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O Modalismo em alguns compositores da música popular do Brasil pós Bossa Nova

Modalism in some Brazilian post-Bossa Nova composers of the 1960s

Resumos

Estudo sobre utilização de modalismo no período pós Bossa Nova na música popular brasileira da década de 1960. A partir da valorização da cultura popular via Canção de Protesto, aponta-se o uso comum de procedimentos modais em diversos compositores representativos da época (Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Moacir Santos, Egberto Gismonti, Milton Nascimento e Caetano Veloso). A ocorrência desses procedimentos é fundamentada em comparações com as manifestações do modal jazz norte-americano, bem como em antecedentes de tradições étnico-musicais brasileiras, que serviram de guia para uma tendência estética desse período.

modalismo na música popular brasileira; canção de protesto no Brasil; jazz modal


Study about the use of modalism in Brazilian popular music of the post Bossa Nova era in the 1960s. The emphasis on popular culture via canção de protesto (the Brazilian protest song) reveals the common usage of modal procedures in several representative composers of that time (Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Moacir Santos, Egberto Gismonti, Milton Nascimento e Caetano Veloso). The occurrence of these procedures is based in comparisons with manifestations of US modal jazz as well as ethnic music traditions of Brazil, which guided an aesthetic trend of that period.

modalism in Brazilian popular music; Brazilian protest song; modal jazz; Miles Davis


ARTIGOS CIENTÍFICOS

O Modalismo em alguns compositores da música popular do Brasil pós Bossa Nova

Modalism in some Brazilian post-Bossa Nova composers of the 1960s

Paulo José de Siqueira Tiné

UNICAMP, Campinas, SP. paulotine@hydra.com.br

RESUMO

Estudo sobre utilização de modalismo no período pós Bossa Nova na música popular brasileira da década de 1960. A partir da valorização da cultura popular via Canção de Protesto, aponta-se o uso comum de procedimentos modais em diversos compositores representativos da época (Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Moacir Santos, Egberto Gismonti, Milton Nascimento e Caetano Veloso). A ocorrência desses procedimentos é fundamentada em comparações com as manifestações do modal jazz norte-americano, bem como em antecedentes de tradições étnico-musicais brasileiras, que serviram de guia para uma tendência estética desse período.

Palavras-chave: modalismo na música popular brasileira; canção de protesto no Brasil; jazz modal.

ABSTRACT

Study about the use of modalism in Brazilian popular music of the post Bossa Nova era in the 1960s. The emphasis on popular culture via canção de protesto (the Brazilian protest song) reveals the common usage of modal procedures in several representative composers of that time (Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Moacir Santos, Egberto Gismonti, Milton Nascimento e Caetano Veloso). The occurrence of these procedures is based in comparisons with manifestations of US modal jazz as well as ethnic music traditions of Brazil, which guided an aesthetic trend of that period.

Keywords: modalism in Brazilian popular music; Brazilian protest song; modal jazz; Miles Davis.

1 - Introdução

A década de 1960 no Brasil foi caracterizada por grandes turbulências políticas, fato que fez com que alguns compositores de música popular daquele período acabassem por buscar as supostas "raízes" de nossa cultura, levando gêneros que eram mais propriamente tradicionais para o nível da cultura de massa, das rádios e grandes meios de comunicação. Tal postura estética assemelhava-se, como coloca CONTIER (1996, p.38), à postura do nacionalismo musical que, encabeçado por Mário de Andrade, norteou a produção erudita brasileira da primeira metade do século XX.

Parcialmente, a origem de tais posições estético ideológicas do período derivou do "2º Congresso Internacional de Compositores e Críticos Musicais", ocorrido em Praga no ano de 1948. Segundo CONTIER (1996, p.20), o Manifesto do CPC - Centro Popular de Cultura -, braço cultural da UNE (União Nacional dos Estudantes), escrito por Carlos Eduardo Martins, aproximava-se de algumas teses defendidas por Andrei Alexandrovitch Jdanov, porta-voz da cúpula do Politburo do Comitê Central do Partido Comunista da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas no referido congresso. Sabe-se (NEVES, 1981) que o compositor Cláudio Santoro participou desse congresso e que, a partir de então, durante certo tempo, teve sua produção orientada para o uso de "elementos nacionais", juntamente com o maestro Guerra Peixe, abandonando, temporariamente, os procedimentos apreendidos com o compositor alemão erradicado no Brasil Hans Joachim Koellreutter. Além disso, segundo Zuza Homem de Melo, há também o dado relevante da encenação das peças teatrais no Rio de Janeiro de Gianfrancesco Guarnieri que, posteriormente será parceiro de Edu Lobo, em peças de teatro como Eles Não Usam Black-tie (1959), Chapetuba Futebol Clube (1959), Revolução na América do Sul (1960) encenadas, inicialmente, no Teatro de Arena em São Paulo (MELO, 2003, p.50).

Neste período foi composto, por exemplo, a coleção de canções que se intitulou de Afro Sambas por Baden Powell e Vinicius de Moraes. Ainda que elas não tenham nenhuma conotação política das obras de outros autores da mesma época, muitas delas possuem forte caráter modal calcado, sobretudo, na tradição musical afro-brasileira do estado da Bahia (Berimbau, Consolação, etc.). Entretanto, o aspecto afro, foi bastante criticado por Mário de Andrade no contexto do nacionalismo mencionado, na medida em que, segundo o autor, o uso desses elementos apontava para um "exotismo fácil".1 1 "De um lado, a utilização repetitiva de temas inspirados nas chamadas raízes africanas da música brasileira implicava uma repetição frequente de ritmos ou temas, favorecendo a criação de uma Escola Afro-Brasileira, em oposição à fundação de uma Escola Nacional de Composição no Brasil" (CONTIER, 1997, p.25-26).

Outro importante compositor do período é Carlos Lyra, sendo muito associado à Canção de Protesto. No entanto, como o viés de Carlos Lyra se deu mais através do samba de morro carioca, e esse não apresenta as características modais buscadas aqui. É sobretudo em Edu Lobo que, por ter passado parte da infância na cidade de Recife PE, buscará sua "autenticidade" na música do nordeste brasileiro. Outro dado relevante é que o próprio Edu LOBO (1965, p.311-312) disse, no debate realizado pela revista Civilização Brasileira, estar inspirado no famoso Ensaio sobre a Música Brasileira (1928) de Mário de Andrade.

Se, por um lado o nome de Geraldo Vandré seria mais apropriado do que o de Milton Nascimento nessa relação entre atitude política e arte nacional, os critérios que guiam essa busca são também musicais. Além disso, não se pode deixar em segundo plano o conteúdo político implícito de canções como Canção do Sal e Morro Velho, ambas do autor mineiro por adoção.

2 - Justificativa

É certo que há controvérsias sobre o fato de procedimentos modais poderem ser transpostos ao nível da harmonia. Entretanto, alguns teóricos e músicos como PISTON (1987, p.483) e JAFFE (1996, p.87) aceitam a ideia desse tipo de transposição que poderíamos definir como uma priorização de um grau em um campo harmônico que se dá sem o artifício de um acorde de função dominante, o que pode ocorrer de diferentes maneiras. Quando se orienta nessa direção, pode-se afirmar que uma parte significativa da obra dos compositores citados (Edu Lobo, Baden Powell e Milton Nascimento) está baseada nessas peculiaridades. Além disso, esse elemento também perpassou o jazz da década de 1960, muito embora ele se apresente de maneira completamente diferente neste gênero. Entretanto, esse tipo de uso jazzístico do modalismo se faz presente na música popular do Brasil através da influência dos meios de comunicação de massa (rádios e discos). Assim, as gerações brasileiras assimilaram auditivamente tais elementos jazzísticos, como atesta o antológico álbum Coisas (1964) de Moacir Santos.

Há que se considerar também outras coincidências em relação a esses fatores. O uso mais intenso de acordes empilhados por intervalos de quartajusta (chamado coloquialmente de harmonia quartal), principalmente no jazz desse período e, no campo da música brasileira, uma tendência ao que chamei (TINÉ, 2008, p.166-169) de "rapsodismo" formal. Essa característica, que já existia no campo do nacionalismo da música erudita (NEVES 1981, p.48) é encontrada, por exemplo, em músicas como Quebra Pedra e Pato Preto de Tom Jobim, associadas, nesses exemplos, a um modalismo característico do nordeste brasileiro.

Portanto, verificou-se a existência de diferentes gêneros de modalismo dentro do contexto da música popular e, a partir da descrição de seus procedimentos, associaram-se tais procedimentos aos gêneros populares correspondentes.

3 - Objetivos

O que se pretendeu foi, via demonstração localizada num repertório específico, definir uma possibilidade de transposição de procedimentos modais do nível melódico ao harmônico e suas divisões em diferentes gêneros.

É importante ressaltar que, quando se aborda a "influência do jazz" (título de uma canção de Carlos Lyra) na música popular do Brasil, deve-se especificar qual fase daquele gênero musical está a influir nos compositores brasileiros. No caso específico que se pretende estudar aqui, se pode dizer que se trata do período pós cool-jazz,2 2 Recentes pesquisas apontam também para a influência do hard bop que, contemporâneo ao cool, buscou uma regressão estilística e uma simplificação do estilo bebop para o uso de elementos mais afros como o do blues. aqueles anos em que, paralelamente com o free-jazz, o trompetista norte- americano Miles Davis montou seu 2º Grande Quinteto3 3 Isto é, o período que se estende após o antológico Kind of Blue (1958; marco do cool-jazz) e anterior ao In a Silent Way (1969), ou seja, anterior ao período do jazz-rock. Esse período é caracterizado pelo 2º Grande Quinteto de Miles, cujos membros eram, entre outros, exatamente os citados Wayne Shorter (sax) e Herbie Hancock (piano), no lugar de Bill Evans e John Coltrane, ambos do 1º Grande Quinteto. . Para se justificar a importância desse período do jazz na música brasileira há que se lembrar, por exemplo, que no encarte do 1º long playing de Milton Nascimento (1967) há um texto de Edu Lobo no qual ele diz que para Milton existiam três compositores de extrema importância: Miles Davis, Charles Mingus e John Coltrane.

4 - Procedimentos Modais

Durante a década de 1960, muitos compositores e instrumentistas do gênero popular começaram a intencionalmente buscar sonoridades mais tipicamente brasileiras. Um bom exemplo disso foi o grupo "Quarteto Novo" formado por Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Theo de Barros (parceiro de Geraldo Vandré em Disparada) e Airto Moreira. No compacto lançado em 1967, houve a interpretação de Ponteio (Edu Lobo) e Fica Mal com Deus (Geraldo Vandré), duas canções marcantes do período, de forte caráter modal ligado à música nordestina. O que diferenciou o "Quarteto Novo" dos demais grupos instrumentais da era da Bossa Nova4 4 Ou do samba jazz, versão instrumental do período, como apontam recentes pesquisas sobre esse período. Ver GOMES, Marcelo Silva. (2010) Samba- jazz aquém e além da Bossa Nova: Três arranjos para Céu e Mar de Johnny Alf. Dissertação de Doutorado - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. São Paulo. foi também a utilização de instrumentos característicos como violões, violas, percussões típicas brasileiras ao invés do modelo jazzístico piano baixo bateria com guitarra ou violão opcional utilizados pelos os trios Tamba, Zimbo, Jongo, etc.

A demonstração dessas características se deu através da análise. Entretanto, essa não foi feita somente através das partituras editadas de música popular, mas, também, da análise e transcrição a partir de gravações históricas. Tome-se, no Ex.1 , o trecho inicial de Upa, Neguinho (Música de Edu lobo e letra de Gianfrancesco Guarnieri):

Pode-se observar que esse todo esse trecho é constituído apenas por dois acordes: Lá menor com 7ª menor e Ré maior com 7ª maior. Fica claro que o centro tonal gravita em torno de Ré, entretanto, tal priorização não se dá via relação dominante tônica, pois o V grau não tem função de dominante, haja vista que se trata de um acorde menor. Além disso, melodicamente não se dá a utilização da nota Dó#, o que caracteriza o uso do modo mixolídio. O fato de a seção oscilar apenas em dois acordes é normalmente denominado de vamp (THE NEW GROVE DICTIONARY OF JAZZ, 1996, p.1.238) no jargão popular corrobora numa priorização que não é naturalmente tonal.

Outro procedimento realizado consistiu na transliteração da cifra. Esse se dá ao passar a cifra dos acordes de música popular para a pauta musical e, assim, se pode descobre possibilidades latentes que estão às vezes ocultadas. Por exemplo: se analisássemos apenas a melodia do trecho em questão (Upa, Neguinho) chegaríamos à conclusão de que se trata do modo mixolídio, priorizado tanto harmonicamente como melodicamente. No entanto, através do procedimento adotado, verifica-se que, na verdade, trata-se de uma sequência híbrida, já que ora um acorde possui a nota Dó natural, hora o seguinte possui a nota Dó sustenido. Mesmo assim, a priorização se dá sem o uso do acorde dominante.

Pode-se citar uma série de outras canções do mesmo período que adotam o mesmo procedimento, a saber, o da priorização sem o artifício do acorde dominante com a repetição contínua do vamp, como Ponteio (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri), seção B de Canção do Sal (Milton Nascimento), Fica Mal com Deus (Geraldo Vandré), etc. Portanto, há uma distinção entre um vamp modalmente puro, ou seja, cujos acordes pertencem ao mesmo campo harmônico de um vamp híbrido, no qual os acordes sejam provenientes de campos distintos, ainda que, do ponto de vista melódico, as notas pertençam - via de regra - a um só modo.

Inspirado nos mencionados afro-sambas de Baden Powell, Egberto Gismonti compôs, na década de 60 a peça Salvador que tem, como característica, o fato de basear-se, parcialmente no vamp //: Dm7/ Am7 ://, que se pode interpretar como pertencente ao modo eólio ou dórico, quando se adiciona a extensão de 9ª maior ao segundo acorde (nota SI natural- 6ª maior). Esse mesmo vamp ocorre em Coisa No 1 de Moacir Santos, outro autor importante do período.

De fato, em muitos exemplos que antecedem ao período aqui estudado, há uma série de exemplos populares nos quais a melodia é modal, mas a harmonização é tonal, como muitas canções de Luiz Gonzaga e do repertório interpretado e lançado por Jackson do Pandeiro a partir da década de 50, apontam (TINÉ, 2008). Esse seria um primeiro procedimento a ser apontado nos quais o autor está bastante próximo às manifestações culturais locais, no caso, do nordeste brasileiro como o baião, o coco, o catimbó, a cantoria e as bandas de cabaçais, para citar alguns exemplos. Além disso, os autores citados (Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro) foram importantes na formação daqueles aqui apontados (Edu Lobo e Geraldo Vandré).

Há ainda os casos de cadências modais inseridas no seio do tonalismo. Quer dizer, a relação dominante-tônica é evitada exatamente no ponto cadencial. Tal procedimento ocorre, por exemplo, na canção Vera Cruz (Milton Nascimento e Marcio Borges), como apontado na referida tese de doutorado (TINÉ, 2008). Como exemplo complementar ao citado, o Ex.2 apresenta a cadência modal em Odara (Caetano Veloso) que, de maneira muito semelhante à de Milton Nascimento, após tecer relações tonais (II - V do IV) apresenta a cadência VII7 - Im7 no modo eólio.5 5 Embora a canção apresentada escape ao período histórico estudado, ou seja, ela não pertence mais ao período pós-bossa-nova, mas ao momento posterior à "Tropicália", não deixa de ter também pontos em comum com o assim chamado "Clube da Esquina". Caetano Veloso, citado por BORGES, Marcio (1996, p.14)

Já no caso do jazz dos anos 60 acredito que o modalismo se dá por uma via completamente diferente: o da saturação de extensões sobre um determinado acorde. Por exemplo, a música So What de Miles Davis, lançado no já citado álbum Kind of Blue (1957). Nela há dois acordes: parte A - dezesseis compassos de Ré menor com 6ª e 9ª, parte B oito compassos de MI bemol menor com 6ª e 9ª e oito compassos de parte A com o acorde inicial. Como só há um acorde em toda seção A e ele está com as notas da tétrade Ré Fá Lá Dó mais as extensões Mi (9ª) Sol (11ª) e Si (6ª). O modo resultante é o modo dórico. Pode-se ainda enfatizar o fato de não haver qualquer cadência com a dominante de tal acorde que justifique uma visão tonal. Há aqui uma grande confusão no meio musical jazzístico (veja explicação após o Ex.3 ).

Observe que, apesar do alto número de extensões em cada acorde, extensões essas que tendem a "modalizar" - na medida em que uma 11ª aumentada numa escala maior se torna o modo relacionado ao acorde um modo lídio, uma 6ª maior numa escala menor se torna o modo dórico, etc. -, as relações entre os acordes são extremamente tonais, como demonstra a análise: o número de relações V(dominante) - I (tônica), do c.2 para o c.3, do c.6 para o c.7 e do c.8 para o c.9; as duas cadências secundárias: II subV do VII (c.3) e II subV do VI (c.4). O subV pode ser lido, e ouvido, como o equivalente do acorde de 6ª aumentada no jazz. (TINÉ, 2001, p.25-28). O único V grau sem função de dominante é o do 9º compasso, mas que é precedido por uma dominante individual. Aqui se tem um exemplo claro de um falso modalismo. O que acontece é que, devido ao hábito dos improvisadores de associar uma escala para cada acorde, se denominou erroneamente de modais muitas canções que teciam relações tonais cuja abordagem dos músicos para efeito de improvisação era modal, mas não a música em si.

O procedimento apontado em So What levou o jazz a realizar acordes modais. Se, num primeiro momento, os modos utilizados para a construção de tais acordes foram exatamente aqueles que, posteriormente dentro de uma delimitação teórico-prático, foram considerados modos sem notas evitadas: dórico e lídio (TINÉ, 2011, p.1), conforme o passar dos anos tal procedimento se expandiu para outros modos como, por exemplo, o modo mixolídio em Maiden Voyage de Herbie Hancock. Esse tema de jazz, gravado em álbum homônimo, também aponta para outro dado interessante: formado por quatro acordes - três da tipologia sus (mixolídio) e um menor (dórico) - eles priorizam o primeiro acorde (Dsus). Esses acordes podem ser distribuídos em empilhamento de intervalo de quarta na distribuição das vozes, procedimento característico do período conforme apontado no início do artigo. A priorização, para não usar a palavra polarização por conta das conotações "costerianas" do termo, aponta para um centro modal expandido, na medida em que os acordes são provenientes de campos harmônicos distintos. Ou seja, trata-se de uma espécie de "monomodalidade", adaptando a terminologia de Arnold Schoenberg (monotonalidade) para esse contexto harmônico.6 6 Utilizei essa terminologia no meu livro (TINÉ, 2011). Tal ferramenta terminológica e, portanto analítica, se mostrou frutífera, por exemplo, na abordagem de obras como a da maestrina norte-americana Maria Schneider. Ver SILVEIRA, Juliana. O Estilo Maria Schneider: Processos Composicionais em "Hang Gliding". TCC. FASM: São Paulo, 2011. Ou seja, a monomodalidade seria formada por uma sequência livre de acordes modais (saturados do ponto de vista das extensões), mas que apontam para um centro, centro esse que não é ostentado através de relações tonais, conforme aponta o Ex.4 .

É claro que não se quer dizer aqui que o achado desses procedimentos seja exclusivo da música popular aqui estudada. Tirando-se o procedimento dos vamps, as polarizações harmônicas modais ocorreram principalmente ao final do romantismo. Coincidentemente aliados a regionalismos locais e, por que não dizer, a nacionalismos locais, compositores como Grieg, Mussorgsky, Dvórak e, posteriormente, já no impressionismo Debussy, Ravel, Falla realizaram, cada um à sua maneira, caminhos modais próprios. É certo que a verificação através da comparação dos mesmos procedimentos em diferentes épocas e contextos pode validar ainda mais a definição teórica que se pretende dar em relação ao aspecto técnico do modalismo transposto ao nível harmônico.

5 - Considerações Finais

Resumindo, os procedimentos apontados relacionados ao modalismo encontrados na música popular do Brasil na década de 1960 são:

1. O vamp: este pode se dar de duas formas, modalmente puro, quando os acordes envolvidos pertencem ao mesmo campo harmônico tendo um centro claramente e auditivamente definido; e o vamp modalmente híbrido, quando os acordes provêm de campos diversos, igualmente com centro definido. Por exemplo: o vamp //: Im7 / Vm7 :// ligado ao modo eólio aparece em afro-sambas como Consolação (Baden Powell e Vinicius de Moraes), Berimbau (idem), Coisa No1 (Moacir Santos) e Salvador (Egberto Gismonti); já vamps como //: Im7 / -II7M ://, //: I7M / Vm7 :// ou //: I7M / Im6 :// aparecem em músicas como Zumbi (Edu Lobo e Vinicius de Moraes), Ponteio (Edu Lobo e G. Guarnieri) e Morro Velho (Milton Nascimento).

2. A Cadência Modal: quando um tema ou melodia não está harmonizada em um ou outro modo, pode, inclusive, possui relações tonais, mas, no momento cadencial, a harmonia evita a relação D-T, como em Vera Cruz (Milton Nascimento e Marcio Borges), Borandá (Edu Lobo) e a demonstrada Odara (Caetano Veloso).

3. A Saturação Harmônica: embora esse seja um fenômeno basicamente de origem jazzística, ele não deixa de ter relevância, principalmente devido ao fato de que, na década estudada, tais procedimentos já estavam bastante difundidos no Brasil através da Bossa Nova. Entretanto, mesmo aqui, é importante ressaltar que a saturação harmônica não leva, necessariamente ao modalismo, como a análise de Blue in Green desse artigo procurou demonstrar. Quer dizer, para que tais acordes saturados permaneçam modais, é necessário que não haja progressões do tipo II - V, II - subV ou ainda Vo9 (acorde diminuto) - I priorizando "alvos" localizados e hierarquizados dentro de um campo harmônico. Ou eles permanecem extáticos, como no caso mencionado de So What, distribuídos livremente de forma a não ter relações tonais entre eles como no tema demonstrado Mayden Voyage. Tal sequência findaria por embasar uma "monomodalidade" já que, apesar dos acordes não estarem relacionados e não haver progressões tonais entre eles, há do ponto de vista da percepção, um centro.

Para finalizar é necessária uma pequena discussão sobre a natureza do modalismo. Se por um lado é comum se ouvir a expressão "sistema tonal" e, ainda que esse ponto possa ser colocado em questionamento, é certo que tal expressão ("sistema") seria ainda mais falha se aplicada ao modalismo, por isso a opção pela expressão "procedimentos modais". Mas, antes de mais nada, o que é um sistema?

"Seguindo uma tradição milenar, ela [a música], num ponto de maturação histórica, agregou seu nome uma importante palavra grega, que desde a Grécia antiga era aplicada à música, às organizações musicais:

sýstema.

As articulações hierárquicas de notas, acordes, funções e regiões foram entendidas como um sistema, o sistema tonal." (RIZEK,2003, p.12)

Seguindo o pensamento do autor citado, portanto, "Se há um 'sistema tonal', ele visa sua própria superação; e o motor de tal anseio é o tender de sua estrutura às suas próprias lacunas estruturais" (RIZEK, 2003, p.59). Ou seja, é somente dentro de uma concepção do tonalismo como sistema que ele pôde ser superado. Entretanto, tomando o próprio jazz como exemplo, algumas possibilidades tonais não estavam "superadas" quando o seu fim foi "decretado" no início do século XX. Por outro lado, não se pode negar o desgaste de certos procedimentos que terminaram se tornando clichês. Nesse sentido, uma das saídas, ao lado da atonalidade (free-jazz), encontradas tanto no território do jazz (modal jazz), da música popular do Brasil pós Bossa Nova (Canção de Protesto) e, por que não dizer, no próprio romantismo tardio (nacionalismo romântico), foi a busca de procedimentos que remontam ao modalismo, aqui, transposto ao nível harmônico e, portanto, um modalismo que se assenta no advento da afinação do igual temperamento, só amplamente adotada no final do século XIX. Quer dizer, para que tal transposição se desse, foi necessária, do ponto de vista melódico, uma adaptação de uma tradição étnica, normalmente destemperada ou baseada em outras afinações, para o temperamento igual. Curiosamente o jazz chega ao modalismo por vias diversas, ou seja, não pela apropriação de traços étnicos afro-americanos, já que esses elementos impregnam o gênero desde sua origem, mas pela saturação de procedimentos tonais e por propostas estéticas como as do Cool Jazz e do West Coast.

Partituras e Gravações

Notas

Recebido em: 18/07/2012

Aprovado em: 10/03/2013

Paulo Tiné é Doutor em Música pela ECA-USP (2008). Docente do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Autor do livro Harmonia: Fundamentos de Arranjo e Improvisação em 2011 pela editora Rondó, com apoio da FAPESP. Lançou também os Cds autorais Vento Leste (1997), Quartetos (2008) e Ano 10 (2010), CD da Big Band da Santa, grupo do qual é regente.

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  • 1
    "De um lado, a utilização repetitiva de temas inspirados nas chamadas
    raízes africanas da música brasileira implicava uma repetição frequente de ritmos ou temas, favorecendo a criação de uma Escola Afro-Brasileira, em oposição à fundação de uma Escola Nacional de Composição no Brasil" (CONTIER, 1997, p.25-26).
  • 2
    Recentes pesquisas apontam também para a influência do
    hard bop que, contemporâneo ao
    cool, buscou uma regressão estilística e uma simplificação do estilo
    bebop para o uso de elementos mais afros como o do
    blues.
  • 3
    Isto é, o período que se estende após o antológico
    Kind of Blue (1958; marco do
    cool-jazz) e anterior ao
    In a Silent
    Way (1969), ou seja, anterior ao período do
    jazz-rock. Esse período é caracterizado pelo 2º Grande Quinteto de Miles, cujos membros eram, entre outros, exatamente os citados Wayne Shorter (sax) e Herbie Hancock (piano), no lugar de Bill Evans e John Coltrane, ambos do 1º Grande Quinteto.
  • 4
    Ou do samba jazz, versão instrumental do período, como apontam recentes pesquisas sobre esse período. Ver GOMES, Marcelo Silva. (2010)
    Samba- jazz aquém e além da Bossa Nova: Três arranjos para Céu e Mar de Johnny Alf. Dissertação de Doutorado - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. São Paulo.
  • 5
    Embora a canção apresentada escape ao período histórico estudado, ou seja, ela não pertence mais ao período pós-bossa-nova, mas ao momento posterior à "Tropicália", não deixa de ter também pontos em comum com o assim chamado "Clube da Esquina". Caetano Veloso, citado por BORGES, Marcio (1996, p.14)
  • 6
    Utilizei essa terminologia no meu livro (TINÉ, 2011). Tal ferramenta terminológica e, portanto analítica, se mostrou frutífera, por exemplo, na abordagem de obras como a da maestrina norte-americana Maria Schneider. Ver SILVEIRA, Juliana.
    O Estilo Maria Schneider: Processos Composicionais em "Hang Gliding". TCC. FASM: São Paulo, 2011.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      18 Jul 2012
    • Aceito
      10 Mar 2013
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