Open-access Determinantes tecnológicos da saúde: uma proposta para a relação saúde-tecnologia no contexto da pandemia de Covid-19

Resumo

O objetivo deste artigo é propor os Determinantes Tecnológicos da Saúde (DTS) como uma categoria complementar aos determinantes sociais, particularmente no contexto da pandemia de Covid-19. Através de uma análise crítica da literatura e de caso, a pesquisa examina o impacto de tecnologias como ventiladores pulmonares e sistemas de monitoramento na saúde coletiva e individual. Os resultados indicam que, embora essas inovações tecnológicas tenham potencial para melhorar a equidade no acesso à saúde, elas também podem ampliar desigualdades existentes, especialmente em populações vulneráveis. A conclusão reforça a importância de integrar os DTS na formulação de políticas públicas, com o objetivo de garantir um sistema de saúde mais inclusivo e resiliente frente a futuras crises sanitárias. O estudo sugere que pesquisas futuras devem explorar as interações complexas entre os determinantes sociais e tecnológicos em diversos contextos socioeconômicos e culturais.

Palavras-chave:
Determinantes Tecnológicos da Saúde; Covid-19; Equidade em saúde; Políticas públicas de saúde; Tecnologias de saúde

Abstract

This article aims to propose Technological Determinants of Health (TDH) as a complementary category to social determinants, particularly in the context of the COVID-19 pandemic. Through a critical analysis of the literature and case studies, the research examines the impact of technologies such as lung ventilators and monitoring systems on both collective and individual health. The results indicate that while these technological innovations have the potential to improve equity in access to health, they can also amplify existing inequalities, especially in vulnerable populations. The conclusion reinforces the importance of integrating TDH into public policymaking, with the aim of ensuring a more inclusive and resilient health system in the face of future health crises. This study suggests that future research should explore the complex interactions between social and technological determinants in diverse socioeconomic and cultural contexts.

Keywords:
Technological Determinants of Health; COVID-19; Health equity; Public health policies; Health technologies

Introdução

As tecnologias tornaram-se indispensáveis na nossa vida cotidiana, influenciando uma ampla gama de aspectos, incluindo a saúde. A pandemia de Covid-19, que impactou o planeta nos primeiros anos do século XXI, ressaltou a importância das tecnologias no campo da saúde, não apenas no desenvolvimento de vacinas e tratamentos, mas também na gestão de informações, telemedicina e monitoramento epidemiológico. Esse cenário desencadeou uma aceleração sem precedentes na adoção de soluções tecnológicas no setor de saúde, expondo fragilidades nos sistemas de saúde e exacerbando desigualdades.

A necessidade de respostas rápidas levou a uma revisão das práticas e do uso de recursos tecnológicos, ressaltando a interseção entre saúde e tecnologia como um campo de estudo essencial. Tecnologias como ventiladores mecânicos, vacinas e plataformas de gestão hospitalar tornaram-se pilares na saúde contemporânea, evidenciando a transformação na percepção e utilização da tecnologia, além de destacar a importância da equidade no acesso a essas inovações.

Entretanto, o impacto das tecnologias na saúde coletiva não foi uniforme, ampliando desigualdades existentes. Comunidades vulneráveis enfrentaram barreiras significativas no acesso, revelando uma divisão digital que comprometeu a eficácia das respostas. No Brasil, por exemplo, a dependência de tecnologias importadas expôs uma estrutura econômica que nega o acesso à saúde para grande parte da população.

Nessa perspectiva, compreender os determinantes tecnológicos é fundamental para orientar políticas públicas que promovam equidade e eficiência. A análise desses determinantes, especialmente em crises sanitárias, pode contribuir para a construção de sistemas de saúde mais resilientes e inclusivos. A relevância dos determinantes tecnológicos se manifesta na potencial melhoria da qualidade e acessibilidade dos cuidados, especialmente em crises. No âmbito político, é essencial para a formulação de políticas eficazes e equitativas.

O estudo dos determinantes tecnológicos da saúde permite uma compreensão crítica sobre como as inovações influenciam os desfechos em saúde populacional. Ademais, a análise desses determinantes pode auxiliar na preparação e resposta a futuras emergências de saúde pública, fortalecendo a resiliência dos sistemas de saúde frente a desafios globais.

Nesse contexto, o artigo tem como objetivo propor uma visão dos Determinantes Tecnológicos da Saúde como uma dimensão paralela e complementar aos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), explorando de forma crítica a relação entre as tecnologias e a saúde durante a pandemia de Covid-19. O estudo busca discutir como essas dependências tecnológicas estão moldando a saúde coletiva e individual, com foco nas suas implicações éticas, sociais e políticas.

Relações corpo, saúde e tecnologia

A relação entre o ser humano e a tecnologia é inseparável (Latour, 1994). Desde tempos antigos, o homem tem se definido por meio de sua relação com instrumentos, mesmo os mais simples, sendo por natureza um ser sociotécnico. Continuar a ver o ser humano e a tecnologia como entidades separadas, como nos dualismos de Descartes - que distinguem entre natureza e cultura, corpo e mente, espírito e matéria -, é ignorar as complexas interações e fusões que existem entre esses domínios. As técnicas, longe de serem meros instrumentos, geram transformações profundas nos contextos sociais, culturais e políticos, ora facilitando avanços, ora criando desafios, e em alguns casos, até impondo limitações. Na sociedade contemporânea, a tecnologia permeia todos os aspectos da vida cotidiana, influenciando desde a comunicação até o trabalho, o consumo e as relações sociais. A tecnologia tornou-se uma parte inseparável da existência humana moderna.

Considere, por exemplo, o impacto de duas inovações tecnológicas na saúde: a radiografia e o desenvolvimento das vacinas. A constatação dos raios X por Wilhelm Conrad Roentgen, em 1895, revolucionou a medicina ao possibilitar uma visualização não invasiva do interior do corpo humano. A radiografia, uma aplicação prática dos raios X, tornou-se uma ferramenta indispensável no diagnóstico médico, permitindo a detecção precoce de fraturas, tumores e outras condições internas. Essa inovação transformou a prática médica ao permitir a visualização de estruturas internas sem a necessidade de intervenções cirúrgicas invasivas, aumentando a precisão dos diagnósticos e possibilitando tratamentos mais eficazes. Além de aprimorar significativamente a capacidade de diagnóstico, a radiografia estabeleceu as bases para o desenvolvimento de outras tecnologias de imagem, como a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM), ampliando ainda mais o alcance das ferramentas diagnósticas na medicina moderna.

A partir dessa perspectiva, o desenvolvimento da radiologia pode ser visto como um processo de coevolução entre tecnologia e sociedade. À medida que os raios X se integraram à prática médica, novas demandas surgiram, como a necessidade de padronização dos procedimentos, treinamento especializado para o manejo dos equipamentos e a criação de normas de segurança para proteger pacientes e profissionais da exposição à radiação. Esses elementos interagem continuamente, retroalimentando-se e moldando tanto a tecnologia quanto as práticas sociais e profissionais que a cercam. Já a vacinação não apenas salvou incontáveis vidas, mas também transformou sociedades, permitindo um desenvolvimento econômico e social que seria impossível em um mundo constantemente assolado por doenças epidêmicas. Além disso, a vacinação catalisou a criação de infraestruturas de saúde pública e regulamentações que asseguram a distribuição equitativa e segura dos imunizantes, reforçando a interdependência entre ciência, tecnologia e política.

Nesse cenário, o corpo humano se tornou um projeto em eterna construção, moldado por intervenções tecnológicas e biomédicas. Essa transformação não se limita ao físico, abrangendo também aspectos como gestação, genética, próteses e inteligência artificial (AI). Com isso, a noção de saúde adquire novos significados, culminando na busca pelo homem pós-orgânico, um conceito que marca a transição para formas de existência que rompem com as antigas concepções de corpo e tecnologia. Nesse ponto de vista, o conceito de ciborgue, cunhado por Manfred Clynes e Nathan Kline em 1960, descreve a fusão entre organismo e máquina, o organismo cibernético. Na saúde moderna, o ciborgue deixou de ser uma abstração futurista para se tornar uma realidade cotidiana, que redefine os limites do corpo humano e as possibilidades terapêuticas. Essa simbiose entre homem e máquina está transformando não apenas as capacidades físicas, mas também as concepções de normalidade e aprimoramento humano.

A integração tecnológica no corpo humano ocorre de várias formas: implantes, marcapassos, próteses neurais, bombas de insulina automatizadas, sensores subcutâneos de monitoramento, exoesqueletos robóticos, cirurgias robóticas, e vacinas de mRNA com biotecnologia que instrui o corpo a produzir proteínas específicas. Diante disso, a vacinação poderia ser considerada uma forma sutil de ciborguização, na qual um agente externo criado pela tecnologia é inserido no corpo humano para reforçar sua biologia e protegê-lo de ameaças microbianas?

Amber Case (2010) sugere que todos nós já vivemos em uma condição ciborgue, não por termos partes robóticas visíveis, mas pela profunda integração da tecnologia em nossas vidas cotidianas. Dispositivos como smartphones e computadores expandem nossas capacidades cognitivas e sensoriais, criando um "segundo eu" digital que interage no espaço virtual e influencia nossa identidade e percepção social. Dessa forma, a condição ciborgue na era moderna é menos sobre modificações físicas e mais sobre a amplificação tecnológica na vida humana.

Uma saúde entrelaçada

A concepção de saúde sofreu transformações notáveis ao longo da história, refletindo as mudanças sociais e os avanços tecnológicos. Inicialmente, a saúde era entendida de maneira restrita, associada diretamente à ausência de doenças e ao funcionamento adequado do corpo físico. Contudo, a definição proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) expandiu esse conceito, definindo a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Essa visão mais abrangente, embora ainda abstrata, desloca o entendimento de saúde de uma simples ausência de enfermidades para uma condição que também considera fatores emocionais e sociais. No entanto, essa ampliação do conceito não escapou às críticas.

Para Reis (2016), compreender a saúde e a doença exige considerar diferentes perspectivas e dimensões, reconhecendo que esses conceitos são multifacetados e influenciados por contextos variados. Ele argumenta que a percepção de saúde e doença pode variar conforme o ponto de vista do observador, mas sempre envolve três aspectos interconectados. Primeiramente, a doença se manifesta como uma alteração física ou funcional no corpo, como uma infecção ou uma falha em um órgão, que pode ser observada e medida de diferentes maneiras. A partir dessa observação, formam-se interpretações baseadas no conhecimento científico disponível, nas consequências da doença e nos valores culturais da época. Por exemplo, uma condição como a depressão pode ser vista de maneiras distintas: enquanto antigamente poderia ser interpretada principalmente como fraqueza moral, hoje é compreendida como uma doença com causas biológicas e psicológicas. Finalmente, a doença é avaliada não apenas cientificamente, mas também eticamente, levando em conta os valores e interesses da sociedade.

Nessa discussão, Georges Canguilhem (2009) contribui para a compreensão da saúde e da doença como manifestações do estilo de vida de uma sociedade. Para ele, saúde é a capacidade de enfrentar riscos e enfrentar novas situações, enquanto as doenças são as mudanças normais da vida. Em conformidade com Canguilhem, Langdon (2005) destaca que saúde e doença não são categorias imutáveis, mas processos dinâmicos resultantes de complexas negociações socioculturais. A saúde, nesse contexto, emerge das interações e negociações entre os indivíduos e o ambiente em que vivem, refletindo tanto as percepções individuais quanto as noções compartilhadas por um grupo sobre o corpo e seu funcionamento. Decidir se uma pessoa está doente ou saudável é um processo coletivo, que envolve a interpretação dos sinais corporais e a avaliação da gravidade de uma situação (Langdon apudBecker, 2009). Essa abordagem sugere que a saúde é um percurso, um itinerário que envolve a constante mediação entre equilíbrio e desequilíbrio, organização e desorganização, conforme também descrito por Reis (2016).

Nessa abordagem, a saúde deixa de ser vista como uma condição estática, passando a ser entendida como um processo contínuo de adaptação e mediação. Essa concepção destaca a relação simbiótica entre o ser humano e as tecnologias, na qual cada avanço tecnológico não apenas amplia, mas também transforma as capacidades humanas. O corpo, em sua interação com a tecnologia, é moldado e mediado por essas técnicas, que expandem as possibilidades de saúde. Assim, a saúde se manifesta como a capacidade de manter o equilíbrio das funções corporais e de reconstruir modos de vida, mesmo diante de adversidades. Portanto, a saúde deve ser compreendida como uma experiência dinâmica, em permanente interação com as tecnologias e o ambiente, ao mesmo tempo moldando esses elementos e sendo por eles moldada nessa simbiose contínua. A saúde representa o nosso entrelaçamento com a própria vida.

Uma rede de humanos e não-humanos

A Teoria do Ator-Rede (acrônimo ANT para Actor-Network-Theory em inglês), proposta por Bruno Latour, reconfigura a compreensão das interações entre humanos e não humanos, sugerindo que essas interações devem ser entendidas como redes complexas em que sujeitos, objetos, tecnologias e práticas estão interligados de forma inseparável. Em vez de separar nitidamente os elementos da natureza e da cultura, Latour (2012) enfatiza como eles se coconstroem em redes que moldam os resultados em diversos campos, incluindo a saúde.

No contexto da saúde, a ANT permite uma análise detalhada de como as tecnologias médicas atuam não apenas como ferramentas passivas, mas como mediadores que transformam práticas médicas, redefinindo papéis e responsabilidades dentro dos sistemas de saúde. Por exemplo, um aparelho de ressonância magnética vai além de simplesmente produzir imagens do corpo; ele influencia a interpretação médica, a percepção do paciente sobre sua condição e as decisões clínicas subsequentes. Essas imagens se tornam agentes que medeiam o entendimento da saúde e da doença, alterando a dinâmica de poder entre médico e paciente, além de influenciar diretamente o percurso terapêutico.

Dessa forma, a ressonância magnética não é uma ferramenta neutra; ela modifica a prática médica, ampliando a objetividade e a racionalidade ao produzir imagens-evidências. Por exemplo, antes de tecnologias como essa, os médicos precisavam confiar mais em exames físicos e em conversas com os pacientes para entender o que estava acontecendo dentro do corpo. Com a ressonância magnética, essa dinâmica muda - o aparelho se torna uma “voz” importante na sala, mostrando o que está acontecendo dentro do corpo sem a necessidade de cirurgia ou outros métodos invasivos.

Latour (2012) argumenta que essas tecnologias funcionam como mediadores, ampliando as possibilidades de diagnóstico e tratamento e, ao mesmo tempo, redefinindo o que é considerado viável ou aceitável na prática médica. A saúde, portanto, emerge como o resultado dessas redes complexas, em que as tecnologias desempenham um papel formativo, moldando tanto as práticas de cuidado quanto as próprias concepções de saúde e doença.

Ademais, há um processo pelo qual os atores dentro de uma rede negociam e modificam suas identidades e interesses para alcançar um objetivo comum: a tradução. No campo da saúde, isso se manifesta nas interações entre médicos, pacientes, dispositivos tecnológicos e sistemas de informação, em que cada ator ajusta suas expectativas e ações com base nas respostas dos outros. Por exemplo, a adoção de um sistema de telemedicina pode exigir que médicos alterem suas práticas de consulta, que pacientes adaptem suas expectativas sobre o atendimento e que a tecnologia seja ajustada para atender às necessidades específicas do contexto clínico (Latour, 2012). Esse processo de tradução não só facilita a integração de novas tecnologias na prática clínica, mas também mostra como essas tecnologias podem transformar as relações de poder e conhecimento no campo da saúde.

Isso significa que as redes de saúde ou de cuidado são dinâmicas e estão em constante evolução. A introdução de novos atores, como novas tecnologias médicas, mudanças nas políticas de saúde ou a Covid-19, provoca a necessidade de renegociação e reconfiguração das relações dentro dessas redes. Isso pode levar a mudanças significativas nas práticas de saúde. Assim, incorporar os não-humanos no debate sobre a saúde, atribuindo-lhes agência e reconhecendo-os como atores amplia a compreensão sobre o humano e a abordagem por “Uma Só Saúde”.

Os Determinantes Tecnológicos da Saúde

Ao entender a saúde como um fenômeno social e relacional, torna-se imprescindível superar abordagens biomédicas estritas, adotando perspectivas ampliadas sobre os determinantes. Nesse sentido, a inclusão da tecnologia como elemento determinante, bem como o debate sobre suas políticas públicas, pode contribuir para estratégias mais integradas, equitativas e eficazes na promoção da saúde.

O conceito

O conceito de Determinantes Tecnológicos da Saúde (DTS) refere-se aos fatores tecnológicos que impactam diretamente a saúde de indivíduos e comunidades. Ele complementa o conceito de Determinantes da Saúde, reconhecendo a importância crescente das tecnologias, como dispositivos médicos, vacinas, testes, telemedicina e inteligência artificial, na promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e monitoramento da saúde. Os DTS abrangem fatores que afetam as condições de saúde das populações. Eles vão além da simples aplicação tecnológica na medicina, incluindo como as tecnologias influenciam a organização e prestação dos serviços, moldando acessibilidade, qualidade e eficiência. Isso inclui infraestruturas tecnológicas e as políticas que governam sua implementação, impactando decisivamente os resultados de saúde.

Nessa lógica, Dusek (2009) propõe que a tecnologia pode ser dividida em três tipologias: instrumental, regra e sistema. A primeira, relacionada ao uso de ferramentas e equipamentos, abrange tecnologias para diagnóstico, terapia, prevenção, monitoramento e assistência, como dispositivos médicos, ferramentas de cirurgia, próteses, testes de diagnóstico e equipamentos de proteção individual (EPIs). A tecnologia como regra envolve métodos padronizados para o funcionamento correto de ferramentas e equipamentos, como protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas que padronizam o tratamento de condições de saúde. Inclui também procedimentos, normas e softwares de apoio à decisão clínica.

Por fim, sistemas tecnológicos, embora não aplicáveis diretamente ao estado de saúde, fornecem infraestrutura e suporte ao aparato tecnológico, como tecnologias de informação (telemedicina, teleconsulta, prontuário eletrônico, sistemas de informação hospitalar, aplicativos de saúde móvel, Big Data, sistemas de telemonitoramento, gestão de dados de pacientes, gestão de dados epidemiológicos, softwares clínicos etc.); e sistemas de higienização e controle ambiental. Esses sistemas são essenciais para a gestão eficaz dos recursos de saúde, como a alocação de leitos e de equipamentos em hospitais.

Essas três categorias de tecnologia estão interligadas e interdependentes no campo da saúde. Compreender essas categorias é essencial para visualizar como as diferentes tecnologias de saúde se complementam e são fundamentais para o cuidado em saúde. O objetivo não é categorizar rigidamente cada tecnologia, mas proporcionar uma visão ampla sobre o termo.

Os determinantes tecnológicos não operam isoladamente; estão interligados a fatores biológicos e socioculturais que também influenciam a saúde. A interação entre essas dimensões reflete a complexidade da saúde pública, em que a implementação e o acesso a tecnologias são moldados por condições socioeconômicas, políticas públicas e crenças culturais. Embora tecnologias como vacinas e diagnósticos possam salvar vidas, sua eficácia é limitada por barreiras socioculturais e desigualdades no acesso. Portanto, integrar determinantes tecnológicos com outros fatores é essencial para uma saúde pública eficiente, equitativa e inclusiva. A Figura 1 esquematiza os determinantes tecnológicos da saúde.

Figura 1
Os determinantes tecnológicos da saúde

Da mesma forma como os determinantes sociais da saúde têm uma mediação complexa e muitas vezes não correlacional com a saúde (Buss; Pellegrini Filho, 2007), os determinantes tecnológicos apresentam suas especificidades, em que os benefícios dependem de fatores como equidade de acesso, contexto de implementação e uso ético. Dada a diversidade de tecnologias, não há uma simples relação direta entre determinantes tecnológicos e saúde. A simples aquisição de equipamentos não garante resultados positivos, pois essas tecnologias operam em uma rede complexa que envolve fatores sociais, ambientais, biológicos, políticos e tecnológicos. À medida que as tecnologias avançam, é imperativo que as políticas integrem uma visão crítica sobre como essas inovações podem promover a justiça social. Isso inclui garantir o acesso equitativo às novas tecnologias e desenvolver estratégias que reduzam, em vez de ampliar, as disparidades sociais. O futuro das políticas de saúde dependerá de um equilíbrio cuidadoso entre avanços tecnológicos e justiça social.

É importante destacar que as tecnologias de saúde, frequentemente promovidas como soluções inovadoras para melhorar os desfechos em saúde, carregam em si valores e pressupostos que não são neutros em sua concepção e aplicação. Segundo Feenberg (2013), a tecnologia não é apenas um conjunto de ferramentas que operam de forma independente dos contextos sociais e culturais; ela é moldada por interesses específicos que frequentemente refletem as prioridades de grandes corporações e mercados poderosos. Desde sua criação, essas tecnologias são desenvolvidas com base em concepções específicas de corpo e saúde, refletindo valores, interesses e prioridades que não são universais (Mangini; Kocourek; Silveira, 2018). Muitas vezes, são projetadas para atender às demandas de grandes corporações e mercados influentes, em detrimento de uma abordagem que priorize a promoção da saúde coletiva de forma equitativa e acessível. Dessa forma, conceituar os determinantes tecnológicos é também problematizá-los e, assim, abrir a possibilidade de subverter a tecnologia para uma real universalidade, integralidade e equidade no acesso à saúde.

Uma categoria própria

A escolha de tratar os DTS como uma categoria analítica própria fundamenta-se em três fundamentações principais: a insuficiência dos DTS para captar os impactos específicos das tecnologias, a fundamentação teórica da Teoria do Ator-Rede e as dinâmicas e especificidades próprias das tecnologias no campo da saúde. Embora os DSS sejam amplamente utilizados para analisar condições de saúde, eles frequentemente carecem de ferramentas para abordar as transformações específicas introduzidas por tecnologias. Essas transcendem o escopo sociocultural tradicional, reconfigurando práticas de cuidado e acesso de maneira que exige uma análise própria.

A ausência de um enfoque explícito nos impactos tecnológicos dentro do arcabouço tradicional não é apenas uma lacuna técnica; ela também reflete uma limitação analítica. Ao tratar a tecnologia como um meio secundário ou uma extensão do social, os DSS diminuem a relevância das inovações tecnológicas como agentes ativos e transformadores na saúde. Essa invisibilização aponta para um ponto cego no modelo, reforçando a necessidade de uma categoria própria para explorar as contribuições específicas das tecnologias na reconfiguração das redes sociotécnicas.

Para Latour (2012), tecnologias possuem agência própria, atuando como mediadores que moldam práticas e redes sociais. Elas não são meramente ferramentas subordinadas, mas participantes ativos nas redes sociotécnicas. Essa perspectiva justifica que as tecnologias sejam analisadas de forma independente, destacando sua capacidade de reorganizar dinâmicas de poder, acesso e tomada de decisão nos sistemas de saúde.

Na linha da Teoria do Ator-Rede, o conceito de social não se refere a um tipo de material ou categoria específica, como biológico ou econômico, mas sim a um processo de associação entre elementos heterogêneos, sejam humanos ou não-humanos. Dessa forma, os "fatos sociais" não existem como objetos estáveis a serem analisados isoladamente, mas surgem das redes que conectam humanos, artefatos, instituições e outras entidades. Portanto, ao propor os DTS como uma categoria analítica independente, alinha-se à ontologia da Teoria do Ator-Rede, que enfatiza a interdependência entre humanos e tecnologias. A categorização autônoma não busca excluir os DTS do escopo social, mas lançar luz sobre suas dinâmicas específicas e sua agência transformadora dentro das redes. Essa estratégia permite enriquecer o debate sobre saúde pública, ao ampliar a compreensão das interações complexas entre fatores socioculturais e tecnológicos, sem reduzir a análise à uniformidade de uma única categoria.

Assim como os Determinantes Comerciais da Saúde (DCS) podem ser destacados por suas dinâmicas corporativas únicas, os DTS possuem impactos estruturais que justificam sua categorização específica. Essa abordagem amplia a compreensão dos desafios e oportunidades que as tecnologias representam, colocando em evidência sua capacidade de reconfigurar práticas de saúde, relações sociais e políticas públicas, enquanto promove uma análise crítica sobre como essas inovações podem mitigar ou exacerbar desigualdades existentes.

A pandemia de Covid-19 e a dependência tecnológica

A pandemia de Covid-19, iniciada em dezembro de 2019 em Wuhan, China, rapidamente se transformou em uma crise global de saúde pública. A rápida disseminação do vírus, combinada com a falta de imunidade e tratamentos eficazes, resultou em uma escalada de casos e mortes, sobrecarregando sistemas de saúde ao redor do mundo. A OMS declarou a Covid-19 como uma pandemia em março de 2020, marcando o início de uma resposta global que dependeria fortemente de soluções tecnológicas.

Desde os primeiros momentos, ficou claro que as tecnologias seriam imprescindíveis na resposta global à crise. Com a rápida disseminação do vírus e a sobrecarga dos sistemas de saúde, tornou-se imperativo recorrer a soluções tecnológicas para mitigar os impactos e garantir a continuidade dos serviços de saúde. As tecnologias não só permitiram o desenvolvimento acelerado de vacinas e tratamentos, mas também viabilizaram novas formas de monitoramento epidemiológico, atendimento médico remoto e gestão de dados em tempo real, demonstrando ser essenciais em cada etapa da resposta à pandemia. A urgência imposta pela Covid-19 impulsionou inovações que, em circunstâncias normais, poderiam ter levado anos para serem implementadas.

O avanço nas tecnologias de diagnóstico foi primordial para a identificação e contenção da propagação do vírus. Os testes rápidos de antígeno, caracterizados por sua praticidade e resultados quase imediatos, permitiram a implementação de estratégias de triagem em larga escala, essenciais para o controle da transmissão comunitária. Paralelamente, o aprimoramento das técnicas de RT-PCR (do inglês Reverse Transcription Polymerase Chain Reaction) possibilitou a detecção precisa do material genético viral, estabelecendo-se como padrão-ouro no diagnóstico da Covid-19. O RT-PCR possui acurácia superior a 95%, já os testes rápidos de antígeno para Covid-19 possuem acurácia superior a 80%, oferecem resultados em 10-15 minutos e a um custo menor (Rao et al., 2024).

Além dos testes, os exames de imagem, como tomografias computadorizadas e radiografias torácicas, foram essenciais para avaliar a gravidade da infecção pulmonar em pacientes com Covid-19, ajudando a identificar casos de pneumonia viral e a monitorar a progressão da doença. A avaliação da gravidade e a padronização das lesões pulmonares produzidas foram possíveis com o auxílio de exames de tomografia computadorizada de alta resolução (TCAR). Uma revisão de literatura indica que a tomografia computadorizada de tórax tem uma taxa de acerto (sensibilidade) que varia de 44% a 98%, e uma habilidade de descartar corretamente aqueles que não têm a doença (especificidade) entre 25% e 96%, quando comparada ao RT-PCR (Al-momani, 2024). Com o uso de técnicas avançadas de aprendizado de máquina, ambos os resultados podem alcançar até 99% (Chang et al., 2024). Assim, a tomografia computadorizada pode ser um recurso em pacientes com sintomas, mas seu uso deve ser ponderado em conjunto com os resultados do RT-PCR.

O desenvolvimento acelerado de vacinas contra o SARS-CoV-2 representou um feito científico e tecnológico sem precedentes. A utilização de plataformas inovadoras, como as vacinas de mRNA, revolucionou a imunização contra a Covid-19 e abriu novas perspectivas para a vacinologia. Essas vacinas, aprovadas para uso emergencial em menos de um ano, foram possíveis graças à integração de tecnologias avançadas em biotecnologia. As vacinas de vetor viral também se destacaram, utilizando tecnologias avançadas para induzir respostas imunológicas eficazes, enquanto as vacinas inativadas foram amplamente utilizadas, contribuindo significativamente para o controle da pandemia.

No Brasil, as vacinas contra a Covid-19 apresentaram as seguintes taxas de eficácia para casos moderados e graves: Fiocruz/Oxford/AstraZeneca®: 70,42%; Instituto Butantan/Sinovac (CoronaVac®): 50,39%; Janssen/Johnson & Johnson®: 66% na América Latina; Pfizer/BioNTech®: 95% (Sobreira et al., 2021). Um estudo no Rio Grande do Norte revelou que a vacinação levou a uma queda acentuada nas hospitalizações e mortes, especialmente entre idosos, em que o número de hospitalizações caiu pela metade após a vacinação, e a taxa de mortalidade diminuiu substancialmente (Sales-moioli et al., 2022). Com essas taxas de eficácia, as vacinas foram essenciais na redução da gravidade da Covid-19 e na proteção da saúde pública em escala global.

A telemedicina emergiu como uma solução indispensável durante a pandemia, garantindo a continuidade do atendimento médico em um contexto de distanciamento social e isolamento (Messias, 2023). Com a impossibilidade de consultas presenciais, a telemedicina permitiu que pacientes continuassem a receber cuidados essenciais. No entanto, a adoção dessa tecnologia também evidenciou desigualdades significativas no acesso, especialmente em comunidades rurais e regiões com infraestrutura digital precária. A falta de acesso à internet de qualidade e dispositivos tecnológicos impediu que todos se beneficiassem igualmente, revelando uma nova camada de desigualdade na prestação de serviços de saúde.

Sistemas de informação e inteligência artificial foram utilizados no rastreamento de casos e contatos, bem como na análise de dados epidemiológicos. Plataformas digitais permitiram o compartilhamento rápido de informações entre diferentes níveis de atenção à saúde, facilitando a tomada de decisões baseada em evidências. A IA foi empregada na análise de grandes volumes de dados, possibilitando a identificação de padrões de transmissão, previsão de surtos e otimização da alocação de recursos (Freitas, 2020). O desenvolvimento e a adoção de aplicativos de monitoramento de saúde e sintomas representaram uma inovação na vigilância epidemiológica e no autocuidado, estabelecendo uma nova interface entre a população e os sistemas de saúde.

No contexto hospitalar, a dependência de equipamentos médicos específicos tornou-se crítica. Oxímetros de pulso foram amplamente utilizados para monitorar a saturação de oxigênio, detectando precocemente casos de hipoxemia. Respiradores mecânicos passaram a ser itens de primeira necessidade para o tratamento de pacientes graves. A demanda global por ventiladores superou em muito a oferta, expondo a dependência de muitos países de tecnologias importadas. No Brasil, a escassez de respiradores foi um problema crítico, exacerbado pela dependência de cadeias de suprimentos internacionais, resultando em atrasos no tratamento e, potencialmente, em mortes evitáveis. Além disso, a necessidade de profissionais capacitados para operar equipamentos biomédicos destacou a importância da interface humano-tecnologia no cuidado em saúde, evidenciando que a dependência tecnológica vai além da mera disponibilidade de aparelhos.

Em 2020, o Consórcio Nordeste, uma aliança formada por governadores dos estados da Região Nordeste do Brasil, adquiriu ventiladores pulmonares da China para o tratamento de pacientes com Covid-19. No entanto, os ventiladores não chegaram ao Brasil como previsto. Em uma situação complicada, os equipamentos foram interceptados nos Estados Unidos, onde acabaram sendo vendidos para outro comprador (Spigariol, 2020). Esse episódio refletiu as tensões globais e os desafios logísticos no comércio internacional de equipamentos médicos durante a pandemia, quando a demanda mundial por esses dispositivos estava em um nível sem precedentes. Esse fato não foi isolado: no início de 2020, os EUA enviaram 23 aviões cargueiros para voltar com toneladas de equipamentos e produtos hospitalares da China pagando um valor acima do mercado para que eles quebrassem o contrato com outros países, inclusive o Brasil (Bergamo, 2020). Conforme afirmou o então presidente dos EUA, Donald Trump: “Precisamos das máscaras. Não queremos outros conseguindo as máscaras” (Oliveira, 2020, on-line). Na China, o preço de respiradores aumentou mais de 200% em uma semana em 2020 (Landim, 2020).

Do mesmo modo, o fornecimento de EPIs, que incluem máscaras, luvas, aventais impermeáveis, protetores faciais e óculos de proteção, foi crítico e oscilou diversas vezes durante a pandemia. Profissionais de saúde encontraram-se em posições vulneráveis devido à falta desses materiais básicos de proteção. A escassez de luvas e máscaras não apenas comprometeu a segurança dos trabalhadores, como aumentou o risco de transmissão nosocomial do SARS-CoV-2, exacerbando a já grave situação da pandemia. Há uma medição direta da eficácia relacionada a tipos específicos de EPI, ou seja, o uso de EPIs pode reduzir efetivamente as taxas de infecção entre os profissionais de saúde (Liu, 2024).

Um dado alarmante é que, em 2020, cerca de 70% das luvas de látex do mundo inteiro vinham de um único país fabricante, a Malásia (Smil, 2024; MITI, 2023). Em adição, uma pesquisa sobre condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 da Fiocruz revelou que 43,2% dos profissionais de saúde não se consideraram adequadamente protegidos (Machado et al., 2023). Para 23% desses profissionais, essa sensação de insegurança estava diretamente relacionada à insuficiência, escassez e inadequação dos EPIs. Além disso, 64% dos entrevistados relataram que frequentemente precisaram improvisar esses equipamentos devido à falta de recursos adequados. Essas dificuldades evidenciam o impacto direto da falta de ferramentas e equipamentos na segurança dos trabalhadores e na eficácia do enfrentamento à pandemia.

A escassez generalizada de EPIs e o colapso do sistema de saúde em Manaus evidenciaram as consequências da falta de recursos essenciais. Em janeiro de 2021, a falta de oxigênio hospitalar em Manaus resultou em uma tragédia humanitária, com inúmeros pacientes morrendo por falta de tratamento adequado (Lavour, 2021). A pandemia expôs a necessidade de uma cadeia de suprimentos robusta e a importância de estoques e logística adequados para enfrentar emergências de saúde pública.

Um dos aspectos críticos da dependência tecnológica em saúde é a amplificação das desigualdades no acesso aos cuidados. A disparidade no acesso às tecnologias médicas avançadas, seja por razões geográficas, econômicas ou sociais, cria uma "saúde de duas velocidades", onde parte da população se beneficia de inovações, enquanto outra permanece à margem. Para Gadelha et al. (2021), no Brasil, essa desigualdade é exacerbada pela dependência de importações de insumos e tecnologias, comprometendo a autonomia do SUS. Em 2020, a concentração de 88% das patentes em saúde estava em apenas dez países - Estados Unidos, China, Japão, Coreia do Sul, Alemanha, Suíça, França, Inglaterra, Holanda e Israel - intensifica a desigualdade no acesso a tecnologias essenciais, especialmente em crises como a pandemia de Covid-19 (Gadelha et al., 2021; Aragão; Funcia, 2022). A saúde no Brasil está condicionada a essas 10 nações.

Dessa forma, a análise da dependência tecnológica em saúde deve considerar as patentes e o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS). De acordo com Gadelha et al. (2021), o CEIS inclui as indústrias química, biotecnológica, de equipamentos médicos e de serviços de saúde, e tem potencial para mitigar essas desigualdades se bem estruturado e orientado para as necessidades de saúde pública. Entretanto, um estudo de Gadelha, Gimenez e Cassiolato (2022) revelou que o CEIS depende anualmente de cerca de US$ 20 bilhões em importações, evidenciando uma dependência econômica significativa e um modelo subjacente de exclusão. Assim, a falta de políticas industriais robustas e a dependência de insumos estrangeiros representam barreiras significativas para a soberania tecnológica e a equidade na saúde.

A interseção entre tecnologia e saúde apresenta desafios complexos que exigem atenção dos gestores de saúde pública, formuladores de políticas e da sociedade civil. O primeiro desafio é garantir o acesso equitativo às tecnologias de saúde, evitando a exacerbação das desigualdades já existentes. As tecnologias podem perpetuar privilégios, e outro desafio crítico é a sustentabilidade dos sistemas de saúde frente à rápida inovação tecnológica, que frequentemente introduz soluções de alto custo sem demonstrar custo-efetividade superior às abordagens existentes. A pressão para incorporar rapidamente novas tecnologias pode levar a decisões precipitadas, sem a devida avaliação de seu impacto a longo prazo.

Por outro lado, a relação entre tecnologia e saúde oferece oportunidades para aprimorar os cuidados. A melhoria na eficiência e ampliação do alcance dos serviços de saúde surge como uma perspectiva promissora, com potencial para otimizar a alocação de recursos, reduzir tempos de espera e ampliar o acesso a cuidados especializados, especialmente em áreas remotas, por meio da telemedicina. Tecnologias portáteis e sensores não invasivos destacam-se na prevenção e detecção precoce de doenças, permitindo monitoramento contínuo e intervenções antecipadas, com possível redução da carga de doenças crônicas. As inovações tecnológicas também demonstraram fortalecer a resiliência dos sistemas de saúde, como evidenciado durante a pandemia de Covid-19, com o rápido desenvolvimento de vacinas, sistemas de vigilância epidemiológica em tempo real e plataformas de comunicação em saúde. Portanto, é urgente ampliar a abordagem interdisciplinar dos determinantes de saúde e relacionar as tecnologias ao seu impacto direto na saúde de pessoas e populações, integrando sua discussão nas políticas de saúde.

Considerações finais

Em um mundo cada vez mais permeado por inovações tecnológicas, ignorar o impacto dessas tecnologias na saúde seria negligenciar uma parte significativa das forças que moldam a saúde individual e coletiva. Este estudo teve como objetivo explorar e definir os determinantes tecnológicos da saúde como uma nova categoria analítica, destinada a complementar os já consolidados determinantes sociais da saúde. Os resultados indicam que, durante a pandemia de Covid-19, os desafios surgidos na implementação e acesso a tecnologias essenciais, como ventiladores pulmonares e dispositivos de monitoramento, reforçam a relevância desse novo conceito na compreensão das desigualdades e na eficácia das respostas em saúde pública.

Portanto, no contexto da pandemia, o conceito de DTS Saúde emerge como uma perspectiva essencial para entender a influência das tecnologias na saúde coletiva e individual. Em vez de diluir o foco dos determinantes sociais, essa abordagem amplia e enriquece a análise, permitindo que as políticas de saúde sejam mais adaptadas às realidades tecnológicas atuais. A pesquisa contribui para o avanço do campo ao introduzir uma nova dimensão que reconhece as tecnologias não apenas como ferramentas, mas como agentes que reconfiguram práticas de cuidado e transformam as relações de poder e conhecimento no setor da saúde.

Contudo, a pesquisa apresenta algumas limitações, como a dificuldade em isolar os efeitos dos determinantes tecnológicos dos sociais, e a generalização dos resultados pode ser limitada devido ao foco específico no contexto da pandemia de Covid-19. Futuras pesquisas poderiam explorar a aplicação desse conceito em diferentes contextos de saúde pública, investigando a interação entre determinantes sociais e tecnológicos de forma mais aprofundada. Além disso, seria importante analisar como políticas públicas podem ser desenhadas para integrar esses determinantes de maneira eficaz, garantindo que as inovações tecnológicas promovam equidade e acessibilidade em diversas realidades socioeconômicas, além de explorar essas interações em diferentes cenários geográficos e culturais.

Dessa forma, a incorporação dessa perspectiva é um passo em direção a uma abordagem mais integrada e multidimensional, que considera não apenas as condições socioeconômicas, mas também como as inovações tecnológicas podem ser usadas para reduzir ou ampliar desigualdades. Ao incorporar essa nova dimensão, reforçamos o compromisso com a justiça social e a equidade, assegurando que as inovações tecnológicas sejam implementadas de forma a beneficiar todas as camadas da população. Políticas públicas que integrem uma visão crítica sobre os determinantes tecnológicos estarão mais bem equipadas para garantir que os avanços tecnológicos sirvam como ferramentas de inclusão e melhoria da saúde, e não como mecanismos de exclusão.

Em última instância, a pergunta final é: qual o lugar da tecnologia no campo da saúde? O silenciamento determinístico, a negação anticapitalista ou a confiança tecnocrata? Existem variados caminhos para pensar a tecnologia, o de determinante tecnológico da saúde é um possível e que busca ampliar o debate e ir além do terreno movediço de históricas dicotomias.

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  • Editora responsável:
    Jane Russo

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2024
  • Revisado
    11 Dez 2024
  • Aceito
    31 Dez 2024
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