Open-access A família no Governo Bolsonaro: o Estado como operador de uma pedagogia moral

La Familia en el Gobierno Bolsonaro: el Estado como operador de una pedagogía moral

Resumo

O interesse do artigo é mostrar o modo como uma concepção do estado como operador de uma pedagogia moral foi acionado no governo Bolsonaro (2019-2022). Com o objetivo de explorar a forma específica que o familismo assume, com o foco principal na velhice, e no modo como as relações entre gerações adultas na família são tratadas nos discursos que definem e caracterizam os programas e ações levadas a cabo pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Com base em uma metodologia qualitativa, envolvendo entrevistas veiculadas na mídia impressa e eletrônica, análise de documentos divulgados pelo MMFDH e de notícias na imprensa, a pesquisa se voltou particularmente para duas secretarias que compõem o MMFDH, a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa e a Secretaria Nacional da Família.

Palavras-chave
família; políticas públicas; moralidade

Abstract

This article aims to examine how a conception of the State as operator of a moral pedagogy was implemented in the Bolsonaro administration (2019–2022). There is a specific focus on the form that familism assumed during this period, particularly considering old age and how intergenerational family relations were addressed in the discourses that informed and characterized programs and initiatives carried out by the Ministry of Women, Family, and Human Rights (MMFDH). Employing a qualitative methodology—including interviews published in print and digital media, analysis of official documents released by the MMFDH, and press coverage—, the research concentrates on two secretariats within the Ministry: the National Secretariat for the Promotion and Defense of the Rights of Older Person, and the National Secretariat for the Family.

Keywords
Family; public policies; morality

Resumen

Este artículo se centra en mostrar cómo se ha producido una concepción del Estado como operador de una pedagogía moral en el Gobierno Bolsonaro (2019-2022). Su objetivo es explorar cómo asume el familismo con el foco principal en la vejez y cómo se tratan las relaciones discursivas entre las generaciones adultas en la familia que definen y caracterizan los programas y acciones llevadas a cabo por el Ministerio de la Mujer, de la Familia y de los Derechos Humanos (MMFDH). Con base en una metodología cualitativa, que involucró entrevistas publicadas en medios impresos y electrónicos, análisis de documentos publicados por el MMFDH y noticias en la prensa, esta investigación se enfocó particularmente en dos secretarías que conforman el MMFDH: la Secretaría Nacional de Promoción y Defensa de los Derechos de las Personas Mayores y la Secretaría Nacional de la Familia.

Palabras clave
familia; políticas públicas; moralidad

Introdução

Numa entrevista dada ao programa Brasil em Pauta (CanalGov, 2022), Antonio Costa – Secretário Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) – afirmou “Nossa família, do meu ponto de vista, pelo tanto que estou vendo de violência, ela está doente, ela precisa ser tratada”.

O MMFDH foi criado no Brasil em 2019, no governo Jair Bolsonaro, tendo como ministra a pastora Damares Alves, e foi extinto em 2023, com o novo governo. As análises sobre o MMFDH têm mostrado a centralidade que a família ocupa em sua estrutura interna, tanto nas ações empreendidas quanto nos discursos da Ministra e de seus secretários.

Num artigo sobre Mulher e Família, a socióloga Marília Moschkovich (2022) mostra que a perspectiva de gênero foi erradicada do MMFDH, transformando a família numa ferramenta para a solução de problemas sociais. O foco na família, considera a autora, foi uma tática efetiva para materializar a política anti-gênero de forma a apagar institucionalmente desigualdades que as políticas públicas de Direitos Humanos de governos anteriores buscariam, em tese, atenuar ou resolver. Por meio de uma análise do uso do YouTube pelo Ministério, a autora procura mostrar que a concepção que rege essas ações considera que campanhas ou publicidade seriam políticas públicas capazes de resolver os problemas sociais formulados como problemas morais. Para a resolução de problemas sociais bastaria uma solução moral, ensinar as pessoas a se relacionarem em sua vida particular cotidiana da maneira supostamente adequada. Ou seja, uma concepção em que o Estado seria o operador de uma pedagogia moral.

Em direção, em alguns aspectos, semelhante, Teixeira e Brioli (2022) mostram como a “ideologia de gênero” restringiu direitos e barrou políticas públicas na Câmara de Deputados. As advogadas Campos e Bernardes (2022) apontam que a “ideologia de gênero” é uma expressão que marca o atual embate conservador contra as conquistas e a visibilidade de movimentos de minorias e uma reação violenta aos estudos feministas e queer sobre o gênero. É uma “ideologia de gênero de natureza familista”, espalhando pânico contra os feminismos e a população LGBTIQ+. As autoras consideram que o MMFDH é o principal difusor da ideologia familista, fortalecendo políticas de defesa da família patriarcal contra feminismos e movimentos LGBTIQ+. Como reação às conquistas democráticas que desafiavam algumas estruturas conservadoras da sociedade brasileira, no governo Bolsonaro (2019-2022).

O discurso da Ministra [Damares Alves] revela uma manipulação do conceito de gênero com o propósito de confundir a opinião pública e criar um clima de pânico moral. O pânico moral, resultante da “reação violenta ao gênero”, é uma estratégia utilizada em conjunto com a ansiedade sexual, (...) o conceito de gênero e a união de pessoas de mesmo sexo são utilizados como ameaças à identidade de crianças e adolescentes e ao casamento tradicional, devendo, portanto, serem combatidos. Gays, lésbicas e trans ameaçam a identidade fixa de gênero, a ideia de casamento, da reprodução e da família como fundamento da estrutura patriarcal. (Campos & Bernardes, 2022, p.6)

A presença da família nas políticas públicas não é novidade, e sabemos que as políticas públicas são ativas na recriação da família e de suas obrigações. Como aponta o sociólogo Donzelot (1980), desde o século XIX, o movimento de normalização das relações na família foi um processo liderado pelo surgimento e expansão das profissões e instituições de assistentes sociais, que se espalharam pelas ruas e tribunais, empenhadas no governar as famílias. Contudo, como mostram com detalhes e precisão as autoras nos artigos citados, a família parece ter ascendido ao primeiro plano no governo Bolsonaro.

É, portanto, imprescindível complexificar a relação entre o estado de bem-estar e a família, de modo a explorar as formas que o biopoder (Foucault, 1988) assume quando a problemática dos idosos está em jogo, levando em conta o aparato legal, as políticas públicas específicas e os dilemas nelas envolvidos. Esse artigo tem como objetivo explorar a forma específica que o discurso familista assume, particularmente quando também concerne a problemática das pessoas idosas, para entender como as relações entre gerações adultas na família são tratadas nos programas e ações levadas a cabo pelo MMFDH.

Com base em uma metodologia qualitativa, envolvendo entrevistas veiculadas na mídia impressa e eletrônica, análise de documentos divulgados pelo MMFDH e de notícias na imprensa1, a pesquisa se voltou particularmente para duas secretarias que compõem o MMFDH, a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa e a Secretaria Nacional da Família.

Interessa apresentar, por um lado, os significados que família passa a articular na formulação e caracterização das políticas públicas no referido contexto; por outro, considerando que a relação entre família e políticas anti-gênero foi explorada com precisão nas análises sobre o MMFDH, buscou-se atentar para as práticas discursivas que operam a combinação entre neoconservadorismo e neoliberalismo e a retórica que legitima, no contexto nacional, essa junção entre ideologias distintas que têm se aliado em diferentes países.

Para Brown (2019) e Cooper (2017), a presença dos ideais familistas explicariam a aliança entre o neoliberalismo e neoconservadorismo que tem caracterizado as políticas públicas em diferentes contextos nacionais. A tese central das autoras é que essas ideologias aparentemente contraditórias se aliam e a chave dessa aliança está na família e na exacerbação das responsabilidades familiares.

Em outras palavras, sabemos que é próprio do conservadorismo a defesa e a valorização da família como a base da sociedade, mas, no caso do liberalismo, a defesa da autonomia individual e do livre mercado entraria em conflito com as hierarquias de gênero e gerações que marcam a vida familiar. Contudo, consideram as autoras, os neoliberais estão convencidos da importância da família, cuja ausência aumentaria os custos do Estado com os idosos, as crianças abandonadas, as mães solteiras, enfim, com a seguridade social.

O interesse deste artigo é o de oferecer elementos para a compreensão de que família foi essa que estava sendo criada no MMFDH; de que modo a distribuição de responsabilidade é nela semantizada; e qual é o tipo de retórica que legitima a constituição desse novo lugar político para a família. A primeira parte do texto é dedicada à apresentação da estrutura do MMFDH e da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, com ênfase nas mudanças na relação com o Conselhos Nacional de Defesa da Pessoa Idosa e na transformação da violência contra a pessoa idosa em violência familiar. Na sequência, o foco é a Secretaria Nacional da Família. Procura-se apontar o tipo de retórica que legitimou os principais programas desenvolvidos nestas duas secretarias e como eles são caracterizados pelos seus secretários e encarregados e outros agentes que discutem as iniciativas e programas levados a cabo no MMFDH.

Nas considerações finais, atentamos para o caráter do familismo e para o conjunto de problemas sociais que se espera que a família criada pelo MMFDH poderia resolver e discutimos o aparente sucesso que as estratégias discursivas e argumentativas podem ter ganhado para além daquela conjuntura política, considerando a pluralidade de significados que a palavra família pode articular.

O MMFDH e a “família doente”

O MMFDH, criado em 2019 e extinto em 2023, foi considerado um superministério em termos de sua estrutura, porque uniu diferentes secretarias que contavam com orçamentos próprios e gozavam de status ministerial: a Secretaria de Políticas para Mulheres e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ambas fundadas em 2003 durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, e a Secretaria de Direitos Humanos, criada em 1997 no início do governo de Fernando Henrique Cardoso. À sua estrutura – que até então, além das duas secretarias, possuía a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos e onze órgãos colegiados – foram incluídas outras secretarias: a Secretaria Nacional de Proteção Global; a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência; a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa; a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; a Secretaria Nacional da Família e a Secretaria Nacional da Juventude.

A figura 1, apresentada a seguir, permite uma visualização mais completa do MMFDH.

Figura 1
Organograma do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, elaboração própria.

Entre os órgãos colegiados, estavam os Conselhos que, voltados à defesa de direitos de segmentos específicos da sociedade, passaram a ser de competência do MMFDH. Segundo Gohn (2001) e Almeida e Tatagiba (2012), os Conselhos surgiram na década de 1970, orientados pelo princípio da paridade entre representantes do estado e da sociedade civil e tendo por incumbência formular, supervisionar e avaliar as políticas públicas voltadas para os direitos de diferentes segmentos sociais.

Um dos primeiros decretos do governo Bolsonaro foi a extinção ou esvaziamento de 75% dos Conselhos, o que foi visto por diferentes analistas como um desmonte da participação popular nas discussões sobre políticas públicas. Nas palavras da cientista política Carla Bezerra:

As perdas que a gente tem são uma redução da transparência. Organizações que fiscalizam, que controlam para ver o uso adequado dos recursos públicos deixam de ter acesso aos dados, deixam de conseguir acompanhar como é que a política pública está sendo executada. Você tem uma perda na qualidade da política e um enfraquecimento, fragilização da própria democracia brasileira. (Jornal Nacional, 2021)

Uma decisão do STF limitou, ainda em 2019, o alcance do decreto, impedindo que conselhos criados por lei fossem extintos. Mas o professor de Direito Constitucional da UFF Claudio Souza Neto disse que o governo passou a encontrar outras maneiras de restringir a participação da sociedade. “Ele tem lançado mão de outros subterfúgios para evitar o funcionamento dos conselhos, tem alterado a sua composição, excluído membros da sociedade civil, alterado procedimentos. A rigor, o governo retira efetividade, autenticidade, integridade desses órgãos” (Jornal Nacional, 2021).

A situação do Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos (CNDI) é significativa. Criado em 13 de maio de 2002, o Decreto 5.109 de 2004 classificou o conselho como órgão de caráter deliberativo integrante da estrutura regimental da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR). O CNDI era composto por 28 membros divididos igualmente entre representantes das instituições governamentais e das instituições da sociedade civil organizada. Entre as competências do CNDI, podem-se destacar em seu regimento interno:

  • Contribuir para o aperfeiçoamento da legislação pertinente à Política Nacional do Idoso (PNI) e zelar pelo cumprimento de acordos e convenções internacionais relativos aos idosos e ao envelhecimento da população;

  • Apoiar os conselhos estaduais, municipais e do Distrito Federal de defesa dos direitos do idoso e incentivar a criação de novos conselhos do gênero em diferentes níveis;

  • Promover campanhas educativas sobre os direitos do idoso;

  • Acompanhar a elaboração e a execução das propostas orçamentárias da União indicando modificações pertinentes para que sejam respeitados os direitos do idoso; (...)

  • Promover estudos, debates e pesquisas sobre a aplicação e os resultados dos programas e projetos destinados à população idosa desenvolvidos pela SDH/PR;

  • Estimular os mecanismos de participação e controle social que objetivam a garantia e a efetividade dos direitos do idoso. (Ipea, 2012, pp.14-15).

Maria Lucia Secoti Filizola, que era presidente do CNDPI para o biênio 2018-2020, mostrou que, na ocasião, o Governo Federal, com o ato normativo de 2019 (decreto 9893), reduziu drasticamente o número de conselheiros, inserindo apenas aqueles diretamente ligados ao MMFDH. Na prática, a alteração retirou de instituições da sociedade civil de reconhecida representatividade a possibilidade de discutir, trabalhar e deliberar sobre assuntos afetos à população idosa. Ele passou a ter apenas seis membros: três representantes do MMFDH e outros três da sociedade civil. O decreto determinou que o presidente será sempre o titular da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do MMFDH, nomeado pela ministra.

Nas palavras de Filizola em nota pública do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (2019) sobre a publicação do decreto 9.893/2019:

É incontroverso que o cenário nacional indica a necessidade de se trabalhar em sentido oposto ao construído pelo referido ato normativo. Desconsidera-se totalmente o aumento da população idosa e a necessidade de serem implementadas políticas públicas que assegurem a esta população a prevenção e repressão das violações diárias de direitos humanos a que são submetidos os idosos brasileiros.

O CNDI foi criado por lei, não por decreto, e por essa razão não foi extinto, mas como mostram Bezerra et al. (2024), além da destituição da presidenta e da redução da representação do Conselho, as decisões sobre a gestão dos recursos do Fundo Nacional do Idoso ficaram, na prática, concentradas na figura do Secretário, que é quem executa as verbas do Fundo. A alteração significou que o governo passou a concentrar a capacidade de decidir quais projetos serão financiados com os recursos do Fundo.

As ações desenvolvidas na Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa (SNDPI) mostram a centralidade da família, particularmente no combate à violência contra a pessoa idosa, com ênfase no contexto da pandemia.

Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa (SNDPI)

A SNDPI foi comandada por Antonio Fernandes Toninho Costa, que é pastor evangélico batista e dentista. Especialista em saúde indígena, seu currículo – disponibilizado pelo próprio Ministério – não traz nenhuma experiência ou formação na temática dos direitos dos idosos. Foi presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio) em 2017, por quatro meses, indicado pelo PSC, àquela época partido do presidente Jair Bolsonaro. Antes disso, foi assessor parlamentar na Câmara dos Deputados entre 2012 e 2016.

Entre as responsabilidades da SNDPI, de acordo com a página do MMFDH no site do governo, destacava-se a de “formular, apoiar, articular e avaliar políticas públicas de promoção dos direitos dos idosos com base na perspectiva da família, no fortalecimento de vínculos familiares e na solidariedade intergeracional”.

Em uma entrevista para o programa Brasil em Pauta (CanalGov) realizada em 20 de fevereiro de 20222, Costa comentou o trabalho do SNDPI, considerando que houve um esforço da Secretaria “para que o tempo perdido em políticas públicas de envelhecimento sejam retomados, como estamos retomando desde um ano de 2019”, uma retomada para “preparar o Brasil para o envelhecimento populacional”, com meta de municipalizar, levar para os Estados e municípios a Política Nacional do Idoso.

O maior desafio do momento, afirmou então o Secretário na mesma entrevista, é a questão da violência contra a pessoa idosa, que, segundo ele, envolveu a ampliação e divulgação do canal de denúncia do MMFDH, o Disque 100, e a Operação Vetus. Nas palavras de Costa:

O disque 100 anterior não mostrava um retrato fiel dessas denúncias. (...) As denúncias e violência sempre ocorreram, mas durante o período da pandemia, por conta das pessoas idosas estarem mais dentro das suas casas (...) aumentou o número de acusações (...) a maioria, infelizmente, ocorre no seio familiar, então nós temos que trabalhar a família (...) A gente não vai ver nenhum idoso, com raras exceções, sendo violentado na rua, porque a comunidade não deixa, a comunidade hoje tem um sentimento diferente de proteção. Esse é o maior desafio da secretaria, e para isso nós estamos criando um programa específico, que é a Rede de Proteção Nacional para a Pessoa Idosa (...) nós estamos trazendo os Presidentes Estaduais de Conselhos, a Defensoria Pública, Polícia Civil, para que possamos armar em cada município essa rede de proteção. Porque não adianta só o disque 100 aportar a denúncia, é necessário que ela seja apurada (...) é esse o objetivo da secretaria: diante da violência, organizar os municípios que queiram realmente, efetivamente, combater essa violência, e precisamos fazer isso, porque as cenas que nós temos de violência (...) é muito triste, a gente ver a situação que os idosos brasileiros estão sendo tratados. Nós não podemos permitir isso.

(CanalGov, 2022)

A violência contra a pessoa idosa foi também um dos temas discorridos pela Ministra Damares Alves na Audiência Pública da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa na Câmara dos Deputados realizada em 8 de abril de 2021, quando foi convidada para apresentar os objetivos e metas do plano de contingência do MMFDH para as pessoas idosas durante a pandemia. “Em nosso Disque 100, Deputados, começaram a estourar denúncias de filhos roubando idosos, netos roubando idosos (...) idosos amarrados, idosos acorrentados, idosos sendo torturados” (pp.7-8).

Para o combate de golpes financeiros, relata a Ministra Damares Alves na audiência, uma parceria foi feita com o Conselho Nacional de Justiça para recomendar aos cartórios que tomem cuidado com o número de procurações de amplos poderes cedidas por idosos. “Netos e filhos diziam o seguinte: "Você não pode sair de casa. Então, você me dê uma procuração" (...). vimos familiares, cuidadores, filhos transferindo os imóveis dos idosos em tempo de pandemia, em forma de fraude” (p.8).

Ainda no combate à violência, a chamada Operação Vetus é caracterizada, nas palavras do ex-Secretário, na mesma entrevista ao programa Brasil em Pauta, como um programa de Estado. É uma parceria do MMFDH com o Ministério da Justiça, Polícia Civil e Polícia Militar.

Começamos em 2021, foram apreendidas quase 600 pessoas no mesmo dia, que estavam violentando esses idosos, as cenas são degradantes, são cenas que dá para chorar o que estão fazendo com os idosos, e agora em 2021 nós repetimos a operação, quase 18 mil idosos foram atendidos em situação de violência e foram efetuadas durante esse período da Operação Vetus mais 400 prisões. Mas nós não queremos prisões, nós queremos que as pessoas sejam sensibilizadas, conscientizadas a dar um tratamento mais digno à pessoa idosa.

(CanalGov, 2022)

Para a ex-ministra, a Operação Vetus resultou na maior operação policial do mundo para prender agressores de pessoas idosas e lamenta, na Audiência, que a imprensa não tenha dado a cobertura devida à ação desenvolvida.

Nesse dia, de manhã cedinho, eu já estava na rua com a polícia atrás de bandidos (...). Nós fomos, ao mesmo tempo, Deputados, a 1.400 Municípios. Eram 14 mil policiais nas ruas. As cenas são fortes. Eu gostaria muito que a Comissão assistisse ao nosso vídeo. Nós encontramos idosos acorrentados em chiqueiros. Nós libertamos idosos de cativeiro. Nós vimos cenas de a polícia chegar nas casas, e as velhinhas, idosas queridas, erguerem as mãos e gritarem: “Me tira daqui”. Havia idosos há 1 mês sem tomar banho, idosos torturados, idosas estupradas.

(Audiência Pública da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, 2022, p.8)

Ainda sobre o combate à violência contra a pessoa idosa, Costa mencionou uma parceria feita com a Febraban para a conscientização sobre esses golpes. E concluiu opondo a “família doente” à “família desejada”:

Nós precisamos ter essa convivência inter direcionada: família, criança, jovem com esse público, que já prestou tantos serviços à nação brasileira, através dos seus ensinamentos, da sua experiência… E o idoso não quer muito, ele quer acolhida, ele quer amor, é isso que precisamos dar, é isso que precisamos mudar esse quadro para que a violência não seja mais notícia de jornal e nem de televisão no nosso país.

(CanalGov, 2022)

O Secretário ainda realçou outras iniciativas. O Pacto Nacional do Direitos da Pessoa Idosa, que tinha como objetivo sensibilizar estados e município para a criação de conselhos para a defesa da pessoa idosa e capacitar conselheiros nesta tarefa; o Programa Viver: Envelhecimento Ativo e Saudável, cujo finalidade era a de “ser um programa de inclusão desses idosos a era da informática” e consistiria “na doação de computadores com webcams, impressoras e televisores para municípios ou estados selecionados” (CanalGov, 2022); e o programa Solidarize-se, de ajuda às instituições de longa permanência de pessoas idosas no contexto da pandemia (para mais detalhes sobre os programas, ver Debert e Mortara, 2023).

Em sua análise sobre o uso do twitter do MMFDH durante o início da pandemia, Moschkovich (2022) pontua que:

Quando a pandemia se intensificou no Brasil e começou a quarentena, os tweets do MMFDH se concentraram em divulgar serviços já existentes de denúncias de violações de direitos humanos (Disque 100) e correlatos (como o Disque 180 para denúncia de violência doméstica), deixando subentendido que apenas o contexto familiar e doméstico – e não o hospitalar, de saúde e outros – seria ponto de atenção em relação aos direitos humanos. Violações amplas de direitos humanos como falta de acesso à vacinação, desabastecimento previsível de oxigênio e atendimento nocivo em hospitais (como nos casos da Prevent Sênior) e por médicos (como nos casos dos desdobramentos do “kit Covid” de medicamentos, incluindo a cloroquina) não receberam nenhuma atenção nos tweets do ministério. (p.15)

A centralidade da família, particularmente no que diz respeito à velhice, é surpreendente. Como mostram Andreas Hoff, Susan Feldman e Lucie Vidovicova (2011), na apresentação de um número especial do International Journal of Ageing and Later Life, a discussão contemporânea sobre a velhice pode ser caracterizada pela combinação de dois discursos: um que discorre sobre as dificuldades envolvidas no aumento da população idosa, e outro que trata dos problemas relacionados ao declínio da estrutura tradicional da família. Duas soluções contrastantes, indicam esses autores, são dadas para o dilema envolvido na diminuição da oferta de cuidados que a combinação desses discursos atesta. A primeira considera que a provisão do cuidado é uma tarefa da sociedade, e a responsabilidade principal é do Estado, que, através de impostos, cobriria os gastos envolvidos nas políticas adotadas. A segunda advoga o papel tradicional da família no cuidado de seus membros dependentes. Os autores tendem a ver a viabilidade da segunda solução progressivamente dificultada, particularmente, quando se verifica que a renda familiar conta cada vez mais com o trabalho conjugado do casal.

Contudo, o tema das novas formas que a família assume — como apontam Debert e Simões (2013), Fonseca (2016), Finamori e Ferreira (2018) — e a centralidade da família nas propostas e validação de políticas públicas mostram que a família, essa “ilusão bem fundamentada”, nas palavras de Bourdieu (1996), tem uma presença muito mais vigorosa nas soluções propostas de políticas públicas para o atendimento dos setores vulneráveis.

É nessa direção que Wendy Brown (2019) e Melinda Cooper (2017) reiteram que os estados de bem-estar social, particularmente depois da Segunda Guerra Mundial, assumiram boa parte do que era tido como responsabilidade da família no processo de universalização da educação, do direito à saúde e no combate à pobreza por meio de políticas redistributivas. O novo, que marca o neoliberalismo para as autoras, estaria na crítica à intervenção do Estado tida como exagerada, combinada com a volta e o recrudescimento das responsabilidades e dos valores familistas. Desta perspectiva, o compromisso com o bem-estar do idoso deveria ser da alçada da família, e não da Previdência Pública. Da mesma forma, a pobreza das mães solteiras deveria ser combatida por seus maridos, e a das crianças por seus pais biológicos. Com base na história recente dos Estados Unidos, Cooper (2017) mostra que a década de 1960 é marcada por essa perspectiva, com fortes desdobramentos nas décadas seguintes, levando ao desmantelamento das obrigações do Estado e tornando a família parte constitutiva do neoliberalismo.

Na Secretaria Nacional da Família, a oposição entre a família real e a família que o MMFDH pretendeu criar por meio de ações voltadas para uma pedagogia moral é um elemento central — e prioritário — nas políticas públicas defendidas e ensaiadas.

A Secretaria Nacional da Família (SNF)

“Nós temos, infelizmente, uma cultura hipersexualizada, uma cultura de pouca formação, e de parentalidade zero, de habilidades parentais zero”

A frase que serve de epígrafe deste item é de Angela Vidal Gandra da Silva Martins, que foi Secretária Nacional da Família no MMFDH, dita na entrevista dada a Bruno Magalhães no programa Contraponto (Brasil Paralelo), em 14 de março de 2022.

Angela Vidal Gandra da Silva Martins é jurista, advogada, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Nessa entrevista ela é apresentada como a pessoa “convidada para a gestão, por Damares Alves, após a defesa que fez do nascituro, no Supremo Tribunal Federal, em 2018, contra a legalização do aborto no Brasil”. Ela inicia dizendo:

É inédito no Brasil nós termos um Ministério da Família, uma Secretaria Nacional da Família, e o que visa uma Secretaria Nacional da Família: empreender políticas públicas familiares (...) a única meta de uma política pública familiar, que às vezes a gente desconhece, é o fortalecimento de vínculos familiares. É conseguir a melhoria da qualidade de relações da família, e dessa forma conseguir prevenir comportamento de risco, erradicação de pobreza, uma sociedade mais pacífica, um trabalho melhor, porque uma família estruturada trabalha melhor. O foco é o fortalecimento dos vínculos e não haveria incompatibilidade com o Estado (...) porque o estado vai fortalecer a autonomia da família. Só que nós não estamos acostumados com isso. Sempre é o Estado que cuida da educação, o Estado que cuida da mulher, o Estado que cuida do idoso, da criança, do adolescente, do jovem. Então o que acontece? Nós estamos numa transição no modo de encarar a família, fortalecendo esses vínculos. Nós queremos, de fato, que haja um respeito e uma projeção desta autonomia.

(Brasil Paralelo, 2022)

Para exemplificar o trabalho realizado, ela destacou dois programas que ilustrariam como o Ministério mobilizou essa pedagogia para promover essa nova forma de envolver a família nas políticas públicas. O homeschooling, sobre o qual ela afirma ser uma meta especial de sua gestão e de Damares Alves: “nós temos lutado para que os pais sejam os primeiros protagonistas da educação dos filhos” (Brasil Paralelo, 2022). A ideia era, além de promover a participação dos pais na educação dos filhos, como com o programa Família na Escola, dar segurança jurídica às famílias que desejam aplicar o homeschooling, para que os pais tenham a liberdade e o “direito humano” de decidirem sobre a educação de seus filhos. O outro exemplo é a campanha de gravidez na adolescência promovida pelo governo. “Antes as campanhas indicavam que os adolescentes buscassem o Ministério da Saúde e informações sobre métodos contraceptivos, camisinha, preservativos”. O foco da campanha do MMFDH é: “pense no seu projeto, tudo tem seu tempo, converse com a sua família, inclusive estamos trazendo formação para os pais sobre sexualidade e afetividade, porque eles são os primeiros responsáveis” (Brasil Paralelo, 2022).

Para a ex-Secretária, essa transição era necessária porque a Declaração Universal de Direitos Humanos reconhece a família como a primeira protagonista da sociedade e destaca, na mesma entrevista, três eixos da ação de SNF: Famílias Fortes, Equilíbrio Trabalho-Família e Reconecte.

O primeiro, Famílias Fortes, visava o fortalecimento de vínculos familiares de modo a prevenir o uso de drogas, por meio do treinamento de habilidades parentais. Era composto por 7 encontros semanais presenciais de 2 horas cada. Na primeira hora os pais/responsáveis e os adolescentes (10 a 14 anos) participavam, separadamente, de oficinas estruturadas. Na segunda hora, eles se juntavam para realização de atividades em família.

O segundo programa mencionado na entrevista é o Equilíbrio Trabalho-Família, que promoveria ações de educação, premiação e reconhecimento de práticas organizacionais em empresas e municípios com o objetivo de “fomentar o equilíbrio entre responsabilidades familiares e profissionais” (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2020).

O Reconecte é o terceiro e tratou sobre o impacto das tecnologias na família e visa a conscientização dos comportamentos de risco, “necessária por causa dos conteúdos nocivos que instigam suicídio e automutilação”, nas palavras da Secretária Nacional da Família na entrevista mencionada. Segundo a apresentação do programa, seus objetivos específicos eram: esclarecer a respeito dos impactos do uso inadequado da tecnologia nas relações familiares; promover uma conscientização sobre a utilização dos recursos tecnológicos de maneira inteligente; iniciar um debate nos mais diversos segmentos sociais sobre o papel da tecnologia nas relações humanas; e despertar nas pessoas um entendimento sobre o papel da família na promoção do uso de recursos tecnológicos de forma inteligente. Nas palavras da Secretária em uma cerimônia do programa:

O olho no olho continua fazendo a diferença na relação conjugal e também no relacionamento entre pais e filhos. Atualmente, vemos filhos que não soltam o celular, pais que não dão atenção às crianças, problemas de saúde e familiares devido à dependência tecnológica, aumento dos crimes cibernéticos. O Reconecte vem com o intuito de enfrentar esses problemas (...), precisamos nos reconectar com a família, a sociedade e com nós mesmos. Que o mundo real possa ser trazido de volta. Que pequenas ações sejam feitas, como não pegar o celular na hora do jantar. São coisas assim, pequenas, que podem fazer a diferença. Nós temos que ter o controle da tecnologia e não deixar que ela nos controle.

(Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2022)

A retórica pela qual cada um destes programas foi descrito procura operar uma combinação entre o caráter científico da metodologia envolvida com o sucesso de programas realizados em diferentes países e um apelo à defesa da família em que a ex-Secretária substitui a perspectiva religiosa por um humanismo distante de concepções teocráticas, como é mostrado a seguir.

Famílias Fortes, por exemplo, era apresentado como um programa baseado em uma metodologia desenvolvida pela Oxford Brookes University do Reino Unido, que já foi aplicado em 26 países e conseguiu realizar o combate à gravidez na adolescência, drogas, alcoolismo, evasão escolar e violência doméstica. A avaliação do programa desenvolvido em diferentes municípios foi feita pela UNIFESP e UFC (2022), sob encomenda da SNF, e concluiu-se que o programa demonstrou:

  • Reduzir 60% a chance de os pais apresentarem estilo parental negligente;

  • Dobrar a chance de os pais apresentarem mais habilidades de responsividade (pais que apoiam e demonstram afeto pelos seus filhos);

  • Aumentar em média 10% as práticas educativas de disciplina não-violenta em comparação com o grupo controle;

  • Reduzir o aumento no escore de conflito comparando ao grupo controle em 5%;

  • O programa mostrou tendência de significância estatística de aumentar em 90% a chance de os pais apresentarem mais habilidades de exigência (pais que estabelecem regras e supervisionam os comportamentos dos filhos);

  • Aos 6 meses de acompanhamento não foram identificados resultados na alteração do consumo de drogas dos adolescentes. (p.6)

As pesquisas voltadas para a relação entre família e as políticas anti-gênero no MMFDH, como as de Moschkovich (2022), mostram com razão que gênero é um conceito científico enquanto família é um termo polissêmico do senso comum. Contudo, é interessante observar como Angela Vidal Gandra da Silva Martins procura dar um caráter científico, respaldado numa metodologia tida como consagrada, às ações desenvolvidas na SNF, que passaram também a ser avaliadas positivamente por instituições federais renomadas academicamente.

O carimbo científico foi combinado com a presença — e o sucesso — dos programas internacionais de políticas públicas de incentivo às famílias, como a filiação das propostas da SNF à Partnership for Families (ONU) e do protagonismo internacional do Brasil nessa iniciativa — como destacado pela Secretária na entrevista citada —, e também com o acesso bem-sucedido da Secretária em instituições e organizações internacionais. Destacou-se a ida do Brasil ao congresso pró-família na Guatemala para a inauguração de um monumento ao nascituro. O currículo da Secretária inclui um período como professora visitante e pesquisadora em Antropologia Filosófico-Jurídica na Harvard University, o fato de ela ser Membro da Academia Brasileira de Filosofia e da Academia Paulista de Letras Jurídicas, professora do CEU Law School, entre outras menções, além dos seus contatos com instituições nacionais e internacionais, particularmente o fato de ter atuado no processo em que a Suprema Corte dos Estados Unidos reviu a prerrogativa jurídica que viabilizava o aborto regulamentado no país (ver Estadão Conteúdo, 2022).

Do seu prestígio no mundo científico não está ausente a demonstração de sentimentos e emoções, pois, ao ser instigada pelo entrevistador do canal Brasil Paralelo (2022) sobre possíveis problemas relacionados com o fortalecimento de vínculos familiares, ela responde: “eu tenho trabalhado muito a solidariedade intergeracional, que eu nem gosto dessa palavra ‘solidariedade’, acho que tinha que ser ‘amor’, o amor, a gratidão aos avós”. Com isso ela explica que um vínculo familiar, segundo sua visão, seria um vínculo que projeta a pessoa para frente, inclusive profissionalmente, e que “nunca vai se desfazer, nunca”.

Sua luta contra a legalização do aborto e a defesa que faz do nascituro na mesma entrevista não são semantizadas desde uma perspectiva religiosa, e sim “como jurista e até mesmo como ser humano”: “O ser humano não precisa crer para defender a vida, porque nós compartilhamos uma natureza e isso é algo natural do ser humano, defender sua própria vida e defender a vida dos demais”.

Numa entrevista à revista Marie Claire em maio de 2020, a então Secretária respondeu à pergunta sobre como iniciou sua atuação como ativista pró-vida afirmando:

Não sei se posso dizer que sou ativista. Sou professora e sempre lutei para que meus alunos refletissem sobre direitos humanos. Hoje posso lutar de uma forma mais ativa e tenho lutado internacionalmente, mas para reflexão, para que a gente pense em que tipo de sociedade a gente quer. (...) A campanha que a gente fez sobre gravidez na adolescência (…) As frases são “informe-se”, “reflita”, “pense no seu projeto de vida”, “converse com a sua família”. Entende? Existe um exercício humano que tu faz (sic) através da reflexão. Penso que meu ativismo vai por aí. Se o ser humano é autônomo, vai mais fundo, além do pragmatismo. Se isso se chama ativismo, sou uma ativista da reflexão humana.

Na mesma entrevista, quando questionada sobre qual é o conceito de família da SNF, ela respondeu:

AG. Não temos conceito. Falei desde o primeiro momento, não trabalhamos conceitualmente.

MC. Mas se o conceito não existe, como o governo vai enxergar as famílias com duas mães e dois pais, por exemplo?

AG. Temos procurado não entrar nisso porque complica nosso fim, que é o fortalecimento. Existe também o conceito constitucional, que é a família e a união estável. Juridicamente, união estável é homem e mulher. Como temos também a decisão do STF, temos que estar dentro da legislação do país, porque a gente trabalha dentro de um Estado democrático de Direito, certo? Mas, em princípio, a família é a família natural. Em princípio. Agora, família natural a gente pode considerar todas essas famílias que se concebem a partir de uma relação de amor. Dá pra entender?

MC. As famílias homoafetivas também entram nisso?

AG. Olha, a gente está tratando de famílias, tá? Só que no ministério, toda a parte de LGBT não cabe a nossa diretoria, tem uma diretoria específica para isso que está na proteção global

[Secretaria Nacional de Proteção Global, que está sob o guarda-chuva do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos].

A retórica em defesa da família contrasta com o modo como a família brasileira é caracterizada. À afirmação de “parentalidade zero”, de “habilidades parentais zero” na fala da ex-Secretária que serviu de epígrafe deste item, são acrescidas considerações como: “Percebemos que os maiores agentes dos dramas das famílias são os pais que não dão atenção devida aos filhos porque estão em uma vida virtual e laboral intensa” (Gazeta do Povo, 2023); “a criança está ali com o celular e o pedófilo atrás dela (...) o inimigo está dentro de casa” (Brasil Paralelo, 2022). Segundo ela, os pais, que muitas vezes estão eles mesmos muito conectados no celular e não ouvem os filhos, não percebem a gravidade do conteúdo do celular, como trabalho infantil em jogos, pedofilia, fotos íntimas de adolescentes, automutilação, e “os comportamentos de risco como drogas, depressão, suicídios poderiam ser mais acompanhados se os pais se libertassem do WhatsApp e tivessem o mundo real mais presente” (Brasil Paralelo, 2022).

O discurso da negligência familiar ganhou seu pico com o retrato que é oferecido das famílias na Ilha do Marajó:

Estamos indo para a Ilha do Marajó [Pará] com o programa "Famílias Fortes". É de fortalecimento do regime familiar porque lá há o maior índice de pedofilia do Brasil. Os pais iniciam as filhas. Foi realmente um insight da ministra [dos Direitos Humanos] Damares. O que a chocou: as famílias vivem disso, da entrega das meninas para barqueiros. A Damares quer fazer uma revolução econômica lá, para que as famílias não precisem recorrer a isso.

(Marie Claire, 2020)

Esses comentários foram acompanhados, ainda, de considerações que afirmam entusiasticamente que “A família é a esperança do brasileiro”, ou que “todo mundo quer se conciliar e viver bem com a família”.

Considerações finais

Esse artigo está repleto de frases emitidas pelos secretários e outros agentes ligados ao MMFDH porque é importante atentar para as estratégias discursivas e argumentativas que caracterizam a retórica utilizada na defesa da família. A família real é a “família doente”, e o dever do Estado é criar a família capaz de resolver problemas sociais que vão muito além das questões de gênero, tão bem caracterizadas pelas autoras citadas na introdução deste artigo.

Trata-se de criar uma família capaz também de combater a violência contra as pessoas idosas; a cultura hipersexualizada; a gravidez na adolescência; e o uso de drogas. O Estado deve fortalecer vínculos familiares oferecendo treinamentos de habilidades parentais para erradicar comportamentos de risco e a pobreza; melhorar condições no mercado de trabalho, envolver a família na escola e possibilitar a escolarização com o homeschooling; conscientizar a família sobre o uso inteligente das tecnologias digitais.

A pedagogia moral do governo Bolsonaro se empenhou em convencer de que algo muito simples pode ser feito para a resolução de questões que afligem a sociedade. Problemas sociais são tidos como problemas morais, resultados da falta de comunicação na família, e o dever do estado é promover essa comunicação, ensinando a pais e filhos como se comportar e assumir suas obrigações e responsabilidades ao longo do curso da vida. Enfim, tratava-se de um Ministério que tinha o termo família em seu nome, marcando o destaque do tema em uma pasta que não foi tímida em expressar sua posição no debate social.

É difícil avaliar se essa retórica teve sucesso. O fato é que a ministra Damares Alves deixou o MMFDH no mês de março de 2022 para se candidatar nas eleições daquele ano e foi eleita senadora pelo Distrito Federal, obtendo 714.562 votos (44,98% dos votos válidos). É fato também que o MMFDH foi extinto pelo novo governo empenhado no combate às políticas neoliberais do governo anterior. Contudo, o termo família passou a fazer parte do título de um dos ministérios mais importantes do atual governo que é o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

É preciso, portanto, rever o argumento de Brown (2019) e Cooper (2017) de que a família é a chave da aliança estabelecida entre o neoconservadorismo e o neoliberalismo que tem caracterizado, na atualidade, políticas sociais em diferentes contextos nacionais.

As colocações de Wendy Brown sobre a racionalidade neoliberal e de Melinda Cooper sobre o lugar ocupado pela família como valor e princípio moral nesta racionalidade trazem pistas importantes para a reflexão sobre os dados aqui apresentados, oferecendo chaves analíticas para a compreensão da disseminação de uma cultura política e de formas de subjetivação que promovem a substituição do Estado pela família na provisão do bem-estar e do cuidado, como mostramos que ocorre no MMFDH.

Mas pensar no MSD exige reconhecer que o termo família pode estar sedimentando outros tipos de alianças, dada a pluralidade de significados que o termo é capaz de articular.

Agradecimentos

As autoras agradecem ao projeto internacional de pesquisa Who Cares? Rebuil-ding Care in a Pospandemic World (Cebrap, Fapesp, CNPq, Fundação Arymax), do qual fazem parte, pelos comentários da equipe que contribuíram para a reflexão sobre o tema deste artigo. Mais informações sobre o projeto estão disponíveis em: www.cuidado.cebrap.org.br.

  • Apoio e financiamento:
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, (Grant / Award Number: '305585/2021-5','372454/2022-4').
  • Revisão textual:
    Normalização bibliográfica (APA 7ª Ed.), preparação e revisão textual em português: Maria Thereza Sampaio Lucinio thesampaio@uol.com.br>
    Versão para língua inglesa: Roberto Candido Francisco traducao@tikinet.com.br>
    Preparação e revisão textual em inglês: Revisado pelas autoras.
  • 1
    A busca e análise foram feitas a partir de duas frentes principais: (1) Mapeamento de páginas no portal gov.br contendo textos da gestão 2019-2023 sobre os programas e políticas públicas de interesse à pesquisa; (2) Buscas em mídias eletrônicas a partir dos nomes das políticas públicas de interesse e nos termos “Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”, “Damares Alves”, “Angela Gandra” e “Antonio Costa”, concentrando especial atenção em entrevistas concedidas pela Ministra e Secretários a revistas, jornais e canais do YouTube de relevante acesso do público.
  • 2
    O trecho foi retirado da página do gov.br sobre “pessoa idosa” quando ela ainda era administrada pelo MMFDH, no dia 18/10/2022. Após a transição de governo em 2022 e a mudança do Ministério, os textos foram alterados.

Disponibilidade de dados:

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Referências

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2024
  • Revisado
    08 Maio 2025
  • Aceito
    14 Jul 2025
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