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O corpo e o contemporâneo: entre o princípio do prazer, o ascetismo e a áskesis 1 1 Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de S. F. Farah (Tikinet) - leda.farah@terra.com.br

El cuerpo y lo contemporáneo: entre el principio de placer, el ascetismo y la áskesis

Resumo

O presente trabalho apresenta um debate sobre o estatuto do corpo na contemporaneidade. Parte da premissa de que esse objeto se encontra na tensão entre o princípio do prazer, fruto dos apelos do hedonismo consumista da sociedade atual, e, por outra parte, do ascetismo corporal, herdado da secularização da formação corporal da ascese puritana. Em ambos os registros se diagnostica uma relação de heteronomia do sujeito com relação ao corpo e ao mundo que habita. Como uma alternativa a essa tensão de caráter heterônomo se postula uma possibilidade de formação corporal humana a partir do registro da áskesis, nos moldes em que fora proposto pelo pensador francês Michel Foucault, ao analisar as escolas do helenismo grego e romano.

Palavras-chave
corpo; prazer; controle; educação da pessoa humana

Resumen

Este artículo presenta un debate sobre el estatuto del cuerpo en la contemporaneidad. Se parte de la premisa de que este objeto radica en la tensión entre el principio del placer, fruto de los atractivos del hedonismo consumista en la sociedad actual y, por otro lado, del ascetismo corporal, heredado de la secularización de la formación corporal del ascetismo puritano. En ambos registros se diagnostica una relación de heteronomía del sujeto en relación con el cuerpo y con el mundo que habita. Como alternativa a esta tensión heterónoma, se postula una posibilidad de formación del cuerpo humano a partir del registro de la áskesis, tal como lo propuso el pensador francés Michel Foucault, al analizar las escuelas de helenismo griego y romano.

Palabras-clave
cuerpo; placer; control; educación de la persona humana

Abstract

This paper presents a debate about the status of the body in contemporary times. It starts from the premise that this object lies in the tension between the pleasure principle, as a result of the appeals of consumerist hedonism in today's society, and, on the other hand, of body asceticism, inherited from the secularization of the body formation of Puritan asceticism. In both records a relationship of heteronomy of the subject is diagnosed in relation to the body and the world that it inhabits. As an alternative to this heteronomous tension, a possibility of human body formation is postulated from the registration of the áskesis, in the way it was proposed by the French thinker Michel Foucault, when analysing the philosophical schools of Greek and Roman Hellenism.

Keywords
body; pleasure; control; Education of the human person

Introdução

Admitir nossa historicidade, que ela nos é constitutiva – “somos história”, afirma Octávio Paz – nos gera um sentimento ambíguo. Por um lado, uma sensação de liberdade, ao rompermos com os modelos rígidos, preconcebidos, prontos para “aplicar”. Por outro lado, experimentamos uma sensação de insegurança gerada pela necessidade constante de fazer escolhas, responder por elas sem certezas e conviver com a provisoriedade das novidades constantes. No primeiro caso, nosso “mal-estar” advinha do excesso de ordem e de falta de liberdade. No segundo caso, advém do excesso de liberdade e da ausência de ordem (Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar.). No interior deste panorama vivemos nossa condição humana.

Coerente com a historicidade a que nos referíamos anteriormente, também a condição humana está atravessada por ela; logo, ser humano é um “sendo”, não é uma substância fixa, é um “ser-no-mundo”, constitui-se nessa relação com o mundo, que é também histórica – é, portanto, um ser mutável e que se manifesta em contextos singulares. Iniciamos, então, por perguntar: que singularidade tem o mundo contemporâneo?

É sobre algumas características deste mundo, que alguns chamam pós-moderno ou de modernidade tardia, que gostaríamos de trazer algumas considerações. Para isso vamo-nos valer do texto introdutório de Zygmunt Bauman em seu livro O mal-estar na pós-modernidade. Este autor toma como referência a tese de Freud de que a civilização se edifica sobre uma renúncia pulsional (Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar.). “Sem coerção não há civilização” afirma Freud (segundo Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar., p. 8), ou seja, deixados a nós mesmos, não nos tornamos humanos, lembrando Kant. Humanos que buscam seus prazeres na elaboração da energia pulsional nos marcos civilizatórios, e não no mundo animal, nos instintos.

Freud (referido por Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar.) enfatiza que os prazeres da vida civilizada “vêm num pacote fechado com os sofrimentos, a satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião” (p. 8). Neste quadro, o “princípio do prazer” se dobra ao “princípio de realidade”. O homem civilizado abriu mão de um “quinhão das suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança” (Freud, citado por Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar., p. 8). O que, obviamente, gera uma sensação de “mal-estar” (daí o título da obra de Freud: O mal-estar na civilização). Mal-estar que deriva de um “excesso de ordem” que tem como contrapartida a “escassez de liberdade”.

Essa estrutura entrou em crise. Crise que podemos denominar “crise da modernidade”. Crise de uma forma de ordenar o mundo. É esse o quadro contemporâneo no qual “somos humanos”. Nas palavras de Bauman (1998)Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar.,

nossa hora ... é a da desregulamentação. O princípio de realidade, hoje, tem de se defender no tribunal de justiça onde o princípio de prazer é o juiz que a está presidindo.... A compulsão e a renúncia forçada, em vez de exasperante necessidade, converteram-se numa injustificada investida desfechada contra a liberdade individual. (p. 9)

No entanto, esse movimento não deve ser entendido como uma via de mão única, mas a partir da sua ambiguidade constitutiva, marcada pela tensão entre a profecia do fim das certezas, pautada na defesa das diferenças (que nem sempre sinalizam um horizonte de diálogo), na exaltação da experimentação corporal e na crítica radical ao humanismo, e o professar da necessidade de certezas absolutas para fundar a vida social, muitas delas referenciadas em crenças (quase) religiosas ou princípios religiosos secularizados. O império do hedonismo também pode ser compreendido a partir de outra chave de leitura. Michel Foucault, em um texto datado de 1975, afirmara que a lógica de investimento do poder sobre o corpo se altera, na contemporaneidade, de uma lógica de controle-repressão para uma outra, calcada no princípio do controle-estimulação (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica del poder. La Piqueta.). A aparente libertação do corpo seria objeto da captura pelo poder a partir de um outro modo de normalização, desta vez pautada pelo investimento nos princípios estéticos, tornados valores morais: “deves ser belo!”, assujeitado aos valores estéticos contemporâneos, assumindo para tal fim um modo de vida definido de maneira heteronormativa. Vejamos o que nos diz o nosso autor:

El cuerpo se ha convertido en el centro de una lucha entre los niños y los padres, entre el niño y las instancias de control. La sublevación del cuerpo sexual es el contraefecto de esta avanzada. ¿Cómo responde el poder? Por medio de una explotación económica (y quizás ideológica) de la erotización, desde los productos de bronceado hasta las películas porno... En respuesta también a la sublevación del cuerpo, encontraréis una nueva inversión que no se presenta ya bajo la forma de control-represión, sino bajo la de control-estimulación: «¡Ponte desnudo... pero sé delgado, hermoso, bronceado!» A cada movimiento de uno de los adversarios responde el movimiento del otro.

(Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica del poder. La Piqueta., p. 105)

O diagnóstico foucaultiano de meados dos anos 70 do século XX continua atual e, certamente, se radicaliza a partir das inúmeras práticas de intervenção técnica no corpo, bem como da medicalização da beleza (Poli Neto & Caponi, 2007Poli Neto, P., & Caponi, S. N. (2007). A medicalização da beleza. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 11(23), 569-584.). O corpo se encontra tensionado também por um poderoso investimento do poder, para o seu assujeitamento a uma vida normalizada, porque conforme a (hetero)normatividade biomédica. Assim, esses dois polos devem ser entendidos como os vetores de um campo de tensão no qual se desenvolve o projeto tardo-moderno, ou da pós-modernidade. Esse campo de tensão será o objeto do presente texto, sinalizando suas luzes e sombras. Ainda, tensionaremos esses dois polos com a ideia de ascetismo proposta por Michel Foucault, quando da análise do helenismo greco-latino.

Sobre o tempo presente e ser contemporâneo

Por um lado, nosso tempo parece acreditar que seremos melhores sem as coerções da civilidade que a educação ajuda a promover. Ilusão que pensadores como Kant e Freud não alimentaram, pois acreditavam que é deste exercício coercitivo que emerge o humano.

Nesse novo panorama qualquer objetivo civilizatório que “ainda” se coloque como digno de ser perseguido e realizado só pode ser alcançado “através da espontaneidade, do desejo e do esforço individuais” (Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar., p. 9), revivendo a crença em uma pretensa “mão invisível” que possa orquestrar o somatório dos delírios individuais de sempre mais prazer.

Acerca do mundo contemporâneo, que alguns denominam pós-moderno, ou tardo-moderno, afirma Bauman (1998)Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar.: “os homens e as mulheres ... trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade” (p. 10). Felizmente, porém, essa experiência de troca nos tem ensinado que, como já sabia Freud, segundo reporta Bauman (1998)Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Jorge Zahar.:

Não há nenhum ganho sem perda, e a esperança de uma purificação admirável dos ganhos a partir das perdas é tão fútil quanto o sonho proverbial de um almoço de graça – mas os ganhos e perdas próprios a qualquer disposição da condição humana precisam ser cuidadosamente levados em conta, de modo que o ótimo equilíbrio entre os dois possa ser procurado, mesmo se (ou, antes, porque) a sobriedade e sabedoria duramente conquistadas nos impedem, aos homens e mulheres pós-modernos, de nos entregar a uma fantasia sobre um balanço financeiro que tenha apenas a coluna de créditos. (p. 10)

Bauman, inspirado em Freud, nos permite compreender algumas características do tempo presente que nos tocou viver. Mas que relação temos com este tempo? Em outras palavras, o que significa ser contemporâneo? Esta questão é colocada por Agamben em uma de suas conferências, e nele encontramos apoio. O autor busca uma primeira compreensão do tema em Nietzsche, que concebe a contemporaneidade como uma desconexão e uma dissociação com o presente. Para Agamben (2009)Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos.:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o seu tempo. (pp. 58-59)

Essa não coincidência não significa um apelo nostálgico, uma fuga do seu tempo, mas uma relação singular com o próprio tempo, aderindo e distanciando-se uma dissociação e um anacronismo, afirma Agamben (2009)Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos., pois entende ele que “aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela” (p. 59).

Mais adiante, ensaia outra definição do contemporâneo, na qual afirma que “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (Agamben, 2009Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos., p. 62). Importa aqui destacar o que entende o autor por “perceber o escuro”. Procurando elaborar uma resposta, afirma ele que “contemporâneo” é aquele que “não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade” (pp. 63-64). É aquele que se sente interpelado pelo escuro do seu tempo mais do que pelas luzes, que, de certa forma, a todos seduz. Por isso, afirma o autor, “contemporâneos são raros” (p. 65).3 3 Arriscando um diagnóstico do nosso tempo, poderíamos afirmar que os holofotes do presente se voltam para o indivíduo, produzindo a alucinação do individualismo, e do corpo, reverenciado em seu culto exacerbado na denominada “corpolatria”. Luminosidade que obscurece a condição humana construída a duras penas nas entrelinhas da história.

Ainda acerca do que significa ser contemporâneo, podemo-nos perguntar novamente: que aspectos obscuros esconde essa luminosidade lançada sobre o corpo? Costa, retomando as ideias de Ivan Illich, interpela a moral dos tempos presentes e denuncia a sujeição do corpo ao universo da troca e da mercadoria (Costa, 1995Costa, J. F. (1995). Felicidade de Pacotilha. In J. F. Costa (Org.), Razões públicas, emoções privadas (pp. 39-54). Rocco., p. 41). A idolatria do corpo (corpolatria) e do universo de sensações que o acompanham constitui-se, segundo este pensador, em obstáculo à liberdade humana. Afirma ele que

a obsessão em sobreviver e evitar todo sofrimento a qualquer custo redundou em alienação do mundo e de si mesmo. Não temos, é claro, por que sofrer desnecessariamente ou abrir mão de ser felizes. Mas, quando a felicidade se torna mero interesse pela sobrevida e pela busca incessante de prazer, o resultado é a perene insatisfação consigo, a indiferença para com o outro e o esvaziamento do próprio sentido da vida. O bem-estar do corpo se converteu no mal-estar da ética. (p. 41)

Esse narcisismo produz um efeito perverso, ao nos descolar da tradição que nos constitui, a qual, apesar da relação crítica que podemos ter com ela, configurou o mundo humano, a cultura, a sociabilidade a duras penas construída pelo esforço altruísta de reconhecer algum lugar para o “nós”. Nesse quadro, porém,

o outro não interessa. Se ele é um duplo de minha imagem sociomoral, torna-se um provedor de sensações, devorado nos limites do vampirismo emocional; se é um estranho, um desigual, sua vida ou morte nada significam para mim. O deserto é o destino do “eu de escambo” [ênfase no original] e do corpo cego ao mundo.

(Costa, 1995Costa, J. F. (1995). Felicidade de Pacotilha. In J. F. Costa (Org.), Razões públicas, emoções privadas (pp. 39-54). Rocco., p. 42)

Podemos afirmar que vivemos hoje um novo dualismo, o qual preconiza que o sujeito deve ter o controle total sobre seu corpo, para que possa atingir o ideal proposto em uma determinada sociedade. O corpo passa a ser, hipoteticamente, uma escolha.

Soma-se a isso que a noção de “normalidade” tem sofrido alterações significativas nos últimos tempos, movimento que aponta para um estreitamento, o que faz a alegria da indústria farmacológica – afinal, ao lado da notícia negativa de que você não é “normal”, vem a notícia “positiva” (para quem?) de que existe uma medicação disponível para enquadrá-lo na situação de normalidade. Christopher LaneLane, C. (2008). Entrevista à Folha de S. Paulo, 20 de julho de 2008, Caderno Mais!, p. 5., em entrevista à Folha de S. Paulo (2008), nos traz um bom exemplo: “O ideal de extroversão torna-se uma exigência. E quem não é extrovertido se sente estranho, carente de alguma cura. A indústria deveria aliviar o sofrimento, mas gera um novo sofrer”. A respeito dos imperativos de normalidade, acrescenta: “As pessoas são mais felizes quando podem se expressar como são”. O que os imperativos de toda ordem tornam cada vez mais difícil4 4 Esses imperativos estão presentes maciçamente nas imagens que circulam em nosso meio. Imagens que têm um forte apelo em nosso imaginário. .

Partindo da característica que Bauman (2001)Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Jorge Zahar. percebe na sociedade pós-moderna, a qual “envolve seus membros primariamente em sua condição de consumidores, e não de produtores” (p. 90), teremos mais alguns desdobramentos que interferem nas nossas percepções.

A vida organizada em torno do papel de produtor tende, segundo Bauman (2001)Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Jorge Zahar., a ser normativamente regulada, porém, diferentemente, a vida organizada em torno do consumo não demanda normas, orientando-se “pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis – não mais por regulação normativa” (p. 90).

Seguindo a proposição de distinguir uma “sociedade dos produtores” e uma “sociedade dos consumidores”, Bauman afirma que a primeira coloca a saúde como o padrão a ser atingido pelos seus membros, já a segunda orienta-se pelo ideal da aptidão (fitness).5 5 Esta noção se aproxima do conceito de helthism e das práticas bioascéticas, conforme veremos adiante, a partir da análise de Francisco Ortega. Embora tomados muitas vezes como sinônimos, uma vez que perspectivam objetivos vinculados ao cuidado com o corpo, Bauman (2001)Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Jorge Zahar. enfatiza que “saúde e aptidão pertencem a dois discursos muito diferentes e apelam a preocupações muito diferentes” (p. 91).

Saúde, segundo o autor, é um conceito normativo, que nos permite delimitar a “norma” e a “anormalidade”, e permite também, mesmo que aproximativamente, descrever e medir uma condição corporal e psíquica compatível com as demandas sociais, que, em uma sociedade de produtores, tendem a ser constantes e firmes. Nas palavras de Bauman (2001)Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Jorge Zahar.,

“ser saudável” significa na maioria dos casos “ser empregável”: ser capaz de um bom desempenho na fábrica, de “carregar o fardo” [ênfases no original] com que o trabalho pode rotineiramente onerar a resistência física e psíquica do empregado. (p. 91)

Já o estado de “aptidão” carece, segundo Bauman (2001)Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Jorge Zahar., dessa solidez e não pode ser fixado e circunscrito com precisão. “Estar apto” significa, segundo o autor, “ter um corpo flexível, absorvente e ajustável, pronto para viver sensações ainda não testadas e impossíveis de descrever de antemão” (p. 91). Estar apto é poder sempre mais, diferentemente da saúde, que diz respeito a seguir normas, “a aptidão diz respeito a quebrar todas as normas e superar todos os padrões” (p. 92).

Como a aptidão é, em última instância, inalcançável, sua busca tornou-se, segundo Bauman (2001)Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Jorge Zahar., “um estado de auto-exame minucioso, auto-recriminação e auto-depreciação permanentes, e assim também de ansiedade contínua” (p. 93). Esta lógica tem “contaminado” nosso entendimento de saúde e, como decorrência, afirma Bauman: “o cuidado com a saúde, contrariamente à sua natureza, torna-se estranhamente semelhante à busca pela aptidão: contínuo, fadado à insatisfação permanente, incerto quanto à adequação de sua direção atual e gerando muita ansiedade” (p. 94). Essa compreensão levou Ivan Illich (citado por Bauman, 2001Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Jorge Zahar.) a afirmar que “a própria busca da saúde tornou-se o fator patogênico mais importante” (p. 94).

O corpo e o ascetismo intramundano

Entendemos ser relevante não esquecer que as raízes da relação com o corpo na modernidade estão dadas também pela tradição da “ética do trabalho”, expressão secularizada do ascetismo intramundano, elemento constitutivo da ética protestante. É interessante lembrar neste momento que a relação com o corpo e com os prazeres foi marcada no seu nascedouro por essa configuração ética, a partir da disputa entre os Reis Jaime I e Carlos I e os puritanos, em torno da prática esportiva aos domingos. Max Weber nos lembra que, com o objetivo de fragilizar o movimento puritano, que ameaçava a hegemonia do poder real inglês, o rei Carlos I tornou obrigatória a leitura do “Book of sports” em todos os púlpitos e permitiu a prática esportiva aos domingos, com a expectativa de que os prazeres do corpo sobrepujassem os deveres religiosos e colocassem em risco a ascese puritana, diminuindo assim a inobservância e o questionamento da autoridade real por parte dos puritanos (Weber, 2004Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Companhia das Letras.). No entanto, a resposta puritana não demorou, e, perante a constatação de que o fenômeno esportivo e o jogo eram adversários a serem respeitados, a prática esportiva foi normatizada e normalizada, funcionalizando o esporte para fins produtivos, pautando-o no princípio da vida ascética e na lógica da ética do trabalho. Vejamos o que Weber (2004)Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Companhia das Letras. nos diz sobre a prática esportiva em meios puritanos:

Apenas devia servir a um fim racional: à necessária restauração da potência física. Já como simples meio de descontrair e descarregar impulsos indisciplinados, aí se tornava suspeito e, evidentemente, na medida em que fosse praticado por puro deleite ou despertasse fissura agonística, instintos brutais ou o prazer irracional de apostar, é evidente que o esporte se tornava simplesmente condenável. (p. 152)

Seguindo essa pista e revisando-a a partir das práticas contemporâneas de desenvolvimento muscular, de body-building (literalmente “construir o corpo”), Courtine (1995)Courtine, J-J. (1995). Os stakhanovistas do narcisismo – body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In D. B. Sannt’anna (Org.), Políticas do corpo (pp. 81-114). Estação Liberdade. sinaliza para a relação de continuidade do ascetismo intramundano para o desenvolvimento das práticas corporais na atualidade. Nesse sentido, o autor destaca que na contemporaneidade o corpo se tornou o primeiro objeto a ser “gerenciado”, e que sua apresentação conforme os parâmetros ditados pelo mercado do corpo, centrados na força e na beleza, se tornou um imperativo. Ainda, Courtine nos mostra que esse movimento se realiza a partir da secularização de princípios éticos puritanos que possibilitam o deslocamento da salvação do homem centrada na alma, para situá-la no plano do corpo e suas potências, como lugar privilegiado do investimento do ser humano para fins salvíficos, uma vez que a saúde e a rigidez muscular se tornam sinônimos de retidão moral cristã, a partir do movimento conhecido como “Cristandade Muscular” (Muscular Christianity). Assim, as práticas de lazer incorporam no seu cerne o princípio do trabalho, o que nada tem de hedonista, porém muito de narcisista. Nas palavras do autor:

Esse deslocamento das coações supõe uma outra economia dos gozos, uma divisão diferente dos prazeres e das penas. O indivíduo, sem nenhuma dúvida, ampliou seu potencial de ação, e o corpo ganhou uma liberdade inédita de movimento. Mas se o exercício esportivo é uma alegria, ele é também um dever, o que não ocorre sem assimilar a sua filiação à prática religiosa. Nele, o organismo é o objeto de uma gestão ansiosa. A saúde, em que os puritanos de outrora não viam mais do que um bem a conservar, tende a se transformar no objeto de uma atividade febril. A aparência, que a ética protestante queria austera, é fruto de um labor narcísico; o invólucro corporal torna-se o resultado de uma atenção obsessiva, com ritos quase religiosos de um culto profano.

(Courtine, 1995Courtine, J-J. (1995). Os stakhanovistas do narcisismo – body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In D. B. Sannt’anna (Org.), Políticas do corpo (pp. 81-114). Estação Liberdade., p. 102)

Embora a análise de Courtine esteja referenciada em um contexto geográfico específico – os Estados Unidos da América – e em práticas corporais definidas, as práticas de body-building, entendemos que essas podem ser consideradas um paradigma – no sentido agambeniano, isto é, como um caso que, retirado da série, é emblemático e representativo de toda a série (Agamben, 2008Agamben, G. (2008). Signatura rerum: sobre el método. Adriana Hidalgo.) – das práticas corporais contemporâneas e da relação do homem com o corpo no nosso mundo. Ou, talvez melhor, como um dos polos que criam um campo em torno das práticas corporais e da relação do homem contemporâneo com o corpo.

Ampliando a análise anterior, importa sublinhar que o corpo, objeto de práticas de ascetismo corporal referenciadas em ideais normativos pautados pela biomedicina, situa-se no registro do que Ortega (2003)Ortega, F. (2003). Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos Saúde Coletiva, 11(1), 59-77. chamou de práticas de ascese corporal, das quais resulta a produção de bioidentidades. Nesse contexto, a relação com o corpo é marcada por um assujeitamento do corpo (e do sujeito) aos ditames da “normalidade” biomédica, elevados à condição de imperativo moral, cuja observância se torna uma obsessão. Nesse registro, ao contrário do que sinalizamos anteriormente, o prazer é elevado à condição de mal moral, que deve, a todo custo, ser evitado. O império do healthism orienta-se pela ideia de que viver equivale a seguir a norma biomédica como norma social, o modo de produção da biosociabilidade na contemporaneidade. Esse império está constituído por práticas ascéticas de controle e regulação dos corpos, de governo dos corpos. Para Ortega (2003)Ortega, F. (2003). Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos Saúde Coletiva, 11(1), 59-77.:

As práticas ascéticas implicam em processos de subjetivação. As modernas asceses corporais, as bioasceses, reproduzem no foco subjetivo as regras da biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de cuidados corporais, médicos, higiênicos e estéticos na construção das identidades pessoais, das bioidentidades. Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna. Uma característica fundamental dessa atividade é a autoperitagem. O eu que se pericia tem no corpo e no ato de se periciar a fonte básica de sua identidade. (p. 64)

As práticas bioascéticas são apresentadas a partir da noção de autonomia, porém esse conceito de autonomia situa-se na esteira da necessidade: é propalada a autonomia para “fazer o bem”, o que significa, por exemplo, o dever de adotar um “estilo de vida ativo”, de adequar-se e de sujeitar-se à norma. O sujeito torna-se vigia de si mesmo, e de forma permanente. Esse novo modo de produção da subjetividade não isenta o modelo centrado no indivíduo narcísico, pelo contrário está calcado numa lógica dessa natureza, pois combina de maneira complexa o narcisismo e o imperativo da disciplina e do controle corporal. O autor contrapõe as práticas bioascéticas às práticas ascéticas da Antiguidade greco-latina, justamente por seu caráter individualista e apolítico, uma vez que nelas o Outro6 6 Ao nos referirmos à noção de “Outro”, o fazemos a partir da compreensão extraída da leitura do terceiro domínio da obra foucaultiana, o “ser-consigo” (Deleuze, 1992). Nesse momento da sua obra, o Outro é concebido como aquele que permite ao sujeito estabelecer uma relação outra consigo mesmo e com o mundo, que pressupõe uma abertura à palavra do Outro e um permanente devir outro de si mesmo. Somos sabedores do lugar que teve a revisão da obra lacaniana no pensamento tardio de Michel Foucault. Sugerimos, nesse sentido, a consulta do breve, porém importante texto datado de 1981: Lacan, o “Libertador” da psicanálise (Foucault, 2014). A noção acima referida se inscreve nesse movimento, embora o próprio autor não a referencie no registro teórico lacaniano. não tem lugar, e nelas o mundo comum se esvazia. As palavras a seguir são eloquentes: “Perdemos o mundo e ganhamos o corpo. O interesse pelo corpo gera o desinteresse pelo mundo. A hipertrofia muscular se traduz em atrofia social” (Ortega, 2003Ortega, F. (2003). Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos Saúde Coletiva, 11(1), 59-77., p. 73).

Devemos sublinhar, ainda, que neste caso, embora vivamos uma relação claramente normativa com o corpo, marcada pela repressão e pelo controle dos prazeres, não estamos situados em um espaço em que a norma seja considerada como fruto de elaboração do sujeito na relação com o outro. Se a relação com o corpo está pautada em imperativos que são princípios teológicos secularizados, não é o ser humano que se dá a norma, mas a norma, apresentada como mandato divino, é sempre de caráter heterônomo. Assim, os dois polos, a exaltação da vivência dos prazeres sem custo, a “custo zero”, e o caráter imperativo de gerenciar o próprio corpo a partir dos imperativos da potência e do embelezamento corporal, mostram-se vetores que compartilham de um elemento comum, qual seja, ter como horizonte retirar da esfera da responsabilidade humana a elaboração de uma relação normativa com o corpo e suas expressões e com o Outro.

A áskesis e um modo outro de relação com o corpo e a vida

Um problema que tem se instalado no campo do debate da educação do corpo é a questão da dualidade. Consideramos recorrente no campo uma crítica ao dualismo, que teria sido herdado da tradição “platônico-cartesiana”, fazendo recair nele a origem de boa parte dos problemas implicados na formação humana que ocorre na educação do corpo e chegando a negar qualquer possibilidade de pensar a formação humana a partir da dualidade. Esse problema está presente na argumentação anterior, que, por um lado, exalta o corpo sem coerção e, por outro, só o considera como objeto de controle. Entendemos que o problema reside no modo em que se elabora a dualidade, e não no fato de haver dualidade. E mais, na maneira em que a subjetividade é implicada na elaboração da forma de vida que vive, o que pressupõe um fundamento ético na elaboração da relação. Ao pensarmos a relação entre corpo, ética e subjetividade, encontramos no conceito de ascese, ou áskesis, nos moldes em que foi analisado pelo pensador francês Michel Foucault, um potente horizonte de possibilidades.

No imaginário social ocidental moderno, o significante ascese está fortemente relacionado à ideia de ascetismo cristão – principalmente o ascetismo do cenóbio católico e o ascetismo intramundano formulado pelo puritanismo – e suas formas secularizadas, conforme discutimos acima. Porém, o conceito de áskesis, nos moldes da elaboração da Antiguidade clássica grega e do helenismo grego e romano, adquire uma significação completamente outra. Vejamos o que afirma Foucault (2006)Foucault, M. (2006). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes.:

Digamos esquematicamente: onde entendemos, nós modernos, a questão “objetivação possível ou impossível do sujeito em um campo de conhecimentos”, os antigos do período grego, helenístico e romano entendiam “constituição de um saber sobre o mundo como experiência espiritual do sujeito”. E onde nós modernos entendemos “sujeição do sujeito à ordem da lei”, os gregos e os romanos [o helenismo] entendiam “constituição do sujeito como fim último para si mesmo, através e pelo exercício da verdade” [ênfases no original]. (p. 385)

Portanto, temos uma relação antinômica entre a noção hegemônica de ascese da tradição ocidental, que tem forte enraizamento na modernidade, e aquela cunhada pelo helenismo grego e romano. Nas palavras aqui citadas temos os princípios-chave da compreensão que norteia a leitura foucaultiana: uma outra relação com a verdade, uma vez que nesta concepção subjetiva-se a verdade a partir da prática de si – portanto, de exercícios feitos de maneira disciplinada e permanente –; e uma outra relação com o poder (e com a ética), na medida em que não se trata de uma adequação da ação à lei moral e jurídica (e científica), mas de produção de si como sujeito ético, de uma dobra do poder sobre si. Decorre do que dizemos que o terceiro elemento da tríade foucaultiana, o sujeito, também terá uma configuração outra, uma vez que o que emerge neste caso é o si ou a subjetividade, a única palavra com um significado mais ou menos semelhante ao bíos grego (Foucault, 2016Foucault, M. (2016). Subjetividade e verdade. Curso no Collège de France (1980-1981). Martins Fontes.), a partir da prática refletida da liberdade (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In M. Foucault, Ética, sexualidade, política (pp. 258-280). Forense Universitária.).

Ao diferenciar a ascese cristã (do cristianismo cenobítico) daquela do helenismo, são apontados três elementos: 1) enquanto a ascese cristã tem como objetivo final a renúncia a si mesmo, a ascese filosófica grega objetiva colocar-se a si mesmo como objeto e fim da própria existência; 2) no cristianismo, colocam-se no centro das práticas os sacrifícios e demais atos que impliquem e realizem a renúncia a si mesmo, porém nas práticas do helenismo se busca dotar-se de algo que não se possui, algo como um equipamento de defesa contra as vicissitudes da vida, para lidar com o acontecimento, o que os gregos denominavam paraskeué; 3) por fim, enquanto o cristianismo objetiva a submissão do indivíduo à lei, o helenismo busca ligá-lo à verdade, à verdade de si mesmo, que não implica a revelação ou des-coberta de uma essência, mas a construção de si a partir da relação ética com a verdade artesanalmente construída na relação com o mestre e com os amigos, com aqueles com quem se partilha a existência (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes., p. 400).

A dualidade apresentada implica em duas figuras opostas que representam esses dois modos de subjetivação: o atleta cristão e grego. A figura do atleta importa na medida em que, em ambos os registros, estamos diante da presença de um treinamento permanente para enfrentar a adversidade, porém a forma e o objeto do enfrentamento são diametralmente opostos. O atleta cristão deve superar-se a si mesmo e estar em permanente alerta, por ter um inimigo que está sempre à espreita, inimigo esse que é ele próprio, por causa da força das tentações do demônio, da natureza decaída, do caráter pecaminoso; por outro lado, o atleta grego é um atleta da espiritualidade antiga, um atleta da vida, da prática permanente, que tem por objeto a transformação de si, bem como está pronto para a luta contra o acontecimento. Para Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Las tecnologías del yo. Paidós.: “El atleta de la vida se equipa mediante el logos” (p. 95). Isto é o resultado da boa ascese.

A paraskeué, que caracteriza o atleta da vida filosófica, o equipamento que permite lidar com os avatares da vida, com o acontecer, está constituído por logói (discursos), concebidos como discursos racionais in-corporais (tornados corpo) que permitem conduzir a ação, ao ponto de fazer parte do modo de vida. Assim, eles possibilitam o socorro do sujeito no acontecer porque estão in-corporados no modo de viver. Portanto, é do lógos que estamos tratando, e não de discursos não racionais. Contudo, o movimento de Foucault neste momento é o de tratar a vida racional, não nos moldes que predominou na história da tradição do pensamento ocidental enquanto racionalidade técnico-instrumental, mas mostrar um outro modo de racionalidade que comporte a dimensão ético-estética do existir, e nele a relação entre corpo e alma seja situada de outra maneira.

Os logói a que nos referíamos não são discursos descolados da materialidade da vida, mas, pelo contrário, são “enunciados materialmente existentes” (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes., p. 389). Vale indicar que o próprio discurso é, para o pensador francês, uma materialidade. Assim, é o real do discurso7 7 Neste caso nos referimos ao problema proposto por Foucault na relação entre o real do discurso, entendido a partir da noção de jogos de verdade, e o real. Para o autor o real existe enquanto tal, e o discurso não é nem representação, nem ideologia, nem guarda com ele uma relação lógica. O que está em questão é, entretanto, como em determinado momento histórico, e sem qualquer necessidade histórica, um determinado jogo de verdade, que passa a valer para definir o que vale como verdadeiro e como falso, entra em relação com o real e tem efeitos nele, passa a se inscrever nele. A questão posta pelo autor é a seguinte: “Sendo o real o que ele é, quais foram as condições improváveis, as condições singulares que fizeram, com relação a esse real, um jogo de verdade poder surgir, certamente com suas razões e suas necessidades que não são simplesmente o fato de as coisas em questão existirem? (Foucault, 2016, p. 198). Aqui novamente encontramos uma noção apresentada por Foucault, na qual se ouvem ecos lacanianos, porém não referenciados, conforme havíamos sinalizado na nota anterior (vide nota 5). que se inscreve no real, a partir da sua incorporação, de se tornar corpo, na medida em que o princípio de verificação da verdade dos discursos é a sua ressonância na ação, no modo de viver do sujeito. Seguindo o autor: “São proposições, proposições, como a própria palavra logos o indica, fundadas na razão. Fundadas na razão, isto é, ao mesmo tempo em que são razoáveis, são verdadeiras e constituem princípios aceitáveis de comportamento” (p. 390). Aqui a racionalidade não é entendida como um instrumento que permite a quem o possui fazer procedimentos formais de verificação da verdade ou falsidade de proposições, a partir de um método lógico, mas como uma dimensão constitutiva do sujeito, a partir da qual é possível o vir-a-ser da subjetividade que se produz na incorporação ativa de princípios racionais verdadeiros.

Esses princípios não são fruto de uma elaboração solipsista, nos moldes de um eremita solitário que, no seu afastamento do mundo urbano, elabora um saber sobre o mundo, mais ou menos como seria a representação do imaginário social moderno. O ascetismo analisado por Foucault só se realiza na relação entre o mestre e o discípulo, pois é na relação com o Outro que a ascese se realiza – nunca na relação de isolamento com o mundo. Para tanto, são indicadas três técnicas a serem seguidas: a escuta, a leitura e o ato de falar. A relação do discípulo com o mestre é de escuta atenta, o silêncio é um estado que deve ser observado para poder entrar em relação com a verdade. A escuta é o que permitirá recolher o lógos, aquilo que é dito pelo mestre de verdadeiro. Ao mesmo tempo ela permite discernir e persuadir o ouvinte da veracidade do que é dito, da verdade contida no lógos (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes., p. 402). A escuta atenta permitirá guardar a mensagem de modo tão profundo que será possível tê-la à mão quando necessário, diante das circunstâncias que se apresentarem. Ela pressupõe um corpo em estado de calma – o que não é o mesmo que um corpo disciplinado) –, um estado corporal que permita a recepção da mensagem, o que seria inviabilizado por um corpo em agitação.

A segunda técnica, a leitura, difere diametralmente da relação com o entendimento que temos na modernidade, porque neste caso não se trata de compreender o sentido de um texto ou de apropriar-se de um conhecimento formal, mas de constituir para si um equipamento de enunciados verdadeiros. A leitura é, em realidade, lecto-escritura, uma vez que é na escrita que se assimilam as proposições verdadeiras que se pensam. Escreve-se para dar forma na própria vida àquilo que se pensa, levando a implantar a verdade que se pensa na alma e no corpo, a tornar o enunciado verdadeiro um hábito ou uma virtualidade física. Foucault (2006)Foucault, M. (2006). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes. nos diz sobre a leitura:

O exercício de leitura não era fácil: não se tratava de ler simplesmente com os olhos. Para se chegar a destacar as palavras como convinha, era-se obrigado a pronunciá-las, pronunciá-las em voz baixa. De sorte que o exercício de ler, escrever, reler o que se tinha escrito e as anotações feitas, constituía um exercício quase físico de assimilação da verdade e do lógos a se reter. (p. 432)

Vemos nessas palavras a relação dialética entre corpo e alma que se elabora neste modo de relação com a verdade. O corpo não é uma mera res extensa que ocupa o lugar de empecilho para o conhecimento, cujo acesso é exclusivo da alma. Pelo contrário, o corpo é a caixa de ressonância da verdade, o corpo é condição de possibilidade para a verdade ser incorporada ao existir, e é também instância – se quisermos usar um termo de modo sui generis – de verificação da verdade, porque o enunciado só é verdadeiro quando é possível ser vivido, quando se materializa corporalmente na ação, ação essa que só encontra ancoragem na dimensão ética.

Por fim, a palavra. Neste caso, há uma clara relação assimétrica no uso da palavra. O lugar do discípulo é o do silêncio, uma vez que a verdade por inteiro se encontra no discurso do mestre (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes., p. 439). O exercício do silêncio é de fundamental importância para o desenvolvimento do lógos, algo que, para a pedagogia moderna e, particularmente, para a contemporânea, pareceria uma contradição, por estar mormente pautada por uma permanente incitação a falar, a expressar opiniões. Porém, o uso da palavra pelo mestre não é dado pela condição estatutária que ele exerce, mas pela sua exemplaridade moral. A autoridade do mestre advém do modo de vida que ele leva, nos moldes, por exemplo, que Sócrates vivera. A fala do mestre é uma fala franca, aquilo que Foucault, a partir da análise dos antigos, chamou de parrhesía. Ela é sempre produzida para a formação do Outro, a partir da verdade que o mestre considera que é mister que o discípulo receba:

É a abertura que faz com que se diga, com que se diga o que se tem a dizer, com que se diga o que se tem vontade de dizer, com que se diga o que se pensa dever dizer porque é necessário, porque é útil, porque é verdadeiro. (p. 440)

Portanto, a verdade do mestre não tem um caráter universal e é dita de forma indistinta para qualquer um, como no caso de uma aula em uma escola moderna, mas é dirigida para um Outro singular para quem se pensa o valor da verdade enunciada para o seu processo formativo, concebido como um devir outro a partir da relação e da in-corporação da verdade.

A modo de síntese e de complemento do que acabamos de dizer, consideramos oportunas as palavras de Candiotto (2006)Candiotto, C. (2006). Foucault: uma história crítica da verdade. Trans/Form/Ação, 29(2), 65-78.:

No processo de subjetivação da verdade a partir das práticas ascéticas há sempre a tensão ética inacabada entre o que alguém já deixou de ser e [ênfase no original] o que ele está se tornando, na verdade uma ética da inquietude irredutível à angústia provocada pela cisão do sujeito das morais universalistas. (p. 72)

Considerações finais

Assim, chegamos a este início de século com um panorama que nada tem de ordenado, mas que está em estado de liquidez, para falar como Bauman. Nessa liquidificação do moderno emergem tendências que nos levam a nos confrontar com a encruzilhada na qual a condição e a subjetividade humana se encontram na contemporaneidade. Se, por um lado, vemos os apelos à vivência irrestrita dos prazeres do corpo, por outro, assistimos a um projeto de controle do corpo a partir da sua crescente exposição e da necessidade do seu adequado gerenciamento, decorrentes dos imperativos do desempenho e do embelezamento corporal. Em ambos os registros enfrentamos o problema da constituição da subjetividade humana no confronto com o lugar do corpo na configuração do humano – não é sem dor que a subjetividade poderá emergir, mas tampouco o poderá fazer a partir da “jaula de ferro” que o corpo se tornou na pós-modernidade. Assumir e positivar o “mal-estar” resultante da construção e da instituição da norma como condição poderá ser um caminho em que sempre se estará sujeito a andar num espaço de fronteira, para produzir o tempo presente. A partir daí, poderemos avançar no sentido proposto por Agamben (2009)Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos. para aqueles que pretendem ser contemporâneos do seu tempo:

O contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. (p. 72)

Entendemos que a análise foucaultiana da Antiguidade greco-latina pode ser um horizonte de possibilidades para pensar de um modo outro a formação humana e o lugar do corpo nesse processo formativo – sem ser um manual de como devemos agir, mas um espaço a partir do qual podemos pensar criticamente este nosso presente e nossa relação com ele. Particularmente, entendemos que a indissociabilidade palavra-ética-corpo é um terreno fértil para pensarmos o devir humano de um modo outro.

Esperamos com este percurso, mais diagnóstico que propositivo – muito menos prescritivo –, ter apontado para algumas das questões de quem vive o tempo presente e assume a tarefa de se confrontar com o presente, buscando evidenciar que luzes produzem sombras, e que, diante da escuridão, necessitamos de luzes. Nas ambiguidades deste lusco-fusco vivemos a visibilidade perspectiva da finitude humana, buscando não nos perder na escuridão e nem cegar-nos pelas luzes. Esforço do qual podem emergir as sempre provisórias verdades humanas.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de S. F. Farah (Tikinet) - leda.farah@terra.com.br
  • 3
    Arriscando um diagnóstico do nosso tempo, poderíamos afirmar que os holofotes do presente se voltam para o indivíduo, produzindo a alucinação do individualismo, e do corpo, reverenciado em seu culto exacerbado na denominada “corpolatria”. Luminosidade que obscurece a condição humana construída a duras penas nas entrelinhas da história.
  • 4
    Esses imperativos estão presentes maciçamente nas imagens que circulam em nosso meio. Imagens que têm um forte apelo em nosso imaginário.
  • 5
    Esta noção se aproxima do conceito de helthism e das práticas bioascéticas, conforme veremos adiante, a partir da análise de Francisco Ortega.
  • 6
    Ao nos referirmos à noção de “Outro”, o fazemos a partir da compreensão extraída da leitura do terceiro domínio da obra foucaultiana, o “ser-consigo” (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Conversações. Editora 34.). Nesse momento da sua obra, o Outro é concebido como aquele que permite ao sujeito estabelecer uma relação outra consigo mesmo e com o mundo, que pressupõe uma abertura à palavra do Outro e um permanente devir outro de si mesmo. Somos sabedores do lugar que teve a revisão da obra lacaniana no pensamento tardio de Michel Foucault. Sugerimos, nesse sentido, a consulta do breve, porém importante texto datado de 1981: Lacan, o “Libertador” da psicanálise (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Lacan, o “Libertador” da psicanálise. In M. Foucault, Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria, psicanálise (3ª edição, 3ª tiragem, pp. 329-330). Forense Universitária.). A noção acima referida se inscreve nesse movimento, embora o próprio autor não a referencie no registro teórico lacaniano.
  • 7
    Neste caso nos referimos ao problema proposto por Foucault na relação entre o real do discurso, entendido a partir da noção de jogos de verdade, e o real. Para o autor o real existe enquanto tal, e o discurso não é nem representação, nem ideologia, nem guarda com ele uma relação lógica. O que está em questão é, entretanto, como em determinado momento histórico, e sem qualquer necessidade histórica, um determinado jogo de verdade, que passa a valer para definir o que vale como verdadeiro e como falso, entra em relação com o real e tem efeitos nele, passa a se inscrever nele. A questão posta pelo autor é a seguinte: “Sendo o real o que ele é, quais foram as condições improváveis, as condições singulares que fizeram, com relação a esse real, um jogo de verdade poder surgir, certamente com suas razões e suas necessidades que não são simplesmente o fato de as coisas em questão existirem? (Foucault, 2016Foucault, M. (2016). Subjetividade e verdade. Curso no Collège de France (1980-1981). Martins Fontes., p. 198). Aqui novamente encontramos uma noção apresentada por Foucault, na qual se ouvem ecos lacanianos, porém não referenciados, conforme havíamos sinalizado na nota anterior (vide nota 5).

Referências

  • Agamben, G. (2008). Signatura rerum: sobre el método Adriana Hidalgo.
  • Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios Argos.
  • Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade Jorge Zahar.
  • Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida Jorge Zahar.
  • Candiotto, C. (2006). Foucault: uma história crítica da verdade. Trans/Form/Ação, 29(2), 65-78.
  • Costa, J. F. (1995). Felicidade de Pacotilha. In J. F. Costa (Org.), Razões públicas, emoções privadas (pp. 39-54). Rocco.
  • Courtine, J-J. (1995). Os stakhanovistas do narcisismo – body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In D. B. Sannt’anna (Org.), Políticas do corpo (pp. 81-114). Estação Liberdade.
  • Deleuze, G. (1992). Conversações Editora 34.
  • Foucault, M. (1979). Microfísica del poder La Piqueta.
  • Foucault, M. (2004). A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In M. Foucault, Ética, sexualidade, política (pp. 258-280). Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2006). A hermenêutica do sujeito Martins Fontes.
  • Foucault, M. (2008). Las tecnologías del yo Paidós.
  • Foucault, M. (2014). Lacan, o “Libertador” da psicanálise. In M. Foucault, Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria, psicanálise (3ª edição, 3ª tiragem, pp. 329-330). Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2016). Subjetividade e verdade. Curso no Collège de France (1980-1981) Martins Fontes.
  • Lane, C. (2008). Entrevista à Folha de S. Paulo, 20 de julho de 2008, Caderno Mais!, p. 5.
  • Ortega, F. (2003). Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos Saúde Coletiva, 11(1), 59-77.
  • Poli Neto, P., & Caponi, S. N. (2007). A medicalização da beleza. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 11(23), 569-584.
  • Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo Companhia das Letras.

Editado por

1
Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2019
  • Revisado
    08 Jul 2020
  • Aceito
    03 Set 2020
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