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Notas sobre o brinquedo: possível diálogo entre Brougère, Benjamin e Vigotski 1 1 Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisão@tikinet.com.br.

Resumo

O presente trabalho objetiva estabelecer um diálogo entre as concepções de brinquedo expressas por Benjamin, Brougère e Vigotski. Para tanto, analisamos os textos “História cultural do brinquedo” e “Brinquedos e jogos”, de Benjamin; “O brinquedo, objeto extremo” e “O papel do brinquedo na impregnação cultural da criança”, de Brougère; e “O papel do brinquedo no desenvolvimento” e “O desenvolvimento do simbolismo no brinquedo”, de Vigotski. Os autores partilham da concepção de que o brinquedo é um objeto cultural, cujo contato permite ao sujeito aprender a própria cultura. Identificamos as convergências e divergências entre essas obras, evidenciando os significados referentes ao conceito de brinquedo, sem desconsiderar suas construções teóricas.

Palavras-chave
brinquedo; Benjamin; Vigotski; Brougère

Abstract

This work aims to establish a dialogue between Benjamin, Brougère and Vygotsky, with regard to their conceptions of the toy. We analyze the texts: “The toy, extreme object” and “The role of the toy on the cultural impregnation child” (Brougère); “The role of the toy in development” and “The development of symbolism in the toy” (Vygotsky); and, “Cultural story of the toy” and “Toys and games” (Benjamin). We have established a dialogue between these authors who concatenate to each other in the design of the toy is a cultural object, which allows the subject to the possibility of learning their culture from their contact with it. We identify the convergences and divergences between these authors, showing a plurality of meanings related to the concept of toy, without disregarding their theoretical constructs.

Keywords
toy; Benjamin; Vigotski; Brougère

Introdução

O brinquedo é tema de estudo em diferentes áreas de conhecimento, tais como sociologia, antropologia, psicologia, história, educação, dentre outras. Precipuamente, os trabalhos advindos dessas áreas expõem uma pluralidade de significados referentes ao conceito de brinquedo, mas que mormente engendra certa dicotomia ao apresentar o brinquedo ora como um artefato cultural que pode ser concebido exteriormente ao ato de brincar, ora como objeto que permite ao indivíduo representar, isto é, corresponder a alguma coisa possibilitando a reprodução de algo do cotidiano.

A própria língua e sua característica polissêmica, com seus próprios códigos de funcionamento, pode dar certos e distintos significados em momentos mais restritos, porém mais amplos em outros, podendo gerar certas incompreensões sobre o brinquedo.

É peremptório aludir que, no presente trabalho, não depreendemos essa pluralidade de concepções como um problema; pelo contrário, consideramos como algo comum e presente em qualquer construção cultural. Entrementes, defendemos que é essencial uma reflexão mais profunda sobre o conceito de brinquedo, para que possíveis diálogos entre autores e intelectuais do tema não sejam prejudicados, desconsiderando suas construções teóricas e engendrando preconcepções simplistas e descontextualizadas. Defendemos, ainda, que por intermédio desses diálogos pode-se superar a dicotomia brinquedo-objeto/brinquedo-ação2 2 A título de exemplo, pode-se tomar a boneca Barbie ou o jogo Lego, os quais, segundo alguns autores, são considerados brinquedos independentemente se serão usados em alguma brincadeira (objeto exterior ao ato de brincar – brinquedo-objeto). Por outro lado, há brinquedos que dão suporte ou são essenciais a uma brincadeira, porém são secundários, pois o que é priorizado é a ação (brincar). Como exemplo, podemos analisar a criança que usa uma caixa de sapatos para representar um caminhão. Nota-se que ela não “brinca com a caixa de sapatos”, mas “brinca de caminhãozinho” (brinquedo-ação). .

Assim, o presente trabalho tem como objetivo estabelecer um diálogo entre Benjamin, Brougère e Vigotski no que concerne às concepções desses intelectuais atinentes ao brinquedo.

Enfatizamos que a escolha destes três autores se dá pela necessidade de analisar três diferentes paradigmas de brinquedo que são comumente debatidos em diversos artigos e pesquisas sobre o brincar, o brinquedo, a educação infantil e a infância.

Para tanto, num primeiro momento analisamos o conceito de brinquedo a partir dos seguintes textos: “História cultural do brinquedo” (1928/2002a) e “Brinquedos e Jogos” (1928/2002b), de Walter Benjamin; “O brinquedo, objeto extremo” (1992/2010a) e “O papel do brinquedo na impregnação cultural da criança” (1992/2010c) de Gilles Brougère; e “O papel do brinquedo no desenvolvimento” (1933/2002a) e “O desenvolvimento do simbolismo no brinquedo” (1933/2002b) de Lev S. Vigotski. Esta análise foi dividida em três seções, sendo uma para cada intelectual.

Subsequentemente, estabelecemos um diálogo entre estes três autores que, embora tenham concepções divergentes sobre o brinquedo, convergem no entendimento de que o brinquedo é um objeto cultural que permite ao sujeito aprender a própria cultura a partir de seu contato com ele. Assim, neste artigo analisamos criticamente as concepções dos autores em questão, trazendo os pontos teóricos divergentes e os convergentes a fim de “jogar luz” ao conceito de brinquedo.

Reflexões de Walter Benjamin sobre o brinquedo

Walter Benjamin (1892-1940)Benjamin, W. (2002a). História cultural do brinquedo. In Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2a ed., pp. 89-94). São Paulo: Editora 34. (Obra originalmente publicada em 1928) foi um importante filósofo, crítico literário e escritor alemão da primeira metade do século XX. Dedicou parte de seus estudos às questões pedagógicas, aos jogos e brinquedos e à infância.

Nos textos “História cultural do brinquedo” e “Brinquedos e jogos”, ambos publicados originalmente em alemão em 1928 e presentes no livro Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (Benjamin, 1928/2002aBenjamin, W. (2002a). História cultural do brinquedo. In Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2a ed., pp. 89-94). São Paulo: Editora 34. (Obra originalmente publicada em 1928), 1928/2002bBenjamin, W. (2002b). Brinquedos e jogos. In Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2a ed., pp. 95-102). São Paulo: Editora 34. (Obra originalmente publicada em 1928)), o autor objetiva analisar o brinquedo numa perspectiva histórica (materialismo-histórico), construindo ora uma síntese sobre o brincar e seus desdobramentos (criação, imaginação, arrebatamento etc.), ora uma crítica ao processo de industrialização do brinquedo, que gera um distanciamento da criança na sua construção.

Benjamin afirma que o mundo da percepção infantil está impregnado em toda parte pelos vestígios da geração mais velha, com os quais as crianças se defrontam. Ora, basicamente,

… as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem. Da mesma forma, os seus brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma e segregada, mas são um mudo diálogo de sinais entre a criança e o povo.

(Benjamin, 1928/2002aBenjamin, W. (2002a). História cultural do brinquedo. In Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2a ed., pp. 89-94). São Paulo: Editora 34. (Obra originalmente publicada em 1928), p. 94).

Nessa perspectiva, o autor defende que é impossível à criança construir brinquedos em um âmbito totalmente da fantasia. Parte do pressuposto, embora latente em parte de seus textos, de que o brinquedo só pode acontecer no interior de uma determinada cultura. Como exemplo, Benjamin infere que o adulto é o primeiro responsável por fornecer à criança seus brinquedos, e chega a afirmar que

… não poucos dos mais antigos brinquedos (bola, arco, roda de penas, pipa) terão sido de certa forma impostos à criança como objetos de culto, os quais só mais tarde, e certamente graças à força da imaginação infantil, transformaram-se em brinquedos.

(Benjamin, 2002bBenjamin, W. (2002b). Brinquedos e jogos. In Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2a ed., pp. 95-102). São Paulo: Editora 34. (Obra originalmente publicada em 1928), p. 96)

Ademais, Benjamin constrói críticas pertinentes ao papel da criança diante do brinquedo. Para ele, se até hoje o brinquedo tem sido excessivamente considerado como criação para a criança ou como criação da criança, o brincar tem sido concebido a partir da perspectiva do adulto, tão somente pela ótica da imitação. De fato, desconsidera-se que são as necessidades da criança que a fazem dar significado e sentido ao brinquedo, por intermédio de uma complexa relação com uma cultura da qual ela está se apropriando a partir do próprio brincar (do brinquedo construído e/ou cedido por um adulto).

Finalmente, é louvável a contribuição de Benjamin a respeito da história do brinquedo e de suas configurações sociais. Segundo este intelectual, é nos pequenos objetos cotidianos da infância que o social se manifesta, em dimensões que se distendem da cultura ao individual (inconsciente).

Brinquedo e cultura em Gilles Brougère

A partir de uma análise crítica dos textos “O brinquedo, objeto extremo” (1992/2010a) e “O papel do brinquedo na impregnação cultural da criança” (1992/2010c), ambos encontrados no livro Brinquedo e cultura, do pedagogo e sociólogo francês Gilles Brougère, professor catedrático na Université Paris-Nord, destacaremos alguns aspectos levantados por ele acerca do brinquedo.

O primeiro refere-se à problemática e ao lócus da investigação sobre o brinquedo nas obras de Brougère. Segundo o autor, poucas pesquisas têm se debruçado sobre o assunto, por ser considerado pouco importante para a sociedade.

Além disso, o autor ressalta que a contribuição dos psicólogos não pode ser descartada. No entanto, para ele, o objeto de estudo dos trabalhos na área da psicologia deixa de ser o brinquedo e passa a ser o efeito do uso do objeto sobre a criança; ou seja, o brinquedo fica em segundo plano, e o sujeito real da pesquisa torna-se o desenvolvimento infantil.

Em contrapartida, Brougère considera necessário levar em conta que os brinquedos são produtos sociais. Nesse sentido, um estudo que valorize o brinquedo deve se aprofundar nas representações e imagens que lhe dão sentido e significado, dentro de um sistema social específico.

Para esse tipo de análise acerca do brinquedo, o autor estrutura algumas categorias. A primeira delas tem a ver com sua função (uso em potencial) em relação a sua representação (significado social produzido pela imagem). Para Brougère, todo objeto produzido pelo ser humano contém estas duas dimensões; todavia, no caso específico do brinquedo, elas se fundem, tornando o significado social relativo à sua própria função. Nessa perspectiva, Brougère ressalta que:

Com certeza podemos dizer que a função do brinquedo é a brincadeira. Mas, desse modo, definimos um uso preciso. A brincadeira não pertence à ordem do não funcional. Por detrás da brincadeira, é muito difícil descobrir uma função que poderíamos descrever com precisão: a brincadeira escapa a qualquer função precisa.

(1992/2010a, pp. 13-14)

Se por um lado é difícil descobrir a função do brinquedo e da brincadeira, por outro, pode-se considerar que é justamente na brincadeira que as representações do brinquedo tornam-se mais claras. Portanto, a brincadeira tem o potencial de fabricar seus próprios objetos, manipulando suas imagens e modificando seus usos habituais. Ora, “o brinquedo é, assim, um fornecedor de representações manipuláveis, de imagens com volume: está aí, sem dúvida, a grande originalidade e especificidade do brinquedo” (Brougère, 1992/2010a, p. 14).

O brinquedo, por estar imbuído destas representações, estimula a abertura de novas possibilidades na brincadeira, dinamizando seu universo simbólico. Dessa forma, produzir um brinquedo implica no movimento de transformar em objeto uma representação, um imaginário.

Apesar de o autor dar grande ênfase à esfera simbólica do brinquedo, em certo momento a questão material também é comentada, não de forma isolada, mas em constante relação com sua função e representação. Para ele, a significação aparece sobretudo por meio de uma expressão material, ou seja, devido ao brinquedo ser dotado de uma forma determinada. Formas, desenhos, os sons emitidos e as cores presentes no brinquedo carregam consigo todo um conjunto de códigos e representações variadas construídas dentro de uma sociedade.

Destarte, é possível entender, por exemplo, as diferenças de gênero entre certos brinquedos, entre bonecas e carrinhos, as cores rosa e azul, entre desenhos animados e tantas outras construções que influenciam nas representações e na utilização dos brinquedos por meninas e meninos, tema discutido em outros textos do autor3 3 Para mais detalhes ver: “A boneca industrializada, espelho da sociedade” (Brougère, 1992/2010b). .

Brougère destaca ainda o papel que a publicidade e a televisão exercem na construção de universos imaginários, por exemplo, por meio dos desenhos animados que dão sentido aos brinquedos comercializados, geralmente com os rótulos de gênero marcados no seu material.

Um último aspecto para o qual o autor chama a atenção e que tem relação direta com os temas levantados até então tem a ver com a possibilidade de impregnação cultural que o brinquedo propicia à criança. A partir do brinquedo, a criança tem acesso a todo esse conjunto de representações e imagens construídas pelas mídias e pela própria sociedade. Como já aludido, é na brincadeira que os significados atribuídos ao brinquedo poderão ser manipulados. Nesse contexto, Brougère ressalta que:

… essa impregnação está longe de ser um condicionamento. Trata-se sobretudo de uma confrontação da qual a criança conserva determinadas significações, eliminando outras para substituí-las por novas significações. A aprendizagem é ativa no sentido de que não se submete às imagens, mas aprende a manipulá-las, transformá-las, e até mesmo, praticamente, a negá-las.

(Brougère, 1992/2010c, p. 48)

Por fim, o brinquedo na concepção de Brougère, pode ser analisado a partir de suas funções, representações simbólicas e do seu material. A sua construção se relaciona com a sociedade, com os meios de comunicação e interações cotidianas, mas especialmente com a utilização do objeto durante as brincadeiras das crianças (construção de cultura lúdica).

O papel do brinquedo para Vigotski

O psicólogo bielorrusso Lev S. Vigotski (1986-1934)Vigotski, L. S. (2007). A brincadeira e seu papel no desenvolvimento psíquico da criança (Z. Prestes, trad.). Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, 8: 23-36. foi um dos principais nomes da história da psicologia. Influenciado pelo marxismo (materialismo-dialético), realizou importantes estudos sobre o desenvolvimento das funções psíquicas superiores e o papel do ensino/instrução, a determinação da consciência pela existência social, a mediação semiótica e sua influência na atividade consciente do homem, a defectologia, a pedologia, dentre outros temas.

Apesar de ter se dedicado pouco às teorias de jogo, brinquedo ou brincadeira, em seus raros trabalhos conhecidos até então sobre esta temática, destacamos dois textos: “O papel do brinquedo no desenvolvimento” (1933/2002a), proveniente de uma conferência; e “O desenvolvimento do simbolismo no brinquedo” (1933/2002b), advindo de uma coletânea de ensaios publicados postumamente. Ambos os textos estão no livro A formação social da mente, e o primeiro pode ser encontrado também com o título “A brincadeira e seu papel no desenvolvimento psíquico da criança”, traduzido por Zoia Prestes em 2007.

Sumariamente, Vigotski não separa brinquedo de jogo ou brincadeira, fato este percebido nos textos, que ora aproximam tais termos como sinônimos, ora os distinguem implicitamente a partir da diferenciação objeto/ação. Apesar disso, quando Vigotski trata do brinquedo, fundamentalmente está tratando do “jogo de papéis” ou “da brincadeira de faz de conta”.

Além desta peculiaridade, deve-se compreender que o brinquedo é secundário nos estudos de Vigotski, isto é, sua preocupação foi analisar em que medida a criança, a partir da sua ação sobre o brinquedo no seu contexto, desenvolve certas funções psicológicas superiores (deslocamento na zona de desenvolvimento próximo). Em outros termos, a preocupação do autor propendeu a analisar a ação sobre o objeto, não num sentido unilateral, mas dialético, em que a ação no mundo (por meio do brinquedo) gera um retorno, isto é, o mundo também age sobre o indivíduo.

Em linhas gerais, a ação ou atividade – e aqui podemos exemplificá-la pela “ação sobre o brinquedo” (brincar) – é um processo em transformação (dialético) que origina necessidades e motivos, engendra outras atividades estruturalmente novas (formas distintas de brincar) e, sobretudo, propicia a emergência de novas formações psíquicas.

Nesse viés, Vigotski também se preocupou em investigar o que leva a criança a brincar e se envolver numa esfera imaginária (lúdica), durante parte da infância. O psicólogo visou identificar as necessidades da criança, a fim de sistematizar e compreender o que motiva a ação (nesse caso, o motivo de brincar).

Em resumo, as relações estabelecidas com o brinquedo permitem ao indivíduo agir numa determinada esfera cognitiva, manipulando os significados dos objetos e das próprias ações. Desse modo, a ação sobre o brinquedo encontra-se precipuamente concatenada a três categorias intrínsecas: objetos (brinquedos), ações (brincar) e mediação semiótica (aprender com o outro ou por imitação) e permite o surgimento da imaginação, que, para Vigotski:

… representa uma forma especificamente humana de atividade consciente, não está presente na consciência de crianças muito pequenas e está totalmente ausente em animais. Como todas as funções da consciência, ela surge originalmente da ação.

(Vigotski, 1933/2002a, p. 122)

Com isso, pode-se inferir que, numa situação imaginária (jogos de papéis), a criança é levada a agir num mundo imaginário em que a situação é determinada pelo significado atribuído à brincadeira e não pelos objetos presentes. A título de exemplo: uma criança motivada a brincar de piloto busca uma caixa de papelão ou algo equivalente para representar seu carro (objeto presente, brinquedo). Assim, observa-se que a brincadeira foi definida não pelo objeto presente (caixa de papelão), mas pela necessidade e/ou vontade da criança de representar o papel de piloto (ação). Ademais, a representação pelo brinquedo/objeto indica uma função simbólica do pensamento, já que permite lidar com o objeto real ausente, tornando o brinquedo seu representante e/ou suporte para ação (os objetos cumprem a função de substituição).

No que concerne à relação criança-brinquedo, Vigotski (2002, p. 132)Vigotski, L. S. (2002a). O papel do brinquedo no desenvolvimento. In A formação social da mente (6a ed., pp. 121-137). São Paulo: Martins Fontes. (Obra originalmente publicada em 1933) afirma que:

Uma criança não se comporta de forma puramente simbólica no brinquedo; ao invés disso, ela quer e realiza seus desejos, permitindo que as categorias básicas da realidade passem através de sua experiência. A criança, ao querer, realiza seus desejos. Ao pensar, ela age. As ações internas e externas são inseparáveis: a imaginação, a interpretação e a vontade são processos internos conduzidos pela ação externa.

Além de ser uma situação imaginária, “não existe brinquedo sem regras” (Vigotski, 1933/2002aVigotski, L. S. (2002a). O papel do brinquedo no desenvolvimento. In A formação social da mente (6a ed., pp. 121-137). São Paulo: Martins Fontes. (Obra originalmente publicada em 1933), p. 124). Portanto, a situação imaginária da relação com o brinquedo já possui certas regras de comportamento, ainda que o jogo possa não ter regras formais a priori.

Destarte, pode-se inferir que são as regras sociais que fazem a criança se comportar de modo diferente: “no brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade” (Vigotski, 1933/2002aVigotski, L. S. (2002a). O papel do brinquedo no desenvolvimento. In A formação social da mente (6a ed., pp. 121-137). São Paulo: Martins Fontes. (Obra originalmente publicada em 1933), p. 134).

Ora, na brincadeira a criança pode ser piloto, professor, soldado, cavaleiro etc., papéis que ela ainda não pode assumir diante da sociedade, mas dos quais se apropria pelo contato com a cultura. Por este motivo, não se pode escamotear o fato de que, pelo brinquedo, a criança imiscui-se na cultura, numa relação dialética que lhe possibilita se tornar aquilo que não é e agir/interagir no seu espaço social com objetos/brinquedos que representam aqueles a que ela não tem acesso.

Além disso, a regra que advém da relação com o brinquedo não é fantástica; ela tem uma base histórico-cultural que pode ser ressignificada durante a brincadeira. Em outras palavras, as regras são aprendidas (apropriação/internalização), reproduzidas e, mormente, ressignificadas (transformadas devido à necessidade da criança). Como dizia Vigotski (2009, p. 42)Vigotski, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. São Paulo: Ática., “qualquer inventor, mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu tempo e de seu meio”. Ora, as regras no brinquedo não emergem antes que sejam criadas as condições materiais e psicológicas necessárias para o seu surgimento.

Outra ideia que merece destaque é a de “corporificar a palavra” em gestos e usar o corpo como brinquedo. Num jogo de papéis, em que os objetos estão ausentes (transição da ação com objetos concretos para a ação com significados), uma criança pode ser ao mesmo tempo piloto e carro usando de seu corpo; ou pode sair trotando, imitando um “cavaleiro galopando em seu cavalo”. Nessa perspectiva, a criança assume dois papéis distintos (cavaleiro/cavalo), porém atrelados em significado e sentido, usando o próprio corpo como instrumento para que a brincadeira se concretize. Assim, o significado da ação torna-se o cerne, e os objetos são deslocados a uma posição subordinada ou, ainda, suprimidos.

No agir da criança no mundo, não se pode obliterar o conceito de mediação semiótica e o papel do outro nesta relação. A criança no brincar (ação sobre o brinquedo) articula os três elementos de um signo (palavra, referente e significado) e, ao mesmo tempo, os desconstrói para reconstruí-los de acordo com sua imaginação (processo de criatividade), transgredindo dessa forma a lógica das relações já instituídas. Entretanto, esse processo de desconstrução, reconstrução e transgressão não é individual; passa por uma construção cultural mais ampla e, igualmente, pelo papel do outro nesse processo dinâmico de significação.

De resto, inferimos que, para Vigotski, o brincar é uma forma de a criança agir no mundo, possibilitando emancipação, autoafirmação (constituição da subjetividade) e desenvolvimento (o brinquedo como “atividade-guia” que proporciona o desenvolvimento da criança).

Portanto, brincar/jogar é um processo dialético, resultante de uma leitura de mundo (consciência da realidade). E a criança, por sua vez, brinca pela necessidade de agir em relação ao mundo mais amplo dos adultos, e não somente ao universo dos objetos a que ela tem acesso.

Possível diálogo entre Vigotski, Brougère e Benjamin

Sinteticamente, os três autores depreendem que o brinquedo é um objeto histórico-cultural, cujo contato permite ao sujeito aprender a própria cultura. Outra convergência entre eles pode ser identificada na compreensão do brinquedo como resultado de relações interindividuais; ou seja, os brinquedos são estruturalmente sociais, uma vez que são elementos da cultura na qual se inscrevem.

Nessa concepção, o brinquedo advém de uma aprendizagem social, pois aprende-se a manuseá-lo (representar, “brincar de”, “brincar com” etc.), a partir da mediação de uma pessoa, de um grupo ou pela imitação. De resto, o brinquedo tem múltiplas significações e usos, o que gera uma comunicação específica, uma linguagem própria que enceta uma brincadeira.

Outra contiguidade teórica, bem interessante, concerne à situação imaginária. Os três autores compreendem, cada um a seu modo, que a criança faz regulações do seu mundo (espaço/contexto social) a partir do brincar e do brinquedo. Pode-se dizer que o “mundo imaginário” (simbólico) é recriado, várias e várias vezes, dependendo das necessidades e da vontade de seu criador; portanto, não é estático, construído e acabado, mas sim dinâmico. Este dinamismo do brincar aproxima-se da dialética de Vigotski, da perspectiva sociocultural de Brougère e mesmo do materialismo-histórico de Benjamin.

Em se tratando das divergências, diferentemente dos outros autores, Vigotski destaca que o brinquedo permite, simultaneamente, uma imersão e uma transgressão do real. Em outros termos, a ação da criança no brinquedo é engendrada por um duplo aspecto: imersão e transgressão. Esse duplo aspecto não é imutável, pelo contrário, é dialético; imersão e transgressão, além de opostas, se modificam de acordo com as regras e necessidades da criança.

Vigotski também ressalta que o espaço/tempo do brinquedo se desenvolve de modo simbólico. Apesar de o autor não defender esta ideia explicitamente, podemos caracterizar espaço/tempo como um vaivém entre real e imaginário, numa relação dialética de imersão e transgressão.

Nesse ponto, Brougère propõe que o brincar permite ao indivíduo criar, trocar e entreter uma relação com a cultura (imersão na realidade). Do mesmo modo, afirma que a criança cria sua própria cultura lúdica, partindo dessa relação. Ainda que Brougère apresente os mesmos conceitos de Vigotski, ele não estabelece um diálogo entre realidade e sua transformação. Fica evidente que Brougère se preocupa mais com a dinâmica interna do brincar e com os usos do brinquedo, demonstrando que, entre a realidade e os espaços de criação cultural por excelência (cultura lúdica), existe uma “ponte”, que é a representação (modificação da realidade).

Benjamin, por sua vez, não tenciona analisar esse duplo aspecto desenvolvido por Vigotski. Por outro lado, supõe que há uma imersão no mundo imaginário a partir da ação da criança no brinquedo. Mais ainda, defende que o brincar significa libertação, pois as crianças criam seu próprio mundo a partir da brincadeira. Sua ideia de libertação seria um tergiversar do mundo real. Em contrapartida, a libertação para Vigotski é uma forma de transgressão e/ou ação direta diante do mundo.

Outra faceta do brinquedo (ou do brincar) em que parece haver certa diferença reporta-se à sua associação ao prazer. Se por um lado Vigotski defende que as ações de uma criança no brinquedo não resultam sempre em prazer – ou melhor, não se pode caracterizar o brinquedo como uma “atividade prazerosa” –, por outro, tanto Benjamin quanto Brougère observam as ações no brinquedo (brincar) como algo prazeroso, alegre e divertido.

Um último ponto de divergência corresponde à concepção do brinquedo como material, objeto. Para Benjamin, a criança é capaz de brincar ainda que o brinquedo não esteja presente fisicamente; tudo pode lhe servir como brinquedo, pois mesmo sem o objeto (construído no bojo de uma sociedade), pode-se usar algo para substituí-lo. Na ausência de um carrinho de plástico, usa-se uma caixa de sapato, por exemplo. Vigotski e Brougère já se preocupam com os processos de significação a partir de objetos usados em brincadeiras. Enquanto Benjamin compreende o brinquedo mais como objeto em si (material), os outros dois intelectuais analisam a ação sobre o objeto.

Todavia, novamente temos uma dissensão teórica entre Brougère e Vigotski. Para o primeiro, um brinquedo pode ser necessário, mas não fundamental à ação de brincar, já que a ação da criança seria motivada pela necessidade de agir em relação ao mundo mais amplo dos adultos. Portanto, brincar sugere uma dinâmica interna, mas essa dinâmica supõe uma troca com o mundo. Vigotski é o único entre os três autores analisados que se preocupou com a ação da criança no mundo e o desenvolvimento a partir dessa ação, considerando que, enquanto modifica seu contexto sociocultural (natureza), a criança é modificada por sua ação e, com isso, desenvolve funções psíquicas superiores.

Assim como Vigotski, Brougère também entende o brinquedo para além de um instrumento de brincadeira, visto que possibilita a representação e o suporte para a brincadeira. De fato, ele traz à criança não só um meio de brincar, mas igualmente imagens, representações e universos imaginários. O brinquedo estrutura o conteúdo da brincadeira sem, contudo, limitar a imaginação da criança. Em contrapartida, o autor não analisou a ação da criança no mundo (sujeito), o desenvolvimento a partir dessa ação e em que medida a relação da criança com o mundo não a modifica, como o fez Vigotski. Além disso, as concepções de Brougère são elusivas quanto à ausência do brinquedo e à tomada do “corpo como brinquedo”, pontos que, por outro lado, são analisados com mais rigor por Vigotski e, de forma superficial, por Benjamin.

Considerações finais

Os três autores concebem o brinquedo como um objeto histórico-cultural que possibilita à criança aprender a própria cultura e agir sobre o mundo. Também depreendem que os brinquedos resultam de relações interindividuais, estruturalmente sociais, visto que são elementos da cultura na qual se inscrevem.

Em contrapartida às convergências aludidas, o ponto de maior divergência entre os três autores, especialmente entre Vigotski e Brougère, têm sido o olhar para o processo de significação. Vigotski, por exemplo, não se limita ao brinquedo, mas estende suas reflexões ao processo de construção cultural e ao papel do outro na dinâmica de significação (mediação semiótica). Como dito anteriormente, Vigotski entende que a criança no brincar articula os três elementos de um signo e, pari passu, os desconstrói para reconstruí-los segundo sua imaginação/criatividade, transgredindo assim a lógica das relações instituídas.

Já Brougère (e de certo modo Benjamin) defende as possibilidades do brinquedo dentro da brincadeira, de modo que permita à criança manipular suas imagens e representações. No entanto, percebe-se que Brougère pouco se aprofunda na explicação de como esse processo acontece. Esse talvez seja um ponto de diálogo ou de complementaridade entre os autores, e merece ser analisado melhor.

Apesar das divergências apresentadas, os três autores possuem grande relevância para a educação e a educação infantil, pois analisam as relações entre infância, cultura, brinquedo e aprendizagem. Consideramos que este trabalho contribui para ampliar a compreensão atinente ao conceito de brinquedo a partir de três referenciais teóricos distintos, mostrando algumas possibilidades de diálogo.

  • 1
    Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisão@tikinet.com.br.
  • 2
    A título de exemplo, pode-se tomar a boneca Barbie ou o jogo Lego, os quais, segundo alguns autores, são considerados brinquedos independentemente se serão usados em alguma brincadeira (objeto exterior ao ato de brincar – brinquedo-objeto). Por outro lado, há brinquedos que dão suporte ou são essenciais a uma brincadeira, porém são secundários, pois o que é priorizado é a ação (brincar). Como exemplo, podemos analisar a criança que usa uma caixa de sapatos para representar um caminhão. Nota-se que ela não “brinca com a caixa de sapatos”, mas “brinca de caminhãozinho” (brinquedo-ação).
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    Para mais detalhes ver: “A boneca industrializada, espelho da sociedade” (Brougère, 1992/2010b).

Referências

  • Benjamin, W. (2002a). História cultural do brinquedo. In Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2a ed., pp. 89-94). São Paulo: Editora 34. (Obra originalmente publicada em 1928)
  • Benjamin, W. (2002b). Brinquedos e jogos. In Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2a ed., pp. 95-102). São Paulo: Editora 34. (Obra originalmente publicada em 1928)
  • Brougère, G. (2010a). O brinquedo, objeto extremo. In Brinquedo e cultura (8a ed., pp. 11-24). São Paulo: Cortez. (Obra originalmente publicada em 1992)
  • Brougère, G. (2010b). A boneca industrializada, espelho da sociedade. In Brinquedo e cultura (8a ed., pp. 25-39). São Paulo: Cortez. (Obra originalmente publicada em 1992)
  • Brougère, G. (2010c). O papel do brinquedo na impregnação cultural da criança. In Brinquedo e cultura (8a ed., pp. 40-49). São Paulo: Cortez. (Obra publicada originalmente em 1992)
  • Vigotski, L. S. (2002a). O papel do brinquedo no desenvolvimento. In A formação social da mente (6a ed., pp. 121-137). São Paulo: Martins Fontes. (Obra originalmente publicada em 1933)
  • Vigotski, L. S. (2002b). O desenvolvimento do simbolismo no brinquedo. In A formação social da mente (6a ed., pp. 143-148). São Paulo: Martins Fontes. (Obra originalmente publicada em 1933)
  • Vigotski, L. S. (2007). A brincadeira e seu papel no desenvolvimento psíquico da criança (Z. Prestes, trad.). Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, 8: 23-36.
  • Vigotski, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico São Paulo: Ática.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    28 Jan 2016
  • Revisado
    07 Mar 2017
  • Aceito
    16 Ago 2018
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