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Sistema educacional e desigualdades sociais no Haiti: o caso das escolas católicas

The educational system and social unequalities in Haiti: catholic schools

Resumos

Este artigo discute as relações entre o sistema educacional e as desigualdades sociais no Haiti a partir de um estudo de caso das escolas católicas. Na primeira parte discutirei como o sistema educacional do Haiti foi construído; em seguida, apresentarei algumas desigualdades sócio-educacionais que se manifestam no sistema; por fim, proporei uma reflexão sobre a questão: como a escola pode contribuir para uma mudança social no Haiti?

educação e desigualdade; Haiti; sistema educacional


This article discusses the relations between the educational system and social inequalities in Haiti. A case study of catholic schools helps to understand how the Haitian educational system was built and how socio-educational inequalities can be produced and maintained by this system. At the end, is discussed also how schools can contribute to social change in Haiti.

education and inequality; Haiti; educational system


ARTIGOS

Sistema educacional e desigualdades sociais no Haiti: o caso das escolas católicas1 1 . Este artigo foi objeto de uma conferência apresentada pelo autor no Institut Universitaire de Formation des Maîtres (IUFM) da Université Antilles Guyane (UAG), em Pointe-à-Pitre, em 26 de abril de 2007.

The educational system and social unequalities in Haiti: catholic schools

Louis Auguste Joint

Professeur de Sociologie, Formation Continue, Université Antilles-Guyane (UAG), Guadeloupe. auguste.joint@wanadoo.fr

RESUMO

Este artigo discute as relações entre o sistema educacional e as desigualdades sociais no Haiti a partir de um estudo de caso das escolas católicas. Na primeira parte discutirei como o sistema educacional do Haiti foi construído; em seguida, apresentarei algumas desigualdades sócio-educacionais que se manifestam no sistema; por fim, proporei uma reflexão sobre a questão: como a escola pode contribuir para uma mudança social no Haiti?

Palavras-chave: educação e desigualdade; Haiti; sistema educacional.

ABSTRACT

This article discusses the relations between the educational system and social inequalities in Haiti. A case study of catholic schools helps to understand how the Haitian educational system was built and how socio-educational inequalities can be produced and maintained by this system. At the end, is discussed also how schools can contribute to social change in Haiti.

Key words: education and inequality; Haiti; educational system.

A história do Haiti é um exemplo de contrastes. Conhecida como "Pérola das Antilhas", a mais rica das colônias francesas no século XVIII, o Haiti tornou-se no final do século XX o país mais pobre do continente americano. O Haiti é, assim, um exemplo original com suas particularidades e pontos em comum com os outros povos do Caribe e da América. Foi a primeira república negra a livrar-se do sistema de escravidão e da colonização. Sua cultura representa um tipo ideal da cultura crioula, compartilhada pelo conjunto dos povos caribenhos. A língua crioula, veículo privilegiado dessa cultura, tornou-se, ao lado do francês, a língua oficial do Haiti desde a Constituição de 1987. É uma novidade na história dos povos crioulos2 2 . As Seichelles, no Oceano Índico, representam a segunda nação a ter o crioulo como língua oficial. . A partir do contato com o cristianismo vindo da Europa e das religiões ancestrais da África, desenvolveram-se outras formas religiosas no Caribe e na América Latina, como o vudu, que veio a ser, ao lado das religiões cristãs, uma verdadeira religião e um berço cultural para o povo haitiano3 3 . Relembremos o caso de outros países do Caribe e da América que compartilham o sistema cultural e religioso afro-americano: o yoruba, em Cuba; o obeayisme, na Jamaica; o culto xangô, em Trinidad; e o candomblé, no Brasil. . É nesse contexto sociocultural que se desenvolve o sistema educacional do Haiti. Este artigo discute as relações entre o sistema educacional e as desigualdades sociais no Haiti a partir de um estudo de caso nas escolas católicas. Na primeira parte discutirei como o sistema educacional do Haiti foi construído; em seguida, apresentarei algumas desigualdades sócio-educacionais que se manifestam no sistema; por fim, proporei uma reflexão sobre a questão: como a escola pode contribuir para uma mudança social no Haiti?

Como se estrutura o sistema educacional haitiano?

Especifiquemos o sentido de "sistema educacional". Considero-o, sobretudo no sentido escolar do termo, naquilo que se refere à instrução. Teoricamente, as bases do ensino haitiano foram determinadas pela política educacional do libertário Touissaint Louverture e dos fundadores do Estado haitiano. Entretanto, esse sistema tem suas origens nas práticas educacionais em vigor na época da colonização e da escravatura. Os fundadores, guiados pelo modelo educacional deixado pelos antigos colonos franceses, reproduziram-no após a independência do Haiti. Mas os princípios da nação haitiana são marcados por muitas incertezas e ameaças que tiveram repercussões nas políticas educacionais dos primeiros dirigentes haitianos.

Para acompanhar a evolução do sistema educacional do Haiti, é preciso ressaltar a lógica desigual desse sistema, desde sua criação. Desde a independência do Haiti, em 1804, alguns dirigentes entenderam que a instrução de todo o povo era um fator determinante para o desenvolvimento social e econômico do país. Eles fizeram diferentes tentativas de reforma, sendo a reforma educacional de 1879 a mais importante delas. Para reduzir a desigualdade das oportunidades escolares, foram criadas escolas rurais, além das escolas urbanas, e campanhas de alfabetização foram conduzidas, a fim de alfabetizar os camponeses. Porém, por causa de coações políticas e econômicas e da aplicação da lógica desigual na distribuição dos bens sociais, os projetos de reforma não tiveram os resultados esperados, e a desigualdade das oportunidades escolares parece estar na base da orientação do sistema educacional4 4 . Os constrangimentos políticos e econômicos eram, por um lado, a situação de guerra que se instalara para salvaguardar a independência do Haiti das ameaças da França colonialista e, por outro lado, a indenização de 150 milhões de francos imposta, em 1825, pelos dirigentes franceses aos dirigentes haitianos, como dívida pela independência. A isso se juntaram as conseqüências negativas causadas pelas revoluções populares, pelas revoltas e pelas guerras civis no decorrer do século XIX. Esses obstáculos impediram o desenvolvimento do Haiti e o sucesso das iniciativas educacionais. . Em 1894, apenas 8% de 400 mil crianças e jovens do Haiti eram escolarizados. Um século depois, em 1995, de três milhões de crianças em idade escolar (5 a 14 anos), 52% estavam escolarizadas. Das crianças em idade escolar, 48% não podiam ir à escola, e no meio rural a porcentagem subiu para 79%. O objetivo educacional de generalizar a instrução, definido pelos órgãos internacionais e adotado pelo estado haitiano, permanece um desafio. Esse Estado tem dificuldade em aplicar uma política educacional que possa responder à demanda escolar de formação da população.

A ocupação americana (1915-1934) também não contribuiu para o desenvolvimento da educação haitiana. Por exemplo, em 1920, para uma população haitiana de 2,5 milhões de habitantes, as despesas escolares eram de U$ 340 mil, enquanto os Estados Unidos gastavam U$ 400 mil na educação em Porto Rico, que tinha 1,25 milhões de habitantes. Em 1954, segundo um estudo do Departamento da Educação Nacional do Haiti, registrava-se uma taxa de escolarização nacional de 19,7%, sendo 17,5% nas zonas rurais e 64% nas zonas urbanas; as poucas escolas existentes no país eram reservadas, sobretudo, à população urbana. Assim se manifestavam as desigualdades de oportunidades escolares. Alguns dirigentes tentaram corrigir o sistema educacional, que passou por uma série de reformas e de decisões dos governantes. Mas, até o presente, parece ser regido por uma lógica que, ao impor oportunidades escolares desiguais, reforça o modelo de desigualdade social do país. A reforma educacional mais recente data de 1979, renovada pelo Plano Nacional da Educação e da Formação de 1997. Apesar de tudo, parece que o Estado haitiano tem extremas dificuldades para colocar em prática uma política educacional coerente. Os meios políticos e econômicos de que ele dispõe não estão à altura dos objetivos políticos estabelecidos; a reforma educacional proposta não corresponde a um projeto de sociedade definido e compartilhado pelos cidadãos. Parece que esse projeto de sociedade ainda não existe.

Como se manifestam as desigualdades sócio-educacionais?

O sistema educacional haitiano é marcado pela separação das classes sociais. Desde o início do sistema, com os primeiros governantes haitianos, as poucas escolas nacionais existentes eram procuradas somente pelas classes abastadas. Por exemplo, o liceu era reservado aos cidadãos que supostamente tivessem prestado serviços ao Estado; assim, estava descartada de antemão uma escola pública para todos. Logo após o acordo de 1860, entre o Estado haitiano e o Vaticano (a Igreja Católica), as escolas mantidas por congregações foram convidadas a se instalar no Haiti para formar elites cristãs. As crianças provenientes de classes privilegiadas abandonaram as escolas públicas, freqüentadas cada vez mais por crianças das classes populares, para acomodar-se nas primeiras escolas católicas congregacionais que ofereciam uma "formação de excelência à juventude haitiana". A distância entre a burguesia e as classes populares iria aumentar mais. Um século depois, a partir dos anos 1970, diante da pressão da demanda escolar, as escolas católicas congregacionais tornaram-se espaços compartilhados pelas crianças provenientes de classes populares e de classes mais elevadas. Para perpetuar o princípio da distinção e da separação de classes, as crianças oriundas de famílias abastadas abandonaram progressivamente as escolas católicas congregacionais, aumentando a lista de escolas internacionais. O sistema educacional haitiano permanece em sua totalidade, ainda hoje, em conformidade com o que tinha como base, quando de suas primeiras implantações; ou seja, concretiza o objetivo de formar as elites separadas das massas ou das classes populares pobres.

Após o acordo de 1860, a Igreja Católica obteve uma grande influência na educação haitiana. O estado haitiano confiou-lhe a missão de evangelizar e de instruir o povo. Desde a segunda metade do século XX, com a aparição e a multiplicação de novos agentes de educação ligados às igrejas protestantes ou ao setor privado independente, a importância dessa missão educativa atribuída à Igreja Católica diminuiu gradativamente. Hoje em dia, sob o ponto de vista quantitativo, essa instituição religiosa deixou de ser, depois do Estado, o agente principal do sistema educacional haitiano. Segundo análise da Fundação Haitiana das Escolas Privadas (FONHEP), em 1996, a Igreja Católica ocupava-se somente de 24% das escolas privadas do país, enquanto as escolas protestantes representavam 35% do total e as escolas privadas independentes (não religiosas), 29%. Entretanto, sob o ponto de vista qualitativo, as escolas católicas congregacionais continuam a ter um papel determinante na organização e na orientação do sistema educativo haitiano. Elas estão entre as escolas mais bem equipadas e mais organizadas do país. Ainda em 1996, somente 52% de 3 milhões de crianças do Haiti de 5 a 14 anos eram escolarizadas. Hoje, o Estado estima 66%, mas outras fontes de análise calculam 60%. Por causa da multiplicação das escolas e da falta de controle do Estado, vê-se um processo de privatização e de desregramento do sistema educacional do Haiti: 83% das escolas do país são privadas e somente 17% são públicas.

As desigualdades sócio-educacionais manifestam-se, sobretudo, nos diferentes tipos de escolas públicas e privadas, na separação entre as populações escolarizadas e as não escolarizadas. Tentaremos entender essas desigualdades.

1º) Elas se manifestam nos diferentes tipos de escolas públicas e privadas

O zoneamento escolar não é uma noção corrente, nem um princípio aplicado na política escolar do Haiti. De acordo com seu meio, os estudantes freqüentam os estabelecimentos que preferem, independentemente dos bairros onde se encontram. Assim, o recrutamento dos alunos que freqüentam os estabelecimentos depende de início de sua zona geográfica, mas também da preferência dos pais de alunos que estão à procura de estabelecimentos escolares de "prestígio". As escolas católicas secundárias que estudamos5 5 . Colégios Saint Martial, Saint-Louis de Bourdon e Juvénat du Sacre-Coeur. compartilham o espaço escolar de Porto Príncipe com outras escolas privadas secundárias independentes e com os liceus, escolas secundárias públicas6 6 . No Haiti, o termo "colégio" designa uma escola secundária privada que vai da 6ª série até o fim do curso; seu correspondente no setor público é chamado de "liceu". .

A maioria desses liceus tem a reputação de ter bons professores, remunerados pelo Estado, mas, por falta de controle dos responsáveis, muitos desses funcionários cometem irregularidades, como atrasos e faltas. Em média 80% da "clientela" vem de bairros populares, de cidades de província e de zonas rurais do país. Entretanto, as famílias populares que têm rendimentos regulares, como os salários mensais, preferem colocar suas crianças nas escolas privadas, consideradas mais bem organizadas que os liceus.

Em comparação com as escolas privadas, os liceus — estabelecimentos públicos — são em geral maiores, mesmo sendo em menor número que as escolas privadas. Em Porto Príncipe, o Liceu Pétion, fundado em 1816, mantém até hoje uma estrutura que prepara alunos provenientes, em sua maioria, de classes médias do país que não querem freqüentar escolas privadas. Ele é seguido de perto pelo Liceu Toussaint Louverture, fundado em 1946. O Liceu Antenor Firmin, como os dois primeiros, abriu suas portas aos meninos na metade do século XX, na mesma época que o Liceu das meninas, também chamado Liceu Cent Cinquantenaire de l'Indépendence. Dentre todos eles, o melhor é o Liceu Marie Jeanne, que é mais recente (1979).

Podem-se distinguir, segundo as estruturas de enquadramento e a qualidade de ensino oferecida, quatro categorias de escolas privadas no Haiti. Na parte inferior da hierarquia, encontram-se as "escolas borlette" (de loteria), de má qualidade, em vista de seu mau funcionamento. O aluno nela ingressa em desespero de causa, por ser recusado por uma boa escola ou por ser rejeitado, por exemplo, em razão de não ter pagado regularmente as taxas escolares. Sobre essas escolas, Sr. Girault, antigo diretor de escolas secundárias, observa: "um aluno pode pagar a metade das taxas, um outro aluno pode se entender de uma maneira ou de outra com os responsáveis para pagar... O professor também não tem um salário fixo"7 7 . Saint Louis de Bourdon, Entretien B 2, p. 28. O professor ganha, nessas escolas, de quatro a oito dólares haitianos ($Ha)8 8 . O "dólar haitiano" é a nota de 5 gourdes haitianos, conceito utilizado freqüentemente no mercado haitiano, como analogia ao dólar americano, que é mais caro no mercado financeiro. (20 a 40 gourdes) por hora, o que significa meio dólar americano.

Existe uma segunda categoria de escolas independentes "onde se levam as coisas a sério", explica Girault. Possuem nível médio, mas os alunos que pagam regularmente suas taxas escolares têm acompanhamento pedagógico e controle regular . Nessas escolas, recrutam-se professores mais ou menos competentes, pagos regularmente no fim do mês, à razão de 40 a 60 gourdes por hora, ou de um a um e meio dólar americano. Os dirigentes dessas escolas são geralmente honestos, mas não muito exigentes com os alunos, para poder conservar os efetivos, já que a concorrência entre os estabelecimentos é grande. Segundo a observação do Sr. Girault, "é esta categoria de escola que se encontra a meio caminho da escola borlette e da escola congregacional"9 9 . Saint Louis de Bourdon, Entretien B 2, p. 28. .

As escolas congregacionais, terceira categoria de escolas privadas na ordem ascendente, têm um efetivo estável. Nelas os pais pagam regularmente a mensalidade ou explicam-se com a direção, quando estão em atraso. Os professores recebem regularmente, no fim do mês, seus salários, que oscilam entre 60 e 80 gourdes por hora. A classificação das escolas congregacionais varia segundo a seleção de sua clientela, o rigor de sua disciplina, o custo de sua escolaridade e o salário de seus professores. Normalmente, esses estabelecimentos têm quadro de professores bem formados, estruturas pedagógicas e materiais didáticos mais ou menos adequados e acompanhamento pedagógico regular.

No topo da hierarquia, existe uma quarta e última categoria de escolas privadas: as escolas internacionais estabelecidas em Porto Príncipe, em Délmas e em Pétionville. Quando de nossa pesquisa, em 1999 e 2000, havia cinco ou seis dessas escolas, entre as quais o Colégio Étoile em Pacot, bairro residencial ao leste de Porto Príncipe; o Liceu francês Alexandre Dumas; o colégio americano Union School, em Porto Príncipe; o colégio Sainte-Thérèse, em Pétion-Ville. Geralmente, essas instituições são dirigidas por estrangeiros e professores haitianos muito qualificados podem nelas lecionar; seu programa de ensino não tem nenhuma relação com o sistema educacional haitiano: elas aplicam os programas em vigor na França, no Canadá ou nos Estados Unidos. Por exemplo, os alunos do Liceu francês devem às vezes fazer os exames finais na Martinica, território além-mar da França. Essas instituições preparam os jovens para continuar seus estudos superiores no exterior, mas são muito caras: pagam-se mil dólares haitianos (5.000 gourdes) como taxa de inscrição; 800 dólares haitianos (4.000 gourdes) para as taxas escolares anuais; 300 a 400 dólares haitianos (1.500 a 2.000 gourdes) para a mensalidade. Na escola católica Saint Martial, por exemplo, não se paga mais que 80 a 120 dólares haitianos (400 a 600 gourdes) pela mensalidade. Nessas escolas internacionais, os professores ganham 25 a 30 dólares haitianos por hora (três a quatro $US). Essas escolas são freqüentadas, sobretudo, pelos filhos de funcionários internacionais e pelas crianças procedentes das classes altas do Haiti, que evitam aproximação com as crianças de classes populares, que ingressam, hoje mais do que antigamente, nas escolas congregacionais.

2º) Elas se manifestam na separação de tipos de população escolarizada ou não escolarizada

As desigualdades sócio-educacionais manifestam-se na separação das classes sociais nas escolas. Até o início dos anos 1980, os três estabelecimentos que estudamos recrutavam principalmente classes elevadas e camadas superiores das classes médias. Por outro lado, os dois sistemas de escolarização (público/privado) que existem no Haiti distinguem-se pelos recrutamentos sociais diferentes. Para evitar grandes despesas, as crianças de famílias de baixa renda freqüentam, sobretudo, e contra sua vontade, as escolas públicas. Em um mesmo nível do curso escolar, no ensino privado as classes são compostas de crianças vindas de meios mais privilegiados do que no ensino público. Os sociólogos Gabriel Langouët e Alain Léger observaram o mesmo fato no sistema escolar da França (Langouet, Leger, 1994, p. 25-47). Segundo eles, as categorias sócio-profissionais "privilegiadas" (quadros superiores e quadros médios) freqüentam mais as escolas privadas que as públicas.

Em segundo lugar, no intuito de instruir e formar tanto as crianças de famílias mais ou menos abastadas quanto as de família "pobre", existem, às vezes, em um mesmo estabelecimento católico, duas categorias de escola: a da manhã, reservada às crianças "privilegiadas", cujos pais podem pagar por seus estudos, e a da tarde, destinada às crianças e aos jovens "desprivilegiados", que não têm condições de pagar sua instrução. Essa é a prática no colégio Juvénat e no colégio Saint Louis de Bourdon. Assim, algumas escolas católicas exercem duplo papel na educação haitiana. Por um lado, atendem crianças provenientes de classes sociais "elevadas"; por outro, a título individual ou em nome de seu grupo, alguns religiosos e religiosas desenvolvem atividades educacionais de menor envergadura, para promover e integrar camadas sociais marginalizadas e negligenciadas. As iniciativas educacionais em favor de marginalizados acontecem principalmente através das escolas presbiterianas, das escolas vespertinas ou dos centros de alfabetização. Essa prática iniciada pelas escolas católicas tende a generalizar-se nas escolas públicas. Essas constatações esclarecem a hipótese de nossa análise, que é a de que as escolas católicas favorecem, através de suas práticas educacionais, a manutenção de um sistema social desigual e, ao mesmo tempo, a promoção e a integração das classes marginalizadas.

A desigualdade sócio-educacional manifesta-se também pela forma piramidal e pela prática de seleção por eliminação. Essa prática é freqüente nas escolas congregacionais. Nelas os alunos "fracos" são gradativamente excluídos, apenas os mais "fortes" sobrevivem e chegam às últimas classes. Assim, por seu sistema de organização, essas escolas católicas trazem um reforço ao funcionamento do sistema educacional do Haiti; ao mesmo tempo, elas reforçam a lógica da desigualdade das oportunidades escolares, já que as crianças vindas de famílias de baixa renda não têm acesso a elas ou delas são eliminadas. Entretanto, esses mesmos estabelecimentos favorecem uma escola paralela e de média importância para as famílias economicamente "pobres". Existem, então, dois tipos de escola para duas categorias sociais nas estruturas escolares. A separação das classes sociais continua seu caminho através da organização desses estabelecimentos que, entretanto, alimentam boas intenções para o desenvolvimento do país. Por exemplo, desde os anos 1980, contrariamente a sua tradição, Saint Martial optou por abrir-se a diferentes classes sociais. Assim, sua população tornou-se bastante diversificada. O mesmo fenômeno produziu-se na maior parte dos estabelecimentos privados. Isso se explica pela forte pressão da demanda escolar de todas as classes sociais nos anos 1980 e 1990. Mas pode-se confirmar que as escolas privadas congregacionais de caráter elitista mudaram sua lógica de seleção, segundo as origens sociais? Mesmo com o sistema de bolsas para os mais pobres10 10 . Em 1998, poucos alunos, 80 em 1.600 ou 1/20 do total, beneficiavam-se de bolsas totais ou parciais, graças à ajuda de antigos alunos do estabelecimento que viviam sobretudo no estrangeiro. Esses antigos alunos davam U$ 300 por ano para cobrir a escolaridade de um aluno. "Acreditamos ser uma bela escolha", diz Pierre Dominique. , as crianças vindas das classes sociais populares não têm acesso fácil à Saint Martial, por falta de meios para pagar a mensalidade e as outras taxas escolares11 11 . No Haiti, as escolas privadas não são subvencionadas pelo Estado. Todas as despesas para o salário dos professores e para o funcionamento do estabelecimento escolar dependem da contribuição dos pais. Assim, em comparação com o nível de vida da população, a instrução é muito cara. . E mesmo os que se beneficiam de bolsas de estudos geralmente não conseguem sustentar-se ali, em razão da falta de material didático, como manuais escolares, e de outros problemas de ordem familiar e social. Assim, o sistema de seleção no Saint Martial continua a ser operacional.

Como a "escola para todos" pode contribuir para reduzir as desigualdades sociais no Haiti?

Muito normalmente entende-se que a escola é a instituição que pode mudar a sociedade. Para sustentar esse ponto de vista, certos agentes sociais têm o hábito de repetir este pensamento de um pedagogo anônimo: "Dê-me a escola, em dez anos mudarei a sociedade". Mas, na verdade, a relação entre escola e sociedade é mais complexa. Analisemos brevemente essa relação e vejamos o que a sociedade haitiana pode esperar da escola.

1º) Relação entre educação e sociedade

Antes de considerar o que se pode esperar da escola, vejamos primeiro a relação entre a escola e a sociedade. Por trás das desigualdades sociais, encontram-se relações sociais nas quais a escola é, ao mesmo tempo, um produto e um fator determinante. Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron analisaram essas relações em termos de dominação e reprodução (Bourdieu; Passeron, 1985; 1999). Segundo sua análise, em uma sociedade de classes, a escolarização participa de um processo estrutural de reprodução e não pode realizar a igualdade social das classes. Segundo nossa pesquisa, observamos que esta análise é válida para o contexto do Haiti.

A reforma educacional de 1979 tinha por objetivo erradicar o analfabetismo, assegurar a formação de base a todos e favorecer a participação e a adaptação das crianças escolarizadas no meio escolar. O ensino haitiano democratizou-se com essa reforma? Em termos de massificação, houve, mesmo, o acesso de um maior número de jovens aos diferentes níveis de ensino. Mas essas mudanças quantitativas não reduziram qualitativamente as desigualdades sociais de escolarização. Aliás, 34% a 40% das crianças do Haiti ainda não têm acesso à escola. Antes, o momento determinante da seleção fazia-se antes ou na entrada da 6ª série (do secundário). As transformações do sistema escolar haitiano e o crescimento do acesso a certos níveis provocaram uma modificação nas diferenças sociais relativas à escolarização. O sistema tornou-se menos brutalmente seletivo, mas a eliminação progressiva atinge sempre os meios populares; a distância entre os grupos muda, mas diminui muito pouco. Resumindo, as desigualdades sociais mantêm-se, mudando apenas de forma e de lugar.

2º) Expectativas em relação à escola

O que se pode esperar do sistema educacional? É suficiente reformá-lo para reformar a sociedade haitiana? A escola é como um instrumento a serviço da sociedade. Sua função é assegurar a socialização, a integração social dos indivíduos, a fim de garantir a reprodução do sistema social. Ela pode também contribuir para a transformação desse sistema, na medida em que ele é guiado por um projeto de mudança social. A escola insere-se em um contexto social. Para compreender essas expectativas, convém situá-la no conjunto desse contexto. Ela é parte integrante de um projeto de sociedade. Essa aproximação evita isolar a escola em um gueto sociológico e considerá-la como um "mundo" à parte (em si e por si), sem com isso esquecer que ela tem um funcionamento específico e autônomo relativo. De certa forma, segundo o país, o acesso à formação escolar é um dos meios estratégicos de reprodução do estatuto social12 12 . Em relação à reprodução, ver Bourdieu e Passeron (1970). . O sistema escolar tem poderes diferentes para as diferentes categorias sociais.

Então, a escola pode contribuir para uma mudança social no Haiti? Passados 200 anos da sua independência, o povo haitiano tem um grande desafio a vencer: definir e aplicar seu projeto de desenvolvimento econômico e social, isto é, melhorar as condições de vida da população sob o ponto de vista material, cultural e espiritual. A educação, entendida como a instrução, a alfabetização e o conjunto de meios colocados em prática para formar as pessoas, para desenvolver as faculdades intelectuais e espirituais dos cidadãos, parece ser um fator determinante para ressaltar o desafio do desenvolvimento do Haiti.

O potencial de desenvolvimento do Haiti existe. Ele depende da continuidade de uma política racional e da formação do homem haitiano para transformar seu meio ambiente. Uma educação para o desenvolvimento supõe, de início, combater o analfabetismo e a alienação cultural; democratizar a educação atual, isto é, generalizá-la para elevar o nível de consciência e de cultura do povo. Trata-se de orientar essa educação no sentido do desenvolvimento e da promoção da economia e de culturas locais. Convém também favorecer um programa de formação permanente da população para o desenvolvimento de uma cultura democrática, de um estado de direito no Haiti. A escola é o instrumento privilegiado para favorecer o desenvolvimento social, econômico e político do povo haitiano.

Para ressaltar o desafio do desenvolvimento, da integração social e da abertura a outros povos, o povo haitiano foi chamado para definir um projeto de sociedade que envolva uma nova orientação educacional. Esta deve dar conta dos novos desafios da sociedade moderna, como a generalização da instrução. Na sociedade haitiana à procura de democracia, mas marcada por uma história de autoritarismo; de segregação; de negligência organizacional diante da natureza (desflorestamento, erosão); e do patrimônio comum (abandono de locais históricos), a nova educação teria que fazer prevalecer valores como a proteção do ambiente, a defesa dos interesses coletivos da nação, o estabelecimento de um estado de direito que favoreça a democracia e a reconciliação das classes sociais para o bem-estar de todos.

A participação da população nas ações de educação seria uma condição prévia para o sucesso de uma "escola de desenvolvimento", cuja tarefa seria, entre outras, instalar estabelecimentos escolares, — grandes ou pequenos, de acordo com o meio — nos bairros de vilas e vilarejos, para generalizar o ensino de base e favorecer a formação técnica e profissional dos jovens13 13 . A República do Haiti é administrativamente dividida em nove departamentos, 135 comunas e 565 seções comunais. "Aproximadamente 125 das 565 seções comunais do país ainda não têm escolas públicas; vinte delas não têm escola nenhuma." (Aristide, 2003, p.56). . Em um país de poucos recursos como o Haiti, essa participação é necessária para a construção de infra-estruturas apropriadas, para garantir com baixo custo os recursos humanos necessários para a formação das novas gerações. Assim, os diferentes agentes, como os artesãos (pedreiros, marceneiros, carpinteiros, ceramistas, encanadores, mecânicos, etc.), os agentes de saúde, os diretores e os professores têm um papel importante no desenvolvimento de suas localidades. Mais bem alfabetizados, esses agentes poderiam fazer o papel de alavanca na generalização da instrução do povo e na criação das estruturas de enquadramento contra o analfabetismo, como as bibliotecas de bairro, os clubes de leitura, etc.

É nesse quadro que podemos situar as ações educacionais existentes que favorecem a emergência dos agentes locais, como as organizações comunitárias de alfabetização de adultos, de instrução de crianças; as bibliotecas de bairro; e outras. Resta encorajar essas ações educacionais, multiplicá-las e enquadrá-las para que se tornem mais eficazes.

Recebido em 05 de janeiro de 2008 e aprovado em 25 de abril de 2008.

Tradução: Andréa de Freitas Ianni. Revisão técnica: Ana Maria Fonseca de Almeida.

  • ARISTIDE, Mildred. Enfant en domesticité em Haïti, produit d'un fosse historique Porto Príncipe: Imprimerie Henri Deschamps, 2003.
  • BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Les héritiers. Les Editions de Minuit, 1985. [1964].
  • BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. La reproduction. Éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris: Editions de Minuit, 1999. [1970].
  • LANGOUET, G.; LEGER, A. École publique ou école privée? Trajectoires et réussites scolaires. Paris: Ed. Fabert, 1994.
  • 1
    . Este artigo foi objeto de uma conferência apresentada pelo autor no Institut Universitaire de Formation des Maîtres (IUFM) da Université Antilles Guyane (UAG), em Pointe-à-Pitre, em 26 de abril de 2007.
  • 2
    . As Seichelles, no Oceano Índico, representam a segunda nação a ter o crioulo como língua oficial.
  • 3
    . Relembremos o caso de outros países do Caribe e da América que compartilham o sistema cultural e religioso afro-americano: o yoruba, em Cuba; o obeayisme, na Jamaica; o culto xangô, em Trinidad; e o candomblé, no Brasil.
  • 4
    . Os constrangimentos políticos e econômicos eram, por um lado, a situação de guerra que se instalara para salvaguardar a independência do Haiti das ameaças da França colonialista e, por outro lado, a indenização de 150 milhões de francos imposta, em 1825, pelos dirigentes franceses aos dirigentes haitianos, como dívida pela independência. A isso se juntaram as conseqüências negativas causadas pelas revoluções populares, pelas revoltas e pelas guerras civis no decorrer do século XIX. Esses obstáculos impediram o desenvolvimento do Haiti e o sucesso das iniciativas educacionais.
  • 5
    . Colégios Saint Martial, Saint-Louis de Bourdon e Juvénat du Sacre-Coeur.
  • 6
    . No Haiti, o termo "colégio" designa uma escola secundária privada que vai da 6ª série até o fim do curso; seu correspondente no setor público é chamado de "liceu".
  • 7
    . Saint Louis de Bourdon, Entretien B 2, p. 28.
  • 8
    . O "dólar haitiano" é a nota de 5
    gourdes haitianos, conceito utilizado freqüentemente no mercado haitiano, como analogia ao dólar americano, que é mais caro no mercado financeiro.
  • 9
    . Saint Louis de Bourdon, Entretien B 2, p. 28.
  • 10
    . Em 1998, poucos alunos, 80 em 1.600 ou 1/20 do total, beneficiavam-se de bolsas totais ou parciais, graças à ajuda de antigos alunos do estabelecimento que viviam sobretudo no estrangeiro. Esses antigos alunos davam U$ 300 por ano para cobrir a escolaridade de um aluno.
    "Acreditamos ser uma bela escolha", diz Pierre Dominique.
  • 11
    . No Haiti, as escolas privadas não são subvencionadas pelo Estado. Todas as despesas para o salário dos professores e para o funcionamento do estabelecimento escolar dependem da contribuição dos pais. Assim, em comparação com o nível de vida da população, a instrução é muito cara.
  • 12
    . Em relação à reprodução, ver Bourdieu e Passeron (1970).
  • 13
    . A República do Haiti é administrativamente dividida em nove departamentos, 135 comunas e 565 seções comunais. "Aproximadamente 125 das 565 seções comunais do país ainda não têm escolas públicas; vinte delas não têm escola nenhuma." (Aristide, 2003, p.56).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Aceito
      25 Abr 2008
    • Recebido
      05 Jan 2008
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