Resumo
Este texto apresenta resultados de investigação de tipo bibliográfica, com viés qualitativo. Foram analisados escritos de Gramsci da juventude e da maturidade carcerária, bem como de comentadores, com vistas a entender como foi concebida a gestão da escola unitária pelo comunista sardo. Considerando que a gestão da referida escola não foi definida por Gramsci, procurou-se inferir isso do que ele produziu textualmente e na militância nos conselhos de fábrica e nos partidos políticos. Conclui-se que é democrática a finalidade da gestão da escola unitária, porque se define por tentar colaborar com a superação da histórica divisão dirigidos e dirigentes, governantes e governados, que é própria da sociedade de classes, em um processo que inclui o experimento no “chão da escola”.
Palavras-chave
Antonio Gramsci; escola unitária; gestão democrática; gestão escolar
Abstract
This text presents results of bibliographic research, with a qualitative bias. Gramsci’s writings from his youth and maturity in prison were analyzed, as well as those of commentators, with a view to understanding how the management of the unitary school by the Sardinian communist was conceived. Considering that the management of the unitary school was not defined by Gramsci, we sought to infer this from what he produced textually and in his activism with the factory councils and political parties. It is concluded that the purpose of managing the unitary school is democratic, because it is defined by trying to collaborate with overcoming the historical division between those who are leaders and those who are directed by them, between those who govern and those who are governed by them, which is typical of class society, in a process that includes experiment on the “school floor”..
Keywords
Antonio Gramsci; unitary school; democratic management; school management
Resumen
Este texto presenta resultados de investigación bibliográfica, con un sesgo cualitativo. Se analizaron los escritos de Gramsci desde su juventud y madurez en prisión, así como los de comentaristas, con el fin de comprender cómo se concibió la gestión de la escuela unitaria por parte del comunista sardo. Considerando que la gestión de la escuela unitaria no fue definida por Gramsci, buscamos inferirlo de lo que él produjo textualmente y en su activismo con los consejos de fábrica y los partidos políticos. Se concluye que el propósito de la gestión de la escuela unitaria es democrático, porque se define en intentar colaborar con la superación de la división histórica entre quienes son líderes y quienes son dirigidos por ellos, entre quienes gobiernan y quienes son gobernados por ellos, lo cual es típico de la sociedad de clases, en un proceso que incluye experimentos en el “piso de la escuela”.
Palabras clave
Antonio Gramsci; escuela unitaria; gestión democrática; gestión escolar
1. Introdução
Este artigo resulta de pesquisa1 que tomou o legado teórico-metodológico de Gramsci como referência à análise da gestão escolar do estado de São Paulo. Aqui são apresentados resultados da investigação bibliográfica de textos de Gramsci e de comentadores(as), tomando como problema o desafio de identificar a proposição de gestão que se pode inferir do que o comunista sardo formulou para a escola unitária, modelo escolar que assume o trabalho como princípio educativo (Gramsci, 2001a, Cad. 12).
Considerando princípios, finalidades, conteúdos, métodos, avaliação e gestão como a totalidade das dimensões que guardam as propostas educativas na formulação de escola unitária, Gramsci indicou com alguma clareza as quatro primeiras dimensões, mas não as duas últimas. Não se encontram nas formulações dele asserções sobre como devem ser a gestão e o sistema de avaliação. Elas são embrionárias nos textos de Gramsci, estão implícitas em outros temas tratados, diferentemente dos princípios, por exemplo, que se assentam no trabalho, segundo a concepção marxista do termo. Assim, para identificá-las, é inexorável desenvolver processo heurístico para inferir dos escritos do sardo, particularmente os relacionados à educação, o que ele pensava sobre gestão escolar, que é o objeto deste artigo.
Ao pesquisar os escritos de Gramsci da “juventude” (antes do cárcere) e da “maturidade” (no cárcere fascista), percebe-se que há ali um potencial que, se efetivado, pode inspirar formulações democráticas no campo da gestão escolar.
Esta organização textual é dividida em três partes. Na primeira, há referências ao debate sobre gestão democrática, para conhecer minimamente o estágio que se encontra no campo em educação. Não se tem pretensão de apresentar um “estado da arte”, mas uma pequena síntese para introduzir o(a) leitor(a) na discussão a partir de escritos de alguns(mas) autores(as)-referência, em especial, os(as) próximos(as) ao mesmo referencial de Gramsci: o marxismo.
Sequencialmente, o texto segue expondo traços elementares da escola unitária de Gramsci: princípios, finalidades, estrutura escolar, conteúdos e métodos, considerando o que ele deixou registrado nos escritos pré-carcerários e nos do cárcere, mormente no Caderno 12.
Na última parte, a concepção de gestão escolar de Gramsci é tratada. Ela é identificada a partir das inferências feitas das proposições que ele formulou à organização dos conselhos de fábrica, do partido político e da própria proposta de escola básica: a escola unitária.
O que há neste texto pode colaborar com o avanço do conhecimento de conjecturas de Gramsci sobre a escola e estimular reflexões sobre o hodierno modo da gestão escolar, mormente o efetivado em redes marcadas pela subserviência à lógica do capital, sem compromisso com a formação omnilateral, característica de formulações escolares que se queiram marxistas.
2. Referências atuais ao debate sobre a gestão escolar democrática no Brasil
A Secretaria de Educação Básica, segundo o documento intitulado Gestão da educação escolar (Brasil, 2006), compreende que a gestão democrática se define pela efetiva participação dos segmentos da comunidade – pais, professores, estudantes e funcionários – na dinâmica da escola, que se manifesta, por exemplo, na escolha de dirigentes escolares, na participação na construção e avaliação do projeto político-pedagógico, na intervenção em colegiados deliberativos, bem como na definição da aplicação e administração dos recursos recebidos.
Contextualizando a gestão democrática, Lima e Silva (2017) dizem que é institucionalizada de modo contrário aos preceitos populares e comunitários, já que o Estado – “árbitro supremo de nossos destinos” (Gramsci, 2004, p. 235) – a camufla, pois é submetida ao controle de poucos(as), em uma via de hierarquização do poder e do saber, de submissão à cultura de subalternidade, à educação castradora. Os modelos de gestão democrática presente nas escolas “constituem-se em instrumentos ... de socorrência às mazelas escolares, transformam-se em modelos de participação instrumental” (Lima & Silva, 2017, p. 25). Lima e Silva (2017) ponderam, ainda, que é preciso conceber a gestão democrática como direito social, liberto da autocracia, porque “somente se abre quando necessita dos serviços dos responsáveis por alunos e dos próprios discentes” (p. 26) Sinteticamente, revela que a gestão democrática na escola é aparência fenomênica e que ela “ necessita de sujeitos históricos que a problematizem e que se preocupem com a sua existência, tornando-a real” (p. 28), dispondo-se a ir “além da aparência, ressignificar a GED [Gestão Escolar Democrática] revelando a sua essência, estudando seu fenômeno e nos organizando para direcionarmos a GED em uma concepção prática de uma escola inclusiva, participativa, democrática, com qualidade social e política” (p. 29).
De outro modo, de acordo com Paro (2016), a gestão democrática na escola pública, concretamente, não existe; porém, é sinalizada como algo desejável para solucionar problemas existentes. Sendo assim, a primeira tarefa consiste na tomada de consciência das condições e das contradições concretas, que viabilizam ou não a efetivação de um projeto democrático para as relações sociais na escola, transformando-a em uma instituição verdadeiramente pública. A concepção de gestão democrática desse autor alinha-se aos interesses da classe trabalhadora, uma vez que afirma que, por meio de um processo de transformação do “sistema de autoridade e a distribuição do próprio trabalho no interior da escola” (p. 15), se pode conferir “poder, autonomia e condições concretas para que a escola alcance objetivos educacionais” (Paro, 1987, p. 52) articulados aos interesses das próprias classes subalternas, que coletivamente devem buscar “a reorganização da autoridade no interior da escola” (Paro, 2001, p. 57).
Segundo Paro (2001), a escola democrática deve se constituir em “núcleo de pressão” ligado a outros da sociedade civil, na defesa de interesses educativos das classes subalternas. Além disso, deve promover condições de participação de todos(as) nas assembleias, nas reuniões e em outros tempos e espaços escolares, por meio de um dispositivo constituinte. Assim sendo:
isso implica que a forma de administrar deverá abandonar seu tradicional modelo de concentração da autoridade nas mãos de uma só pessoa, o diretor..., evoluindo para formas coletivas que propiciem a distribuição da autoridade de maneira adequada a atingir os objetivos identificados com a transformação social.
(Paro, 1987, p. 160)
Portanto, segundo Paro (1987), a gestão democrática efetiva-se, principalmente, na participação real dos diversos setores da escola e da comunidade, sendo esse processo mobilizado pelo(a) gestor(a) na coordenação do esforço coletivo do grupo para as tomadas de decisão, o que demanda que a representação coletiva de todos(as) “seja realmente autêntica e estejam sempre funcionando adequadamente os mecanismos mais eficientes de expressão das ideias e de intercâmbio de informação” (p. 162).
Esse espaço democrático “será construído e reconstruído por todos na escola, à medida que se avança na compreensão de que a participação favorece a experiência coletiva ao efetivar a socialização de decisões e a divisão de responsabilidade” (Fernandes, 2014, p. 09), o que evidencia “que a participação e a democracia são conceitos intrinsecamente relacionados que exigem para cada escola a vivência de práticas colegiadas ... percebendo a educação a serviço da transformação social” (p. 09).
Para Drabach (2012), “a construção da gestão democrática na escola provoca uma mudança de cultura que começa na base, porque se constrói a partir da escola, da mobilização dos sujeitos que dela fazem parte” (p. 67). Essas ações contribuem para a formação política, porque colaboram para constituir a “participação dos sujeitos, uma nova forma de conceber a gestão e as relações de poder na escola, na mesma medida o sujeito torna-se mais autônomo e consciente do seu papel na sociedade” (Drabach, 2012, p. 68).
Coutinho e Lombardi (2016) refletem sobre a gestão escolar a partir de pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica, teoria pedagógica que se quer como arma teórica anticapitalista. Partindo dessa base teórica, os autores entendem que a gestão se configura
como uma atividade propriamente humana inserida e adequada ao processo de trabalho que, de modo geral, significa a utilização racional dos recursos e a ação coletiva dos trabalhadores intencionalmente estruturada e coordenada tendo em vista a finalidade do processo que exige, por conseguinte, dada sua dinâmica, uma reflexão constante para ... as mudanças necessárias ... na modernidade, a lógica do capital é imperante e, portanto, fundamento da organização e gestão do processo de trabalho. (p. 227)
Na Pedagogia Histórico-Crítica, a gestão escolar exige recorrência à práxis intencional coletiva, isto é, a ação educativa deve ter claro o “objetivo final almejado” (Coutinho & Lombardi, 2016, p. 235) pelo trabalho pedagógico. Assim, a finalidade não se limita à luta pela transformação da escola e seus sujeitos, pois se materializa em “uma participação social substantiva a fim de garantir um controle social efetivo e o desvelamento das contradições e antagonismos inerentes à sociedade moderna” (p. 236), para superar o modo de produção vigente. Isso exige que os(as) profissionais, incluindo os(as) da direção, problematizem a prática social para que, identificando problemas, instrumentalizem teoricamente os(as) educandos(as), apresentando-lhes clássicos das ciências, da filosofia e das artes, já que assim estarão mais preparados(as) – “instrumentalizados” – para transformarem a si mesmos(as) e ao mundo ao redor, porquanto não ser possível escola democrática em contexto autoritário, porque este mantém relações dialéticas com ela.
No que foi exposto, a gestão democrática é vista como caminho para efetivar não só a finalidade transformadora da escola, mas a articulação desse processo com o universo socioeconômico mais largo. Contudo, observa-se que, na realidade das escolas, essa dimensão ampla da gestão democrática está subsumida, já que a formação escolar que alcança os(as) trabalhadores(as), predominantemente, é uma sistematização própria da ideologia capitalista.
A proposição da escola unitária é de orientação marxista e, assim, Gramsci assume a perspectiva de articular a tarefa de democratizar a escola, inclusive a gestão que a direciona, com a de democratizar o conjunto da vida social, democratizando o Estado que a dirige.
3. A escola unitária: princípios, finalidades, estrutura escolar, conteúdos e métodos
A formulação da escola unitária é da maturidade de Gramsci. É proposta marxista, pois entende educação como fenômeno imanente à produção da existência, assume o trabalho como princípio educativo2 e se compromete com a superação do capitalismo como modo de produção do ser social (Martins, 2021b; Martins & Fortunato, 2020). Visa a formar sujeitos integrais, capazes de saber e fazer, de pensar, estudar, dirigir ou controlar quem dirige (Gramsci, 2001a).
No declínio da escola “desinteressada” tradicional, isto é, do modelo escolar italiano que não previa a precoce formação profissional, e na emergência da diferenciação social promovida pelas escolas profissionalizantes “interessadas”, Gramsci (2001a) esboça uma proposta pedagógica para superar a crise no campo da educação, partindo da ideia de que o modelo escolar deveria ser único, “de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual” (Cad. 12, § 1, p. 33). É desse modelo de escola básica que “passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo” (Cad. 12, § 1, p. 34).
Para Gramsci (2001a), a escola unitária, que representa a escola básica atual (ensino fundamental e médio), deve ser reorganizada no que concerne ao método e à carreira escolar:
O nível inicial da escola elementar não deveria ultrapassar três-quatro anos e, ao lado do ensino das primeiras noções “instrumentais” da instrução (ler, escrever, fazer contas, geografia, história), deveria desenvolver, sobretudo a parte relativa aos “direitos e deveres” ... as primeiras noções do Estado e da sociedade, enquanto elementos primordiais de uma nova concepção do mundo que entra em luta contra as concepções determinadas pelos diversos ambientes sociais tradicionais, ou seja, contra as concepções que poderíamos chamar de folclóricas. O problema didático a resolver é o de abrandar e fecundar a orientação dogmática que não pode deixar de existir nestes primeiros anos. O resto do curso não deveria durar mais de seis anos, de modo que, aos quinze ou dezesseis anos, já deveriam estar concluídos todos os graus da escola unitária.
(Cad. 12, § 1, p. 36)
No liceu, a carreira escolar não se diferencia das anteriores “a não ser pela abstrata suposição de uma maior maturidade intelectual e moral do aluno, devido à maior idade e à experiência anteriormente acumulada” (Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 1, p. 38). Na passagem do liceu à universidade, há “uma verdadeira solução de continuidade, não uma passagem racional da quantidade (idade) à qualidade (maturidade intelectual e moral)” (Cad. 12, § 1, p. 38). Na escola unitária, a última etapa é decisiva. Deve se basear nos valores que fundam o “‘humanismo’, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessárias a uma posterior especialização (Cad. 12, § 1, p. 39), de caráter científico ou imediatamente prático-produtivo. Para Gramsci (2001a), “O estudo e o aprendizado dos métodos criativos na ciência e na vida devem começar nesta última fase da escola, não devendo mais ser um monopólio da universidade” (Cad. 12, § 1, p. 39).
A escola criadora é a “coroação da escola ativa”, pois, na primeira fase, inclina-se a disciplinar e a nivelar o nível cultural dos(as) educandos(as), para obter uma espécie de “conformismo”, chamado de “dinâmico”. Na fase criadora, a base já alcançada de “coletivização” do tipo social inclina-se à expansão da personalidade, tornando-a autônoma e responsável. Contudo, com uma consciência moral e social sólida e homogênea. “Assim, escola criadora não significa escola de ‘inventores e descobridores’; indica-se uma fase e um método de investigação e de conhecimento” (Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 1, pp. 39-40).
O descobrimento de verdades velhas ou novas, por si só, sem ajuda e sugestões, é um processo de criação, que confirma a posse do método e indica que o indivíduo se introduziu na fase da maturidade intelectual, sendo possível assim descobrir novas verdades. Por este motivo, nessa fase, “a atividade escolar fundamental se desenvolverá nos seminários, nas bibliotecas, nos laboratórios experimentais; é nela que serão recolhidas as indicações orgânicas para a orientação profissional” (Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 1, p. 40).
Na organização curricular da escola unitária devem-se respeitar os níveis de idade, de desenvolvimento intelectual e moral dos alunos(as), e as finalidades que a própria escola anseia. A escola unitária – de formação humanista articulada pelo trabalho como princípio educativo – almeja inserir os jovens na atividade social, depois de elevá-los a certo grau de maturidade, capacidade de criação intelectual e prática, visando a lhes desenvolver a autonomia moral e a iniciativa sociopolítica, sempre respeitando o princípio democrático de que deve ser pública e gratuita, para que todos e todas tenham pleno acesso a ela.
A seleção dos conteúdos “clássicos”, de domínio dos fundamentos científicos do trabalho moderno, são imprescindíveis desde a infância, respeitando o desenvolvimento psíquico, cognitivo e moral infantil, para que a criança se forme com hábitos civilizatórios, prontos ao exercício da autonomia, por meio de disciplina e amorosidade, liberdade e necessidade, constituindo em si uma segunda natureza, identificada por Gramsci como catarse (cf. Cardoso & Martins, 2014). De fato, é “pela catarse que tudo aquilo que era objeto de aprendizagem se incorpora no próprio modo de ser dos homens, operando uma espécie de segunda natureza que transforma qualitativamente sua vida integralmente ... no plano das concepções e ... ação” (Saviani, 2013, p. 74).
Gramsci assevera que a transformação da atividade escolar demanda modificar a escola: prédios amplos, com dormitórios, refeitórios, bibliotecas especializadas, salas adequadas para o trabalho de seminário etc., pois esse modelo escolar é de tempo integral e “liberta das atuais formas de disciplina hipócrita e mecânica, e o estudo deveria ser feito coletivamente, com a assistência dos professores e dos melhores alunos, mesmo nas horas do estudo dito individual” (Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 1, p. 38). Isso exige um corpo docente ampliado e bem formado, para suportar as modificações na dinâmica da escola.
Gramsci (2001a) advoga que, na escola unitária, devem-se iniciar novas relações entre trabalho intelectual e manual, ampliando ao coletivo social. Para ele, o princípio unitário se refletirá nos organismos de cultura (academias, círculos de cultura...), concedendo-lhes novo conteúdo, que integrará “o trabalho acadêmico tradicional ... com atividades ligadas à vida coletiva, ao mundo da produção e do trabalho” (Cad. 12, § 1, p. 41).
Portanto, para Gramsci (2004), efetivada essa nova perspectiva relacional entre vida e cultura, poder-se-ão articular os elementos sociais com o trabalho profissional, impedindo a emergência da passividade e da “indiferença”. Isso é ação não de indivíduos, mas função social organicamente reconhecida como de necessidade pública, coletiva.
De fato, Martins (2011) pondera que a escola unitária objetiva formar intelectuais orgânicos às classes subalternas, e Saviani (2013) complementa: “para elevar o nível intelectual e cultural das massas” (p. 79), direcionando-as a se apropriarem da cultura historicamente acumulada e articular um bloco histórico, para viabilizar a nova hegemonia, por meio da qual se consolidará a ação revolucionária, efetivada na forma de reforma intelectual e moral3.
Essa concepção educativa guarda forte dimensão política, pois o “objetivo é a unidade entre teoria e prática, a formação de dirigentes para a conquista da hegemonia” (Dore, 2014, p. 311). Assim, a educação é disputada ideologicamente, por poder transformar a consciência humana e interferir na prática social, mormente dos “dirigidos”, de modo a intervir na luta de classe, na qual “a escola se torna espaço estratégico à luta socialista pela construção de uma ‘nova civilização’, desde que se assuma como ‘escola unitária’” (Martins & Fortunato, 2020, p. 5).
4. A gestão na escola unitária
Ao analisar o americanismo e o fordismo, Gramsci (2001a) destaca que a formulação ideológica embutida neles objetiva desenvolver em grau máximo no(a) trabalhador(a) comportamentos “maquinais” (Cad. 22, § 11, p. 266). Isso é operado pela ruptura da conexão psicofísica do(a) profissional com a participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa, reduzidas a operações automáticas, com vistas a identificar trabalhadores(as) com aquilo que “a frase de Taylor [denominou de] ‘gorila amestrado’” (Gramsci, 2001a, Cad. 22, § 11, p. 266). Assim, iniciativas americanistas tidas como “puritanas” (contra o alcoolismo, por exemplo) têm o intuito de conservar fora do trabalho o equilíbrio psicofísico, para que não haja colapso fisiológico do(a) trabalhador(a) coagido pelo fordismo.
Gramsci (1999) observa que, no americanismo, a doutrina socioeconômica fordista busca instituir-se ideológica e culturalmente, tomando a escola com espaço privilegiado para tanto. Nessa doutrina, a gestão escolar pode seguir a mesma direção que orienta a dimensão infraestrutural da vida social, que no fordismo é técnico-científica, presidida pela lógica da razão instrumental. Ou seja, toda ideologia, entendida como “concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas” (Cad. 11, § 12, pp. 98-99), isto é, nos produtos e processos sociais, e que, dialeticamente, repercute a dinâmica da dimensão infraestrutural, organiza sua difusão por diferentes meios e processos, com vistas a se tornar senso comum. Assim, Gramsci (1999) entende a escola como aparelho a direcionar a formação do ser humano adequado ao modo de produção vigente. Logo, à gestão escolar cabe destacado papel, porque pode direcionar a vida escolar nesse sentido, o que parece ter sido perseguido pela pedagogia tecnicista, nos termos em que Saviani (1983) a descreve.
Diferentemente, a gestão escolar, ao assumir a identidade da escola unitária, absorve seus princípios, finalidades, conteúdos e métodos. Se a produção textual e a prática partidária, sindical e cultural de Gramsci basearam-se no marxismo (“filosofia de práxis”), o que ele formulou para a escola unitária – e, portanto, também a gestão dela – está também assentado nessa matriz.
Observe-se que a finalidade da gestão escolar da/na escola unitária é formar e disseminar, na dinâmica da própria escola e da vida social, intelectuais de diversos tipos: “A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis” (Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 1, p. 19). Mas, sendo a escola unitária uma formulação escolar classista, deve visar, sobretudo, a formar um tipo específico de intelectual: o orgânico às classes subalternas, que deve assumir três funções primordiais: científico-filosófica (elaborar com povo, sentindo o que ele sente, a concepção de mundo que expressa seus interesses e necessidades), educativo-cultural (difundir a concepção formulada por diversos meios) e política (articular forças sociais em torno da concepção de mundo formulada, para criar um bloco histórico com força suficiente a dar direção à vida social, isto é, conquistar a hegemonia) (cf. Martins, 2011). Ou seja, é ético-político-cultural a função da escola, e isso deve ser assumido pelo(a) gestor(a), que não será (nem nunca foi ou é) neutro, qualquer que seja seu viés teórico-metodológico.
A gestão administrativo-política deve seguir um roteiro que enriqueça “culturalmente” a escola, favorecendo processos que suplantem velhas práticas sociais e concepções de mundo, consolidadas como senso comum. Para isso, deve o(a) gestor(a) comprometer-se com os interesses e a necessidade de as classes subalternas superarem as condições que a colocam na situação de subalternidade na vida social de tipo capitalista.
Esse processo busca dar nova direção intelectual e moral à escola e à sociedade, pois a escola, aparelho da sociedade civil, colabora na construção da nova hegemonia, entendida como capacidade de um grupo dirigir os rumos da vida social, o que exige dominar (força) os que lhe são contraditórios e dirigir (consenso) os afins e aliados (Gramsci, 2002, Cad. 19, § 24). Assim, a escola se assume como local de luta educativo-ético-política das classes subalternas, e seus indivíduos se fortalecem culturalmente para constituir a nova civilização.
Ao propor o novo modo de ser e de pensar na escola, o(a) gestor(a) deverá assumir a responsabilidade de tomar a comunidade como coletivo, do qual ele(a) é parte, e não sujeito externo ou interno que lida com os demais como objeto de ações burocrático-administrativas.
Como sujeito do coletivo escolar, compreendendo-o e sentindo-o, não distante de seus dilemas, deve o(a) gestor(a) administrar o trabalho pedagógico, levando em consideração o que são, pensam, sentem, como agem os demais sujeitos escolares, e as contradições por eles vividas. “Gramsci enfatiza o ‘trabalho colegiado’ de produção intelectual interdisciplinar e orgânica, que envolve ativa e democraticamente todos os seus integrantes” (Semeraro, 2021, p. 118). O(A) gestor(a), assim, forma com os demais um coletivo unitário, orientado pela perspectiva de, no democrático diálogo constante, dividindo funções, formular diretrizes que favoreçam a superação das contradições vividas na escola e fora dela, na dinâmica da vida social, de acordo com a “vontade coletiva”, que tem origem na dinâmica escolar também.
Cabe à escola unitária abrir-se ao diálogo com os sujeitos que têm presença na comunidade escolar, que se relacionam com ela e/ou estão em suas cercanias. Por exemplo: os movimentos sociais da região, pois também sofrem as contradições, podem estar comprometidos com a superação delas e podem ainda contribuir no processo de elevação cultural dos(as) educandos(as), induzindo outro tipo de ação, inclusive da gestão, para consolidar a “vontade coletiva” unitária para além da escola. O propósito da escola unitária, para Gramsci, “não se reduz a preparar trabalhadores e ‘cidadãos’ funcionais ao sistema, mas formar a todos como ‘dirigentes’, qualificados, ao mesmo tempo, como especialistas na própria profissão e políticos capazes de se autodeterminar e ‘governar’ democraticamente a sociedade” (Semeraro, 2021, pp. 23-24).
Nessa perspectiva, o(a) gestor(a) é organizador e dirigente da vida escolar, que capacita sujeitos a intervir nos problemas educacionais, nas contradições vividas com vistas a superá-las. O perfil é o de alguém “reivindica[ndo] ... o dever ... do Estado de ‘conformar’ as novas gerações” (Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 1, p. 39), formando-as como “capaz[es] de pensar, de estudar, de dirigir e de controlar quem dirige” (p. 49). Esse tipo de gestão (da escola e da vida social), que visa a superar a separação dirigentes e dirigidos, é distante da “‘democracia burguesa’, compreendendo com isso a democracia liberal, parlamentar, delegada. Nos anos turineses, Gramsci é crítico em relação a essa democracia hostil aos ‘proletários’” (Liguori, 2017, p. 188), porque o “Estado burguês ... é tão mais forte no interior e no exterior quanto menos os cidadãos controlam e acompanham a atividade dos poderes” (Gramsci, 2004, p. 255).
Ressalte-se que o processo formativo com esse viés não se restringe à dimensão expositiva, mas envolve a prática também, pois o exercício da direção educa, forma democraticamente o(a) diretor(a), como ocorreu nos conselhos de fábrica e no partido, dos quais Gramsci foi dirigente. Nesses aparelhos da sociedade, ele pretendeu construir uma
tendência democrática ... significa[r] ... cada “cidadão” possa se tornar “governante” e que a sociedade o ponha, ainda que “abstratamente”, nas condições gerais de poder fazê-lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada governado o aprendizado gratuito das capacidades e da preparação técnica geral das necessidades a essa finalidade.
(Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 3, p. 50, itálicos nossos)
Essas responsabilidades educativo-ético-políticas recaem sobre o partido político, que para Gramsci é o intelectual coletivo por excelência, pois tem a função de administrar e gerir a luta por outra hegemonia na formação econômica e social – a das maiorias, das classes subalternas, para que superem as condições econômicas, sociais, políticas e culturais de subalternidade que as identificam, no campo e nas cidades (Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 1).
O exercício da função do partido deve se dar democraticamente, com todos(as) os(as) integrantes participando da elaboração da visão de mundo capaz de unificar, em uma vontade coletiva nacional-popular, os interesses e as necessidades das classes subalternas, até porque a participação também é educativa. Nas reflexões de Gramsci sobre o partido revolucionário e o Estado, este é entendido como burguês, como aparelho que administra a ditadura da minoria social sobre a maioria, impondo-lhe a exploração econômica e a alienação social, de modo a torná-la subalterna. Disso decorre ele advogar aos(às) subalternos(as) a capacitação para agirem superando a subalternidade que os(as) identificam, produzindo outra hegemonia. Por ela, poderão articular forças sociais em um bloco histórico para forjar democraticamente –superação da divisão dirigentes-dirigidos – diretrizes à coletividade, consensuando-as em processos dialógico-educativos e produzindo outra forma política para a vida social.
Gramsci critica a “ditadura burguesa”, em que uma minoria toma o Estado e o faz atender aos próprios interesses, empregando a sociedade política e civil, baseadas na “força” e no “consenso”, respectivamente, e defende a “ditadura do proletariado”. Essa é compreendida pelo viés democrático, porque expressa a possibilidade de a maioria (classes subalternas) dirigir – termo que expressa noção de construção de consensos sociais – a si mesma, o que “significa educar o proletariado para o ... autogoverno” (Gramsci, 2004, p. 255). A “ditadura do proletariado” não é vista por Gramsci pela lente democrático-burguesa, e sim na perspectiva que ele via na Revolução Russa: transitoriedade histórica desse processo, dada a potencialidade de ser subsumido pela ampliação da intervenção dos aparelhos da sociedade civil – produtores de consensos – e consequente redução da sociedade política (força). Constrói-se, assim, a hegemonia das classes subalternas, que poderia provocar o definhamento do Estado no estrito senso do termo, isto é, como sociedade política, e produzir um tipo de vida social em que “desaparecem todos os privilégios constituídos. Ela conduz ao máximo de liberdade com o mínimo de coerção” (Gramsci, 2004, p. 83).
As notas de Gramsci sobre a Revolução Russa na juventude, embora eivadas de certo idealismo revolucionário (Gramsci, 2004, p. 160) desse período, trazem ricas formulações a inspirar o democrático trabalho dos(as) gestores(as). Como ele observou em 1918, ao avaliar a “A educação política na Rússia” pelos bolcheviques, o que decorre dessa experiência histórica não é buscar “orientação mental e cultural ... na tradição democrática ocidental ... [ou] oriental. A cultura dos bolcheviques ... tende assim a se realizar o governo com o consenso dos governados, com a efetiva autodecisão dos governados” (p. 190). De fato, o exercício democrático de qualquer poder, inclusive o dos(as) gestores(as) dentro da escola, “efetuam uma imensa obra educativa” (p. 190).
Para Gramsci, o Estado socialista manifesta-se nas instâncias sociais que têm princípio democrático, até porque o “Estado socialista exige a participação ativa e permanente dos companheiros na vida de suas instituições” (Gramsci, 2004, pp. 255-256). Se, no partido, comissões de fábrica, círculos socialistas e comitês de bairros vinculados organicamente às classes subalternas isso deve imperar, por que não nas escolas? Ao tratar disso no artigo “Democracia operária” (1919), afirmou que eles são centros de vida proletária, compõem um sistema de democracia operária, que exige “ da classe proletária e semiproletária uma sociedade organizada que se eduque, que obtenha experiência, que adquira uma consciência responsável dos deveres que incumbem às classes” (Gramsci, 2004, p. 246).
As comissões internas de fábrica surgiram para limitar o poder dos capitalistas nas funções de direção e administração e desenvolver a arbitragem e a disciplina, e devem ser formadas por eleições em assembleias de delegados, escolhidos entre os melhores e mais conscientes camaradas, os(as) mais bem formados(as). Se “As Comissões Internas surgiram na Itália, 1906, das iniciativas ‘espontâneas’ dos operários para defesa dos interesses e dos direitos dos trabalhadores ... no entendimento de Gramsci, já havia chegado a hora de rediscutir sua identidade e finalidade” (Staccone, 1995, p. 32), transformá-las em “conselhos de fábrica”, aptos ao “exercício do poder político ... organismos de exercício democrático do poder, inicialmente, em oposição ao governo burguês, e paulatinamente, através da potencialização e aceleração do processo revolucionário, deverão assumir todo o poder político instaurando a ditadura do proletariado.” (pp. 32-33). Para Gramsci (2004), os conselhos são “uma escola de experimentação política e administrativa, [que] englobaria as massas ... [para que] se tornasse preparada e capacitada para o exercício do poder ... a partir da experiência viva e histórica” (p. 248). Em “Sindicatos e conselhos”, publicado no L’Ordine Nuovo (11/10/1919), Gramsci (2004) diz que se baseiam na unidade orgânica da profissão e atuam na disciplina do processo industrial, pois sua existência “dá aos operários a responsabilidade direta da produção, leva-os a melhorar seu trabalho, instaura uma disciplina consciente e voluntária, cria a mentalidade do produtor, do criador de história” (p. 290). Ou seja, “é o mais idôneo órgão de educação recíproca e de desenvolvimento do novo espírito social que o proletariado foi capaz de gerar a partir da experiência viva e fecunda da comunidade de trabalho” (p. 289), já que é “um todo orgânico ... trabalhando de modo útil, produzindo desinteressadamente a riqueza social, afirma a sua soberania, realiza seu poder e a sua liberdade criadora de história” (p. 289).
Os círculos fariam a propaganda revolucionária da ação comunista organizada pelo partido e pelos próprios círculos – sede do conselho de bairro dos delegados da fábrica. Eram agrupamentos das energias proletárias para articular ideias comunistas. Pelas secções urbanas, fariam inscrições das forças operárias para formar sistemas eleitorais, que elegeriam “um delegado por cada quinze operários divididos por categorias” profissionais (Gramsci, 2004, p. 247). Isso remeteria, “através de eleições graduais, a um comité de delegados de fábrica que abranja representantes de todo o conjunto de trabalhadores” (p. 248).
O comitê de bairro seria a organização da representação de delegados de todas as categorias da classe no próprio bairro, que daria origem a comissões urbanas, controladas pelo partido e por federações de categorias. Esse sistema de democracia operária ofereceria às massas uma escola de experiência político-administrativa coletiva, em que, em cada fábrica,
através de eleições livres, ... graças a uma ação incessante de propaganda e de persuasão ... obter-se-ia uma transformação radical da psicologia operária, far-se-ia com que a massa se tornasse mais preparada e capacitada para o exercício do poder ... seria concreta e eficaz porque gerada espontaneamente a partir da experiência viva e histórica.
(Gramsci, 2004, pp. 248-249)
Essa ação democrática compõe, na vida da classe, múltiplas atividades de educação recíproca para discipliná-la e potencializá-la pelas experiências institucionais, para generalizá-la como sistema organizado, capaz de operar na instauração do novo Estado, em que a hegemonia das classes subalternas atenda aos interesses da maioria social. Assim, a direção ou o domínio burguês “deve ser substituído por uma democratização das organizações, por uma maior participação das bases no processo de decisão e de existência dessas organizações” (Dias, 2000, p. 99). Eis a asserção que pode ou deve inspirar gestores(as) no exercício do trabalho de administração democrática da escola, de modo que o objetivo final, tanto da escola quanto do partido, é o de formar o indivíduo “como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (Gramsci, 2001a, Cad. 12, § 2, p. 49, itálico nosso).
Essa noção democrática, amadurecida no cárcere fascista, tem lastro no período da juventude, quando Gramsci foi protagonista do experimento revolucionário fracassado, articulado pelos conselhos de fábricas, uma “tradução”4 dos soviets da Revolução Russa ao contexto da Itália, denominado de Biênio Vermelho (1919-20). Nos conselhos ou no partido, a concepção democrática gramsciana expressa-se no projeto de fazer “coincidir” dirigentes e dirigidos. A construção da noção de democracia em Gramsci é obra que perpassa toda a sua vida, da juventude à maturidade carcerária, resultante da formulação teórica e da experiência militante, e ele a estende outros organismos sociais, como a escola.
A democracia em Gramsci se distancia da noção liberal-burguesa, que é sustentada na representatividade, na formalidade de direitos – e não na concretude deles na forma do gozo de bens materiais, simbólicos e sociais – e na crença de que desiguais possam ser tomados(as) como o mesmo (democrático?) status de cidadão. Gramsci trata da democracia como algo concreto, que se expressa com a participação direta e esclarecida dos(as) integrantes de um organismo social na definição dos seus próprios rumos, o que exige que todos(as) sejam educados para serem dirigentes, devendo ter acesso ao conteúdo cultural – artístico, científico e filosófico – que possibilite o conhecimento de si, do organismo do qual participam e da dinâmica da vida social. Esse exercício educativo-ético-político visa a produzir condições para fazer “coincidir” dirigentes e dirigidos, elemento central da noção gramsciana de democracia. Na escola, essa é a mais significativa diretriz a ser perseguida pelo(a) gestor(a) que se queira democrático(a).
Gramsci não advoga a democracia apenas internamente aos organismos sociais das classes subalternas, pois articula a luta em defesa da democracia na escola, no partido, nos conselhos de fábrica, com a luta social para conquistar a democracia na sociedade. O exercício democrático efetivado nas classes subalternas é experimento e aprendizado para o exercício democrático na vida social e acumula forças para gestar o Estado. De modo que a democracia, na chave interpretativa de Gramsci, não é elucubração teórica para o futuro Estado operário-camponês, mas diretriz para que os(as) integrantes das classes subalternas a exercitem “aqui e agora”, na dinâmica da luta por conquistar outra sociedade (mais democrática), no interior das organizações que se esmeram por superar o capitalismo. Nas palavras de Gramsci, em 1918, no texto “Antes de tudo, precisamos ser livres”, temos que
é ainda maior no proletariado organizado o dever de se educar ... para assumir a gestão social [daí ser necessário] intensificar a cultura, aprofundar a consciência. E esse empenho não pode ser adiado para amanhã ... Esse empenho é ele mesmo liberdade, estímulo para a ação e condição da ação.
(Gramsci, 2004, pp. 212-213)
Se a escola, para Gramsci (1999), deve assumir o princípio democrático para construir outra civilização (democrática), que supere a sociedade de classes, o(a) gestor(a) deve assim também se identificar, porque dessa forma poderá visar, com sua ação administrativa e diretiva, a alcançar a finalidade de produzir sujeitos capazes de serem não apenas dirigidos, mas aptos a ser dirigentes ou estar em condições de controlar quem dirige. O caminho – ou método – para tanto não é outro senão o de o(a) gestor(a) se aproximar dos sujeitos escolares, para sentir o que eles sentem, de modo que eles(as) saibam o que é a gestão, pois “não se faz política-história sem essa paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação” (Cad. 11, § 67, p. 221).
Sentindo o que sente a comunidade escolar, o(a) gestor(a) deve abrir a ela a possibilidade de participar no processo de definição das diretrizes escolares, de modo que a gestão seja elemento de produção de um corpo escolar unitário – sendo o(a) gestor(a) um de seus elementos ativos, mas não o único – capaz de produzir uma “vontade coletiva” organicamente articulada ao propósito de gestar não apenas outra escola, mas também outra civilização.
5. Conclusão
Para concluir, cabe retomar sinteticamente o exposto, apresentando-o em duas assertivas, e abrir perspectiva para novas investigações com uma terceira asserção.
A primeira afirmação é a de que, nos escritos juvenis e da maturidade de Gramsci não há indicações sobre como deve ser a gestão na escola unitária. De modo que, para identificar isso é necessário um trabalho rigoroso de estudo sobre o que ele registrou em textos – principalmente os relacionados à educação, aos conselhos de fábrica e ao partido político –, bem como sobre o modo com que atuou, militantemente, orientado pela “filosofia da práxis”, com vistas a inferir desses documentos e da práxis política elementos a compor um esboço da visão que ele tinha sobre a gestão.
Se tomar o conceito de gestão como administrar a vida individual e coletiva, os destinos, pode-se dizer que, em Gramsci, ela tem o objetivo de romper a divisão dirigentes e dirigidos, governantes e governados, que é imanente ao desenvolvimento do metabolismo do capital. Aos que se orientam pelo legado de Gramsci, isso deve ser perseguido em todos os tempos e os espaços do aqui e agora, e não em projeto para a futura sociedade sem classes; deve ser não apenas um ideal orientador da ação, mas exercício prático na concretude de movimentos sociais e de instituições, como é o caso da escola.
Por fim, se não há nos escritos de Gramsci definições sobre a gestão escolar, sabe-se que ele, ao formular a proposta de uma escola básica – escola unitária –, traduziu a inestimável experiência da escola única do trabalho, protagonizada pelos pioneiros da educação russa: Krupskaya, Lunatcharski, Pistrak e Shulgin (cf. Martins, 2021a). De fato, a escola unitária não “pode ser entendida sem o exemplo da comuna-escola soviética, da mesma forma que as ‘associações livres’ de cultura política propostas por Gramsci em 1921 tinham por modelo o Proletkult” (Manacorda, 1990, p. 46). De modo que, para aprofundar ainda mais a identificação da concepção gramsciana de gestão para/na escola unitária, cabe investigar a experiência escolar da Revolução Russa, particularmente no período de 1917 a 1931.
Do que foi dito neste artigo, resta, portanto, aos(às) interessados(as) no debate sobre a gestão educativa democrática, que o rompimento do autoritaritarismo é um contínuo exercício teórico e prático, a ser efetivado a cada dia no chão da escola pelo conjunto dos sujeitos que nela interagem.
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1
A íntegra dos resultados da referida pesquisa encontra-se na dissertação intitulada de “Gestão escolar democrática à luz de Gramsci: uma análise da gestão escolar paulista”. Este artigo parte da referida pesquisa, contudo, a ela acrescenta reflexões e elementos novos.
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2
“Distante da compreensão de trabalho como princípio educativo está a confusão conceitual de identificar trabalho e emprego. Esta é uma das formas que o modo de produção capitalista objetivou o trabalho, na forma de mercadoria a ingressar no sistema de exploração econômica em benefício do capital, pela extração de mais valia. Destarte, há sociedades sem emprego, mas não existiu e não existirá sociedade sem trabalho, porque ele consiste justamente na atividade pela qual o homem produz a própria existência. Essa confusão, às vezes, enleia a defesa do trabalho como princípio educativo com formação para o mercado de trabalho, o que é diferente. No primeiro caso, a escola formará educandos críticos à sociabilidade cuja centralidade é o capital; no segundo, a escola estará reproduzindo essa sociabilidade que desumaniza, como ocorre nas escolas estritamente profissionalizantes” (Martins, 2017, p. 256).
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3
“uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral” (Gramsci, 2007, Cad. 13, § 1, p. 19).
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4
Para conferir o conceito de “tradução” em Gramsci aqui empregado, consulte a primeira parte do artigo de Martins (2018), intitulado “‘Tradução’ da escola unitária de Gramsci pela pedagogia histórico-crítica de Saviani”.
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Apoio e financiamento:
CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), processo nº 303095/2020-2
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Revisão textual:
Normalização bibliográfica (APA 7ª Ed.), preparação e revisão textual em português: Leda Maria de Souza Freitas Farah. leda.farah@terra.com.br, farahledamaria@gmail.com
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Editoras responsáveis:
Editora Associada: Cristiane Machado https://orcid.org/0000-0002-3522-4018.Editora Chefe: Chantal Victória Medaets https://orcid.org/0000-0002-7834-3834.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Jan 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
14 Jul 2024 -
Revisado
14 Out 2024 -
Aceito
15 Out 2024
