Open-access Dialéticas de resistência: Aproximações entre Adorno e Gramsci e sua relação com a educação

Resumo

O artigo analisa as aproximações históricas e conceituais entre Theodor W. Adorno e Antonio Gramsci no campo da educação, enfatizando a relação entre dialética, resistência e formação crítica. Por meio de revisão bibliográfica comparativa, identifica convergências e divergências nas abordagens dos autores diante de contextos de dominação. Destaca-se que ambos renovam a compreensão da dialética, criticam o tecnicismo educacional e valorizam uma formação humanizadora baseada em cultura e arte. Conclui-se que Adorno e Gramsci oferecem contribuições relevantes para repensar a educação como espaço de resistência à alienação, à conformidade e à massificação social, ressaltando a importância de práticas educativas críticas.

Palavras-chave
Educação; Gramsci; Adorno; Dialética; Aproximações

Abstract

This article analyzes the historical and conceptual connections between Theodor W. Adorno and Antonio Gramsci in the field of education, emphasizing the relationship between dialectics, resistance, and critical formation. Through a comparative bibliographical review, it identifies convergences and divergences in the authors’ approaches to contexts of domination. It highlights that both renew the understanding of dialectics, criticize educational technicism, and value a humanizing formation based on culture and art. The article concludes that Adorno and Gramsci offer relevant contributions to rethinking education as a space of resistance to alienation, conformity, and social massification, emphasizing the importance of critical educational practices.

Keywords
Education; Gramsci; Adorno; Dialectics; Connections

Resumen

El artículo analiza las aproximaciones históricas y conceptuales entre Theodor W. Adorno y Antonio Gramsci en el campo de la educación, enfatizando la relación entre dialéctica, resistencia y formación crítica. Mediante una revisión bibliográfica comparativa, identifica convergencias y divergencias en los enfoques de los autores frente a contextos de dominación. Se destaca que ambos renuevan la comprensión de la dialéctica, critican el tecnicismo educativo y valoran una formación humanizadora basada en la cultura y el arte. Se concluye que Adorno y Gramsci aportan contribuciones relevantes para repensar la educación como espacio de resistencia a la alienación, la conformidad y la masificación.

Palabras clave
Educación; Gramsci; Adorno; Dialéctica; Aproximaciones

Introdução

Em tempos de recrudescimento da racionalidade técnica e de novas formas de autoritarismo, se faz pertinente o estudo de autores que fizeram resistências a regimes autoritários. Entre eles, os pensadores que resistiram ao Fascismo Italiano e ao Nazismo Alemão, Antônio Gramsci (1891-1937) e Theodor Adorno (1903-1969), respectivamente. A partir da leitura prévia de seus textos e biografias observou-se similaridades entre suas teorias e vidas. No entanto, apesar da vasta fortuna crítica sobre ambos, poucos estudos analisam comparativamente o papel da dialética e sua articulação com a educação nos dois autores, especialmente no contexto da resistência à racionalidade técnica e à barbárie contemporânea. Este artigo busca suprir essa lacuna ao analisar as aproximações históricas, conceituais e contextuais entre Adorno e Gramsci, com ênfase nas relações entre educação, dialética e resistência diante de regimes totalitários.

O estudo adota uma abordagem teórica e comparativa, fundamentada em revisão bibliográfica das obras de Adorno e Gramsci, com foco na articulação entre dialética, resistência e educação. O objetivo é analisar aproximações e divergências conceituais entre os autores, especialmente no que diz respeito ao papel da formação humana diante de contextos de dominação.

Foram selecionadas como fontes primárias as principais obras filosóficas de Adorno: Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos, Dialética negativa, Dialética do esclarecimento e Estética, Educação e emancipação. De Gramsci, Cadernos do cárcere volumes 1, 2, 4 e 5 (incluindo os textos sobre “O Risorgimento” e “Americanismo e Fordismo”). Também foram incluídas obras fundamentais do campo, como Teoria tradicional e teoria crítica e Eclipse da razão, de Horkheimer.

Além desses escritos, foram incluídos biografias e estudos críticos reconhecidos internacionalmente, que se justificam pela explanação histórica e contextual da vida dos dois autores. Para a reconstrução da trajetória de Gramsci, foram utilizadas as biografias de Maestri (2020), professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), e de Santucci (2010), ex-diretor do Centro de Estudos Gramscianos no Instituto Gramsci, em Roma. No caso de Adorno, recorreu-se ao trabalho de Claussen (2006), sociólogo e escritor alemão formado em filosofia, sociologia, literatura e política, em Frankfurt, que conviveu pessoalmente com Theodor W. Adorno e produziu uma pesquisa extensa sobre a vida do autor, principais conceitos e obra filosófica.

A escolha desses textos considerou sua centralidade no debate sobre dialética, cultura e educação, bem como sua repercussão no campo da teoria crítica. O procedimento analítico consistiu em cotejar as formulações dos autores sobre dialética, cultura e formação, identificando convergências e tensões conceituais e articulando-as com debates contemporâneos em educação crítica. Foram privilegiadas interpretações que evidenciem o diálogo entre as tradições da Escola de Frankfurt e do marxismo italiano, sem a pretensão de esgotar a complexidade dos autores.

Como limitação, destaca-se que o estudo se restringe à análise conceitual e ao diálogo entre fontes bibliográficas, não incorporando investigação empírica nem a totalidade da produção de Adorno e Gramsci. As análises propostas devem ser compreendidas como um recorte que busca iluminar possibilidades para a reflexão educativa em contextos de crise e resistência. No contexto europeu do pós-Primeira Guerra Mundial, os regimes fascistas emergiram como respostas autoritárias às crises capitalistas relacionadas ao imperialismo e ao colonialismo do início do século XX. Na Itália, o Partido Fascista foi fundado em 1919, ascendendo ao poder com a Marcha sobre Roma, em 1922, quando o rei Vítor Emanuel III nomeou Benito Mussolini como primeiro-ministro. Na Alemanha, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, fundado em 1920, alcançou o poder com a nomeação de Adolf Hitler como chanceler, em 1933, pelo presidente Paul von Hindenburg. A ascensão desses regimes resultou em repressão a movimentos sociais, restrição das liberdades civis e supressão do debate crítico, elementos que atravessaram profundamente as experiências intelectuais e políticas de Adorno e Gramsci.

O fascismo consolidou-se por meio de uma retórica nacionalista, anticomunista e hostil à democracia liberal, utilizando propaganda sistemática, repressão violenta a opositores, dissolução de organizações da sociedade civil e implantação de sistemas educacionais subordinados aos valores autoritários do Estado. Tanto na Itália quanto na Alemanha, a ascensão fascista resultou no fechamento dos espaços públicos de debate e na repressão sistemática a práticas culturais e educativas voltadas à promoção do pensamento crítico.

Nesse cenário, destaca-se a emergência de resistências intelectuais e críticas voltadas aos regimes totalitários. As semelhanças conceituais entre Adorno e Gramsci, especialmente em relação à educação, constituem pontos centrais deste artigo. Por isso, analisam-se as contribuições de dois pensadores que escreveram “para que isto nunca mais aconteça”: Antonio Gramsci, da Itália, e Theodor W. Adorno, da Alemanha.

Gramsci, preso pelo regime fascista, escreveu grande parte de sua obra em condições adversas, desenvolvendo reflexões sobre estratégias de resistência cultural. Adorno, forçado ao exílio pelo avanço do nazismo, formulou críticas à racionalidade instrumental e à conformação cultural típica dos regimes totalitários. Apesar de terem sido contemporâneos e partilharem preocupações comuns, não há registros de encontros, correspondências ou menções recíprocas em suas obras. Ainda assim, ambos convergem na análise da ascensão dos regimes totalitários apoiados por ampla participação popular e ressaltam a centralidade da dialética e da educação crítica como estratégias de prevenção de novas formas de barbárie.

Assim, este artigo propõe uma análise comparativa das abordagens de Gramsci e Adorno, destacando convergências e limites de suas contribuições para o debate educacional contemporâneo. O problema que orienta este estudo é: em que medida as concepções de dialética em Gramsci e Adorno podem contribuir para a compreensão da educação como resistência em contextos de dominação e alienação?

Destaca-se, portanto, a originalidade deste trabalho ao propor um diálogo comparativo sistemático entre Gramsci e Adorno no campo educacional. Embora ambos sejam amplamente estudados separadamente, são raros os trabalhos que examinam de modo articulado suas concepções de dialética e suas implicações para a formação crítica e a resistência à barbárie. Ao ocupar esse espaço ainda pouco explorado na literatura, o artigo contribui para ampliar o repertório teórico da educação crítica, oferecendo subsídios para o enfrentamento dos desafios contemporâneos diante da ascensão do tecnicismo, da racionalidade instrumental e das novas formas de autoritarismo nas políticas e práticas educacionais.

Cabe salientar que não se pretende esgotar a complexidade das obras dos autores, mas, sim, propor um diálogo teórico-metodológico a partir de recortes centrais de suas produções. Para tanto, o artigo está estruturado em três partes: a primeira apresenta o contexto biográfico dos autores; a segunda discute os conceitos de dialética e suas implicações para a educação; e a terceira aponta aproximações, divergências e desdobramentos para o campo educacional.

Biografias de Resistência

As proximidades entre Adorno e Gramsci, autores que nunca tiveram contato direto ou influência mútua comprovada, despertam interesse não apenas por suas ideias, mas também por suas trajetórias de vida. Considerando o sujeito como um ser histórico, atravessado pelos acontecimentos de seu tempo e espaço, torna-se possível identificar aproximações históricas e relacionais entre eles por meio do exame de suas biografias.

De acordo com Maestri (2020) e Santucci (2010), Antonio Gramsci nasceu em 1891, na cidade de Ales, Sardenha, uma das regiões mais pobres da Itália, onde passou a infância e juventude. Sua trajetória inicial foi marcada por graves problemas de saúde, pobreza e pela prisão do pai, o que o levou a interromper os estudos para trabalhar, retomando-os apenas mais tarde, já em Santu Lussurgi. Posteriormente, ingressou no curso de Letras, na Universidade de Turim, beneficiado por uma bolsa de estudos, contexto no qual se aproximou do movimento operário e de intelectuais socialistas.

Theodor W. Adorno nasceu em 1903, em Frankfurt am Main, numa família judaica de classe média alta (Claussen, 2006). Desde cedo recebeu incentivo para o estudo de artes e línguas, demonstrando precocidade intelectual em filosofia, música e idiomas. Após a Primeira Guerra Mundial, na qual atuou como soldado sanitário, Adorno frequentou o Kaiser-Wilhelm-Gymnasium, sendo aluno do filósofo Hans Cornelius e conhecendo Siegfried Kracauer, crítico cultural responsável por sua introdução no jornalismo.

Em 1915, após deixar a universidade, Gramsci tornou-se redator de jornais, entre eles a página oficial do Partido Socialista Italiano (PSI) (Santucci, 2010). Com a Revolução Russa de 1917, envolveu-se ativamente em movimentos internos de apoio à revolução bolchevique, o que culminou na Greve Geral pelo Pão – marcada por repressão, mortes de operários e prisão da diretoria do PSI –, tornando-se uma das principais lideranças do partido. Em 1919, fundou o jornal L’Ordine Nuovo, voltado para os conselhos operários, com o objetivo de informar e educar trabalhadores, promovendo a politização da classe e fortalecendo o movimento operário nos anos seguintes. Esses episódios já antecipam a centralidade da educação em seu pensamento. Simultaneamente, o regime de Mussolini se consolidava como força dominante, conforme a própria análise de Gramsci.

Em 1924, Adorno concluiu sua graduação em filosofia, na Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt. Seus primeiros escritos destacam o desenvolvimento estético como dimensão crucial da evolução histórica, já refletindo a influência do pensamento de Walter Benjamin, especialmente na aplicação do marxismo à crítica da cultura (Claussen, 2006). Naquele período, Adorno transitava entre o estudo da filosofia idealista alemã e o interesse pela música contemporânea, escrevendo sobre a filosofia da nova música e a estética da arte moderna.

Em 1926, em resposta à forte oposição parlamentar de Gramsci ao regime fascista, Mussolini cassou os mandatos dos deputados de oposição e determinou sua prisão sob a acusação de conspiração contra o Estado italiano. Como destaca Maestri (2020, p. 126), “Gramsci foi um dos principais opositores do regime fascista de Mussolini no Parlamento, denunciando os crimes e as fraudes do governo”. Em 1928, Gramsci foi julgado e condenado pelo Tribunal Especial para a Defesa do Estado a vinte anos, quatro meses e cinco dias de prisão.

Gramsci permaneceu preso até sua morte, em 1937. Nos dois anos finais, devido ao agravamento de seu estado de saúde, foi transferido para o regime de internação, sem condições de continuar seu trabalho intelectual. Paradoxalmente, o período de cárcere, de 1926 a 1935, foi o mais produtivo de sua trajetória, resultando nos 33 cadernos que compõem os Cadernos do Cárcere, sua obra-prima, dividida entre cadernos temáticos e notas críticas. Os cadernos temáticos, que tratam de assuntos específicos como a filosofia da práxis, a história italiana, os intelectuais etc.; e os cadernos especiais, que contêm notas sobre livros e autores lidos por Gramsci na prisão (Maestri, 2020). Gramsci faleceu aos 46 anos, em 25 de abril de 1937, já liberto, porém debilitado por dois anos antes de sua morte, após enfrentar uma década de prisão pelo regime fascista.

Após lecionar por dois anos na Universidade de Frankfurt, Adorno imigrou para a Inglaterra, em 1934, para escapar da perseguição nazista aos judeus. Lá, lecionou na Universidade de Oxford por três anos. Em seguida, mudou-se para os Estados Unidos, onde trabalhou em Princeton (1938-1941) e foi codiretor do Projeto de Pesquisa sobre Discriminação Social, na Universidade da Califórnia, Berkeley (1941-1948) (Claussen, 2006). Durante esse período, o Instituto de Pesquisas Sociais, sob a direção de Max Horkheimer, aprofundou os estudos sobre a formação da identidade autoritária.

Em 1949, Adorno e Max Horkheimer retornaram à Universidade de Frankfurt, e ali reconstruíram o Instituto de Pesquisa Social e reergueram a Escola de Frankfurt de teoria crítica, contribuindo para o renascimento intelectual alemão no pós-guerra. Nessa fase, Adorno produziu algumas de suas obras mais importantes, como Teoria Estética, Dialética Negativa e Três Estudos sobre Hegel.

Apesar de viverem em países distintos, Gramsci e Adorno foram profundamente impactados pelas convulsões políticas e sociais do século XX. A diferença de idade entre eles era de apenas doze anos; ambos presenciaram a Primeira Guerra Mundial e o avanço dos regimes fascistas, eventos que atravessaram suas biografias e influenciaram decisivamente suas obras. Enquanto Gramsci, já preso pelo fascismo italiano, desenvolvia sua teoria a partir das condições do cárcere, Adorno se aproximava da Escola de Frankfurt e da teoria crítica entre as décadas de 1920 e 1930, dialogando com o marxismo em um contexto de perseguição crescente na Alemanha.

Ao contrário de Gramsci, que exerceu mandato parlamentar e teve atuação política direta, Adorno não se envolveu formalmente na vida política, concentrando sua contribuição na crítica à sociedade capitalista pelo viés filosófico e acadêmico. Essa opção permitiu que Adorno sobrevivesse ao exílio e contribuísse, após a Segunda Guerra Mundial, para o renascimento intelectual alemão, enquanto Gramsci, encarcerado, não resistiu às condições impostas pelo regime fascista italiano.

Em síntese, as experiências de vida de Gramsci e Adorno revelam trajetórias marcadas pelo enfrentamento a contextos de repressão e violência política, seja pelo cárcere e pela censura fascistas no caso do italiano, seja pelo exílio forçado imposto pelo nazismo ao pensador alemão. Ambos, em diferentes posições e estratégias, enfrentaram os limites impostos pelos regimes totalitários do século XX, transpondo esses desafios para suas reflexões sobre cultura, política e, especialmente, educação. Essas biografias, embora sem contato direto ou reconhecimento mútuo, evidenciam que a resistência intelectual pode tomar múltiplas formas e fundamenta, nos dois autores, a preocupação com a formação crítica diante das ameaças à democracia e à dignidade humana.

A questão da dialética e a educação

Para além das convergências biográficas, é possível identificar semelhanças filosóficas relevantes entre Gramsci, representante do marxismo italiano, e Adorno, da Escola de Frankfurt. Uma dessas aproximações reside na centralidade atribuída ao conceito de dialética e em suas distintas relações com a educação. Esse vínculo faz da educação um eixo fundamental para a análise comparativa entre ambos os autores. Com base na leitura de suas principais obras e interlocutores, buscou-se delinear as proximidades conceituais no uso da dialética.

Aproximar dois pensadores de grande expressão e cuja recepção crítica é diversa não é tarefa trivial. A dialética, para ambos, implica considerar a totalidade social, incorporando práxis, historicidade e a multiplicidade das conjunturas. Embora seja impossível abranger a totalidade de seus sistemas teóricos, o foco recai sobre as similitudes conceituais e os modos como, em diferentes “blocos históricos”, Gramsci e Adorno pensaram questões diversas de maneira análoga e, por vezes, fatos similares a partir de perspectivas distintas.

Em Gramsci, a dialética configura-se como uma ferramenta eminentemente prática e política, voltada à transformação da realidade social. Sua concepção está profundamente ancorada na análise das relações de poder e nas estratégias para a mudança revolucionária. É nesse contexto que Gramsci formula a “filosofia da práxis”: um marxismo renovado e radicalmente dialético, em oposição às leituras tradicionais que desvinculam teoria e história das ações humanas concretas. A filosofia da práxis é um marxismo renovado e tem um caráter essencialmente dialético, como o próprio Gramsci esclarece:

Existe … uma diferença fundamental entre a filosofia da Práxis e as outras filosofias: as outras ideologias são criações inorgânicas porque contraditórias, porque voltadas para a conciliação de interesses opostos e contraditórios; a sua ‘historicidade’ será breve, já que a contradição aflora após cada evento do qual foram instrumento. A filosofia da Práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes na história e na sociedade, ou, melhor, ela é a própria teoria de tais contradições; não é o instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas; é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte de governo e que têm interesse em conhecer todas as verdades, inclusive as desagradáveis, e em evitar os enganos (impossíveis) da classe superior e, ainda mais, de si mesmas

(Gramsci, 1999, p. 388).

Em contraste com interpretações mecanicistas do materialismo histórico, que reduzem a história a uma sucessão inevitável de modos de produção, a filosofia da práxis gramsciana enfatiza o papel ativo dos sujeitos na construção da realidade social. Nessa perspectiva, as transformações sociais não decorrem automaticamente das contradições econômicas, mas são fruto de lutas políticas e culturais que envolvem a produção e a disputa pela hegemonia. Assim, Gramsci rompe com o determinismo econômico das leituras marxistas da Segunda Internacional, que concebiam a estrutura econômica como fator exclusivo das mudanças sociais.

Para Gramsci, a superestrutura, composta por instituições políticas, jurídicas e ideológicas – como Estado, leis, religião, cultura e sistemas educacionais –, tem relativa autonomia e desempenha um papel fundamental na luta política. Nos Cadernos do Cárcere, o autor rejeita qualquer visão reducionista da relação entre base e superestrutura:

… a supremacia de um grupo se manifesta de dois modos, como “domínio” e como “direção intelectual e moral”. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a “liquidar” ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados

(Gramsci, 2002, pp. 62-63).

Dessa forma, a dialética em Gramsci é um princípio que articula estrutura e superestrutura em uma estratégia de transformação social. Não se trata de um processo automático da história, mas de uma luta incessante entre diferentes forças sociais, na qual cultura, ideologia e política desempenham papéis fundamentais. A transformação social depende da capacidade dos grupos subalternos de construir novos modelos de hegemonia, processo no qual o sujeito histórico assume o controle da história ao aproximar pensamento e prática. Segundo Gramsci (2001), é no espaço entre a base econômica e a superestrutura que ocorrem as ações dos partidos políticos e as disputas políticas e ideológicas. É nesse contexto que os indivíduos passam a compreender os conflitos existentes na estrutura social e buscam expressá-los em termos ideológicos.

Dessa forma, para Gramsci (1999) precisamente nos Cadernos do Cárcere 10 e 11, a doutrina da práxis representa uma nova perspectiva de mundo, embora tenha suas origens nas ideias de Marx e Engels. A práxis, entendida como ação revolucionária e crítica, não é uma inovação exclusiva de Gramsci, mas, sim, um aprofundamento da proposta de Marx expressa na conhecida décima primeira tese sobre Feuerbach, que defende que a filosofia só se realiza plenamente quando se transforma em prática política, deixando de ser apenas teoria abstrata para tornar-se efetivamente uma força transformadora na realidade.

Essa renovação da dialética, promovida por Gramsci em oposição ao marxismo tradicional, encontra ressonância na elaboração de Max Horkheimer (1989), em Teoria Tradicional e Teoria Crítica, parceiro de Adorno na construção da Teoria Crítica. Horkheimer parte do mesmo princípio: a história social é resultado da ação humana prático-crítica, e essa práxis retorna sobre a própria teoria. Assim, não há teoria “pura” ou separada das adversidades e contradições do processo social. Como afirma o próprio Horkheimer (1989, p. 35):

Tanto a fecundidade de nexos efetivos recém-descobertos para a modificação da forma do conhecimento existente, como a aplicação deste conhecimento aos fatos são determinações que não têm origem em elementos puramente lógicos ou metodológicos, mas só podem ser compreendidos em conexão com os processos sociais reais.

Se, para Gramsci, a superestrutura é o espaço de disputa pela hegemonia e formação de uma nova consciência, para Horkheimer, ela cumpre um papel central na perpetuação da dominação, especialmente por meio da cultura de massa e da ideologia. Ainda assim, ambos rejeitam a ideia da superestrutura como mero reflexo mecânico da base econômica, reconhecendo seu caráter ativo de mediação e reprodução das relações de poder. O que diverge é o potencial atribuído à cultura: Gramsci vê nela a possibilidade de transformação revolucionária; Horkheimer, com Adorno, enfatiza sua dimensão de reprodução e alienação.

Tanto a Teoria Crítica frankfurtiana quanto a filosofia da práxis gramsciana podem ser compreendidas como movimentos de superação (no sentido de aufhebung) da “teoria tradicional”. Ambas rompem com a separação entre teoria e prática, integrando crítica social, historicidade e transformação. Gramsci (1999, p. 143) sintetiza esse ponto ao afirmar:

A função e o significado da dialética só podem ser concebidos em toda a sua fundamentalidade se a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento na medida em que supera (e, superando, inclui em si os seus elementos vitais) tanto o idealismo quanto o materialismo tradicional, expressões das velhas sociedades. Se a filosofia da práxis é pensada apenas como subordinada a uma outra filosofia, é impossível conceber a nova dialética, na qual, precisamente, aquela superação se efetua e se expressa.

Adorno, enquanto expoente da Escola de Frankfurt e parceiro intelectual de Horkheimer, elaborou o conceito de dialética negativa. Na obra Dialética negativa, Adorno (2003) apresenta a dialética não apenas como um método de superação de contradições, mas como um exercício permanente de exposição e radicalização dessas contradições. Adorno considera a realidade social fundamentalmente contraditória e entende que o papel da filosofia é revelar, analisar e criticar essas tensões. Por isso, opõe-se a toda tentativa de reconciliação ou harmonização abstrata, que vê como expressão de repressão ideológica.

Adorno rejeita a noção de que a história e o pensamento obedecem a um movimento teleológico em direção a uma síntese superior. Para ele, essa visão resulta em uma falsa reconciliação, capaz de mascarar as contradições e sofrimentos efetivos da sociedade. Sua dialética negativa recusa a substituição da contradição pelo princípio da identidade; ao contrário, busca pensar o não idêntico e preservar a tensão entre sujeito e objeto, sem reduzi-los a uma totalidade reconciliadora (Adorno, 2003).

A crítica de Adorno à razão instrumental está intrinsecamente ligada à sua teoria da dialética negativa. Para ele, a racionalidade moderna, longe de promover emancipação, tornou-se um instrumento de dominação e opressão. Em Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer mostram que o esclarecimento, que deveria libertar, converte-se em nova mitologia ao eliminar a diferença e a negatividade (Adorno & Horkheimer, 1985). Assim, a razão, ao buscar classificar e controlar o mundo, destrói a singularidade e o divergente, gerando formas autoritárias de pensamento e ação. É nesse contexto que Adorno identifica na arte autêntica um espaço privilegiado para a dialética negativa: a verdadeira arte não reconcilia, mas expõe as contradições, desafia expectativas e rompe convenções. Dessa forma, a arte moderna, ao rejeitar harmonias fáceis e narrativas previsíveis, cumpre função crítica, confrontando a razão instrumental e desvelando o mal-estar civilizatório (Adorno, 2006).

A dialética negativa de Adorno não visa reconciliar ou superar contradições, mas aprofundá-las e revelar a falsidade das sínteses impostas. Seu pensamento resiste à lógica do sistema capitalista e à racionalidade instrumental, denunciando a reificação e a opressão das diferenças. Em oposição à tradição dialética que busca síntese e totalidade, Adorno sustenta que a crítica deve permanecer negativa, recusando soluções simplistas e mantendo viva a tensão com o real (Adorno, 2003).

Gramsci e Adorno convergem na crítica ao determinismo econômico do marxismo tradicional, que atribuía à infraestrutura econômica o um papel exclusivo na determinação da superestrutura. Ambos reconhecem que cultura e ideologia têm autonomia relativa, sendo agentes ativos tanto da reprodução quanto da contestação da ordem social. Gramsci (2000; 2001), ao formular o conceito de hegemonia cultural, demonstra que a classe dominante mantém seu poder não só pela coerção estatal, mas, sobretudo, pelo consenso ideológico produzido na sociedade civil – ou seja, pelo processo de internalização dos valores e ideias dominantes pelas classes subalternas.

Adorno e Horkheimer (1985), ao desenvolverem a teoria da indústria cultural, expõem como o capitalismo converte a cultura em mercadoria, bloqueando a formação de uma consciência verdadeiramente crítica. Assim, enquanto Gramsci vislumbra na cultura um espaço de disputa e transformação social, Adorno identifica na cultura de massa um instrumento de alienação, que tende a neutralizar qualquer possibilidade efetiva de resistência.

Um ponto convergente entre Gramsci e Adorno está na ênfase sobre a educação como fator de transformação social. Tal perspectiva exige uma formação do sujeito capaz de resistir à adaptação passiva ao todo dominante. Para Gramsci (1999, p. 143), a educação é um dos principais mecanismos de manutenção do controle ideológico da classe dominante:

Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais.

A educação, nesse sentido, deve ser ativa, formando sujeitos capazes de se tornarem agentes de transformação. Para Gramsci (1999), a educação constitui um processo dialético que integra teoria e prática (práxis), não sendo neutra, mas instrumento de conscientização dos oprimidos e construção de uma nova hegemonia. Enfatiza, assim, que a escola e a cultura são campos de disputa nos quais a consciência crítica pode ser desenvolvida para desafiar a dominação, por meio da práxis e da articulação entre teoria e prática.

Por sua vez, Adorno interpreta a educação sob a ótica da dialética negativa, especialmente diante da influência da indústria cultural, que fomenta conformidade e inércia, dificultando o desenvolvimento da autonomia e do pensamento reflexivo. Para ele, a educação deve ser campo de resistência crítica, em que a análise artística e a oposição à dominação ideológica da indústria do entretenimento são fundamentais para a formação de sujeitos autônomos. Nas palavras de Adorno (2000, pp. 132-133):

Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes conseqüências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao “véu tecnológico”. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios — e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana — são fetichizados, porque os fins — uma vida humana digna — encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas.

Nessa perspectiva, Adorno e Horkheimer (1985, p. 100) observam, em Indústria Cultural, que:

O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma.

Para os autores, o desenvolvimento da razão ocidental, do esclarecimento, cria brechas para o surgimento de seu próprio oposto, especialmente quando o esclarecimento se converte em mitologia e irracionalidade. Como destaca Horkheimer (2015, p. 32), em Eclipse da Razão:

Quanto mais emasculado torna-se o conceito de razão, mais facilmente se presta à manipulação ideológica e à propagação das mais gritantes mentiras. O avanço do esclarecimento dissolve a ideia de razão objetiva, dogmatismo e superstição; mas, frequentemente, a reação e o obscurantismo são os que mais lucram desse desenvolvimento.

Horkheimer (2015, p. 39) ainda observa:

Hoje, a ideia de maioria, destituída de seus fundamentos racionais, assumiu um aspecto completamente irracional. Toda ideia filosófica, ética e política – cortados os laços que a relacionavam com suas origens históricas – tem uma tendência a tornar-se o núcleo de uma nova mitologia, e essa é uma das razões pelas quais o avanço do esclarecimento tende, em certos pontos, a inverter-se em superstição e paranoia.

Em: O conceito de esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985, p. 46) relacionam a perda da capacidade formativa e o bloqueio da experiência ao predomínio dessa racionalidade tecnocrática:

A humanidade, cujas habilidades e conhecimentos se diferenciam com a divisão do trabalho, é ao mesmo tempo forçada a regredir a estágios antropologicamente mais primitivos …. A desgraça na está em que os indivíduos tenham se atrasado relativamente à sociedade ou à sua produção material. Quando o desenvolvimento da máquina já se converteu em desenvolvimento da maquinaria da dominação … os atrasados não representam meramente a inverdade. Por outro lado, a adaptação ao poder do progresso envolve o progresso do poder, levando sempre de novo àquelas formações recessivas que mostram que não é o malogro do progresso, mas exatamente o progresso bem-sucedido que é culpado de seu próprio oposto. A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão.

Em Educação após Auschwitz, Adorno (2020, p. 129) sustenta que uma educação baseada na severidade e na disciplina extrema cria as condições para a barbárie, pois prepara sujeitos para se submeterem a coletivos autoritários e a formas de violência justificadas por costumes ou ritos. Sua máxima ética nesse contexto é categórica: “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”.

Essa preocupação com a reprodução da barbárie na educação aproxima Adorno de Gramsci, especialmente na análise crítica do “americanismo” presente em O Risorgimento (Gramsci, 2002). Gramsci examina a difusão global da cultura técnica, produtiva e militar norte-americana, marcada pelo taylorismo e fordismo, responsáveis pela padronização e racionalização da existência em função da produção. Embora reconheça especificidades nacionais e resistências locais, Gramsci (2015, pp. 56-57) observa que essa lógica produtivista atravessa a indústria, o campo, a escola e a vida privada, impondo uma cultura alienante e dificultando a superação do bloco histórico e o avanço da dialética.

O desenvolvimento das escolas técnico-profissionais em todos os graus pós-elementares reapresentou o problema sob outras formas. Deve-se lembrar a afirmação do professor G. Peano segundo a qual até no Politécnico e nas escolas superiores de matemática se mostram mais bem despreparados. 0s alunos provenientes do ginásio-liceu em comparados com aqueles dos institutos técnicos. Esta melhor preparação é dada pelo complexo ensino “humanista” (história, literatura, filosofia), como se demonstrou mais amplamente em outras notas (a série sobre os “intelectuais” e o problema escola. …. A lógica formal tende a fazer o mesmo, mas só até certo ponto: seu caráter abstrato só se mantém no início da aprendizagem, na imediata formulação nua e crua de seus princípios, mas se efetiva concretamente no próprio discurso em que se faz a formulação abstrata.

A observação de Gramsci reforça o valor de uma formação humanista, capaz de superar o reducionismo técnico e instrumental, recuperando a centralidade da história, da literatura e da filosofia para o desenvolvimento do pensamento crítico. De modo análogo, Adorno (2020), em Educação e Emancipação, também defende que a educação emancipatória deve promover a autonomia intelectual e ética, superando a lógica da adaptação técnica e da conformidade, para que os sujeitos possam resistir à dominação e ao empobrecimento cultural.

O americanismo e o fordismo no âmbito educacional representam um ajuste do estabelecimento escolar às novas técnicas e métodos. Essas formas de organização do ensino baseiam-se na padronização do currículo, simplificação dos conteúdos e mecanização dos processos pedagógicos. A escola passa a formar sujeitos caracterizados pela funcionalidade, produtividade e utilidade, em detrimento da formação crítica e humanista. Surge, assim, uma contradição entre a racionalização técnica e a irracionalidade social, manifestada na desumanização, uniformização e alienação dos estudantes. Essa análise se aproxima do pensamento de Adorno, pois é justamente o avanço da técnica e da produção, sem reflexão crítica, que conduz ao aprofundamento da alienação e, em última instância, à barbárie.

Se, para Gramsci, o grupo subalterno constrói gradualmente sua visão de mundo no próprio processo do conflito entre categorias sociais e, na luta por hegemonia, tende a transformar essa visão na concepção predominante, para Adorno, a luta só se justifica quando impulsiona, sem concessões, a capacidade crítica da razão diante da irracionalidade do existente. Enquanto Gramsci aposta na classe como sujeito coletivo capaz de produzir transformação histórica, Adorno percebe que, diante da fragmentação contemporânea, cabe aos próprios sujeitos individuais enfrentar a dominação e buscar a emancipação. Por isso, ambos defendem a necessidade de uma educação voltada para a contradição e a resistência, capaz de fomentar experiências formativas autênticas. Apenas uma formação não mutilada, aberta à negatividade, pode se contrapor à barbárie. Assim, mesmo reconhecendo que a racionalidade se converte em contrarracionalidade no mundo contemporâneo, Adorno não abandona o esclarecimento e a razão como princípios indispensáveis para a emancipação.

Portanto, Adorno e Gramsci destacam-se como pensadores que enriqueceram o marxismo no século XX, cada qual a partir de abordagens próprias. Adorno voltou-se para a crítica da cultura e da razão na sociedade capitalista avançada, enfatizando a análise das formas de dominação e alienação promovidas pela racionalidade instrumental. Já Gramsci centrou sua análise na política e na cultura das sociedades capitalistas periféricas, com especial atenção à questão da hegemonia e à construção de estratégias de resistência. Apesar das diferenças de contexto e foco, ambos buscaram compreender e responder às formas de opressão e alienação, apontando caminhos para a resistência e a transformação social. Assim, superadas as distinções iniciais, passamos a destacar algumas das aproximações conceituais e temáticas que se delineiam entre Adorno e Gramsci, especialmente no que concerne à dialética e à educação.

Aproximações possíveis

Ao retomarmos, na primeira seção, as biografias dos autores, bem como suas abordagens acerca da dialética e da educação, identificamos aproximações relevantes entre Adorno e Gramsci. Ambos direcionaram suas reflexões para a crítica das formas de dominação e alienação, tendo como horizonte a formação de sujeitos capazes de resistir à conformidade imposta pelo capitalismo, pela racionalidade técnica e pela indústria cultural. Tanto para Gramsci quanto para Adorno, cultura e educação constituem campos de disputa. Gramsci enfatiza que a hegemonia cultural é construída e contestada na sociedade civil, atribuindo papel central à escola e aos intelectuais orgânicos nesse processo. Adorno, por sua vez, aponta que, embora a indústria cultural seja instrumento de reprodução da dominação, a arte e a educação permanecem como potenciais espaços de resistência, capazes de promover a autonomia e o pensamento crítico.

A relação entre a dialética negativa de Adorno, a dialética presente em americanismo e fordismo de Gramsci e a educação exige uma análise crítica das interações entre ideologias, estruturas sociais e processos de formação. Para Adorno (2020), a educação é um espaço fundamental para o desenvolvimento da autonomia e do pensamento crítico, resistindo à homogeneização imposta pela racionalidade instrumental. Já para Gramsci (2001), o processo educativo se insere na luta pela hegemonia e na formação dos intelectuais orgânicos, fundamentais para a transformação histórica. Embora por caminhos diferentes, ambos atribuem à educação humanizadora, indissociável da cultura, um papel central na transformação da sociedade.

Essa proximidade dos autores com a educação, especialmente aquela relacionada à cultura e a conteúdos subjetivos como a arte, é evidente em suas trajetórias biográficas. Gramsci cursou literatura na Universidade de Turim e, posteriormente, envolveu-se diretamente na produção de conteúdos culturais voltados para os operários de esquerda. A análise do fordismo e da educação em Gramsci implica uma compreensão crítica das interações entre ideologias, estruturas sociais e processos instrucionais. Uma convergência importante entre as concepções dos dois autores é justamente sua conexão com o materialismo histórico. Adorno, por sua vez, formou-se em musicologia em Frankfurt e, antes do advento do regime totalitário, a música e as artes ocuparam o centro de suas produções acadêmicas. Assim como Gramsci, Adorno sempre demonstrou preocupação com os fenômenos das sociedades de massa e suas consequências culturais.

Gramsci analisa como a cultura de massas, especialmente os movimentos do americanismo e do fordismo, contribui para consolidar a hegemonia cultural e a conformidade social. Ressalta que esses movimentos são fundamentados por regras produtivistas que atravessam todas as esferas da vida, inclusive a educação. Para Gramsci (2015), a racionalização e simplificação dos conteúdos, aliadas à mecanização dos processos educacionais, resultam na formação de alunos alienados e funcionalmente úteis ao mercado de trabalho, em uma educação caracterizada pela funcionalidade, pela produtividade e pela utilidade. Em resposta, Gramsci (2021) propõe uma contrarrevolução ativa, isto é, uma transformação orientada para a construção de uma nova hegemonia, fundamentada na aliança entre trabalhadores industriais e rurais, na formação de intelectuais orgânicos e na promoção de uma educação voltada para a consciência crítica.

A dialética gramsciana enfatiza a importância de reconhecer e questionar as influências culturais e ideológicas presentes na educação, incentivando o desenvolvimento do pensamento crítico sobre essas determinações. Assim, a educação deve estimular os alunos a questionarem e analisarem criticamente o conhecimento, em vez de simplesmente aceitá-lo de forma passiva. Essa postura favorece a compreensão crítica acerca de como valores e ideologias dominantes são transmitidos aos estudantes por meio do currículo, da mídia e das instituições educacionais.

A dialética negativa de Adorno concentra-se em desafiar as certezas e revelar as contradições e ambiguidades presentes na sociedade e no pensamento. Trata-se de uma reflexão que se opõe à dialética idealista, que busca a identidade entre sujeito e objeto, cogitação e cogitado, submetendo a realidade à lógica do sistema dominante. A dialética negativa, ao contrário, busca preservar a não identidade entre pensamento e objeto, respeitando a materialidade e a singularidade do real, revelando as contradições e possibilidades de transformação do mundo.

Adorno (2003) entende a dialética negativa não apenas como método de pensamento, mas como postura ética diante da realidade e do outro. Para ele, a recusa da reconciliação abstrata, típica da filosofia idealista e do marxismo dogmático, é, antes de tudo, um compromisso com a diferença, a negatividade e o reconhecimento do sofrimento real. Logo, para Adorno (2003), em Dialética Negativa, pensar é sempre pensar contra si mesmo, sinalizando que toda filosofia genuinamente crítica precisa se confrontar com aquilo que resiste à identificação e ao fechamento conceitual. Assim, a dialética negativa se apresenta como crítica permanente ao princípio da identidade, base da razão instrumental, e como abertura ao inacabamento e à pluralidade do real. Para Adorno e Horkheimer (1985, p. 144), “A totalidade é a inverdade”, defendendo que toda tentativa de totalização obscurece a singularidade do sofrimento e a possibilidade de emancipação. Em termos educativos, isso implica afirmar uma formação aberta à negatividade, capaz de promover a autonomia crítica e a resistência à barbárie, em oposição à adaptação passiva ao existente.

Nesse sentido, a educação, para Adorno (2020), exerce um papel central na formação da consciência crítica e na resistência à indústria cultural, que aliena e manipula os indivíduos. A proposta educacional deve promover o desenvolvimento da autonomia, reflexão e diálogo, estimulando o exercício da razão negativa e da experiência formativa. Para os frankfurtianos, essa experiência formativa é aquela que possibilita ao indivíduo se relacionar com a realidade de maneira sensível, criativa e crítica, recusando a submissão aos padrões impostos pela sociedade e tendo como horizonte a emancipação social, objetivo maior da educação, segundo a dialética negativa. Em outras palavras, trata-se de superar a barbárie e a dominação características da sociedade contemporânea e de construir uma sociedade baseada na dignidade e no respeito às diferenças. A emancipação social, nesse quadro, depende da capacidade dos indivíduos de pensar autonomamente, questionar ideologias e preconceitos e engajar-se ativamente na transformação radical da realidade.

Observa-se que tanto a dialética negativa de Adorno (2003) quanto a dialética desenvolvida por Gramsci, em Americanismo e Fordismo (2015), compartilham o compromisso com o pensamento crítico e a análise aprofundada das estruturas sociais, culturais e ideológicas. Ambas ressaltam a importância de uma educação que capacite os alunos a reconhecerem contradições, explorarem a complexidade e questionarem as narrativas dominantes. Sob esses enfoques, a finalidade educativa consiste em formar cidadãos conscientes e críticos, aptos a compreenderem as múltiplas influências que moldam a sociedade e a se engajar de maneira ativa e transformadora.

Entre os frankfurtianos da primeira geração, aqui representados por Adorno e Antonio Gramsci, é possível identificar aproximações relevantes. Em especial, ambos, cada um a seu modo, promovem uma renovação da dialética ao se oporem à sua vulgarização pelo marxismo tradicional, predominante especialmente na primeira metade do século XX. Para tanto, retomam as bases fundamentais da dialética, aprofundam seu conceito e o desenvolvem de maneira crítica e aberta. Não renunciam à crítica e à resistência, nem ao horizonte da emancipação.

Tanto Gramsci quanto Adorno reconhecem que a educação das sensibilidades, aquela que se realiza por meio da arte, da cultura e da experiência estética, é condição indispensável para a formação de sujeitos críticos e resistentes à alienação. Para ambos, a escola e os espaços culturais não devem apenas transmitir conteúdos, mas cultivar a capacidade de sentir, imaginar, criar e reconhecer o outro. Nessa perspectiva, arte e cultura são não apenas meios de resistência, mas fundamentos para uma educação verdadeiramente emancipadora.

Essa perspectiva resulta na produção da identidade subjetiva e de classe, tendo como principal consequência a construção da hegemonia no processo de transformação revolucionária da sociedade. Para Adorno, a luta emancipatória pode se manifestar em múltiplos campos: na elaboração de uma teoria crítica rigorosa e intransigente diante da realidade e na atuação de sujeitos capazes de resistir à dominação. Entre ambos os autores, apesar das diferenças, há uma convergência notável na reformulação e no resgate crítico e inovador da dialética e de sua aplicação: trata-se de uma dialética que não se acomoda à realidade existente, mas vê na formação, seja pelos caminhos formais da educação escolar, como sugere Gramsci, (2001), seja por uma formação ampla e integral, além dos limites institucionais, como propõe Adorno (2020), uma possibilidade real de emancipação.

Diante das aproximações e divergências discutidas entre Adorno e Gramsci, especialmente em relação à dialética, à formação e à resistência, é possível consolidar algumas reflexões centrais sobre o potencial emancipador da educação e da cultura no contexto contemporâneo. A seguir, nas considerações finais, retomam-se os principais pontos do percurso analítico, destacando as contribuições e os limites de cada autor, bem como os desafios atuais para a construção de uma educação comprometida com a crítica e a emancipação.

Considerações Finais

A análise das aproximações e diferenças entre Theodor W. Adorno e Antonio Gramsci, desenvolvida ao longo deste artigo, buscou iluminar as contribuições de ambos para a compreensão das relações entre dialética, cultura, resistência e educação em contextos de crise e autoritarismo. O percurso histórico-biográfico evidenciou que as experiências de repressão, exílio e enfrentamento aos regimes totalitários marcaram profundamente a produção intelectual dos dois autores, atravessando suas reflexões sobre cultura, subjetividade e política. Apesar de trajetórias diversas e da ausência de contato direto, ambos responderam criticamente aos desafios do século XX, articulando projetos de resistência intelectual em contextos de barbárie.

No plano conceitual, verificou-se que Gramsci e Adorno, mesmo partindo de tradições filosóficas e campos de atuação distintos, renovaram a compreensão da dialética e recusaram leituras mecanicistas ou dogmáticas do marxismo. Gramsci, ao enfatizar a filosofia da práxis, destacou o papel ativo dos sujeitos e da cultura na luta pela hegemonia e na formação das classes subalternas como agentes de transformação histórica. Adorno, por sua vez, ao desenvolver a dialética negativa, centrou sua crítica no perigo da racionalidade instrumental e da reificação, defendendo a preservação da não-identidade e o exercício constante da crítica como formas de resistência à dominação cultural e social.

Um dos principais pontos de convergência identificados foi a valorização da educação como espaço estratégico na luta contra a alienação e a conformidade. Para ambos os autores, a formação humana não pode se reduzir à adaptação técnica, à disciplina autoritária ou à reprodução dos valores do sistema vigente. Ao contrário, propuseram uma educação humanizadora, sensível, crítica e culturalmente situada, capaz de articular arte, filosofia, história e experiência ética. Essa perspectiva reafirma a importância da escola, da cultura e da arte como lugares de enfrentamento à barbárie e de construção de alternativas emancipatórias.

Contudo, as análises também mostraram que Gramsci e Adorno oferecem caminhos distintos para a superação da alienação: Gramsci aposta na construção coletiva da hegemonia, no papel dos intelectuais orgânicos e na centralidade da práxis social; Adorno, mais pessimista diante do avanço da indústria cultural, investe na resistência da arte, da reflexão negativa e da autonomia crítica dos sujeitos, mesmo em contextos de fragmentação e massificação.

É importante destacar algumas limitações desta pesquisa. O recorte analítico privilegiou as obras e os conceitos mais conhecidos de Adorno e Gramsci, focando a relação entre dialética, cultura e educação, o que implica a não abrangência de toda a complexidade de seus pensamentos e contextos históricos. A ausência de interlocução direta entre os autores limita a comparação a aproximações conceituais e contextuais, sem permitir identificar influências mútuas ou diálogos efetivos. Além disso, a pesquisa baseou-se em revisão bibliográfica e análise conceitual, sem recorrer a investigações empíricas ou ao levantamento de recepções contemporâneas desses autores no campo educacional brasileiro. Tais restrições indicam a necessidade de estudos futuros que aprofundem essas interfaces, explorem recepções em contextos específicos ou investiguem práticas pedagógicas inspiradas por Adorno e Gramsci.

O diálogo entre as obras de Adorno e Gramsci permite lançar luz sobre desafios contemporâneos do campo educacional, especialmente diante do avanço de tendências tecnicistas, produtivistas e autoritárias. A leitura integrada de seus legados reafirma que apenas uma educação crítica, humanizadora e sensível, enraizada na cultura, aberta à diferença, articulada à práxis e à reflexão negativa, pode evitar a reprodução dos erros do passado e fortalecer a resistência diante das novas formas de dominação. Ainda que partam de contextos distintos, ambos convergem na defesa de uma educação das sensibilidades, na qual arte e cultura são dimensões essenciais da formação crítica e da resistência à barbárie.

As aproximações delineadas apontam para a urgência de políticas e práticas educativas comprometidas com a emancipação, a defesa da dignidade humana e a promoção de sujeitos capazes de resistir à barbárie, à alienação e à repetição acrítica da história. Nesse sentido, Gramsci e Adorno seguem atuais e imprescindíveis, lembrando que a educação sensível, humanizadora e artística é uma das grandes possibilidades para que as atrocidades dos regimes totalitários “nunca mais aconteçam”.

  • Apoio e financiamento:
    Tradução/revisão – PPPGE/UFSCar; CAPES – Financial Code 001 (PROAP/CAPES)
  • Revisão textual:
    Normalização bibliográfica (APA 7ª Ed.), preparação e revisão textual em português: Reinaldo Rodrigues <revisão@tikinet.com.br>
    Versão e revisão em língua inglesa: Guilherme Santos <traducao@tikinet.com.br>

Disponibilidade de dados:

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Referências

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  • Adorno, T. W. (2006). Estética (S. Lessa, Trad.). Zahar.
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  • Marx, Karl; Engels, Friedrich. Teses sobre Feuerbach In: A ideologia alemã Boitempo, 2007.
  • Santucci, A. A. (2010). Antonio Gramsci Monthly Review Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2025
  • Aceito
    24 Ago 2025
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