Open-access Comunidades de cinema, comunidades de formação: processos de produção e formação audiovisual de povos e nacionalidades indígenas de Abya Yala1

Comunidades de cine, comunidades de formación: procesos de producción audiovisual y formación de los pueblos y nacionalidades indígenas de Abya Yala

Resumo

Neste trabalho, analisamos a produção e a formação audiovisual de povos e nacionalidades de Abya Yala. A partir de tendências pós-coloniais, dos estudos de cinema e de perspectivas de intelectuais e cosmologias indígenas, conjecturamos que, ao constituírem-se como espaços da experiência, os processos criativos e formativos constituem comunidades de cinema como comunidades de formação (política, étnica, histórica). Com base na experiência das escolas de comunicação e de cinema dos próprios territórios, constatamos que a cena fílmica se amplia como cena histórica, pluriepistêmica e contracolonial, abrem-se espaços para a emergência de sujeitos (emancipados, críticos, reflexivos) e o enraizamento das questões comunitárias nas perspectivas fílmicas, com os processos de produção e formação como mediação de saberes e conhecimentos ancestrais.

Palavras-chave
Colonialidade do ver; Cinemas indígenas; Comunidades de cinema; Comunidades de formação; Abya Yala

Abstract

In this paper we analyze the audiovisual production and formation of the peoples and nationalities of Abya Yala. Based on post-colonial trends, film studies, the perspectives of intellectuals and indigenous cosmologies, we postulate that, by constituting themselves as spaces of experience, the creative and formative processes establish film communities as communities of formation (political, ethnic, historical). From the experience of the communication and film schools in the territories themselves, we see the film scene expanding as a historical, multi-epistemic and counter-colonial scene, opening up spaces for the emergence of subjects (emancipated, critical, reflective) and the rooting of community issues in film perspectives, with production and formation processes mediating ancestral knowledge and know-how.

Keywords
Coloniality of seeing; Indigenous cinemas; Cinema communities; Communities of formation; Abya Yala

Resumen

En esta investigación analizamos la producción y formación audiovisual de los pueblos y nacionalidades de Abya Yala. A partir de las tendencias poscoloniales, los estudios cinematográficos, las perspectivas de los intelectuales y las cosmologías indígenas, conjeturamos que, al constituirse como espacios de experiencia, los procesos creativos y formativos constituyen a las comunidades cinematográficas como comunidades de formación (política, étnica, histórica). A partir de la experiencia de las escuelas de comunicación y cine en los propios territorios, vemos que la escena cinematográfica se expande como una escena histórica, multiepistémica y contracolonial, abriendo espacios para la emergencia de sujetos (emancipados, críticos, reflexivos) y el enraizamiento de las problemáticas comunitarias en perspectivas cinematográficas, con procesos de producción y formación como mediación de saberes y conocimientos ancestrales.

Palabras clave
Colonialidad de la mirada; Cines indígenas; Comunidades cinematográficas; Comunidades de formación; Abya Yala

Era 1960, Pansitinma sólo hablaba el idioma Amahuaca, tenía 12 años y ya era protagonista de una película, de un libro y de innumerables fotografías, pero él no lo sabía. Casi 6 décadas después está a punto de convertirse en cineasta.

Fernando Valdivia Coordenador da Escuela de Cine Amazônico (ECA)

Introdução

No contexto dos povos e das nacionalidades de Abya Yala2, as cinematografias indígenas apresentam um potencial de contra-colonização e emancipação nos vários domínios audiovisuais (documentário, ficção e experimental) (Teixeira, 2012). Considerando seus processos, com base na crítica pós-colonial, nos estudos educacionais e de cinema, nas abordagens antropológicas e históricas, nas perspectivas de intelectuais e das cosmologias indígenas, o objetivo deste trabalho é sistematizar problemáticas da produção audiovisual em correlação com as experiências formativas, especialmente vinculadas a práxis das escolas de comunicação e de cinema coordenadas pelas próprias comunidades. Conjecturamos que, ao constituírem-se como espaços da experiência, os processos de produção e formação constituem comunidades de cinema como comunidades de formação (política, étnica, histórica). Ampliando, assim, a cena fílmica como cena histórica, pluriepistêmica e contracolonial, abrindo-se para a emergência de sujeitos e seus discursos sobre si, sobre o seu mundo e o mundo circundante. Em diálogo com pesquisadores do campo e os sujeitos da experiência, cruzando concepções, o trabalho sobre/com/a partir dos cinemas indígenas se ancorou na problemática do colonialismo e da contracolonização, das operações fílmicas de (re)invenção, (re)produção e (re)apropriação do mundo.

Considerando os projetos desenvolvidos, principalmente, pelas comunidades, com suas redes de comunicadores e escolas de cinema, constataremos que as questões históricas e contemporâneas se enraízam nas redes de significados e de sentidos, com os processos de produção audiovisual ensejando espaços de mediação de saberes e conhecimento. Se a formação do sujeito (crítica, reflexiva e emancipatória) não se restringe à educação formal, acolhemos as próprias vozes dos sujeitos da experiência que, teoricamente, movimentam-se sobre a história e os medios. Nesse contexto, a transformação do mundo e de si mesmos, ancorada na conscientização das contradições da realidade como vetor da afirmação dos sujeitos no processo histórico, acontece a partir da reflexão-ação constitutiva da práxis libertadora (Freire, 2016).

Como a comunidade é categoria central e dimensão das cinematografias indígenas, duas abordagens são, metodologicamente, imprescindíveis. Com César Guimarães (2015), perspectivando a adição e o dissenso, partimos das comunidades de cinema que se fundam entre as semelhanças e as cisões. Com Maurice Blanchot, Guimarães (2015) formula a questão central: “Como então liberar a política do comum – e o próprio pensamento – da figura do Um senão por meio daquela conversa infinita … capaz de sustentar a não relação e recusar a compreensão apropriadora que subsumi o diverso no Uno, identifica o diferente e relaciona o outro ao mesmo?” (Guimarães, 2015, p. 51). Nesse sentido, à medida que são experienciadas pelos sujeitos em contextos de audiência, essas comunidades de cinema somente se constituem nas fricções das imagens.

Acrescente-se a concepção indígena sobre território como lugar multirrelacional. Com base no kimvn (conhecimento, na língua Mapuche), a liderança Jorge Calfuqueo concebe comunidade como lugar que habitam outros seres além do homem3. Mais do que um espaço geográfico, da comunidade dos povos de Abya Yala fazem parte a água, o fogo, as pedras, as aves, o ar, as montanhas, além de outros habitantes mais que humanos – ou, na cosmogonia andina, os seres-terra ou tirakuna –, que “são seres outros-que-humanos que participam das vidas daqueles que se chamam de runakuna [humanos]” (Cadena, 2024, p. 32). A exemplo, como evidencia a epistemologia Wayuu, nas palavras de Nat Nat Iguarán Fajardo4, da espiritualidade impregnada no lugar que habitam e nascem, que determina a origem e a linhagem, pois da comunidade ancestral fazem parte as almas daqueles que morrem: “… [E por isso] mi abuela decía que nosotros somos de donde están enterrados nuestros antepasados”. Além das categorias acadêmicas, a noção de comunidade aqui se fundamenta, principalmente, nas cosmovisões dos povos e nacionalidades, excedendo, assim, a dimensão geo-histórica.

Nesse contexto, é importante ressaltar três dimensões, as quais nos permitem organizar a infinidade de formas e modos que delineiam os processos de formação e de produção audiovisuais indígenas.

Primeiro, entre as propostas externas e internas, ressaltamos as experiências das escolas de cinema e de comunicação que nascem dentro dos próprios territórios, diferente das propostas que chegam às comunidades impulsionadas de fora para dentro, a partir de projetos e ações dos órgãos governamentais ou do terceiro setor da sociedade nacional. Segundo, das experiências formativas e de criação audiovisuais, é fundamental notar as propostas de “escolas” de cinema localizadas em territórios específicos, que se organizam como eixos articuladores de saberes e políticos e se constituem como espaços de mediação no interior das estruturas e dos organismos políticos de determinado povo indígena; e as experiências de escolas de natureza itinerante, que percorrem o territórios e as comunidades de uma mesma estrutura sócio-histórica étnica, difundindo o audiovisual como aporte e instrumental de construção identitária e difusão das lutas e atividades pelo direito ao território e a garantia de seus costumes e conhecimentos tradicionais. Assim, uma terceira dimensão se apresenta nos processos de autogestão, a partir das expectativas e projetos de futuro das próprias comunidades, nos quais os povos e nações de Abya Yala podem pensar suas próprias imagens indígenas5.

Colonialidade do ver

Como a situação colonial não é uma abstração, com os regimes de visualidade constituindo-se mutuamente, o colonialismo legou as bases para as formas de registro dos povos indígenas – da iconografia às tecnologias digitais. Instituindo parâmetros de representação, redes e sistemas de sentidos e significados, nos domínios da imagem, os medios estão na base da invenção do Outro, como selvagem, primitivo, exótico, tribal etc. Em conjunto com as visões dos missionários, os relatos dos cronistas e dos viajantes, alimentando-se da construção secular medievalesca-greco-romana do antropófago, a ideia do bárbaro foi sendo modulada como a contraparte da civilização. Nesse contexto, para Joaquín Barriendos (2011), o padrão ocularcêntrico ocidental produziu, com o “Descobrimento” do “Novo Mundo”, dois artefatos cruciais: uma cartografia colonial-imperial e as imagens-arquivos, com suas camadas sobrepostas e potencial intertextual em diálogo com outras imagens da cultura e da arte. Constitutivas, por sua vez, da radical alteridade canibal, a ponto de metonimicamente abranger todo o território “americano” e populações a serem submetidas em todos os níveis.

A criação dessa contraparte aos modos ocidentais não provocou apenas um afastamento moral-político-espiritual dessas populações indígenas: do hemisfério norte ao sul do “novo” continente. Para Barriendos (2011, pp. 19-21), o sistema do mundo moderno-colonial-cristão gestou uma “compleja matriz de racialización extrema”, na qual os sujeitos passam a habitar um “afuera ontológico absoluto” e “un no-ser radical”, a partir de “una racialización epistémica radical del ser canibal”. No caso dos povos indígenas, a partir de 1492, os regimes de visualidade quando não os transportavam para o período pré-colombiano, encontravam formas de representá-los como entidades puras, sem presença histórica e invisibilizados como objetos. Assim, a maquinaria heterárquica de poder opera historicamente em uma dupla estratégia visual/ontológica: “el hacer aparecer al objeto salvaje (el no-ser caníbal) y, al mismo tiempo, el hacerse desaparecer como sujeto de la observación … (es decir, en hacerlo desaparecer como sujeto, a través de hacerlo visible como objeto)” (Barriendos, 2011, p. 21, 23).

… trascender la deshumanización y la ‘animalización’ de la alteridad caníbal, para llevarla hacia un estadio de máxima inferioridad racial, cartográfica y epistémica, en la cual ya no sólo no hay ‘humanidad’, ni ‘animalidad’ de lo caníbal, sino que tampoco existe la posibilidad de que la monstruosidad ontológica de los malos salvajes del ‘Nuevo Mundo’ pueda ser redimida por medio de la racionalidad eurocentrada

(Barriendos, 2011, p. 21).

Nesse processo, como já observamos em outro momento, os regimes de visualidade operam com a parametrização imagética colonial do Outro, a partir da classificação, categorização e objetificação dos seus modos de habitar o mundo. Da iconografia colonial, a fotografia antropométrica, ao filme etnográfico, a complexidade de Abya Yala foi reduzida a parâmetros de inferiorização, raciais e epistêmicos, enquadrada no que Catherine Russell (2007) chamou de pastoral etnográfica, ou seja, no mito do primitivismo que joga os povos tradicionais para um tempo anterior: espécie de infância da humanidade – estigmatizando-os na sua diferença que, nos termos de Maria Regina Celestino de Almeida (2010, p. 17), são “espécies de fósseis vivos da humanidade”. Para Barriendos (2011, p. 16), a colonialidade do ver compreende “uma série de sobreposições, derivações e recombinações heterárquicas, que interconectam, em sua descontinuidade, o século XV com o século XXI, o XVI com o XIX e assim por diante”. Essa heterogeneidade, ao desmontar a ideia da arte como progresso, com suas fases e tendências, é o que nos permite conectar os regimes de visualidade do período colonial e contemporâneo em seus vários domínios (cinema, pintura, fotografia).

Nesse escopo, de invenção, anulação e controle do Outro, os regimes de visualidade oficiais inscrevem formas de objetificação dos povos indígenas, que, em muitos aspectos, em nada diferem dos descritores de Jean de Léry (1574/1961), que, no século XVI, apresentou as características que permitem figurar UM ÍNDIO: exotizando-o, na diacriticidade dos seus traços físico-culturais, para fixar uma identidade, anular as diferenças e a diversidade.6

A dimensão comunitária

Em um panorama dos cinemas indígenas na América Latina e com base no conceito embedded aesthetics, de Faye Gisnburg, Amália Córdova (2011) destaca a estreita relação das produções audiovisuais com as questões comunitárias, identificando, em seus sistemas narrativos, o enraizamento das tradições, do patrimônio cultural e das dinâmicas internas. Se observarmos a perspectiva de “desmanchar os filmes” do cineasta Xavante Divino Tseerewahú, explicitada no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (Brasil & Belisário, 2016) e que se aplica ao documentário Abdzé wede'õ – O vírus tem cura?, de 2021, realizado no período da pandemia da covid-19 (Felipe, 2025), a comunidade é uma dimensão inelutável, cuja incidência explica a variedade de versões de um mesmo filme. Impulsionada pelos departamentos de comunicação das organizações políticas, o lugar que o audiovisual ocupa na história de cada povo é central, pois o que importa nem sempre é o resultado técnico, mas a documentação dos eventos, das tradições e dos desdobramentos da história do contato7.

Esse método de desmanche de Tseerewahú revelou outras possibilidades de construção coletiva dos filmes, cuja segunda versão, no caso Xavante, dá-se a partir da negociação com os anciãos e familiares, com base em uma perspectiva, nas palavras do diretor, verdadeiramente indígena (Forumdoc.bh, 2022).

Nessa pedagogia Xavante de fazer cinema, ampliando o espectro freireano sobre uma formação libertadora, consolida-se um princípio de encontro a perspectivas que tem o outro como receptáculo de depósitos, comunicados e conteúdos prescritos. Nesse contexto, os saberes dos demais sujeitos, com a comunidade deixando de ser mera incidência, fortalecem a dimensão coletiva indígena, pois, nos termos de Paulo Freire (2016, p. 105), “Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros”. Em um processo em que a perspectiva autoral, no campo do cinematográfico, ganha dimensão comunal, podemos dizer que, assim, pensando com Freire (2016), supera-se a contradição entre cineasta-comunidade, de tal maneira que, mutuamente, constituem um mesmo corpo situacional dialógico. Nas cinematografias indígenas, a participação coletiva – de lideranças, familiares e membros da aldeia – acontece como método e como princípio, recusando, nas comunidades de cinema como comunidades de formação, os argumentos de autoridade e a dicotomia homem-mundo, ou seja, “Homens simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens espectadores e não recriadores de mundos” (Freire, 2016, p. 111).

Localizando o caso Mapuche, no transcurso dos anos 1990, surge o Consejo de todas las Tierras (CTT), na Araucania, Chile, uma organização política em torno da lógica ancestral, que buscava a autodeterminação política, espiritual e territorial.

O realizador Gerardo Berrocal (citado por Mediático, 2019), cujos trabalhos iniciais da ADKIMVN estão vinculados ao Consejo, esclarece que, no início, não desenvolviam projetos audiovisuais com base na contingência, mas em comum acordo com as lideranças tradicionais. Contextualiza que quem definia os conteúdos e as abordagens era a comunidade, com as lideranças com o poder de decidir o que e o quanto da parcela do mundo indígena poderia se inscrever como imagem. Já a participação de demais membros da comunidade dependia da autorização da assembleia Mapuche, sendo, em muitos casos, os registros arquivados para uso posterior. Saindo dos organismos políticos Mapuche para a dimensão comunitária, na análise de Juan Rain8, coordenador da Escuela de Cine y Comunicación Aylla Rewe Budi, o cinema não prescinde da comunidade, pois, em simbiose, constituem-se nos processos de produção e de formação audiovisual.

No depoimento de Rain, compreendemos que:

… Eses procesos audiovisuales ocurren en torno a la reflexión sobre el conocimiento mapuche, que es la base principal. Participa toda la familia, desde los más pequeño hasta la persona más adulta. Es un proceso investigativo también, que se inicia e que se dá con la participación de los mayores propondo los temas que son urgentes y que son necesarios hablar. Son ellos mismos los que posteriormente vão guíando este proceso, en el que los más jóvenes, los niños, recorren y conocen el territorio, a través del planteamiento del conocimiento Mapuche: del rewe, de los lof y de los nombres propios de cada espacio - para romper con las barreras que nos imponen los municípios …. Hay una participación activa de las personas mayores, conocedoras y sabedoras del tema que se está investigando. Son ellos los que van monitoreando cada pedacito de película, cada fragmento de vídeo que se va agregando. Una reflexión que vamos teniendo durante el año …. Y, una vez finalizada la elaboración de la película y, dependiendo del conocimiento, de la participación y del tema que aborde la película, se elige un espacio determinado donde se hace y se levanta una muestra al aire libre, en la que participan todas las familias que trabajaron y aportaron algún conocimiento a esa investigación. Es una muestra, pero también es una instancia en la que las personas mayores, en forma colectiva, validan ese documento ….

Ao trabalhar com os Wiwa, Arhuaco e Kogui, cujas comunidades ficam na Serra de Santa Marta, Colômbia, Pablo Mora (2015, pp. 32-33) observou que o cinema colombiano, da estigmatização dos primeiros filmes a um “protagonismo” indígena controlado, desenvolveu uma espécie de “poder semiótico” que “monopolizó hegemónicamente las representaciones étnicas por fuera de su propio mundo simbólico” e que “mantiene el privilegio de hablar a través de esas voces, segmentándolas, reorganizándolas, mutilándolas, tergiversándolas”. Relatando sua experiência com os Yakuna, no baixo Caquetá, Amazônia, que resultou no documentário Crónica de un baile de muñeco, de 2003, expõe três dimensões cruciais à autonomia indígena no audiovisual: (i) a apropriação tecnológica das tecnologias da imagem; (ii) a alteração na concepção de autoria e direitos patrimoniais; e (iii) a participação dos Yakuna em todas as etapas do processo (pesquisa, roteirização, filmagens e edição).

La obra tuvo tres versiones: una autorial de 90 minutos, otra de 52 minutos para televisión y otra de 6 horas para la comunidad (esta última desprovista de testimonios y explicaciones). Cada una de ellas transmite informaciones particulares, tiene distintos “ritmos de montaje” y obedece a las preferencias de públicos distintos

(Mora, 2015, p. 34).

Complexos identitários

No âmbito das cinematografias de Abya Yala, são fundamentais as dimensões políticas, os processos de organização e subjetivos de pertencimento ao grupo, que, para Almeida (2010), determinam a formação dos sujeitos da experiência e, podemos dizer, a constituição de identidades complexas que, se são moduladas, não extirpam os vínculos comunitários, étnicos, histórico-culturais.

De origem Quéchua, os irmãos Álvaro e Diego Sarmiento nasceram em Lima, Peru. Com pós-graduação em Direção Cinematográfica nos Estados Unidos (Álvaro) e na EICTV (Santo Antônio de los Banos, Cuba) (Diego), criaram a produtora HDPERU e integram um coletivo que explora o mundo indígena, dos Andes à Amazônia.

Em entrevista ao podcast Revélate, da plataforma Retina Latina, em 8 de agosto de 2024, chamaram a atenção para a fragilidade dos paradigmas em torno das questões da identidade. Observaram que, além das comunidades andinas ou amazônicas, os fluxos migratórios do campo para a cidade, da década de 1960 em diante, fizeram com que uma capital como Lima chegasse a ter a maior concentração de imigrantes indígenas do Peru. Em suas reflexões, são populações que não manifestam sua ascendência, não praticam rituais, sua espiritualidade e seus modos diferenciais. Ao se inserirem nesse contexto diaspórico, como descendentes que não viveram uma comunidade, encontraram no cinema os vínculos com a ancestralidade Quéchua. Se antes não tinham consciência de suas raízes, começam a se conectar com suas origens nos percursos que faziam pelos territórios e nos filmes que realizavam (Sarmiento & Sarmiento, 2024). Retomam, assim, a história do seu povo e (re)elaboram a experiência marcada por certa “inquietud” e “angustia identitaria” ou “nostalgia de ancestros”, se atribuirmos a observação que Silvia Cusicanqui (2015, p. 13) faz sobre ela mesma.

Em um campo entre os estudos históricos e antropológicos, com a professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) Maria Regina Celestino de Almeida (2010), contextualizamos que esse complexo de confluências e trânsitos entre mundos se dá porque os processos históricos e as estruturas culturais estão permanentemente em diálogo, confluindo e transmutando-se, nos quais conceitos como os de aculturação, tradição e identidade são dinâmicos e não estáticos. Principalmente porque, antes de aculturar-se, o que, de fato, acontece é a apropriação e ressignificação dos impactos das situações de contato no contexto do mundo histórico dos povos e das comunidades tradicionais, pois incorporam as tecnologias da sociedade ocidental e imprimem novos significados. Por conseguinte, se a identidade étnica não pode ser vista como imutável, fixa e única, nem definidora de um agrupamento étnico, como coloca Almeida (2010, p. 24), devemos compreender as “identidades como construções fluídas e cambiáveis que se constroem por meio de complexos processos de apropriações e ressignificações culturais nas experiências entre grupos e indivíduos que interagem”.

Em mais de um exemplo, a partir da biologia fenomenológica (com o par organismo/ambiente) e das descobertas do antropólogo Peter Gow junto ao povo Piro da Amazônia peruana, Eduardo Viveiros de Castro (1999) analisa como esse mundo dos povos e das nacionalidades de Abya Yala é confluente e cambiável, desenvolvendo-se em um processo reflexivo de reversão de perspectivas. Com base na antropologia indígena, Viveiros de Castro (1999, p. 136) compreende que, em uma situação histórica, o indígena não é situado pela instância colonial, mas a situa, “ele a define, definindo o que conta como situação”, pois “Uma situação é uma ação; ela é um situar”. Sendo, assim, se o “dispositivo colonial” não define as sociedades indígenas, interessa-nos, portanto, “como os Índios situam o Brasil – e, portanto, como eles se situam, no Brasil e em outros 'contextos': ecológicos, sociopolíticos, cósmicos”. Com Peter Gow, que, em um programa movido, inicialmente, pela abordagem contatualista, com o objetivo de entender a inserção de elementos capitalistas e coloniais na vida indígena, Viveiros de Castro(1999, pp. 142-143) observa que o processo de aculturação dos Piro era, antes de tudo, inerente aos “regimes nativos tradicionais”, “que sempre tiveram a ‘aculturação’ por origem e fundamento da 'cultura', e a exterioridade social por polo em perpétuo movimento de interiorização”.

Pensando em outra chave, em que projetos de criação de mundos contaminados pelo encontro engendram outros mundos compartilhados, Anna Tsing (2022, p. 73) observa que “Todos nós carregamos uma história de contaminação; [portanto] a pureza não é uma opção”. Se, como propugna, colaboração, diferenças e contaminação andam juntas, a diversidade contaminada é a categoria central nas teses da autora, sendo o caso do agrupamento étnico Mien, do Sudeste Asiático chinês, emblemático das identidades fluídas, de comunidades “aculturadas”, das relações de alteridade que incorporam o mundo exterior e, consequentemente, inerentes ao regime Mien relacional de transmutação permanente, onde tem lugar as transformações de si e dos outros, no interior da própria espécie ou entre espécies distintas, distantes dos “diagramas de decisão de indivíduos autônomos [e, em seus termos, autossuficientes]” (Tsing, 2022, p. 75). Um agrupamento em constante mutação, adaptando-se a situações históricas, ao contato com outras etnias e geopolíticas. Um povo transfronteiriço que, provavelmente, transmutou-se em processos de fuga e refúgio político, da China Imperial ao norte do Laos, Tailândia e Vietnã. Adaptou seu sistema de escrita aos caracteres chineses para comunicação com as entidades espirituais, a partir de um movimento entre recusa e aceitação do poder chinês, cujo ethos da mobilidade entre países, nacionalidades e fronteiras, nas palavras de Tsing (2022), permite-nos compreender os Mien, ao mesmo tempo, como chineses e não chineses, laosiano-tailandeses e não laosiano-tailandeses, estadunidenses e não estadunidenses.

Dessas trajetórias complexas, com muitos matizes e permeabilidade, as cinematografias de Abya Yala apresentam dimensões fundamentais em seus processos para uma (re)apropriação do mundo histórico em seus próprios termos. Ancorando-se em Berta Ribeiro e em parentes da aldeia, Naine Terena (2022) observou que, com sua estética e simbolismo, ornamentação das cestarias ou corporais, as práticas artísticas são uma dimensão do cotidiano indígena e ocupam mais tempo do que o dedicado aos artefatos utilitários. A contrapelo aos regimes coloniais ocular-cêntricos, para Córdova (2011), essa cinematografia se coloca como uma postura política, especialmente porque, complementando com Iván Sanjinés (2024), “Un pueblo indígena que se presenta en la pantalla es un gesto político: que esté en cine, que esté en televisión, que esté en la red”. Transitando do vídeo comunitário ao filme experimental, das formas fílmicas em diálogo com a história do cinema e da arte contemporânea, amplia-se o raio das paisagens midiáticas indígenas que excede a comunidade, no sentido estrito do termo.

Para Gemma Orobitg et al. (2021, p. 134), a finalidade desses “medios indígenas es implicar tanto a los miembros del propio grupo como a las sociedades nacionales y a sectores de la audiencia internacional”. Ao estudar essas múltiplas paisagens midiáticas (o rádio, o vídeo e as redes sociais), os autores chamam a atenção para o ato comunicativo de conceber a comunicação como “puesta en relación”. Isso significa que as tecnologias audiovisuais (cinema, vídeo, televisão) promovem relações dos povos em diversos contextos: comunitário, intercomunitário, interétnico, panindígena – portanto, em uma perspectiva local, nacional e internacional. Entre as funções da mídia indígena, a partir das experiências latino-americanas, está a promoção de espaços alternativos aos meios hegemônicos, pois, quando a perspectiva das comunidades não é ocultada, por sua vez, não é devidamente valorizada como saber ancestral. Assim, a apropriação tecnológica se torna fundamental por conceber um complexo geopolítico mais amplo: do local, transnacional, ao internacional, como espaços relacionais e lugar de experimentação social.

Com suas especificidades, os cinemas indígenas assumem as fortes injunções de “las matrices culturales de origen – en que productores y receptores conforman orgánicamente una comunidad de Comunicación” (Mora, 2015, p. 40), que aponta para o que constituem comunidades de cinema como comunidades de formação (política, histórica, étnica). Em outro contexto, ao refletirem sobre o Vídeo nas Aldeias (VNA), Dominique Gallois e Vincent Carelli (1995) identificam, para além do uso instrumental, desdobramentos do audiovisual nas comunidades, a partir da produção e exibição de filmes em um processo de apreciação da imagem e de apropriação coletiva pelos indígenas. Os autores ainda observam que “a imagem catalisa representações preexistentes, presentes no imaginário de cada povo. Seu impacto sensível permite que as imagens anteriores sejam reconstruídas, atualizadas e refixadas de forma nova” (Gallois & Carelli, 1995, p. 63). E fazem uma reflexão sobre como o audiovisual, além de se abrir como espaço de mediação, impulsiona experiências interétnicas, com um jogo comparativo entre “características tecnológicas, lingüísticas e aparência física, posição de cada povo com relação aos brancos” (Gallois & Carelli, 1995, p. 65).

Considerando a natureza interrelacional das tecnologias audiovisuais, a perspectiva de Guimarães (2015) sobre comunidades de cinema aparece como um aporte teórico importante. Especialmente para pensarmos as relações mutuamente constituintes entre a produção e a formação audiovisual, que ativam espaços de mediação, com as comunidades de cinema ensejando comunidades de formação (política, étnica, histórica) – figurando-se, na imagem, como dispositivo (Brasil, 2016), que os realizadores/as se (re)apropriam e expõe em quadro. Essas comunidades compreendem um complexo, no qual a imagem, esse espaço de coabitação das diferenças, que destitui a distribuição das identidades, essencialidades e binarismos disjuntivos, participa da instituição comunitária: oposta, em essência, ao fechamento em qualquer interioridade, exclusividade e identidade, recusando a “imanência absoluta em favor da exposição a um fora, de uma relação com o exterior, com outrem” (Guimarães, 2015, p. 47).

Da comunidade como unidade política, sob o aparente paradoxo da abertura ao dissenso e as diferenças, às comunidades de cinema, nas quais a imagem não é depositária do UNO, do mesmo e da fusão, as experiências de formação coordenadas pelos próprios povos indígenas configuram comunidades de formação, com destaque para a presença do audiovisual em todos os processos. Assim, a formação não se dá apenas no campo técnico (questões comunicacionais, dimensões técnicas, operações das linguagens, manejos dos suportes), mas se projeta também no campo da política do movimento indígena: o direito ao território e ao patrimônio cultural; a ressignificação das tradições e dos saberes ancestrais, em busca da autonomia, do autogoverno e da autodeterminação.

Se a comunidade se constrói entre diferentes, adicionando a formulação de Antônio Bispo dos Santos (2023), ao contrário da sociedade ocidental que se faz com os iguais, os agrupamentos tradicionais são feitos com os diversais. Se a comunicação dos povos indígenas configura comunidades, aberta ao diálogo, potencialmente se acentua o entrecruzamento entre filmes e audiência. Baseando-se em Martín-Barbero, que não separa os meios e suas mediações, Orobitg et al. (2021) defendem que a comunicação indígena abre espaço para a coparticipação da audiência, espaços coletivos e ativa comunidades de ação, pois não produzem uma representação do mundo, mas, sim, o acionamento de situações sociais. Esse contexto de interações socialmente construídas, com a coparticipação dos sujeitos em práticas compartilhadas, inclina-se para as comunidades de cinema como comunidades de formação, nas quais o aparato audiovisual mediatiza as relações sócio-históricas em um mundo que se torna mediatizado.

Sem aprofundar o campo, essa dimensão cine-formativa aproxima-se das comunidades de prática, similar ao que temos apresentado quanto aos espaços de experiência, baseados na construção coletiva de conhecimentos e saberes, com os sujeitos (críticos, criativos e emancipados) constituindo-se em ações conjuntas e repertórios compartilhados, a partir de processos audiovisuais. Em uma tese na área da etno-matemática sobre o povo Xerente, Elizângela Aparecida Pereira de Melo (2016) situa a constituição dessas comunidades de prática – no contexto dos povos indígenas – considerando as negociações no campo das práticas socioculturais (rituais, tradições, pinturas corporais etc.), em que se fundam as aprendizagens e, consequentemente, essas comunidades. A autora observa que, dessas práticas, decorrem a organização cultural e o Ser indígena Xerente, cujos códigos, conhecimentos e saberes entram em negociação, sendo socialmente transmitidos e aprendidos por gerações. Na contramão, portanto, do que Maria Aparecida Bergamasch e Rosa Helena Dias da Silva (2007) concluem, no âmbito de uma educação escolar indígena, que, desde a Colônia, negava os processos próprios dos saberes ancestrais para dar lugar aos empreendimentos epistemológicos escolares ocidentais.

Nesse contexto, ainda que certo viés colonizador e de colonialidade perdure, pois, como assinalou Gersem Baniwa (2023, p. 8), “a escola tem a missão de reprodução do modus operandi, modus pensanti e do modus vivendi da sociedade ocidental moderna …”, paradoxalmente, a Constituição Federal “reconhece o direito dos povos indígenas a uma educação escolar própria - específica e diferenciada, intercultural e bilíngüe, que respeite os processos próprios de ensino e aprendizagem” (Bergamasch & Silva, 2007, p. 128).

Cinema, comunidade e formação

No âmbito das cinematografias de Abya Yala, as experiências formativas nas/pelas comunidades indígenas, apesar de similares, acontecem sob distintos processos e metodologias. Temos observado que o cinema indígena e a educação, enquanto áreas disciplinares, têm sistematicamente encontrado pontos de contato, pois os processos de produção estão invariavelmente atrelados a programas e projetos – estatais, do terceiro setor ou de movimentos ativistas – de formação audiovisual nas comunidades, com várias oficinas e atividades formativas. Entretanto, não se trata de abordar a produção e a formação em uma perspectiva formal, metodológica ou instrumental, a partir do uso de filmes como ferramenta pedagógica: relação – enquanto processo e produto – das produções com determinados cursos; indícios nos filmes de metodologias trabalhadas; correlações das obras com materiais didáticos; ou uma “educación de la mirada” (Zárate Moedano et al., 2019).

Para Laura Ximena Triana Gallego (2023), que tem estudado as rotas dos cinematografias de Abya Yala (do México até a Argentina), esses cenários se organizaram, basicamente, de duas formas: (i) na transferência e apropriação de tecnologias pelas/para as comunidades – de fora para dentro; e (ii) na autonomia dos povos indígenas, desde de dentro, assumindo a autogestão dos processos de produção e formação audiovisual.

De um lado, historicamente, as propostas de formação audiovisual se originam de Organizações Não Governamentais (ONGs), associações indigenistas, universidades ou de profissionais do meio. O Navajo Film Themselves foi desenvolvido, em 1966, por Sol Worth e John Adair, respectivamente, comunicador e professor do Annenberg School of Communications e de San Francisco State College; o VNA, coordenado por Vincent Carelli, desde 1986, no Brasil, estava atrelado ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI); e a Escuela de Cine Amazônico (ECA), que, sob a direção de Fernando Valdivia, trabalha com formação, produção e difusão na Amazônia peruana. Com a finalidade de criar condições para a transferência de saberes e técnicas audiovisual (e, em alguns casos, de outras tecnologias, como o rádio, a televisão e os meios digitais), desenvolvem oficinas nas comunidades, ora com programas mais estruturados, ora de forma pontual e episódica. Muitas dessas experiências, às vezes, não passam de experimentação antropológica ou comunicacional e, em outros casos, constituem alianças políticas duradouras.

De outro lado, a formação audiovisual tem origem nas próprias comunidades, impulsionadas pelas questões históricas e contemporâneas, com realizadores e coletivos se apropriando da tecnologia e da linguagem para documentar as práticas cotidianas, as manifestações ancestrais e os processos de luta e resistência, a defesa do território e do seu patrimônio cultural.

Nesse último caso, surgem as escolas de cinema e de comunicação nos territórios: a Escuela de Comunicación del Pueblo Wayuú, em 2014, na região de La Guajira, Colômbia; e a Escuela de Cine y Comunicación Mapuche del Aylla Rewe Budi, na Araucanía, Chile, em 2010. São apoiadas por associações de comunicadores das comunidades, como, respectivamente, a Red de Comunicadores Wayuu e a ADKIMVN – Cine y Comunicación Mapuche. Ao contrário das experiências formativas do primeiro caso, que se movimentam e são conduzidas por agentes que não participam de dentro da experiência histórica, esses espaços criados nas/pelas próprias comunidades apontam para a autogestão dos processos comunicacionais no campo da formação, produção e difusão, com base na sua diferença, em suas próprias demandas, questões e problemáticas.

Outras experiências, no contexto audiovisual, tem se configurado como, por assim dizer, experiências formativas desterritorializadas. Alinhando-se mais ao primeiro caso, sem o foco em um povo e nacionalidades indígena específicas, a gestão direta ou indireta das comunidades envolvidas, o Museo Chileno de Arte Precolombino e o Centro de Estudios Interculturales e Indígenas (CIIR) criaram, na modalidade virtual, a Escuela Diversa de Cine Indígena – com a participação de cineastas indígenas, professores e pesquisadores das áreas da antropologia, história, artes, comunicação, para a formação de jovens de Abya Yala: para “… reflexionar y analizar su entorno, con el propósito de crear proyectos de investigación y/o creación audiovisual con enfoque indígena y desde una práctica colaborativa” (Museo Chileno de Arte Precolombino, 2024).

María Paz Bajas Irizar (2008), ao comentar a experiência norte-americana, chama a atenção para uma espécie de experimentação antropológica, a partir de uma reflexão sobre o processo “formativo”. É como se, na sua acepção, Sol Worth e John Adair tivessem montado um laboratório para especulação epistemológica, nos campos da antropologia e da comunicação. Depreende a inclinação do projeto Navajo para a verificação de hipóteses: saber como se comportam os sujeitos e quais são as diferenças entre o olhar indígena e não indígena, quais sãos os modos que os “outros” usam quando produzem imagens. Visava “constituir una metodología que estuviera al servicio de los estudios antropológicos, psicológicos y de las ciencias humanas en general, con el fin de tender hacia una antropología de la comunicación audiovisual” (Bajas Irizar, 2008, p. 4). Movimentava-se em um duplo paradoxo: a transferência ao Outro dos medios que lhe permite, em perspectiva própria, (re)apropriar-se, imageticamente, do mundo histórico como sujeito da enunciação, mas sob um complexo de prescrições e domesticação, experimentação e observação, que destitui, nos termos de Freire (2016, p. 109), o potencial da transformação crítica, criadora e libertária dos homens, fundamental para a passagem da condição de “seres para outro” a “seres para si”.

Uma das experiências de produção e formação audiovisual mais longeva, que nasce dentro das organizações políticas indígenas na América do Sul e expressa as questões internas da comunidade, encontra-se no Tejido de Comunicación, da Asociación de Cabildos Indígenas del Norte del Cauca (ACIN), no município de Santander de Quilichao, na Colômbia, em 2005, juntamente com outros organismos setoriais.

Os pesquisadores Gerylee Polanco e Camilo Aguilera (2011), que estudaram as lutas de representação a partir das organizações políticas e de comunicação na Colômbia, concebem o Tejido de Comunicación como parte dos organismos indígenas do Cauca, um dos mais significativos de Abya Yala, com papel incontornável na autonomia Nasa (ou Paéz, na denominação colonial): da retomada de terras a construção da própria imagem. Os autores ainda defendem que a apropriação da comunicação “… es, pues, indesligable del proceso político y cultural indígena …” (Polanco e Aguilera, 2011, p. 67). Para compreender melhor sua função, após uma primeira etapa de resistência (da Conquista aos anos 1970) e da segunda chamada Tierra y Cultura, de recuperação territorial (de 1970 a 1980), o trabalho do Tejido de Comunicación se insere nos Planes Comunitarios o Planes de Vida, que, em uma terceira etapa, denominada Autonomia, são desenhados entre 1980-2000, nos quais a comunicação é artefato político dos modos organizativos dos governos indígenas9.

Mas, entre os anos 2000 até o presente, as iniciativas comunicacionais no Departamento do Cauca ganham impulso. Denominada de Alternativa, nessa etapa são implementados projetos radiofônicos, impressos, Internet e audiovisuais, que mediatizam as práticas contracoloniais Nasa, em ações entre os modelos tradicionais de organização (assembleias, os cabildos, os conselhos), político-organizativo (mobilizações, congressos e projetos comunitários) e técnico-operativo (com os tejidos que cobrem diversas áreas: meio ambiente, economia, saúde, comunicação). Com uma composição predominantemente indígena, trabalhando com produção, exibição e distribuição, o Tejido de Comunicación, segundo Polanco e Aguilera (2011), tem origem nos comitês de comunicação dos Planos de Vida e na apropriação de variadas modalidades comunicacionais.

No contexto da formação audiovisual indígena, se pudéssemos projetar a experiência como referência para o entrecruzamento audiovisual-comunidade, o povo Nasa consolidou um processo que se estrutura, de forma sistematizada, com a Escuela de Comunicación del Norte del Cauca. Compreendemos essa formação em duas dimensões (Polanco & Aguilera, 2011): no campo da política indígena e no campo da comunicação (conceitual, técnica e prática). Condensadas na concepção curricular da primeira edição formativa, em 1999, que outorgou o título de Comunicadores Comunitários, em busca da autonomia, do autogoverno e da autodeterminação dos povos do Cauca, esse processo foi assumido por profissionais da área das tecnologias externos à comunidade e, especialmente, por lideranças Nasa e da Igreja Católica.

El proceso de formación incluyó dos componentes curriculares: uno, dirigido a la totalidad del grupo de educandos, contemplaba el análisis de los contextos político, económico y cultural del pueblo nasa y del movimiento indígena del Cauca, mientras el otro componente comprendía la enseñanza de técnicas, por grupos de educandos conformados según sus afinidades, en tres medios: radio, video/ fotografía y medios impresos

(Polanco & Aguilera, 2011, pp. 76-77)10.

Essas escolas de cinema e comunicação Mapuche, Wayuu e Nasa, que desenvolvem suas práticas entre produção, formação e difusão audiovisual, constituem experiências – com particularidades, conhecimentos e tradições específicos de cada povo – que se inserem em um contexto histórico mais amplo, com as devidas distâncias e diferenças. Fazemos referência à dimensão da educação escolar indígena, que, ao contrário das escolas focadas nos processos e produtos da comunicação, do cinema e do audiovisual, em geral, aproximam-se dos saberes e conhecimentos escolares, institucional e formal. Mas, nesses casos, com base em Bergamasch e Silva (2007), podemos identificar uma relação mais profunda quanto à autonomia e ao protagonismo das comunidades na definição dos processos formativos que caracterizam o momento atual. Dimensões e fases da história da educação escolar indígena, que, na mesma linha do que temos analisado, são iniciativas coordenadas pelas próprias comunidades, com o contexto educacional a serviço dos interesses, projetos e epistemologias ancestrais.

No centro dessas experiências, Bergamasch e Silva (2007) observam que entram em cena o movimento político organizado e, especificamente, os professores indígenas como sujeitos da formação. São dimensões que podem ser identificadas e paralelizadas, em seus aspectos e características, com as experiências das escolas de cinema e comunicação dos diversos territórios situados em nosso estudo. Nesse sentido, desenvolvendo-se na perspectiva de uma autogestão comunitária, a discussão em torno dos processos formativos audiovisuais dos povos e nacionalidades de Abya Yala encontra ressonância em um contexto mais amplo – do ponto de vista continental, político e de formação. Independente do caráter não formal das experiências delineadas no campo dos cinemas e audiovisual indígenas, no quadro comparativo, para além do caso Brasil, alinham-se experiências do México, Peru e Equador que têm “como saída comum para a educação das minorias étnicas, o horizonte da autonomia na criação e gestão de escolas autenticamente indígenas” (Monserrat citado por Bergamasch & Silva, 2007, p. 131).

Dimensão continental e trans-originário

Em uma política contracolonial e epistêmica das tecnologias audiovisuais, a formação de comunicadores indígenas nas comunidades precisa ganhar centralidade. Ampliando o espectro, Córdova (2011) observa que os processos formativos no audiovisual indígena têm dimensão continental, trans-originário e desconlonizantes. Nesse campo, as cinematografias indígenas são centrais como pragmáticas contracolonizadoras, pois, dos territórios ancestrais aos centros urbanos, os seus filmes e produtos audiovisuais estão sempre tensionando “las suposiciones fundacionales de la educación occidental, adonde lo indígena está relegado a una historia pasada, considerado exterminado, estático en el tiempo o consagrado como objeto de archivo etnográfico” (Córdova, 2011, p. 84).

Em um relato que nos concedeu sobre a experiência da Escuela de Comunicación de Pueblo Wayuu (Departamento La Guajira, Colombia), que, no decorrer de 2024, realizou o terceiro ciclo formativo, a cineasta e coordenadora acadêmica Leiqui Uriana Henriquez11 chama a atenção para aspectos fundamentais da autogestão tecnológica por parte das comunidades Wayuu. Enquanto escola itinerante, que percorre os territórios entre a Colômbia e a Venezuela, a escola tem uma sólida programação formativa sobre os vários meios: escrita, rádio, audiovisual, digital e outros. Formada na Escuela de Cine e Televisão de Santo Antonio de Los Baños, Cuba, Leiqui Uriana pontua a necessidade de um maior conhecimento dos fundamentos pedagógicos, que permitirão conhecer os jovens que ingressam nos processos de formação, advindos dos mais diversos lugares e das mais díspares realidades. Se inicialmente os participantes pertenciam às comunidades tradicionais, do segundo ao terceiro ciclo, as convocatórias foram se estendendo aos interessados em conhecer e se apropriar das tecnologias.

Sem reconhecimento oficial pelos Estados nacionais (Colômbia e Venezuela), os cursos têm o reconhecimento das comunidades e lideranças, além de lograrem formar profissionais que hoje já atuam como docentes da própria escola e assumem papéis importantes nos vários campos da comunicação.

Antes das atividades práticas nos módulos, Leiqui Uriana explica que o processo formativo metodologicamente inicia com um encontro matinal com a comunidade em torno de conversações sobre os modos de ser Wayuu, com o plano de estudo em consonância com o sistema normativo do seu povo, abrindo-se, especialmente, para que se fale sobre “el territorio, la lengua, la organización social, la espiritualidad y la economía tradicional”. Em consonância com esse princípio, a coordenadora da Escuela de Comunicación del Pueblo Wayuu, Nat Nat Iguarán Fajardo, em um intervalo entre a comunicação e o sistema normativo próprio, contextualiza:

… Por lo tanto, ese vínculo que tenemos con el territorio es lo que queremos que los jóvenes identifiquen, asimilen y proyecten. Esto les permite relacionarse con todas las demás comunidades, conocer sus contextos y sus diferencias. Aprender sobre saberes de acuerdo a las temáticas es lo que nos permite y lo que queremos vislumbrar con la escuela: que sea un espacio de formación no solo desde lo técnico, sino también desde lo espiritual y cultural.

Nesse âmbito, sob as lentes de uma pedagogia audiovisual, eminentemente freireana, por assim dizer, em um processo formativo como prática de liberdade e não de dominação, observam-se elementos de constituição de um método de formação que recusa em conceber o homem e o mundo Wayuu como entidades abstratas, desligados de si e do mundo, como se o substrato do ser indígena não pudesse se ausentar ou ser negado como realidade concreta. Principalmente porque, na perspectiva metodológica da Escuela de Comunicación de Pueblo Wayuu, pensando com Freire (2016, p. 124), compreendemos que, “Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção, vão também dirigindo sua ‘mirada’ a ‘percebidos’ que, até então …, não se destacavam, ‘não estavam postos por si’”. Para além das dimensões técnicas da linguagem do cinema e do audiovisual, o mundo histórico constitui uma instância mediatizadora dos sujeitos da formação, “incidência da ação transformadora dos homens” (Freire, 2016, p. 130).

Com Dagron (2014), que pesquisou, amplamente, o cinema comunitário na América Latina e Caribe, podemos abstrair dimensões, abordagens e contextos, para melhor estabelecermos parâmetros de análise dos processos de formação audiovisual dos povos e nacionalidades de Abya Yala.

Independente da diversidade de experiências (implementadas em contextos campesinos e centros urbanos, tradicionais e populações marginalizadas contemporâneas) e das diferenças latentes entre o cinema comunitário e o cinema indígena, Dagron (2014) apresenta perspectivas do audiovisual comunitário, também, a partir do estudo de experiências que envolvem os cinemas indígenas. Como na Colômbia (El Tejido del Comunicación), no Chile (Adkimvn), na Bolívia (CEFREC) e no Brasil (VNA). A partir da Organización de los Pueblos Indígenas de Pastaza (OPIP), do povo Kichwa Sarayaku (Equador), lemos em “Pocho” (Álvarez, 2014, p. 363) que “la producción audiovisual comunitaria es un ejercicio orgânico”, ou seja, as obras e a comunidade estão interconectadas. Ao entrevistar Alejandro Santillán, que realizou oficinas no território Sarayaku e percebeu a dimensão interfacial entre cinema-território em grau bastante significativo: “La razón de ser del cine de Sarayacu es la comunidad …. La comunidad se expresa a través del cine y el cine expresa el punto de vista, la lucha, la acción de la comunidad …” (Álvarez, 2014, p. 363).

No marco do cinema e do audiovisual comunitários, com aproximações com o que caracteriza os cinemas indígenas, Dagron (2014) levanta suas dimensões constitutivas: uma expressão política, comunicacional e artística; uma linguagem própria, sem intermediários e independente do cinema hegemônico; uma representação das populações à margem, secundarizadas ou invisibilizadas; e, como eixo central, uma cinematografia que se empenha na luta pelo direito à comunicação. Em consonância com Triana Gallego (2023), conclui que as experiências de transferência tecnológica mais longevas possibilitaram que as comunidades ganhassem autonomia para produzirem e se expressarem por si mesmas. Metodologicamente, incorporamos os seus parâmetros por optar também por experiências que: “… llevan adelante los actores desde su propia constitución comunitaria, excluyendo las miradas externas sobre ellos” (Dagron, 2014, p. 30). Assim, apontamos que as cinematografias de Abya Yala compreendem processos no contexto de uma comunidade organizada, com decisões sobre os modos de produção e formação, sendo a experiência Sarayaku emblemática da autonomia audiovisual por se apropriar de três dimensões fundamentais: a autogestão, o autofinanciamento e a autoafirmação política (Dagron, 2014).

No início do Vídeo nas Aldeias, Gallois e Carelli (1991) observaram os desdobramentos do audiovisual nas comunidades Waijãpi, na Amazônia, e as questões internas no contexto de audiência, cujas situações sociais e fílmicas se desenvolviam próximas do que Guimarães (2015) chamou de comunidades de cinema: entre pactos e dissensos, vínculos e fraturas do comum.

A partir da realização do documentário O espírito da TV, em1990, e de visitas posteriores de campo, Gallois e Carelli identificaram que os encontros nas “Casas de TV” eram marcados pela hierarquia, com o discurso monopolizado pelas lideranças, e, depois, eram transmitidos por um terceiro. Com o VNA, esses espaços ampliaram a discussão política, com a incorporação dos discursos pelas lideranças, modulados, em encenação e retórica, a partir do que assistiam de outros povos na TV. Identificaram que esses encontros políticos, que aconteciam antes, durante e depois das exibições, lapidavam duas modalidades de retóricas: uma retórica interna – em seus próprios termos – e outra destinada para os brancos – programática, por assim dizer. Decorrente das audiências gravadas, os argumentos, a retórica e a performance entraram em processo de redefinição, com os discursos sendo gravados e, permanentemente, reelaborados, para públicos específicos: garimpeiros, Fundação Nacional dos Povos Indígena (Funai) e Governo Federal. Como desdobramentos, Gallois e Carelli (1991) observaram disputas intercomunitárias, com cobrança de lideranças Waijãpi de outras aldeias para que seus discursos ocupassem um lugar no processo da produção audiovisual das comunidades. Sob controle permanente, os registros obedeciam a três movimentos: registros para si, registros para os brancos e para outros povos.

Analisamos que a presença em cena do Capitão WaiWai demarcava seu lugar no campo de força da comunidade, com a compreensão sobre o alcance do filme e seu poder de persuasão. Em vários segmentos, ele tenta dirigir a câmera e definir o corte final para garantir as imagens positivas frente a certos comportamentos que podiam configurar imagens negativas da comunidade.

Nesse sentido, as relações dos Waijãpi com o contexto da produção e da recepção audiovisual, em O espírito da TV, assentam-se em um dispositivo de projeção e audiência extra (situações que precedem o filme) e intra-fílmica (ou seja, no campo da imagem com as situações espectatoriais sendo filmadas). Esses aspectos contextuais, que remetem às dimensões constitutivas das comunidades de cinema (Guimarães, 2015), também se materializam como dispositivo (Brasil, 2016), a partir de situações que não são operadas pelo mesmo, mas regidas pelo heterogêneo e o desajustado (Mondzain citado por Guimarães, 2015). Se, no trabalho interpretativo com as imagens, considerarmos que um procedimento é identificar figuras de cisão e reciprocidades (cenas do comum e cenas de dissenso), o que perturba a lei e a ordem de uma comunidade só acontece em um contexto social; ao se integrarem, constituem o complexo comunitário entre os filmes e sua recepção. Inclinam-se, assim, para um “ser/estar-em-comum” ou “ser/estar-com” e, por sua vez, abrem-se para os “vários reinos (humano, animal, vegetal, mineral) e divididos em singularidades (grupos, ordens, meios, indivíduos, histórias)” (Nancy citado por Guimarães, 2015, pp. 47-48).

Conclusões

O ordenamento do comum/comunidade não é da ordem da temática ou das relações de poder entre o antecampo e o campo das imagens, mas envolve situações espectatoriais porque, entre a partilha e a divisão, as comunidades de cinema se fazem nas diferenças, unindo o que nunca é uníssono e fechado. Nesse sentido, “… entretecem o liame invisível da comunidade dos que veem juntos, ligados em sua separação, distantes de toda identificação com um corpo único …” (Guimarães, 2015, p. 55). As formas e os modos de identificar os delineamentos – entre as dimensões extra e intra-fílmicas – requerem dois movimentos metodológicos: no campo etnográfico, que, antropologicamente, sistematizam as estruturas sócio-históricas dos povos e nações indígenas (em suas organizações culturais, políticas e cosmológicas), especificamente, nesse caso, para delinear o lugar do audiovisual no “liame invisível da comunidade”; e no campo da análise fílmica, que, a partir dos estudos de cinema, ordena a linguagem e a materialidade das imagens para evidenciar os elementos fílmicos, que inscrevem as cenas do comum e do dissenso, que representam, como dispositivo, as formações indígenas dos que veem juntos sem se confundirem como um corpo único. Dimensões metodológicas que se complementam e se retroalimentam, especialmente porque acontecem em um movimento do mundo histórico comunal para o campo das imagens.

No contexto de perspectivas fílmicas reversas, que revisam os regimes visuais do colonialismo e reposicionam no palco da história os povos indígenas como sujeitos da cena histórica e fílmica, observamos que ganham relevo os processos de produção e formação audiovisual oriundos vinculados não apenas às ONGs, aos órgãos ou às entidades dos estados nacionais. Não obstante a importância desses projetos, um campo importante se localiza, especialmente, nas experiências das Escolas de cinema e de comunicação das comunidades coordenadas pelas próprias comunidades, a partir de suas redes de comunicadores e/ou organizações políticas, afirmando sua diferença e a diferença dos processos mobilizados internamente, divisando suas especificidades e epistemologias, pois “‘La imagen del conocimiento proprio’ [precisa seguir] los principios propios culturales mapuche y comunicacionales …” (Berrocal citado por Mediático, 2019, pp. 3-4).

Especialmente com Guimarães (2015), a base teórica foi fundamental para repensarmos a concepção de comunidade como um agrupamento de sujeitos, que compartilham uma mesma estrutura histórica e os mesmos objetivos, inclusas as comunidades de interesses, com problemáticas específicas. Principalmente porque “o comum” não prescinde do dissenso, dos conflitos e das contradições internas. Nesse contexto dos cinema indígenas, como observou Dagron (2014), importam os processos, o percurso da obra (da pré-produção à difusão) e não apenas os produtos (o filme em si). Por sua vez, a ênfase nas dimensões qualitativas dão relevo à articulação de redes, à organização e aos espaços de debate, às atividades formativas e à articulação da linguagem audiovisual com as demais expressões artístico-culturais. Nesse flanco, as implicações da interface cinema-comunidade, nos processos de produção e formação audiovisual, apontam para dimensões de uma pedagogia contracolonial que se desenvolve no campo das comunidades de cinema como comunidades de formação.

Em um ensaio intitulado “Ficções coloniais”, publicado na revista Zum, do Instituto Moreira Salles, em 2021, Denilson Baniwa (2021) relata como, na infância, vivenciou uma espécie de ficção quando foi fotografado por uma espécie de Indiana Jones Alemão, que apareceu em sua comunidade com uma câmera 50mm e lhe pediu para posar naturalmente para uma mise en scène, que almejava capturá-los como índio. O produtor Fernando Valdivia (2018), que coordena a ECA, criada, em 2013, em Pucallpa, na Amazônia peruana, conta história semelhante sobre Pansitinma, que, no início da década de 1960, tinha 12 anos e só falava o idioma do seu povo, quando também foi capturado pela câmera do antropólogo Matthew Huxley e a linguista Gertrude Dole. Naquela altura, o menino Amahuaca se tornou protagonista de um filme etnográfico, objeto de um livro e de inúmeras fotografias, que rodaram o mundo como as pinturas do gentio amansado e bravo de Albert Eckhout e as cartes de visite do século XIX, com suas cenas de primitivos africanos e indígenas em seus “habitat natural”.

Em um claro processo de invenção do Outro, no contexto da colonialidade do ver, integrando, no presente, modalidades de violência (simbólica, epistêmica, racial) que, para Cusicanqui (2018, p. 24), remetem para “sintagmas coloniales màs remotos …”. O corpo e as palavras de Pansitinma, entre planos, páginas e folhas de acetato, tornaram-se públicos, foram guardados na prateleira de alguma biblioteca (no caso do livro de Huxley) e no acervo institucional do Museu Americano de História Natural de Nova York. No decorrer de seus 60 anos, o menino Amahuaca não sabia que tinha se tornado um personagem etnográfico. Quase seis décadas depois, com o trabalho de produção, formação e difusão audiovisual da ECA, com suas oficinas de formação e programas de exibição nos pequenos povoados, campus universitários e comunidades indígenas do Peru, Pansitinma hoje “es un Amahuaca respetado, el Jefe de su comunidad y también cineasta indígena” (Valdivia, 2018, p. 17), a frente, portanto, dos registros de sua própria imagem: de si, do seu corpo e de seus desejos; da sua comunidade e mundo histórico-cultural – em seus próprios termos.

  • Revisão textual:
    Normalização bibliográfica (APA 7ª Ed.), preparação e revisão textual em português: Reinaldo Rodrigues <revisão@tikinet.com.br>
    Versão e revisão em língua inglesa: Leonardo Maciel de Gusmão <traducao@tikinet.com.br>
  • 1
    Este artigo é resultado do projeto de estágio pós-doutoral “Cinematografias e comunidades de formação indígenas em Abya Yala: processos formativos e produção audiovisual dos povos originários de territórios na América do Sul”, que desenvolvemos no Programa de Pós-graduação Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM-UFMG) (2024-2025), sob a supervisão do professor. Dr. André Guimarães Brasil.
  • 2
    No sentido Kuna (autodenominação Dule) do termo, que, ao se referir ao habitat ancestral como a grande terra madura, foi propagada pelo líder Aymara Takir Mamani (Constantino Lima Chávez), a partir de meados dos anos 1970, em contraposição à denominação colonial.
  • 3
    Depoimento no filme Rewe Nguiñiwe, Aylla Rewe Budi (2014, Dir. Gerardo Berrocal e Juan Rain).
  • 4
    Em entrevista ao autor, em 20 de junho de 2024, pela Plataforma Google Meet, que versou sobre sua formação e atuação social; história, cosmologia e momento atual do povo Wayuu; história, dimensões pedagógicas e desafios da Escuela de Comunicación. Uso autorizado.
  • 5
    Temos outras reflexões, no campo dos cinemas indígenas, em que as relações entre história e cosmologia se materializam nas imagens (Felipe, 2019, 2020a, 2020b, 2021, 2022, 2024, 2025).
  • 6
    Já dedicamos um artigo sobre os regimes visuais coloniais, a parametrização imagética do Outro, com os cinemas indígenas apresentando a contrapelo outras visões do mundo histórico dos povos e nacionalidades de Abya Yala (Felipe, 2023).
  • 7
    Córdova (2011) notou que os filmes das oficinas pareciam mais exercícios do que produtos acabados.
  • 8
    Em entrevista ao autor, em 19 de fevereiro de 2025, pela Plataforma Google Meet, que versou sobre o a história e os desafios, cosmologia e organização do povo Mapuche; e os processos de produção e formação da Escuela de Cine y Comunicacións Aylla Rewe Budi. Uso autorizado.
  • 9
    Os Planos de Vida: “… obedecen a dos tipos de ‘principios’ de ‘Vida’ (‘espiritualidad, reciprocidad, integralidad y uso respetuoso de la tierra’) y ‘rganizativos’ (‘unidad, territorio, cultura y autonomía’) …” (Polanco & Aguilera, 2011, p. 68).
  • 10
    A Escuela de Comunicación del Norte del Cauca encerrou suas atividades em 2002, sendo retomada, no ano de 2010, com a gestão do Tejido de Comunicación, o ingresso aberto a jovens de outras regiões e o programa curricular contemplando a formação em: escritura, radio, audiovisual, internet, fotografia, impressos etc.
  • 11
    Em entrevista ao autor, em 24 de junho de 2024, pela Plataforma Google Meet, que versou sobre sua formação e atuação social; história, cosmologia e momento atual do povo Wayuu; história, dimensões pedagógicas e desafios da Escuela de Comunicación. Uso autorizado.

Disponibilidade de dados

O autor declara que os dados de pesquisa não podem ser disponibilizados publicamente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2025
  • Revisado
    19 Jul 2025
  • Aceito
    24 Ago 2025
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