Resumo
Com o reconhecimento da Libras, a partir da publicação da Lei n.º10.436/2002 e do Decreto n.º 5.626/2005, essa passou a se constituir como disciplina curricular obrigatória em todos os cursos de licenciatura das instituições de ensino do Brasil. Este artigo, portanto, pretende responder à seguinte pergunta: a disciplina de Libras, presente na grade curricular dos cursos de licenciatura em Química e Ciência Biológicas, aborda ou proporciona discussões voltadas à formação de professores na perspectiva da educação inclusiva? Para isso, o objetivo desta pesquisa é analisar, segundo a visão de professores de Libras e estudantes dos cursos de licenciatura em Química e Biologia, os conteúdos abordados e discutidos durante a formação dos licenciandos. Os dados foram coletados a partir de análise documental, entrevistas com esses sujeitos e analisados, segundo a análise categorial de conteúdo proposta por Bardin (2016). Os resultados evidenciaram algumas discrepâncias em relação aos conteúdos atribuídos nas ementas, à opinião dos professores e ao que foi aprendido pelos estudantes. Isso pode estar relacionado à falta de informações mais detalhadas sobre o papel e o objetivo dessa disciplina nos cursos de formação docente, que não são contemplados no Decreto, permitindo que cada IES defina, como ela será ofertada.
Palavras-chave
Disciplina de Libras; Formação de professores; Ensino de Ciências Biológicas e Química
Abstract
With the recognition of the Libras following the publication of Law No. 10.436/2002 and Decree No. 5,626/2005, Libras became a mandatory curricular subject in all undergraduate courses at Educational Institutions in Brazil. Therefore, this article aims to answer the question: Does the Libras discipline present in the curriculum of undergraduate courses in Chemistry and Biological Sciences address or provide discussions aimed at teacher training from the perspective of inclusive education? For this, the objective is to analyze the contents covered and discussed during the training of undergraduate students, according to the vision of Libras teachers and students of undergraduate courses in Chemistry and Biology. The data was collected from a documentary analysis, interviews with teachers and students, and analyzed according to Bardin’s (2016) categorical analysis technique of content analysis. The results highlighted some discrepancies in the content assigned in the syllabi, the teachers’ opinions, and what was learned by the students. This may be related to the lack of more detailed information about the role and objective of this discipline in teacher training courses, which are not included in the aforementioned Decree for each HEI to define how the discipline will be offered.
Keywords
Libras discipline; Teacher training; Biological Science and Chemistry teaching
Introdução
Atualmente a educação dos Surdos1 no Brasil vem sendo amplamente discutida. Dois importantes documentos, que garantem a acessibilidade dos quase dez milhões de Surdos no país (IBGE, 2012), merecem destaque: a Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002 (Brasil, 2002), que reconheceu a Língua Brasileira de Sinais – Libras, como meio de comunicação e expressão da comunidade surda, e o Decreto n.º 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (Brasil, 2005), que trouxe grandes avanços às discussões e às pesquisas na Educação de Surdos e na área de Libras, ao prever sua implementação como disciplina curricular nos cursos de formação de professores em nível médio e superior, e cursos de Fonoaudiologia (Brasil, 2005; Costa & Lacerda, 2015; Lodi, 2004).
Para Silva e Banessi (2014), a obrigatoriedade da disciplina nos cursos de formação de professores “surge com uma nova perspectiva para o atendimento com as pessoas surdas em termos de maior acesso a todos os âmbitos da sociedade em que se encontram inseridas, inclusive à esfera educacional” (p. 8). No entanto, o mesmo documento não faz qualquer menção ou oferece orientação sobre como a disciplina deve ser ofertada nas instituições, no que tange a seu formato, seu enfoque, sua organização de carga horária, seu conteúdo a ser ministrado e/ou sua metodologia.
Apesar da falta de esclarecimentos e objetivos na legislação, a inclusão de Libras nos cursos de licenciatura, Fonoaudiologia, e optativa nos demais cursos no Brasil é (ou deveria ser) uma oportunidade de formar futuros profissionais capazes de compreender e valorizar um “mundo visual” com percepções e vivências socioculturais distintas da realidade de uma pessoa ouvinte.
Assim, o presente trabalho apresenta novas reflexões relacionadas à problemática da disciplina de Libras nos cursos de formação de professores de Ciências de Instituições de Ensino Superior (IES) públicas do Brasil, especificamente nas licenciaturas de Química e Ciências Biológicas, a partir de uma análise realizada com ementas, percepções de estudantes e professores de Libras.
A partir do referencial teórico que discute o ensino de Libras na formação de professores e dos dados apresentados por Charallo e Andrade (2022), este trabalho pretende responder à seguinte pergunta: a disciplina de Libras presente na grade curricular dos cursos de licenciatura em Química e Ciência Biológicas de IES públicas do Brasil, com nota 4 e 5 no Enade, aborda e/ou proporciona discussões voltadas à formação de professores na perspectiva da educação inclusiva? Para isso, temos, como objetivo geral, analisar, segundo a visão de professores de Libras e estudantes dos cursos de licenciatura em Química e Ciências Biológicas, os conteúdos que são abordados e discutidos durante a formação dos licenciados. Isso posto, os objetivos específicos procuram esclarecer aspectos específicos do ensino de Libras, ou seja, concepções sobre Surdos, o papel do intérprete, a educação bilíngue e o ensino de Química e Biologia para esses sujeitos.
A disciplina de Libras na formação do professor de Ciências
A formação do futuro professor nas áreas voltadas à Ciência – Química, Ciências Biológicas e Física ‒ precisa proporcionar discussões que envolvam o fazer pedagógico do professor, no que se refere ao ensino de Ciências para estudantes surdos, usuários de Libras, de forma que eles não sejam somente acolhidos pela escola, mas incluídos e respeitados mediante sua singularidade linguística.
À luz dos trabalhos realizados por Brito et al. (2024) e Martins e Lopes (2023), enfatizamos que o papel do professor é superar a visão da Libras como um caminho de acessibilidade para a necessária autonomia do aluno, de forma que ele possa utilizar e participar de todas as atividades escolares. E, quando se trata do professor de Ciências, tal papel se torna ainda mais importante, pois “é através de sua mediação e do diálogo estabelecido que os estudantes reelaboram seus conceitos prévios e podem ter acesso ao conhecimento científico” (Charallo, 2022, p. 56).
Porém, não é isso o que vem acontecendo na maioria das escolas que se denominam inclusivas. Segundo Oliveira e Benite (2015), realizar a matrícula de um aluno surdo em classe comum e garantir o intérprete de Libras para a mediação entre professores e aluno não é o suficiente para que o ensino de Ciências aconteça de forma efetiva, pois existem diversos outros obstáculos encontrados, como a falta de simbologias próprias e termos científicos específicos voltados à área, para os quais não são encontrados equivalentes na Língua de Sinais (Sousa & Silveira, 2011). Para Philippsen et al. (2023), esse é, sem dúvidas, o principal agravante no processo educacional dos Surdos, uma vez que a maioria dos intérpretes não possui graduação específica, necessitando utilizar outros métodos de tradução, tais como os classificadores. Além disso, os materiais elaborados pelos professores são próprios para ouvintes e os Surdos carecem de recursos visuais. “O ensino de Ciências para alunos Surdos é geralmente adaptado por intérpretes, a partir de material elaborado para ouvintes, em língua portuguesa escrita” (Marinho, 2007, p.12). Em decorrência disso, o despreparo dos professores para atuar na educação inclusiva, principalmente no que tange à construção de conceitos científicos, pode gerar exclusão e desinteresse desses alunos pelas aulas (Feltrini & Gauche, 2011).
Ementas de Libras em cursos brasileiros de licenciatura
A ementa de uma disciplina se caracteriza como um breve resumo, no qual é feita a apresentação clara, concisa e objetiva do que se pretende ensinar e os procedimentos a serem realizados. Diante da obrigatoriedade da inserção de Libras na grade dos cursos de formação de professores, Charallo e Andrade (2022) realizaram uma pesquisa com o objetivo de analisar como Libras vem sendo apresentada nos projetos políticos e pedagógicos de 139 cursos de licenciatura em Química e licenciatura em Ciências Biológicas de IES públicas brasileiras, avaliadas com notas 4 e 5 no Enade de 2017.
Charallo e Andrade (2022) identificaram, por meio de revisão da literatura, cinco eixos de temas e conteúdo contemplados pela disciplina de Libras em cada um desses cursos: (1) Concepções sobre o sujeito Surdo; (2) Intérprete Educacional; (3) Educação Bilíngue; (4) Ensino de Química ou Biologia para Surdos; (5) Abordagens sobre inclusão de maneira geral ou concepções sobre a educação especial. Cada eixo possui subdivisões com maior detalhamento de conteúdo, por isso os dados foram coletados por meio da análise categorial em que cada eixo representa uma Unidade de Contexto (UC).
A pesquisa das referidas autoras evidenciou que os temas/conteúdos mais presentes nas ementas são relacionados ao eixo 1 – Concepções sobre o sujeito Surdo – principalmente quanto aos aspectos históricos da educação dos Surdos, ou seja, Libras como língua natural e cultura Surda – e ao eixo 3 – Educação Bilíngue – em especial à aprendizagem de sinais e ao vocabulário. Destacam que os conteúdos que mais aparecem são aqueles destinados a mostrar a importância de os alunos tomarem conhecimento da história da educação dos Surdos, carregada de sofrimentos e limitações, devido às barreiras linguísticas e preconceituosas quanto ao uso da Língua de Sinais. Tais conhecimentos permitem ao professor em formação inicial construir o conceito de surdez bem diferente daquele que se observa no senso comum.
Para tornar as salas de aula de fato inclusivas, outros conteúdos também precisam ser contemplados para que a disciplina não recaia apenas na ideia de formação de professores fluentes na língua de sinais. Reuter e Cavalcante (2024) apontam que a formação deve dialogar com a diversidade, para que os profissionais saibam como se posicionar em relação às propostas inclusivas, reconhecendo suas dificuldades e cientes dos recursos e das necessidades para um atendimento adequado aos alunos surdos.
Outros conteúdos considerados relevantes para a formação do futuro professor, na visão de Charallo e Andrade (2022), são contemplados em menos de 10% das ementas, como a atuação do intérprete de Língua de Sinais no ambiente escolar; as estratégias e as metodologias para o processo de ensino/aprendizagem dos Surdos; os temas específicos para o ensino de Ciências (como os sinais das áreas de Química e Biologia); e as estratégias metodológicas para a ciência. Assim, o trabalho demonstrou como ainda há necessidade de serem estabelecidos mais estudos que subsidiar Libras como disciplina significativa no currículo acadêmico. Segundo as autoras, a baixa carga horária da disciplina, ou seja, 30h e/ou 60h, pode ser um dos motivos pelos quais as IES optam por não abordarem demais conteúdos.
Tais resultados evidenciaram que há inúmeros caminhos, no entanto, ainda são necessárias mais pesquisas nessa área, considerando que Libras vem sendo ofertada há menos de uma década pelas IES. Outrossim, cabe contemplar questões teóricas e práticas voltadas aos sinais e à educação bilíngue dos alunos surdos, bem como ampliar a carga horária de 30h ou 60h e elaborar uma ementa com conteúdo definido, de acordo com a área de cada curso e que, além de carga teórica, também proporcione aos estudantes discussões e trocas associadas às outras disciplinas, possibilitando, assim, o desenvolvimento de um professor crítico em relação a essa temática.
Outro ponto levantado por Charallo e Andrade (2022) foi a falta de informações mais detalhadas no Decreto n.º 5.626/2005 (Brasil, 2005) acerca do objetivo da disciplina de Libras para os cursos de formação de professores, o que contribui para que cada IES defina, segundo suas percepções, quais temáticas são relevantes ou não. Isso ficou evidenciado na pesquisa realizada pelas autoras, pois algumas ementas apresentaram diversidade de conteúdo, enquanto outras estavam voltadas apenas para a o ensino dos sinais. Apesar de o documento não definir como a disciplina é conduzida pelo professor, ele é importante por apresentar as delimitações dos conteúdos relevantes e também evidenciar o que não está sendo considerado como essencial para os cursos. Assim, finalizam as pesquisadora, indicando que a oferta de Libras nos cursos de licenciatura não possibilita e não tem o objetivo de formar professores bilíngues, mas de oferecer suporte para que os futuros professores compreendam as diferentes condições linguísticas entre os alunos surdos e os ouvintes, a fim de que estejam preparados para desenvolver estratégias assertivas, oportunizando que as diversas esferas simbólicas sejam utilizadas para a construção de um novo conhecimento a partir da compreensão de Língua de Sinais, surdez e comunidade linguístico-cultural.
Metodologia
O procedimento metodológico para este estudo está pautado pelos princípios da abordagem qualitativa, a qual, conforme Bogdan e Biklen (1994), pode ser assumida em vários contextos de investigação, sendo que os dados recolhidos são ricos na descrição do perfil dos respondentes, ou seja, o investigador busca conhecê-los para fazer o registro de tudo o que é apresentado por eles.
Assim, tomando como base o referido estudo de Charallo e Andrade (2022), realizamos a presente pesquisa com professores e estudantes de Libras nos cursos de licenciatura em Química e Ciências Biológicas, sendo que aqueles participaram de entrevistas, e estes responderam a um questionário.
A entrevista semiestruturada (Gerhardt & Silveira, 2009) foi composta por 23 questões referentes à formação inicial dos professores participantes e suas percepções sobre conteúdos e abordagens durante a disciplina de Libras com alunos ouvintes. Participaram dessa etapa 5 professores, sendo 2 ouvintes e 3 Surdos, os quais tiveram a entrevista realizada em língua de sinais, com o auxílio de um intérprete de Libras, e foram identificados durante a análise aqui arrolada com a letra P, seguida de um número (P1 a P5).
Quanto aos graduandos, participaram 59 estudantes, sendo 38 dos cursos de Ciências Biológicas, do décimo período do curso, e 21 de Química, do oitavo período, todos já haviam cursado a disciplina no semestre anterior e foram identificados no decorrer da análise dos dados coletados pela letra E, seguida de um número (E1 a E59). A carga horária da disciplina é a mesma nas três instituições participantes, no entanto, a oferta e a distribuição diferem: na IES-1, é ofertada de forma semestral, com carga horária de 60h, equivalendo, praticamente, a cinco meses de estudos teóricos e práticos, com encontros de 4 horas semanais; já a IES2 e a IES3 a dividem anualmente em 30h por semestre, com 2 horas semanais de aula.
Os estudantes responderam a um questionário impresso com 12 questões abertas voltadas a identificar a recepção das aulas de Libras e sua contribuição para seu processo de formação, bem como a relevância dos conteúdos abordados.
Conforme mencionado anteriormente, os dados coletados foram analisados, segundo a técnica categorial da análise de conteúdo de Bardin (2016), pois apresenta um processo que parte da exploração do material, compondo as categorias temáticas, ou seja, identificando os temas mais recorrentes encontrados nos materiais ou enunciados pelos sujeitos participantes da pesquisa (Valle & Ferreira, 2024), bem como na especificação das UC (Unidades de Contextos) e das UR (Unidades de Registro), mencionadas por Charallo e Andrade (2022). A partir da leitura das respostas dos alunos, identificamos a necessidade da criação de Unidades de Registro para a UC4, assim as UR e4.3, e4.4, e4.5 e e4.6 são unidades emergentes, conforme ilustrado na Figura 1.
Unidades de Contextos, Unidades de Registros apresentadas por Charallo e Andrade (2022) e UR emergente
Resultados e discussão
Para que a discussão aqui proposta seja mais consistente, na apresentação dos dados de cada UC serão apresentados também os das ementas já publicados no estudo de Charallo e Andrade (2022). Assim, nas figuras a seguir, os dados das colunas “Professores” e “Estudantes” (oriundos das entrevistas e questionários aplicados pelas autoras da presente pesquisa) são originais, enquanto os da coluna “Ementas” referem-se ao estudo dessas autoras.
Para a UC1, intitulada Concepções sobre o sujeito surdo, foram analisadas ao todo seis questões, quatro provenientes da entrevista com os professores e duas do questionário com os estudantes, sendo elas: Quais conteúdos você trabalha na disciplina de Libras?; Você aborda temas sobre a cultura surda? Quais?; Você aborda temas sobre o papel do intérprete?; Em sua opinião, o que os alunos precisam saber sobre Libras e sobre educação dos surdos ao concluir a disciplina?; Quais conteúdos foram abordados na sua disciplina?;Qual(ais) você considera mais relevante(s)?, respectivamente, cujos resultados podem ser visualizados na Figura 2.
De acordo com os dados apresentados nessa Figura, cada eixo (ementas, professores e estudantes) apresentou uma UR em destaque, porém, observamos que o conteúdo mais mencionado não corresponde ao mais citado pelos envolvidos no processo de ensino/aprendizagem. Na visão dos professores entrevistados, a UR 1.4 é a mais mencionada, já os estudantes evidenciam que o conteúdo mais abordado durante a disciplina, ou do qual mais se recordam, diz respeito ao ensino de sinais e vocabulário em Libras, cujos registros se encontram concentrados na UR 1.3. Os resultados indicam certa incompatibilidade com os estudos de Charallo e Andrade (2022), que identificaram a UR 1.2 – Libras como língua natural, aspectos gramaticais como a mais evidente.
Em uma perspectiva geral acerca dos dados coletados, apesar de os professores considerarem relevantes o conteúdo sobre cultura e identidade surda, os estudantes parecem não se recordar desse conteúdo ou ele pode não ter sido abordado durante as aulas. Portanto, há uma discrepância na abordagem dos três eixos analisados, pois cada um se destaca em uma unidade específica.
Ao analisarmos de forma individualizada cada UR e seus respectivos dados, é possível traçar um panorama dos principais conteúdos voltados à concepção dos sujeitos surdos (UC1). Dessa forma, dentre as cinco analisadas, três delas se destacam por apresentarem as maiores quantidades de registros nos três eixos, porém, em ordem diferente de classificação, conforme indica a Figura 2. Na análise dos resultados obtidos a partir da entrevista realizada com os professores, a UR 1.2 e a UR 1.3 tiveram a mesma quantidade de menções.
As mais presentes nas ementas foram, respectivamente: UR 1.2 – Libras como língua natural (aspectos gramaticais); UR 1.3 – Sinais e Vocabulários e UR 1.1 – Aspectos históricos da surdez relacionados às línguas de sinais.
Na análise das UR dos professores, também é possível encontrar essas mesmas unidades, porém em ordem diferente de classificação. No eixo relativo aos professores, destacam-se a UR 1.4 – Cultura/Identidade Surda, seguida da UR 1.2 – Libras como língua natural (aspectos gramaticais) e da UR 1.3 – Sinais e Vocabulário e UR 1.1 – Aspectos históricos da surdez relacionados às línguas de sinais. As duas últimas, por sua vez, ocupam a mesma posição (2.º e 3.º lugar), tanto nas ementas, como na análise dos professores.
Com exceção da UR 1.4 – Cultura/Identidade, que obteve maior quantidade de registros somente no relato dos professores, observamos que os conteúdos mais mencionados pelos estudantes estão relacionados respectivamente à UR 1.3 - Sinais e Vocabulários; àUR 1.1 – Aspectos históricos da surdez relacionados às línguas de sinais e à UR 1.2 – Libras como língua natural (aspectos gramaticais).
A UR 1.2 contempla os dados referentes ao ensino e à discussão dos aspectos gramaticais das Línguas de Sinais. Conforme pontuado anteriormente, esse foi o conteúdo mais encontrado nas ementas aqui pesquisadas e a segunda mais citada pelos professores, com exceção de P3, que declarou priorizar o ensino de conteúdos práticos, devido à pouca carga horária da disciplina. Este (conteúdos práticos), igualmente, foi o terceiro conteúdo mais citado pelos estudantes, apesar da pequena quantidade de registros: somente 8, de um total de 59 estudantes, o citaram, indicando que pode não ter tido a mesma relevância destacada pelos professores.
A língua é convencionada como conjunto de regras e signos abstratos, condicionados à fala ou aos sinais, como é o caso da Libras, e, portanto, são essenciais às práticas sociais de uma comunidade linguística. Diante disso, consideramos importante o ensino de conteúdos práticos, conforme aponta P3, por se tratar de uma língua de modalidade espacial-visual composta por um conjunto de regras fonológicas, morfológicas, sintáticas, semânticas e pragmáticas, necessárias para sua execução. Isso posto, espera-se que a disciplina contemple o ensino da língua como um todo e de diversas maneiras, por meio de recursos discursivos como configurações de mão, movimentos, expressões faciais gramaticais, localizações, movimentos do corpo, espaço de sinalização e classificadores, para além de um vocabulário ou de um sinal isolado.
Conforme já pontuado, a UR 1.3 foi a que apresentou maior quantidade de registros significativos na presente análise. Isso permite inferir que grande parte dos professores e das ementas apresenta conteúdos voltados para o ensino de sinais e vocabulário básico, mas são os dados dos estudantes que ganham destaque, pois indicam o maior quantitativo referente à classificação dos conteúdos. Apesar de a disciplina não objetivar uma fluência na língua e, sim, uma formação mais consciente das singularidades dos alunos surdos, a aprendizagem de sinais e vocabulário é imprescindível para que o futuro professor adquira conhecimento e seja capaz de estabelecer uma comunicação com os alunos surdos. Afinal, somente aprender a comunicação na língua não é o suficiente para garantir sua inclusão na rede regular de ensino, mas compreender todos os demais conteúdos propostos nas UC deste trabalho.
A UR 1.4 – Cultura/Identidade Surda foi a mais mencionada nas entrevistas com os professores, no entanto, esses dados não condizem com os demais eixos analisados, uma vez que, nas ementas, a quantidade de menções a esse conteúdo apareceu em apensas 76 delas, do total de 139, ocupando assim a quarta posição.
Já na análise dos questionários respondidos pelos estudantes, os dados são ainda menores, pois somente dois mencionaram ter tido esse conteúdo ao longo da disciplina, fazendo com que essa UR ocupasse o quinto e último lugar na classificação geral, ficando próximo à das ementas (quarto lugar). Tendo em vista que essa UR contempla uma questão fundamental no ensino da Língua de Sinais – evocar a identidade, cultura e costumes de um povo –, uma vez, que linguagem e cultura estão íntima e mutuamente relacionadas, há duas hipóteses possíveis: ou os professores procuram trazer tais discussões para a sala de aula e os estudantes parecem não absorver a proposta de forma efetiva ou não assimilaram o que os professores afirmam abordar.
Por fim, a UR 1.5, que faz referência aos conteúdos relacionados à Legislação e às Políticas Educacionais, como a Lei Libras n.º 10.436/2022 e o Decreto n.º 5.626/2005 (que reconhece Libras como a língua de instrução e comunicação dos Surdos brasileiros e estabelece os direitos desses sujeitos na sociedade, em específico na área educacional, propondo um ensino bilíngue, em que esta é considerada sua primeira língua e Português, a segunda) foi a unidade que apresentou a menor quantidade de citações nos três eixos analisados. Durante a entrevista com os professores, somente um mencionou abordar discussões sobre “inclusão dos Surdos na escola regular inclusiva” (P3). Já nos dados coletados com os estudantes, apenas quatro citaram se lembrar de ter tido alguma discussão sobre o tema. Com isso, é possível inferir que se nem os professores e nem os estudantes revelaram tal conteúdo como relevante na prática, fato que indica que as políticas públicas dos surdos/Libras não estão sendo efetivamente abordadas nas aulas de Libras nos cursos de Biologia e Química nas três IES pesquisadas.
A UC2 – Intérprete Educacional foi criada especificamente para acomodar os registros referentes ao Intérprete de Libras, um dos profissionais que também atua diretamente com os estudantes surdos na sala de aula, cujos dados estão sintetizados na Figura 3.
Diante desses resultados, a coluna das ementas foi a única que apresentou menções em todas as UR (2.1; 2.2; e 2.3), mesmo que em pequena quantidade, como foi o caso da UR 2.2 -Atribuições dos professores e atribuições do intérprete – que obteve somente quatro registros. Por outro lado, a coluna dos estudantes não apresentou nenhum. A UR 2.1 – A compreensão do papel do intérprete como mediador da comunicação – se destacou, pois foi mencionado em 12 das 139 ementas analisadas. O conteúdo também foi citado por 4 professores que afirmaram abordar brevemente essa temática durante a disciplina. Contudo, nenhum dos estudantes disse ter estudado esse conteúdo durante as aulas.
A UR 2.2 – Atribuições do professor e atribuições do intérprete – e a UR 2.3 – Técnicas de interpretação Libras/Português e Português/Libras – não apresentaram registro na coluna dos professores e dos estudantes, o que evidencia que eles não consideram relevante discutir com aqueles o papel que o professor regente e o intérprete devem exercer durante a processo de ensino e aprendizagem do aluno surdo. Já a última UR, a 2.3, que também não foi mencionada, está voltada para as técnicas de tradução e interpretação exercidas pelo intérprete durante a interação com o aluno surdo. Além de conhecer o intérprete e o papel que desempenha, é importante igualmente conhecer as técnicas que envolvem a tradução de uma língua oral para a de sinais e vice-versa. Durante as aulas, o intérprete vivencia momentos diferentes de tradução, ora sinalizando o que o professor está falando na língua oral, passando da Língua Portuguesa para a Libras, ora traduzindo para esta o que se comunica naquela, ou seja, o intérprete é a voz do Surdo em momentos diversos (apresentação de trabalhos, dúvidas de conteúdo, atividades, avaliações, ou até mesmo na interação com o professor e demais colegas da classe).
Esses conteúdos, apesar de serem pouco discutidos pelas ementas analisadas, e/ou nada discutidos no discurso de professores e estudantes, são extremamente relevantes, pois possibilitam aos graduandos compreenderem que não se trata do intérprete substituir o papel do professor, ou ele sozinho ser o “professor do aluno surdo”, mas ajudá-lo no processo de inclusão escolar e linguística. De acordo com Lacerda (2015), Antia e Kreimeyer (2001), o responsável pelo planejamento das aulas, bem como pelos conteúdos e metodologias adequadas, é o professor. Todavia, o intérprete é o profissional que conhece o Surdo, sua surdez e tem domínio da língua, podendo assim colaborar conjuntamente para o desenvolvimento pleno desse sujeito.
A UC3 – Educação Bilíngue – contempla todos os conteúdos encontrados nas ementas e nas falas dos professores e estudantes sobre a temática da educação bilíngue na educação dos Surdos. Essa unidade se subdivide em três: UR 3.1 – processo de aquisição da linguagem na língua primária (L1 – Libras e língua secundária L2 – Língua Portuguesa), bem como a escrita do português como segunda língua pelos alunos surdos; UR 3.2 –abordagens quanto às estratégias metodológicas para o ensino de ambas as línguas a partir da Pedagogia Visual e produção de materiais didáticos, cujos resultados estão sintetizados na Figura 4.
Tendo em vista que a educação bilíngue se refere ao uso de duas línguas, no caso das pessoas surdas, L1(Língua de Sinais) e L2 (Língua oficial do país), para as pessoas surdas brasileiras, a Libras é a L1, e deve ser adquirida de forma natural, mediante o convívio com outros Surdos, para que, em seguida, adquiram a L2, no caso, a Língua Portuguesa. Estruturalmente falando, L1 e L2 são diferentes, pois a primeira refere-se à aquisição espontânea e essencial em ambiente natural, já a segunda é aprendida em um ambiente formal. Em suma, o processo de aquisição do português pelo aluno surdo não ocorre de maneira natural, isto é, não no contato frequente com falantes nativos, mas formalmente no ambiente escolar. Dessa forma, a proposta educacional da Educação Bilíngue é a mais adequada, tendo em vista que considera “Libras como Língua natural dos Surdos e parte desse pressuposto para o ensino do Português escrito” (Quadros & Karnopp, 2004, p. 25). No aprendizado da leitura e da escrita da Língua Portuguesa, os Surdos não passam pelos mesmos caminhos e processos de uma pessoa ouvinte, e esse é um dos maiores desafios para a sua educação. Para o Surdo, a leitura do mundo se faz por meio de sua língua natural, a de Sinais, que lhe permite construir significados e formular uma noção de mundo, porém de forma interativa, por meio de intervenções que possam dar vida aos significados.
Diante disso, quando essas constatações são discutidas em um curso de formação docente, possibilitam que os professores, nos diferentes níveis de ensino, conheçam as particularidades linguísticas e as questões que envolvem o desenvolvimento/aprendizagem dos Surdos, bem como as práticas de ensino que devem ser pensadas, delineadas e continuamente refletidas, pois, conforme destaca Lodi (2004), “a produção escrita dos alunos Surdos sempre será a de um ‘estrangeiro’ usuário da Língua Portuguesa” (p. 36).
Além da utilização da linguagem oral e da Língua de Sinais no processo de ensino e aprendizagem, os recursos visuais variados podem contribuir significativamente para a aprendizagem dos Surdos, desde que estejam inseridos nas estratégias pedagógicas direcionadas aos educandos.
Por mais que esta temática relacionada aos recursos visuais seja considerada importante na literatura e, consequentemente, para a formação do futuro professor que terá um aluno surdo em sala de aula, observamos que a UC 3 – Educação Bilíngue, também teve poucos ou nenhum registro de acordo com as três análises realizadas. A coluna da análise das ementas da Figura 4 mostra que o conteúdo relacionado à Aquisição linguística e ao Português como uma L2 escrita, conforme UR 3.1 – Português como L2 e Aquisição da linguagem L1 e L2, é abordado somente em 32 delas, de um total de 139. Apesar desse quantitativo, esta foi a UR que mais apresentou dados, quando comparada aos outros dois eixos de análise – professores e estudantes. Os dados referentes aos professores apontam que essa é uma discussão pouco contemplada na disciplina, pois, de um total de 5, somente P2 versou a respeito e nenhum graduando sequer a citou.
A UR 3.2 traz a compilação dos registros encontrados nas ementas, nas falas dos professores e dos estudantes quanto às discussões e/ou apresentações de conteúdos sobre a Pedagogia Visual ou metodologias e estratégias que podem ser utilizadas pelo professor em sala de aula. Dessa forma, verificamos a importância de se discutir o uso de materiais visuais adaptados no processo de aprendizagem dos alunos surdos em nove ementas e foi elencada somente por P5, que a considera como um conhecimento importante que o futuro professor precisa levar para sua formação em exercício e, novamente, nenhum registro foi feito por parte dos estudantes.
A penúltima unidade de análise, UC4 – O ensino de Química ou Biologia para Surdos, é específica e precisaria ser identificada nas ementas, nas falas dos professores e dos estudantes, por se tratar de temas ou conteúdos que discutem sobre a área de ensino de Química ou Biologia voltado para alunos surdos, como visto na Figura 5.
Para Quadros e Karnopp (2024), discutir o ensino de Ciências para Surdos é importante, pois dentro do espaço escolar já foram observadas algumas barreiras que comprometem a aquisição de conhecimento dos Surdos, como: a inexistência de comunicação através de sinais dentro do espaço escolar, além da carência de terminologias científicas em Libras, o que pode interferir na negociação de sentidos dos conceitos científicos, por docentes, alunos e intérprete; o despreparo do professor que trabalha com o aluno surdo; a aplicação de metodologias não condizentes com o modo de percepção e aprendizagem do aluno; as práticas e as estratégias de aprendizagem que não contemplam o canal visual; e os textos repletos de termos da área, apresentados em linguagem pouco acessível aos alunos surdos.
Sob esse olhar, Philippsen et al. (2023) destacam que, em se tratando de estudantes surdos, os aspectos visuais e temporais, específicos da surdez, devem ser considerados, inclusive a maneira de condução dos processos de ensino e aprendizagem como forma de garantir uma educação inclusiva efetiva e conceitual no âmbito do ensino de Ciências.
Diante dessas inquietudes, é importante compreender que a presença do Surdo no ensino regular requer uma educação bilíngue ajustada à sua condição de sujeito, conforme indicam Martins e Lopes (2023). Cumpre que professores e/ou intérpretes em sala de aula pensem, elaborem e desenvolvam aulas com metodologias a partir de elementos imagéticos que provoquem debate, tragam à tona conceitos e opiniões que podem ser aprofundadas na direção de objetivos bem definidos.
No entanto, os dados apresentados na Figura 4 indicam que na UR 4.1 – Sinais específicos das áreas de Química e/ou Biologia –, somente nove ementas apresentaram, em seu programa, conteúdos voltados para o ensino de sinais específicos da área. Assim como somente um professor informou ensinar vocabulário de sinais específicos do curso, e somente seis estudantes citaram ter aprendido alguns voltados à Biologia. Já a UR 4.2 – Estratégias metodológicas específicas para a Ciência –, quase não apresentou registros nos três eixos analisados, pois somente uma ementa, de um total de 139, traz esse conteúdo em seu programa.
Diante disso, podemos considerar que a inexistência das discussões sobre as questões supracitadas contribui para que o futuro aluno se forme sem conhecer sinais específicos de Libras referentes ao seu curso de formação, bem como estratégias ou metodologias que possam auxiliá-lo durante suas aulas de Química e/ou Biologia. Mediante esses dados, os participantes da pesquisa também foram questionados sobre a abordagem de conteúdos específicos dos cursos em questão (“Foram abordados conteúdos específicos ou discussões sobre o ensino de Biologia ou Química para surdos? Como foi?”), cujas respostas podem ser assim sintetizadas na Figura 6.
As respostas confirmam o que já foi observado nas análises anteriores, ou seja, mais da metade dos estudantes indica que, durante a disciplina de Libras, não houve discussão de conteúdos voltados ao ensino de Química e/ou Biologia para alunos surdos, representando a maior quantidade de registros da UR 4.6. Já a UR 4.5 – Apresentação de uma aula em Libras –, foi criada porque 17 estudantes responderam que o único momento em que houve discussão sobre essa temática foi durante a realização de uma avaliação proposta pelo professor, cujo objetivo era elaborar uma aula e apresentá-la em Libras e, devido a essa dinâmica, muitos sinais específicos tiveram que ser pesquisados. Para a UR 4.3 – Falta de conhecimento do intérprete – e a UR4.4 – Dificuldade no ensino de Ciências –, devido à falta de sinais, a quantidade de registros encontrados foi muito baixa, sendo somente dois e quatro, respectivamente.
De fato, a carência de sinais específicos nos cursos de Biologia e Química é um dos principais fatores que dificultam o ensino e a compreensão dos conteúdos para os alunos surdos. A falta de sinais também impacta o trabalho do intérprete, visto que, muitas vezes, ele não tem formação específica na área e não encontra sinais e termos suficientes que possam ajudá-lo na tradução e na interpretação dos conteúdos.
A escassez de materiais didáticos visuais que possam auxiliar os alunos surdos é outro problema encontrado por muitos educandos. Há diversos deles que poderiam auxiliar nos processos de ensino e aprendizagem, no que diz respeito à compreensão dos conceitos científicos em sala de aula, no entanto, “muitos professores utilizam apenas o quadro e o pincel atômico” (Aragão & Costa, 2017, p. 8). Por isso, é importante encontrar alternativas que visem solucionar tais carências, como a criação de livros traduzidos para Libras e materiais de projeção visual como recursos tecnológicos, imagens, vídeos, experimentos, dentre outros.
Até o presente momento, foi apresentada a análise de dados voltados aos conteúdos que deveriam ser abordados durante a disciplina de Libras nos cursos de graduação em Biologia e Química em três IES públicas. Para tanto, ao contemplarmos uma formação docente para a atuação no ambiente escolar inclusivo, há de se considerar que outras temáticas também sejam contempladas, como discussões sobre a inclusão de alunos surdos nesse nível de ensino e até a própria Libras como uma disciplina de formação.
Essas temáticas também foram questionadas durante a pesquisa realizada com os professores e estudantes. Os dados foram organizados em três URs a partir da UC5, nomeada de “Abordagens sobre a inclusão de maneira geral ou concepções sobre a educação especial”, cujos resultados podem ser observados na Figura 7.
Dados das UR referente a UC 5 - Abordagens sobre a inclusão de maneira geral ou concepções sobre a educação especial
Os dados apontam que 120 ementas não trazem discussão ou conteúdo direcionado à inclusão, seja ela escolar, social ou de outra natureza, conforme se observa na UR 5.2 – Não apresentam discussões. Mas é possível encontrar também registros das que apresentam discussões gerais a respeito, como em UR 5.1, que apresentou um total de 20 registros. Já no eixo de dados oferecidos pelos estudantes, observamos o contrário, pois a maioria, cerca de 45 registros, aponta que eles realizaram discussões gerais sobre o tema (UR 5.1), ainda que 12 deles parecem não se recordar ou não terem tido contato com esse conteúdo.
Enfim, a UR 5.3, que acomoda os registros sobre Libras como disciplina curricular na formação do professor, contempla registros apenas nas ementas, pois nem professores e nem estudantes citaram a existência desse conteúdo durante a realização ou oferta da disciplina. No entanto, por mais que os professores não tenham citado a abordagem do conteúdo ou as discussões sobre inclusão, essas acontecem em algum momento da aula, visto que os estudantes as constataram.
Falar sobre inclusão em uma disciplina ou curso de formação de professores é fundamental para que o graduando ouvinte compreenda a diversidade existente no espaço escolar. Diante da realidade de uma escola inclusiva, com responsabilidade e comprometimento de ensino e de aprendizagem para todos, ao professor é imprescindível uma formação consistente que contemple as particularidades e as singularidades de cada aluno, seja ele surdo ou que tenha outra deficiência, sem mencionar os fatores saúde, classe social e econômica que também interferem nesse processo.
Reuter e Cavalcante (2024) situam o professor em seu processo de formação diante de uma diversidade de contextos que ele vivencia na escola como a oportunidade de protagonizar o aprender. Assim, ao estimular a autonomia, contribui-se para que os futuros docentes atuem cientes de seu próprio potencial e assumam a responsabilidade diante dos desafios oriundos do ensino de Ciências para Surdos.
No entanto, os dados nos mostram uma outra realidade, pois os cursos de licenciatura, em sua grande maioria, não trazem disciplinas voltadas para a Educação Especial ou Educação Inclusiva, o que restringe as discussões e a compreensão dos professores em formação inicial sobre essa realidade. Nesse contexto, Libras, na maioria das vezes, é a única disciplina do curso voltada a essa questão, no entanto, devido à baixa carga horária, não possibilita que o professor aborde discussões mais gerais sobre o domínio de conhecimentos básicos quanto a procedimentos pedagógicos que promovam, de fato, a inclusão de alunos surdos em qualquer nível de ensino.
Considerações finais
Diante disso, o presente trabalho buscou analisar, por meio de três vertentes (ementas, professores e estudantes), os conteúdos que vêm sendo abordados e discutidos na disciplina de Libras em cursos de licenciatura em Química e Biologia de três IES públicas no estado do Paraná. As ementas foram analisadas sob o ponto de vista de Charallo e Andrade (2022), cujos estudos visam verificar quais conteúdos são trabalhados durante as aulas, na visão dos professores de Libras e dos estudantes. Assim, os mais presentes foram: Libras como língua natural/gramática, sinais e vocabulário, aspectos históricos da surdez e, por último, cultura e identidade surda. Contudo, é importante frisar que eles também foram indicados nas falas dos professores, porém em outra ordem de prioridade: 1.º) cultura e identidade surda, 2.º) sinais/vocabulário, 3.º) libras enquanto língua natural/gramática e 4.º) aspectos históricos da surdez. Destes quatro, destacam-se o segundo e o quarto como os mais relevantes, conforme indicam professores, estudantes e ementas.
Além disso, conteúdos como: atuação do intérprete; estratégias metodológicas visuais que contribuem para o processo de ensino e aprendizagem; vocabulário específico nas áreas da Química e Biologia; e a falta de terminologias científicas em Libras, tiveram pouco ou nenhum registro, tanto nas ementas como na pesquisa com estudantes e professores, ou seja, ainda falta nos formadores a compreensão da importância de se abordar o papel do intérprete de Libras em sala de aula, junto com o professor da disciplina de Química e Biologia, uma vez que esse profissional é figura-chave no processo de ensino e aprendizagem dos alunos surdos.
Os dados apontam, inclusive, que os graduandos concluem a disciplina de Libras desconhecendo as reais necessidades educacionais do aluno surdo, bem como a dificuldade de se estabelecerem práticas pedagógicas e estratégias específicas para o repasse de alguns conteúdos e termos científicos, visando ao acolhimento das necessidades educacionais dos alunos surdos e ouvintes, simultaneamente. Portanto, é necessária uma formação que dê suporte para que os futuros professores saibam se comunicar em Libras, compreendam as condições linguísticas diferentes existentes entre ambos e que sejam capazes de elaborar aulas visualmente claras e que facilitem a atuação do intérprete e a compreensão do aluno surdo.
No entanto, as propostas apresentadas neste artigo envolvem mudanças mais amplas do que apenas ementas. A formação profissional docente, mais especificamente a de Ciências Biológicas e Química, não prepara o professor para lidar com estudantes surdos, principalmente no que tange à construção de conceitos científicos, além disso, somente o Ensino de Libras não é suficiente para suprir a carência na formação docente. Há, portanto, a necessidade de: ampliar e unificar os sinais para Surdos nas referidas áreas; reformular currículos que apontem a inclusão como ponto necessário para a formação de todos os professores; articular Universidade e Escolas para possibilitar práticas com alunos surdos já na formação inicial de professores; elaborar pesquisas que subsidiem normativas, conteúdos e temas atuais acerca dessa temática.
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Revisão textual:
Normalização bibliográfica (APA 7ª Ed.), preparação e revisão textual em português: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com.brVersão e revisão em língua inglesa: Viviane Ramos vivianeramos@gmail.com
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Destacamos o termo “Surdo” com S maiúsculo em pontos estratégicos deste texto como uma forma de empoderamento, mostrando a visão pessoal de uma das autoras, como profissional da área, além do respeito e do reconhecimento da identidade vivenciada pelos sujeitos surdos, seus valores linguísticos e sociais e de todo processo histórico-cultural que os envolve. Vários outros autores também fazem uso dessa mesma estratégia, como Lane (2008) e Castro Júnior (2011).
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2
As ementas foram organizadas de acordo com a seguinte sigla: IES-Q (para representar o curso, no caso, Química) e o número da ementa. O mesmo foi feito também para as ementas dos cursos de Ciências Biológicas das ementas encontradas – IES-B-número.
Disponibilidade de dados
Os autores disponibilizam os dados da pesquisa sob solicitação.
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Editado por
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Editores responsáveis:
Editor Associado: Eduardo José Manzini edujosemanzini@gmail.comEditora-Chefe: Chantal Medaets chantal.medaets@inserm.fr
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
22 Jul 2024 -
Revisado
21 Jan 2025 -
Aceito
16 Fev 2025
