contexto, o afastamento devido ao “distanciamento social”, a rotatividade de trabalhadores e as dificuldades de acesso à APS foram os principais achados que dificultaram a formação de vínculos. Além disso, a nova Política Nacional de Atenção Básica fragilizou os vínculos ao reduzir o número de trabalhadores, o que frequentemente torna o trabalho mais técnico e desfavorece o cuidado relacional. Contudo, os trabalhadores buscaram formas de promover a saúde, destacando-se as abordagens criativas de comunicação. Porém, as reaproximações ocorreram de forma efetiva com o retorno das atividades rotineiras e a priorização das tecnologias relacionais. Conclui-se que o retorno às atividades melhorou o relacionamento entre trabalhadores e usuários.
Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Pandemia de Covid-19; Saúde; Usuário; Vínculo
Abstract
This text discusses the formation of bonds between workers and users of health services in the area covered by this research, considering the pandemic and post-pandemic periods, with the purpose of contributing to the construction of care in Primary Health Care (PHC). The experience described was based on observations made during occasional meetings with service users, during visits made by me as a researcher to the unit, between May and September 2023. It seeks to understand the formation of bonds between workers and the community during the pandemic and the current period. In this context, the distancing, due to the “social distancing”, worker turnover and the difficulties in accessing PHC were the main findings that hindered the formation of bonds. In addition, the new National Primary Care Policy weakened these bonds by reducing the number of workers, which often makes the work more technical and deteriorating relational care. However, workers sought ways to promote health with creative communication approaches standing out. However, the rapprochement occurred effectively with the return of routine activities and the prioritization of relational technologies. It is concluded that the return to activities improved the relationship between workers and users.
Keywords:
Primary Healthcare; COVID-19 pandemic; Health; User; Bond
Introdução
Este texto propõe uma reflexão sobre a experiência vivenciada na construção de vínculos entre trabalhadores das equipes Saúde da Família (eSF) e usuários do serviço de saúde. Procurou a busca da percepção sobre a formação de vínculo entre os trabalhadores e os usuários do serviço de saúde de seu território de abrangência, considerando o momento da pandemia e pós-pandemia, para contribuir com a construção do cuidado na atenção primária à saúde (APS).
A experiência ocorreu em uma unidade de saúde que conta com equipes de Atenção Básica (eAB) e Estratégia Saúde da Família (eSF), localizada em um território de alta vulnerabilidade social na zona portuária da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Após mais de três anos afastada da assistência direta na Atenção Primária à Saúde (APS), tive a oportunidade de retornar à unidade, agora como pesquisadora, durante a coleta de dados para um estudo.
Essa vivência, relatada aqui, ocorreu como uma atividade à parte da pesquisa realizada na unidade, proporcionando uma oportunidade de observação e reflexão. O foco esteve na observação dos usuários sobre a percepção da formação de vínculos entre os trabalhadores das equipes de Saúde da Família e a comunidade, tanto durante o período da pandemia quanto no cenário atual.
A APS tem na Estratégia de Saúde da Família (ESF) sua principal abordagem para a reestruturação dos serviços. O objetivo é constantemente reorganizar o trabalho, buscando ser resolutiva e eficaz, além de reduzir custos e gerar impactos positivos na saúde tanto individual quanto coletiva (Brasil, 2017). Dada a importância da ESF para o cuidado individual e da coletividade, a aproximação e a formação de vínculos entre os trabalhadores e usuários tornam esse lugar acolhedor, confortável e seguro, proporcionando acordos e autonomia em relação aos cuidados com a saúde.
A região na qual se localiza a unidade de saúde apresenta destaque cultural por fazer parte da região conhecida como “Pequena África”. Está localizada na região portuária, no município do Rio de Janeiro, com destaque para o Morro da Providência, que abriga a primeira favela do Brasil (Fonseca, 2019), que evidencia histórias e culturas próprias, em meio às dificuldades históricas diárias pela luta para a sobrevivência.
O território conhecido como “Pequena África” sofreu apagamentos históricos recorrentes. No entanto, por diversos motivos, a população resiste e mantém uma luta pela descolonização, além de buscar preservar as memórias relacionadas ao período colonial. A região possui uma história marcada pelo período escravista e pela forma como a cultura de africanos e afrodescendentes foi construída, permeada por violências e resistências que moldaram essas experiências (Cavalcanti, 2019).
Ao longo dos anos, diversas reformas ocorreram na região, contribuindo para o apagamento sociocultural. Esse processo se intensificou com os projetos de revitalização urbana, como o projeto Porto Maravilha, o qual não incluiu a população local nas discussões e planejamento. Além do apagamento cultural, a comunidade enfrentou outros prejuízos, incluindo dificuldades logísticas e desestruturação social (Cavalcanti, 2019). As alterações relacionadas à mobilidade urbana foram pouco inclusivas, já que a população depende exclusivamente do novo modelo implantado, o veículo leve sob trilhos (VLT). Essa mudança pode afetar especialmente as pessoas com dificuldades de locomoção, que precisam se deslocar até uma estação para utilizar o transporte. Como resultado, surgem barreiras para acessar serviços essenciais, como os postos de saúde, agravando as dificuldades de usuários com menor poder aquisitivo para chegar às unidades de saúde.
Alguns marcos históricos, como o sítio arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos e a descoberta do Cais do Valongo, impulsionaram iniciativas da população e de pesquisadores para resgatar a memória da região. A Pequena África possui grande importância, especialmente no que diz respeito à história, ao patrimônio e à conservação da memória afro-brasileira (Cavalcanti, 2019). O resgate da identidade e a valorização da memória afro-brasileira podem impactar positivamente a autoestima e, consequentemente, a saúde emocional e social das comunidades negras, além de servir como incentivo para a implementação de políticas públicas inclusivas.
As dificuldades diárias enfrentadas pela população de territórios vulneráveis são agravadas pelo cotidiano de violência e pelo abandono do Estado em uma região marcada por severas carências estruturais, econômicas e de outros recursos. Essas limitações se tornaram ainda mais evidentes durante a pandemia de Covid-19 (Bastos et al., 2020).
Antes de dar continuidade, é importante destacar que, para fins didáticos, expomos a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), que utiliza a expressão “atenção básica” em vez de “atenção primária”, alinhando-se à terminologia oficial presente na literatura do governo federal, a qual é objeto de crítica ao longo desta reflexão. E, apesar de todos os compromissos assumidos pela APS como estratégia central do Sistema Único de Saúde (SUS), estamos enfrentando um momento de fragilização da APS. Trata-se de um retrocesso, intensificado pela PNAB de 2017. No âmbito da ESF, observam-se mudanças significativas, como a relativização da cobertura universal, flexibilização do modelo de atenção e modificações nas equipes, incluindo a redução da carga horária dos profissionais e a diminuição do número de agentes comunitários de saúde (ACSs), entre outras alterações (Morosini; Fonseca; Lima, 2018).
Paralelamente à precarização da APS, uma grave crise sanitária mundial causada pela Covid-19 emergiu em 2020. A APS foi desafiada a se adaptar rapidamente às novas demandas e restrições, o que trouxe enormes dificuldades e afetando significativamente as atividades rotineiras da APS (Medina et al., 2020). Com o início da pandemia, foram implementadas restrições nos serviços de saúde com vistas a conter a disseminação do vírus (Ferreira, 2020).
A APS foi uma importante estratégia no enfrentamento da Covid-19, com alterações de fluxos, nas escalas, nas formas de interação com os usuários, além de outras adaptações que foram necessárias devido às restrições impostas pelo vírus (Ferreira, 2020). Com isso, consultas, visitas domiciliares, atividades de prevenção e promoção da saúde foram limitadas, ao mesmo tempo que as demandas relacionadas à pandemia foram se ampliando (Malcher et al., 2021). Atividades intersetoriais já eram pouco visíveis dentro de muitas comunidades e passaram a ser praticamente ausentes no período da pandemia. Tamanha desatenção política agravou a vulnerabilidade da população nessas regiões, que passou a sentir-se desamparada pelo Estado (Fleury; Menezes, 2020).
Em uma perspectiva nacional, durante a pandemia no Brasil, a expressão pública e a normalização das mortes por Covid-19, mesmo diante das desigualdades regionais nas condições de vida, foram fortemente marcadas pelo abandono e omissão do Estado ao longo da crise (Bastos et al., 2020). Pensando nos condicionantes e determinantes da saúde, buscando impactar na qualidade de vida e bem-estar social, a promoção da saúde atua através das ações intersetoriais (Brasil, 2002). Porém, durante a pandemia, as carências sanitárias e a fragilidade das políticas públicas fizeram com que a população, já tão vulnerável, ficasse desamparada pelo Estado (Fleury; Menezes, 2020). Dessa maneira, houve destaque para a necropolítica, com o estabelecimento de hierarquias sobre o valor da vida das pessoas, impactando nos acessos e cuidados com a saúde. De fato, durante o período pandêmico, os grupos populacionais foram afetados de maneira desigual, evidenciando uma gestão da pandemia excludente que agravou as já existentes desigualdades sociais.
No contexto da pandemia de Covid-19, a disseminação de fake news teve papel central na propagação de desinformação em larga escala. Práticas negacionistas, incentivo a aglomerações e a ausência de políticas públicas eficazes agravaram a crise sanitária, expondo as dimensões alarmantes dessa lógica política no Brasil.
A pandemia também aprofundou as vulnerabilidades da população residente em favelas, agravadas por fatores como dificuldade de acesso a serviços de saúde, precariedade socioeconômica e condições ambientais e de infraestrutura inadequadas (Fleury; Menezes, 2020). Inicialmente aparentemente democrática, a pandemia parecia atingir todos da mesma forma, mas logo transpareceram as desigualdades sociais (Bastos et al., 2020).
No entanto, é importante destacar que a necropolítica já estava presente nas favelas antes da pandemia, mas ampliou sua atuação durante esse período. Mais do que uma instrumentalização da vida, a necropolítica se manifesta na escolha de quem vive e quem morre, desvalorizando as vidas de determinados grupos racializados (Mbembe, 2018).
A ausência do Estado nas comunidades foi intensificada durante a pandemia. Territórios com grande densidade demográfica, caracterizados por aglomerações pouco ventiladas, condições precárias, falta de saneamento básico e acesso limitado à água potável, enfrentaram ainda mais desafios. Esses fatores, somados às condições socioeconômicas, acentuaram a exclusão e ampliaram as desigualdades nesses territórios (Bastos et al., 2020).
Toda a escassez, os medos e as dores vivenciados pela população nesse período ressaltam a importância de fortalecer os vínculos no microambiente de trabalho, tanto entre os trabalhadores quanto entre eles e a comunidade atendida, sendo um aspecto crucial no cuidado com a saúde, por transcender a mera prestação de serviços. Ao mesmo tempo, a priorização do uso de tecnologias leves proporciona uma conexão empática e participativa entre os trabalhadores e usuários do serviço. Destaca-se, assim, a relevância de formas de atenção à saúde voltadas para as tecnologias relacionais. Essas abordagens favorecem o acolhimento, a criação de vínculos, o estabelecimento de acordos de responsabilidades e outras trocas essenciais entre os trabalhadores e os usuários do serviço (Merhy, 2000).
É relevante ressaltar a importância de modelos de atenção à saúde que priorizem o uso de tecnologias leves, definidas por sua natureza relacional e baseadas em relações interpessoais, comunicação e subjetividade. Essas tecnologias promovem o acolhimento, fortalecem vínculos, facilitam o estabelecimento de acordos de responsabilidades e incentivam outras interações essenciais, aprofundando a conexão entre trabalhadores e usuários do serviço (Merhy, 2000).
Entretanto, as tecnologias duras, fundamentadas no uso de instrumentos e na aplicação de normas padronizadas, podem limitar a flexibilidade das relações interpessoais, tornando-as mais mecanizadas e menos humanizadas. Elas fragmentam o processo de aprendizagem, restringindo a liberdade e a criatividade, ao mesmo tempo que reduzem a valorização das relações intersubjetivas estabelecidas entre os sujeitos (Franco, 2021). Ademais, é essencial enfatizar que o tipo de tecnologia predominante no processo de trabalho desempenha papel crucial na definição de como o cuidado será oferecido nos serviços de saúde, influenciando diretamente na formação de vínculos e melhor interação nos atendimentos.
As tecnologias relacionais, que entendem o usuário como um ser que possui sua individualidade, necessidades e contextos plurais, promovem afecções, trocas de conhecimento para o aprendizado, confiança mútua e a promoção de uma saúde integral. Ademais, proporciona liberdade para o usuário cuidar da sua saúde conforme a sua cultura, suas possibilidades e seus saberes. Ela se torna primordial para o atendimento integral e participativo, possibilitando escolhas e aproximando os sujeitos envolvidos nos cuidados com a saúde.
A partir disso, é importante destacar o uso das tecnologias leves, que são relacionais. Não é o objetivo retirar o mérito das tecnologias duras, pois elas são importantes em diversos contextos. Por outro lado, as tecnologias leves, ditas relacionais, predominam no desenvolvimento da promoção da saúde, em relação às leve-duras e duras. Isso ocorre porque o uso de tecnologias leves se fundamenta nas relações estabelecidas entre os sujeitos, realizadas por meio do trabalho vivo em ato, que acontece no exato momento de sua execução. Essas tecnologias promovem a autonomia do usuário, favorecendo sua qualidade de vida e incentivando o autocuidado (Franco, 2021). Com isso, trazem segurança, liberdade e confiança ao usuário do serviço de saúde.
Metodologia
A vivência ocorreu durante os meses de maio a setembro de 2023. Período de grande importância no contexto político, pós-pandemia e posterior à reformulação da nova PNAB (Política Nacional de Atenção Básica) de 2017, que causou transtornos aos usuários do serviço, trabalhadores, com alteração de fluxos assistenciais, saída de trabalhadores e outras alterações importantes para APS.
A experiência ocorreu em uma unidade de saúde que possui eAB e eSF, em uma área vulnerável na zona portuária, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro.
A prática foi apoiada na observação durante reencontros eventuais e saudosos com usuários do serviço. Esses encontros eventuais com os usuários ocorreram durante as visitas da pesquisa científica realizada durante o mestrado com os trabalhadores da saúde. O relato de experiência descrito neste estudo foi uma atividade à parte e não fez parte da pesquisa. Tratou-se de uma atividade intuitiva e subjetiva que se concentrou apenas nas observações relativas aos usuários, servindo de apoio para uma reflexão entre o durante e o momento pós-pandemia.
Os encontros ocorreram no hall de entrada, nas acomodações de espera e nas áreas externas da unidade de saúde, proporcionando momentos de percepção e reflexão sobre o período pandêmico e o contexto atual, com ênfase na formação de vínculos entre os trabalhadores e a comunidade.
No campo de pesquisa, foi possível observar o cenário atual em comparação ao período anterior e durante a pandemia de Covid-19. Frequentando a unidade para a realização de procedimentos como exames, testes e vacinação, tanto antes quanto durante e após a pandemia, e devido a um vínculo prévio com o espaço e sua comunidade, foi possível compreender as relações entre usuários e trabalhadores em momentos distintos. Essa compreensão se deu especialmente por meio das expressões de afeto, das interações e falas observadas.
Em 2023, visitas regulares proporcionaram um espaço para que emergissem falas e expressões impregnadas de saudosismo, permitindo a revivência de memorias do período pandêmico. Esse fenômeno evidenciou as marcas deixadas por esse momento nas dinâmicas das relações entre os trabalhadores e usuários da unidade de saúde.
A análise focou predominantemente na perspectiva do usuário em sua interação com o trabalhador, estabelecendo uma relação entre o período atual com período da pandemia. Foram identificados os desafios enfrentados para a manutenção dos vínculos nesse contexto, o que permitiu uma abordagem crítica e reflexiva sobre o processo de formação de vínculos entre usuários e trabalhadores no âmbito da saúde.
Resultados e Discussão
Considerando as restrições de acesso à APS por mudanças nos fluxos de atendimentos, afastamentos de trabalhadores devido à Covid-19, e para diminuir os riscos de contaminação e adoecimento em um momento de emergência sanitária, optou-se por restrições de atendimentos, o que levou os usuários a se tornarem “órfãos” temporariamente da unidade de saúde, prejudicando vínculos. Mesmo com os efeitos benéficos do distanciamento, quando pensamos nas comunidades mais carentes, com a ausência do estado, prevalência da violência e possível aumento de doenças crônicas, observamos como as vivências foram heterogêneas (Malcher et al., 2021).
Como relatado acima, a relação entre os trabalhadores e usuários do serviço durante a pandemia foi afetada pela necessidade de distanciamento social, especialmente no início da pandemia, o que reduziu significativamente o contato presencial entre trabalhadores e usuários. O distanciamento social, com apelo “Fique em Casa”, restringiu o acesso inicial à unidade de saúde, mas possibilitou a expansão do uso das tecnologias digitais para a comunicação.
Segundo Silva, Corrêa e Uehara (2022), a pandemia impulsionou inovações nos serviços prestados pela APS, que precisou se adaptar às medidas de distanciamento físico por meio de estratégias como o atendimento remoto. Elas foram importantes para manter o contato, o fornecimento de orientações e até para a realização de consultas. No entanto, uma grande desvantagem no uso dessas tecnologias está na exclusão de pessoas que não têm acesso por razões socioeconômicas ou falta de destreza, por exemplo.
Nesse cenário, é fundamental que a APS avalie a eficácia dessas novas abordagens e leve em consideração as possíveis dificuldades enfrentadas por parte da população, especialmente no acesso e no uso das tecnologias necessárias para a continuidade do cuidado (Silva; Corrêa; Uehara, 2022). Diante disso, pensando em uma área de grande vulnerabilidade socioeconômica em um momento ainda mais difícil para subempregados e autônomos, a possibilidade de contato por mensagens de aplicativos se torna difícil para uma parcela da população.
Mesmo entendendo que o uso dos dispositivos tecnológicos para a comunicação foi uma forma criativa e importante para manter o contato durante a pandemia, devido às restrições, o uso das tecnologias acabou por afetar as relações, pois, como já dito, não é inclusiva. Apesar disso, foi uma estratégia assertiva para a manutenção dos cuidados com a população por evitarem maior disseminação do vírus, ao limitar o contato dos profissionais com os usuários de sua responsabilidade.
Em virtude do período político vivenciado, no qual se destacou a necropolítica, a pandemia de Covid-19 fez exaltar as diferenças sociais, em que a vida das pessoas apresentou valores diferentes. Nesse contexto, a necropolítica, que determina quem vive e quem morre, está relacionada ao controle dos corpos, normalizando a saúde e tornando os corpos dóceis (Pelbart, 2003). Entende-se que as dificuldades relacionadas às políticas públicas, agregadas à necropolítica, trazem a magnitude da pandemia, que deixa de ser “democrática” em um primeiro momento, para desvendar e aprofundar as desigualdades sociais.
Devido à pandemia, grupos e pessoas vulneráveis e marginalizadas socialmente sofreram pela intensificação das desigualdades. Permanecer em isolamento em casas pequenas, insalubres, sem alimento e itens de higiene, tornou-se um desafio para a sobrevivência. A APS foi vista, ainda que afastada, devido ao distanciamento, como algo acolhedor e ainda acessível, visto o esforço ocorrido no microambiente de trabalho para manter o acolhimento e a escuta. Diferentemente de outros setores, que normalmente já são ausentes ou pouco presentes nessas regiões, a saúde se apresenta inserida através da existência da unidade de saúde, quanto pela ocupação dos espaços presentes no território em atividades extramuros.
É através dos encontros que os indivíduos se afetam, permitindo as trocas de conhecimento, que ocorrem através dos afetos que ocorrem nesses momentos (Pelbart, 2003). Os afetos sofridos vão ressignificar e possibilitar mudanças no cuidado, promovendo um cuidado que dá ênfase às tecnologias leves, ditas como relacionais, proporcionando a escuta, a construção do cuidado sem rigidez ou opressão, melhorando o vínculo entre o trabalhador e o usuário. Com isso, entendem-se as singularidades regionais e de cada indivíduo, que vão transparecer através das formas de viver e cuidar da saúde, acolher, proporcionando a construção de vínculos e o compartilhamento de conhecimentos (Franco, 2015).
Os atendimentos inicialmente se concentraram nos afetados pela Covid-19 e em atividades preventivas. Com isso, o atendimento tornou-se mais técnico e baseado em protocolos, o que resultou em um distanciamento das tecnologias relacionais. Essa mudança pode levar a um afastamento entre trabalhadores e usuários. No entanto, tecnologias leves, que priorizam a comunicação, o diálogo e a construção de relações interpessoais, desempenham papel fundamental. Elas permitem que os trabalhadores da saúde estabeleçam conexões empáticas com os usuários, mesmo em um contexto marcado pelo distanciamento físico e pela sobrecarga dos serviços.
É importante destacar que, na PNAB de 2017, é possível notar mudanças que promoveram a relativização da cobertura universal, alterações nas equipes, redução da carga horária dos profissionais, diminuição de ACS, entre outras (Morosini; Fonseca; Lima, 2018). Outros fatores também interferem na permanência no serviço, como a alta rotatividade de trabalhadores da APS, os fracos vínculos empregatícios, a sobrecarga de trabalho e a violência no território. Além do destaque para a nova PNAB, podem contribuir para uma relação pouco duradoura entre a equipe e os usuários.
A fragilidade que os vínculos empregatícios apresentam trazem insegurança para o trabalhador, que acabam buscando outras ofertas de emprego. Somam-se a isso as alterações ocorridas na nova PNAB e as dificuldades impostas pela pandemia, precarizando a saúde, enfraquecendo vínculos, prejudicando a adesão e a construção conjunta das práticas de saúde. Pela percepção durante a vivência, os vínculos se sustentaram, de alguma forma, devido aos contatos e interações prévias à pandemia e por toda a criatividade que os trabalhadores tiveram para manter a comunicação nesse período.
Estudos indicam que, durante a pandemia, o uso de ferramentas virtuais tornou-se uma estratégia amplamente adotada nos cuidados em saúde. Recursos como a telemedicina, aplicativos de saúde e até mesmo o telefone foram frequentemente utilizados como instrumentos para assegurar a continuidade do atendimento e promover o cuidado à distância (Silva; Corrêa; Uehara, 2022). Como mencionado, os trabalhadores buscaram formas criativas de comunicação, como o uso das tecnologias digitais, que se configuraram como ferramentas importantes durante a pandemia de Covid-19, promovendo a escuta ativa, a orientação e o cuidado. Outras iniciativas, como o recebimento e a distribuição de doações, além do fornecimento de máscaras, também desempenharam papel fundamental na formação de vínculos.
Quanto à formação de vínculo, é fundamental priorizar o uso de tecnologias leves em comparação às tecnologias duras e leve-duras, uma vez que essas são baseadas nas relações interpessoais. O espaço relacional entre os sujeitos favorece a criação de vínculos, acordos e outras trocas essenciais para a saúde (Merhy, 2000). O aprendizado compartilhado entre trabalhadores e usuários possibilita a co-construção de conhecimento, que, ao longo dos múltiplos encontros, se transforma e enriquece, permitindo a ressignificação dos problemas e o aprimoramento das práticas de cuidado com a saúde, acolhimento, construção de vínculos e compartilhamento de saberes (Franco, 2015).
É importante salientar que a predominância da tecnologia relacional no ambiente de trabalho proporciona acolhimento e afeto. A predominância de determinada tecnologia no ambiente de trabalho dita como o cuidado será desenvolvido nesse ambiente. Assim, quando pensamos no microambiente do trabalho e na educação permanente, é importante refletir sobre a formação desse profissional e sobre todos os atravessamentos que ele sofre em sua relação com outros profissionais e com a população no microambiente de trabalho.
Esses trabalhadores podem ser capturados de forma que predomine o uso de tecnologias duras ou leve-duras; com isso, ele pode ter o endurecimento do processo produtivo. Assim, ele pode dar maior ênfase ao uso de protocolos, exames diagnósticos, em restrição ao cuidado relacional, sendo que o trabalho produtivo baseado em tecnologias leves pode contribuir para a melhora nas relações entre o trabalhador usuário, pelo fato de estar presente no espaço relacional entre os sujeitos (Merhy, 2000).
No momento da vivência, as atividades rotineiras e presenciais já ocorriam normalmente, com atuação sobre a demanda reprimida pela pandemia. A observação destacou a reaproximação entre a equipe e a comunidade, com retorno das atividades rotineiras, maior participação e presença de usuários nos grupos de discussão e atividade física, além da observação, que evidencia a boa interação entre a equipe e os usuários, demostrando uma relação de confiança, segurança e proximidade.
Conclusão
Destacou-se, recentemente, a necropolítica, que acabou por determinar, dentre as pessoas que vivenciaram o mesmo período histórico e apresentam realidades extremamente diferentes, quem tem maiores chances de sobreviver diante da crise de saúde estabelecida. Isso se refletiu em abandono e exclusão de determinados grupos sociais.
Como já mencionado, a crise na pandemia evidenciou ainda mais as desigualdades sociais (Bastos et al., 2020). Assim, a pandemia não apenas ampliou as disparidades existentes, mas revelou um sistema que, ao invés de proteger os mais vulneráveis, os expõe ainda mais ao risco, perpetuando as desigualdades.
A nova PNAB agravou o período de urgência, insegurança e medo causado pela Covid-19. Sob essa perspectiva, a diminuição na quantidade de trabalhadores pode tornar o trabalho mais técnico, diminuindo as oportunidades do cuidado relacional em um momento difícil para a população. Como foi visto, as vulnerabilidades, seja por dificuldades socioeconômicas, de infraestrutura ou mesmo pela própria saúde, acabam sendo limitadores para uma promoção da saúde efetiva. Posto isto, as percepções apontam para uma APS que apresentou grande rotatividade de trabalhadores, afastamentos e dificuldades no acesso, o que dificultou a formação de vínculos.
Assim, mesmo com toda a criatividade da equipe, a possibilidade de enfraquecimento dos elos formados entre a unidade de saúde e o território traz reflexos na gestão do cuidado até o momento em que a vivência ocorreu, perpetuando o momento da pandemia. Diante disso, o atendimento da demanda reprimida e o resgate de usuários distanciados do serviço foram essenciais para a gradual reaproximação desses sujeitos com o serviço.
Diante da experiência relatada, é importante destacar que gestores e trabalhadores da APS devem priorizar as tecnologias leves, propiciando acordos, trocas de experiências, ensinamentos mútuos e cuidados mais próximos da realidade dos usuários. Isso possibilita que esses cuidados consigam ser negociados, adaptados e que realmente possam ser introduzidos nos processos de cuidar da saúde no cotidiano dessas pessoas.
Deve existir um esforço para que esses conceitos sejam introduzidos na academia e posteriormente, através da educação permanente. A formação de vínculo fortalece os laços, permitindo escolhas, proporcionando maior participação da comunidade no cuidado e bons resultados para a saúde.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Ago 2024 -
Revisado
26 Jan 2025 -
Aceito
25 Fev 2025
