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Representações de personagens cegos na literatura contemporânea1 1 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 ,2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Caique Zen (Tikinet) – revisão@tikinet.com.br

Resumo

Este artigo, vinculado ao campo dos estudos culturais em educação, é um recorte da tese de doutorado de um dos autores e objetiva analisar as representações de pessoas com deficiência visual na literatura contemporânea. Os dados da pesquisa incluem a seleção de obras escritas por pessoas cegas ou com personagens cegos em destaque na narrativa. A partir de articulação teórica e análise, concluímos que, embora a deficiência seja historicamente representada como um defeito que inferioriza os sujeitos, alguns autores com deficiência visual representam a cegueira como uma característica de sujeitos que têm formas singulares de ser e estar no mundo. Assim, verificamos a emergência de outras formas de representação da cegueira para além da ideia de limitação ou problema a ser corrigido.

Palavras-chave
representação; deficiência visual; estudos culturais em educação; inclusão

Abstract

This article, linked to the field of Cultural Studies in Education, is part of the doctoral thesis of one of the authors and aims to analyze representations of people with visual disability in contemporary literature. Research data include the selection of work written by blind people or work with blind characters highlighted in the narrative. From the theoretical articulation to the analysis, we conclude that, although visual disability is historically represented as a defect that belittles the subjects, some blind authors represent blindness as a characteristic of subjects who have singular forms of being and of living in the world. Thus, we verified the appearance of other ways of representing blindness as being more than the idea of limitation or a problem to be corrected.

Keywords
representation; visual disability; cultural studies in education; inclusion

Deficiência visual e representações

A deficiência é um conceito construído pelos discursos, dado que seus significados foram constituídos por determinadas ideias pertencentes a espaços e tempos específicos. Não nos referimos à materialidade da cegueira e da baixa visão, mas ao modo como estas são representadas no âmbito social. As diversas formas de “ver” a cegueira é que interessam a este estudo, que toma como fonte narrativas da literatura contemporânea em que circulam representações da deficiência visual. Como poderemos perceber mais adiante, muitas formas de representar as pessoas cegas e com baixa visão seguem parecidas àquelas empregadas há muitos séculos, mudando apenas o enfoque. Neste sentido, permanece a noção de norma vidente, o que é tratado como “videntismo” no presente artigo.

A materialidade corporal da deficiência se faz presente; no entanto, é necessário problematizar os discursos e a maneira como lidamos com temas como a identidade e a diferença de pessoas com deficiência. A definição dicionarizada da palavra “deficiência” já nos diz muito sobre isso; por exemplo, em português, usamos “deficiência” para déficit ou falta de algo. Neste artigo, não se trata de negar a materialidade da cegueira ou da baixa visão, mas de problematizar os discursos que produzem o lugar da falta, do déficit e da incapacidade.

Uma breve incursão em fragmentos da Antiguidade até o final da Idade Moderna mostra que as pessoas cegas (a baixa visão foi inventada apenas no século XX, quando os parâmetros médicos criaram essa classificação) eram vistas como defeituosas, personificações do pecado que deveriam viver isoladas da sociedade ou, pior ainda, ser sumariamente eliminadas. Essas pessoas representavam a incapacidade, a miséria humana e todas as suas mazelas, e por isso deveriam ser deixadas de lado. Há relatos fartamente conhecidos de que os cegos viviam em estado de mendicância, e exemplo disso é a cegueira de Édipo e as consequências que esse fato trouxeram a sua vida (Amiralian, 1997Amiralian, M. T. M. (1997). Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-estórias. São Paulo: Casa do Psicólogo.).

Por outro lado, a cegueira representava uma forma diferente de ver o mundo, pois se considerava que os cegos enxergavam para além daquilo que videntes poderiam ver. Eram considerados oráculos, “videntes” que podiam prever o futuro e afastar maldições e pragas por meio de poderes sobrenaturais. Isso também fica evidente em alguns personagens da literatura grega, como Tirésias, que, ao ficar cego adquire poderes de prever o futuro e age tal qual um profeta ou um oráculo (Vygotsky, 1991Vygotsky, L. (1991). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.).

Essas representações sobre a deficiência visual – e outras limitações sensoriais – passaram a ter menos força no final do século XVIII, quando as concepções científicas, sobretudo da medicina, passaram a explicar fenômenos outrora justificados apenas pelo sobrenatural. A partir dessa época, a deficiência passou a ser vista como um defeito corporal, como doença que poderia ser curada e/ou minimizada através de tratamentos médicos. Nesse contexto, a cegueira passa a ser entendida como doença do “corpo” e não da “alma”. Com o discurso de que a ciência seria o principal caminho para curar imperfeições corporais, a medicina passou a ser o campo de conhecimento principal para determinar como lidar e tratar a deficiência visual.

Os processos educacionais a que pessoas cegas e com baixa visão passaram a ser submetidas tiveram incontestável influência desses modelos médicos e terapêuticos. Primeiramente, a educação de pessoas com deficiência visual passou a ocorrer em instituições especializadas, onde por vezes ficavam confinadas, segregadas do convívio social e “livres” dos perigos que poderiam causar à sociedade e a si mesmos, conforme o pensamento daquele período (Lobo, 2008Lobo, L. F. (2008). Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina.).

No começo do século XIX, foram criadas escolas especiais em que cegos e pessoas com baixa visão poderiam estudar; nesse caso, não ficavam internadas nas escolas, mas seguiam tendo uma escolarização separada dos alunos videntes, sob a alegação de que precisavam de cuidados específicos e de uma educação especial, de acordo com suas deformidades e capacidade de aprendizagem (Lobo, 2008Lobo, L. F. (2008). Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina.).

No Brasil, esse cenário modificou-se no começo do século XXI, quando entraram em vigor as políticas de inclusão de alunos com deficiência em escolas comuns. Permanecem em funcionamento alguns institutos especializados na educação e reabilitação de pessoas cegas, como o Instituto Paranaense de Cegos, o Instituto São Rafael, em Belo Horizonte, e o Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. Da mesma forma, há escolas especiais voltadas à escolarização de pessoas cegas e com baixa visão, ainda que a quantidade desses estabelecimentos de educação especial venha diminuindo nos últimos anos.

No entanto, desde o século XIX, os conhecimentos médicos e terapêuticos balizam a conceituação da deficiência visual, o que tem implicações nas políticas de inclusão escolar, pautadas pela noção de deficiência como um “defeito” a ser curado ou minimizado e por uma prática de normalização. Assim, com o objetivo de mensurar e estabelecer parâmetros, o critério atual para definir deficiência visual segue sendo o ponto de vista clínico; nesse caso, a Lei Brasileira de Inclusão define:

c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60°; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores

(Brasil, 2015Brasil. (2015). Lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência. Brasília, DF: Edições Câmara., p. 2).

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência deixa claro, em seu artigo 2º, que o impedimento do sujeito com deficiência não advém apenas de sua limitação física, mas também das barreiras que obstruem sua plena interação com o meio (Brasil, 2015Brasil. (2015). Lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência. Brasília, DF: Edições Câmara., p. 9). Ainda assim, a deficiência visual é socialmente entendida mais como o impedimento completo ou parcial da visão do que como uma diferença corporal.

Portanto, é possível notar que a deficiência visual é representada, na maioria das vezes, como a falta da visão, embora outras concepções venham ganhando espaço nesse cenário. Cada vez mais, os sujeitos com deficiência visual e baixa visão têm reivindicado outras identidades, na busca pelo direito à diferença.

Nesta direção, apresentamos o objetivo deste artigo: analisar representações de pessoas com deficiência visual em narrativas ficcionais e autobiográficas e discutir as proposições, tensões e possibilidades por elas apresentadas. Para cumprir este objetivo, poderíamos nos valer de diversas “lentes” teóricas, mas optamos pela dos estudos culturais em educação, um campo de investigação potente para desenvolver análises que envolvem educação e cultura. Assim, conceitos que desenvolvemos neste artigo, como deficiência visual, representação, identidade e diferença, advêm dessa matriz de pensamento. De modo específico, este campo possibilita investigar a conexão entre cultura e representação, visto que cultura diz respeito a significados compartilhados. Ora, para os estudos culturais em educação, “a linguagem nada mais é do que o meio privilegiado pelo qual ‘damos sentido’ às coisas, onde o significado é produzido e intercambiado. Significados só podem ser compartilhados pelo acesso comum à linguagem” (Hall, 2016Hall, S. (2016). Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Apicuri., p. 17).

Os processos de representação produzem “verdades”, constroem, mantêm ou dissolvem identidades e diferenças, ou seja, há relações de poder atuando diretamente para produzir essas verdades, identidades e diferenças, com que podemos nos identificar ou nos diferenciar (Silva, 1995Silva, T. T. (1995). Currículo e identidade social: territórios contestados. In Silva, T. T. (Org). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes., p. 200). Formas de nomear, por exemplo, determinadas pessoas ou eventos estão no centro de embates sociais por significados, fazendo parte dos processos de como nos vemos e como os outros nos veem. Stuart Hall pergunta como, afinal, as línguas funcionam, e afirma simplesmente que operam por meio de representação; em outras palavras, as línguas são sistemas de representação:

Na linguagem, fazemos uso de signos e símbolos – sejam eles sonoros, escritos, imagens eletrônicas, notas musicais e até objetos – para significar ou representar para outros indivíduos nossos conceitos, ideias e sentimentos. A linguagem é um dos “meios” através do qual pensamentos, ideias e sentimentos são representados numa cultura. A representação pela linguagem é, portanto, essencial aos processos pelos quais os significados são produzidos.

(Hall, 2016Hall, S. (2016). Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Apicuri., p. 18)

Esses processos de representação não são feitos sem resistência ou de maneira vertical, mas ocorrem em arenas de embates por significados e posições sociais. As tentativas de manutenção de discursos hegemônicos, por meio de práticas que produzem representações estereotipadas sobre as pessoas com deficiência visual, são denominadas de videntismo, como proposto por Mianes (2015, p. 91)Mianes, F. L. (2015). Marcas de identificação em narrativas autobiográficas de pessoas com deficiência visual. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.. Tais representações sobre pessoas cegas e com baixa visão são efetivadas por um conjunto de práticas discursivas que produzem as pessoas com deficiência visual como incapazes, inferiores fisicamente, dignas de piedade. Conforme Mianes (2015)Mianes, F. L. (2015). Marcas de identificação em narrativas autobiográficas de pessoas com deficiência visual. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre., o videntismo reduz a deficiência a problemas causados pelos acometimentos físicos e enquadra as pessoas com deficiência visual em “olhos que não enxergam”. O videntismo, portanto, está ligado a uma série de representações que advêm de discursos produzidos sobre a deficiência visual que desqualificam as pessoas cegas e com baixa visão.

Conceber a deficiência visual como punição divina, mundo de trevas, ausência de imagens, cores e visualidade é uma prática do videntismo, um modo de significar a cegueira como impossibilidade de desfrutar das belezas que existem no mundo. Tais práticas são reducionistas e baseadas na norma vidente. Além disso, no videntismo é comum tratar as pessoas cegas e com baixa visão como seres de desmedida bondade, com inteligência acima da média e valores moralmente superiores, ou, por outro lado, como seres extremamente maldosos, apáticos ou ingênuos.

A centralidade da discussão está em desnaturalizar a atribuição de todos os comportamentos e reações do indivíduo à sua deficiência visual, fazendo generalizações indevidas ou reduções do sujeito à relação causa-consequência. No videntismo, o conjunto de representações constantemente associa o comportamento ou reação do sujeito à sua deficiência sensorial.

O videntismo influencia o relacionamento entre as pessoas, levando frequentemente a certas maneiras de tratar pessoas cegas e com baixa visão, o que se relaciona com as representações feitas sobre elas. Domingues (2010, p. 27)Domingues, C. A. (2010). A educação especial na perspectiva da inclusão escolar: os alunos com deficiência visual: baixa visão e cegueira. Brasília, DF: MEC; SEESP., em artigo sobre o tema, afirma que “as pessoas com cegueira costumam ser tratadas de forma grotesca, irônica ou hilariante por todos os lugares onde circulam. Muitas dessas atitudes observadas geram risos, desconfortos, constrangimentos, animosidades e outras reações”.

Não podemos afirmar que essas situações ocorrem em todos os lugares e a todo tempo, mas acontecem frequentemente. As atitudes diante da diferença dos indivíduos podem variar conforme o contexto cultural e têm a ver também com a postura dos sujeitos. Portanto, é preciso ressaltar que inclusive pessoas com deficiência visual reforçam formas depreciativas de representar o grupo.

Isso nos remete a um debate interessante, já que cada pessoa ou grupo começa a reivindicar o direito de adotar identidades. Utilizando o conceito no plural, podemos dizer que as identidades são as intersecções entre o modo como somos vistos e como nos vemos, ou seja, são processos que produzem subjetividades e permitem que assumamos determinadas posições sociais. Ou seja, são adesões temporárias que atuam em nossa subjetividade e constroem nossas práticas discursivas (Hall, 2003Hall, S. (2003). Introducción ¿Quien necessita “identidad”? In Hall, S., Du Gay, P. Cuestiones de identidad cultural. Buenos Aires: Amorrortu., p. 14).

A identidade, pensada coletivamente, do ponto de vista de um ou mais grupos que a usam como fator de aglutinação e forma de pertencimento, pode gerar considerável sensação de segurança, pelo fato dos sujeitos estarem protegidos ao se filiarem a determinadas comunidades. Esses processos têm implicações na vida desses sujeitos e na comunidade a que eles (momentaneamente) pertencem. No entanto, pensar em comunidade requer ponderar com Bauman (2003, p. 10)Bauman, Z. (2003). Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. o dilema de que:

Há um preço a pagar pelo privilégio de “viver em comunidade” – e ele é pequeno e até invisível só enquanto a comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada “autonomia”, “direito à autoafirmação” e “à identidade”. Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse ajuste.

Por um lado, a comunidade permite que as questões políticas e de luta por significados sejam fortalecidas, como na reivindicação por direitos e pelo respeito a diferentes modos de vida. No entanto, como adverte Bauman, “não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isso ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade”.

A deficiência visual é muito mais complexa e ampla do que a perda de acuidade ou de campo visual, não sendo uma escuridão absoluta, por exemplo. Mais do que isso, veremos de que modo as lutas por representações se constituem na literatura.

Dentre inúmeras possibilidades para demonstrar as representações sobre deficiência visual, as narrativas ficcionais e autobiográficas possuem maior alcance e potência diante das atuais condições de circulação e consumo dos produtos e artefatos culturais. E como pesquisar é fazer escolhas, optamos aqui por investigar representações ligadas a narrativas escritas por pessoas cegas e com baixa visão, publicadas no mercado editorial. Portanto, escolhemos narrativas de sujeitos com deficiência visual, escritas por aqueles que vivem ou viveram essa condição.

Literatura e deficiência: possibilidades teórico-metodológicas

Este artigo é um recorte de tese de doutorado realizada pelo primeiro autor (Mianes, 2015Mianes, F. L. (2015). Marcas de identificação em narrativas autobiográficas de pessoas com deficiência visual. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.) com orientação da segunda. A tese teve como objeto de análise narrativas autobiográficas de pessoas cegas e com baixa visão. Nas obras analisadas, além dos processos de identidade e diferença investigados, ficaram evidentes os processos de representação sobre pessoas com deficiência visual na literatura contemporânea. Conforme os dados obtidos, foi possível verificar que os personagens cegos são representados de diversas formas: como incapazes, estranhos, defeituosos, heróis ou sujeitos com capacidades semelhantes às dos demais, tendo a deficiência apenas como uma marca em suas experiências de vida. Ou seja, a tese abordou uma variedade de dados e foi o ponto de partida da presente análise, para a qual selecionamos algumas obras e excertos estudados na tese.

O recorte escolhido tem o objetivo de analisar os processos de representação de pessoas cegas na literatura contemporânea, sendo a representação – a partir do campo dos estudos culturais em educação – o principal conceito utilizado. Além disso, o modelo social de deficiência (Shakespeare, 2010Shakespeare, T. (2010). The social model of disability. In Davis, L. J. (Ed.). The disability studies reader. New York: Routledge.) subsidiou as análises, já que a limitação ou diferença corporal não são tratadas como um problema, mas como uma possibilidade e, mais do que isso, como alternativa de vida, resistência ou contraposição ao discurso dos modelos médicos.

Neste artigo, algumas das obras foram escritas por autores com deficiência visual, conferindo uma percepção de mundo relacionada aos grupos aqui investigados. Não se trata de afirmar que essas obras sejam melhores, piores ou mais legítimas; no entanto, as experiências, pontos de vista e representações de seus autores são singulares.

Nas autobiografias analisadas na tese, os autores tinham baixa visão e cegueira. Já no caso das obras escolhidas para compor o material deste artigo, os autores com deficiência são todos cegos – não por ter sido essa uma opção, mas por circunstâncias da seleção do material. Além disso, os excertos tratam todos de questões relacionadas à cegueira, sem menções à baixa visão. Assim, analisamos representações de sujeitos cegos pois a baixa visão não foi um tema encontrado nos textos.

Algumas das obras que compõem este artigo foram escolhidas posteriormente à publicação da tese e são ficcionais, o que não as torna menos válidas no que diz respeito à representação de pessoas cegas, dado que tais discursos estão presentes em diversas esferas sociais, inclusive na literatura, seja autobiográfica ou ficcional. Portanto, esse é um passo adiante em relação à tese, dada a ampliação dos materiais analisados, incluindo obras ficcionais.

Outro fato interessante é que os autores das obras analisadas são de diferentes nacionalidades, tempos e contextos sociais. Mesmo assim, há nos textos inúmeras recorrências, o que aponta para a considerável força dessas representações no embate social entre os discursos videntistas e aqueles que se contrapõem a eles. Logo, ainda que seja um recorte pequeno em relação à quantidade de livros com essa temática, a amostragem do estudo é consideravelmente consistente.

Assim, as obras escolhidas como material de análise para esse artigo são: Adorável heroína, autobiografia de Michael Hingson (2012)Hingson, M. (2012). Adorável heroína. São Paulo: Universo dos Livros.; a conferência de Jorge Luis Borges (2009)Borges, Jorge Luis. (2009). La ceguera. In Siete noches (pp. 52-58). Madrid: Alianza Editorial. intitulada “La ceguera”; Luzes do arrebol, obra ficcional do autor Waldin de Lima (2001)Lima, W. (2001). Luzes do arrebol: a saga do homem em busca de si mesmo. Porto Alegre: Sagra., que era cego; Sangue no olho, de Lina Meruane (2015)Meruane, L. (2015). Sangue no olho. São Paulo: Cosac Naify.; e Toda luz que não podemos ver, romance de Anthony Doerr (2015)Doerr, A. (2015). Toda luz que não podemos ver. Rio de Janeiro: Intrínseca..

Com o objetivo de verificar investigações já feitas e consultar a bibliografia sobre a representação de personagens cegos e com baixa visão na literatura, acessamos um dos principais meios de busca de pesquisas no país: o Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC). Foram usados os seguintes termos de busca: “deficiência visual”, “representação” e “estudos culturais”. Encontramos catorze resultados, o que indica que há muito a ser explorado nesse caminho.

São muitos os livros com personagens – protagonistas ou não – com deficiência visual; e, ainda que haja exceções, existem certas representações mais ou menos comuns quanto aos modos de vida, aos conflitos e ao cotidiano desses sujeitos. Amiralian (1997, p. 28)Amiralian, M. T. M. (1997). Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-estórias. São Paulo: Casa do Psicólogo. faz referência a alguns livros com personagens cegos, apresentando uma série de possibilidades: a cegueira como punição ou redenção, como dificuldade ou como sublimação da bondade, como meio de reivindicar independência, direito à cultura, sexualidade, de ser o que se é etc. O que há em comum entre essas possibilidades é o fato de que a maioria dos conflitos dos personagens diz respeito à relação com videntes. Assim, fica evidente que tudo isso possui um caráter relacional.

Dentre as inúmeras alternativas usadas para tensionar as representações que estigmatizam as pessoas com deficiência visual, as narrativas autobiográficas, em diferentes formatos artísticos e culturais, têm papel fundamental. Com as transformações sociais e tecnológicas da sociedade, cada vez mais sujeitos considerados diferentes podem expor seus próprios pontos de vista sobre o mundo à sua volta.

Em meados dos anos 1990, passou-se a usar o lema “nada sobre nós sem nós”3 3 Mais informações sobre o lema “nada sobre nós sem nós” em http://www.bengalalegal.com/nada-sobre-nos. Acesso em: 18 set. 2019. para demonstrar a necessidade de participação das pessoas com deficiência nos processos decisórios que dizem respeito a suas vidas e aos rumos das políticas cujo objetivo é garantir seus direitos. Nesse sentido, a ideia foi proporcionar protagonismo a esses sujeitos, passando a se valorizar as experiências de vida e as peculiaridades das pessoas com deficiência.

Uma das formas de “ofertar” o protagonismo são as histórias de vida, expostas na televisão, no rádio, na internet e nas narrativas autobiográficas, disponibilizadas em blogs, livros ou outros formatos. Na tese de doutorado já mencionada, analisamos as marcas de identificação existentes nas narrativas autobiográficas de pessoas cegas e com baixa visão. Uma dessas marcas é a consideração da deficiência visual não como um defeito, mas como possibilidade de ver o mundo de modo diferente; ou seja, representações sobre si mesmo são construídas de modo a ressaltar o que há de positivo no fato de não enxergar, deixando de lado noções clínicas segundo as quais pessoas com deficiência são defeituosas, incapazes, vítimas de impedimentos que as inferiorizam.

Isso não quer dizer que todas as pessoas com deficiência visual pensam do mesmo modo; muitas delas assumem uma posição videntista. Não se trata de pensar de maneira maniqueísta, mas de salientar que algumas das representações construídas por pessoas cegas e com baixa visão vêm contrapondo e até dissolvendo alguns estigmas, ainda que de modo descontínuo e com conflitos internos e externos.

Também é preciso dizer que, em narrativas autobiográficas de pessoas com deficiência visual, cada narrador constrói seu personagem e escolhe aquilo que quer ou não dizer sobre si. Fundamentalmente, o autor relata fatos ocorridos em sua vida, o que pode se desviar do viés de “ficção” mas também criar uma “ficção de si mesmo”, distinção que dificilmente conseguiremos fazer à distância. Para Arfuch (2010, p. 186)Arfuch, L. (2010). O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ.,

o caráter narrativo da vida … introduz uma radical instabilidade: uma história, ou um relato autobiográfico, nunca poderá ser completamente conclusiva, por mais testemunhado que seja seu caráter de verdade. Mas esse deslizamento metonímico, de uma história a outra, de uma posição de enunciação a outra, não é nada além de manifestação da flutuação mesma da identidade, dessa tensão entre o mesmo e o outro que atravessa a experiência vivencial.

Seja como for, narrativas de si não pertencem apenas ao autor; elas são também uma obra coletiva na medida em que expressam os discursos e ideias circulantes em um determinado tempo e espaço (Arfuch, 2010Arfuch, L. (2010). O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 101). O sujeito que conta sua vida o faz de acordo com seu próprio ponto de vista; é ele quem edita a sua existência e escolhe o que deve ser dito ou o que deve ser calado e lembrado, a depender muito das memórias e do direcionamento dado aos fatos vividos. Logo, as narrativas e experiências de vida registradas por pessoas cegas e com baixa visão fazem parte de uma trama discursiva que pode ou não apresentar formas de resistência ou de proposição de outras representações possíveis.

Tateando os materiais e tecendo análises

Passamos a analisar os materiais escolhidos para esta investigação sem perder de vista que infinitas análises e diferentes usos poderiam ser empreendidos, pois cada pesquisador “enxerga” e “tateia” os materiais conforme as peculiaridades de seu trabalho. Queremos dizer, com isso, que a seção que segue faz parte de um olhar sobre o material, e que seria possível suscitar muitas outras questões para além daquelas que serão apresentadas.

Foi realizada uma análise qualitativa das narrativas dos livros, em que privilegiamos a esfera discursiva para investigar as representações advindas do material investigado, lendo as obras e selecionando suas ideias principais, singularidades e recorrências discursivas. Para este artigo, foram selecionadas recorrências exemplificadas em excertos apropriados para analisar a representação de pessoas cegas na literatura.

Estudos sobre literatura e diferença/deficiência, utilizados como referencial teórico para a presente análise, foram desenvolvidos por Dowker (2013)Dowker, A. (2013). A representação da deficiência em livros infantis: séculos XIX e XX. Educação & Realidade, 38(4), 1053-1068. e Kirchof, Bonin e Silveira (2013)Kirchof, E. R., Bonin, I., & Silveira, R. M. H. (2013). Os deficientes na literatura infantil: tendências e representações. Aprender, (33), 113-122.. Tais autores analisaram representações da deficiência na literatura e, a partir de recorrências encontradas nas obras analisadas, concluíram que muitas dessas representações trazem a ideia de superação da deficiência, de heroísmo da pessoa com deficiência ou de inconformidade com a “anormalidade”.

Valle e Connor (2014)Valle, J. W., & Connor, D. J. (2014). Ressignificando a deficiência: da abordagem social à prática inclusiva na escola. Porto Alegre: AMGH e Silveira e Kirchof (2016)Silveira, R. M. H, & Kirchof, E. R. (2016). Literatura infantil e educação: ensinando através de personagens diferentes. Em Aberto, 29(95), 41-52., ao analisarem a relação entre literatura e deficiência em processos sociais e educacionais, mostraram como as representações são construídas discursivamente e têm implicações nas narrativas identitárias e no posicionamento dos sujeitos.

Em Luzes do arrebol, o autor Waldin de Lima (2001)Lima, W. (2001). Luzes do arrebol: a saga do homem em busca de si mesmo. Porto Alegre: Sagra. escreve um romance sobre um garoto chamado Ronaldo, que tem aversão à cegueira e acaba ficando cego. Em uma passagem do livro, são evidenciadas algumas representações dos videntes sobre os cegos:

  • Senhor Palácios: o que acontece é que as pessoas encaram a cegueira, geralmente, de quatro maneiras bem distintas:

  • Uma boa parte das pessoas encara a cegueira como uma deficiência real, causando limitações importantes para o portador da cegueira, sem, contudo, despersonalizar a pessoa. Ou seja, para essa parte da sociedade, a cegueira limita o poder laborativo da pessoa que fica cega, mas não diminui sua essência homínica. Elas não sentem nenhum constrangimento em relacionar-se com as pessoas cegas e acreditam que os homens e mulheres cegos podem ter uma excelente participação social, apesar da deficiência.

  • Há, porém, um percentual de pessoas que enxergam que acham que a cegueira retira do Ser Humano todo seu poder laborativo, despersonaliza o indivíduo e o torna unicamente digno de pena e comiseração. Não chegam a constituir um grupo de pessoas aversivas, mas um peso que a sociedade tem o dever de suportar.

  • Uma terceira parcela da sociedade entende que a cegueira confere aos cegos poderes extrassensoriais. Neste caso as pessoas cegas são como que divinizadas e para as quais são atribuídas frases do tipo: “Deus tira uma coisa e dá outra”, “as pessoas cegas têm um sexto sentido”, ou outras expressões mais ou menos afins.

  • Há uma parcela minoritária da sociedade, todavia, que encara a cegueira como uma espécie de morte ou meia morte da pessoa, e estar perto de um morto constitui algo mais ou menos aversivo; para essas pessoas a cegueira lembra tragédia, ou mesmo mal agouro, por isso, ao natural se afastam. Há casos em que as pessoas tomam tal choque com a situação que se traumatizam e chegam a ter horror até em pensar no assunto cegueira. (Lima, 2001Lima, W. (2001). Luzes do arrebol: a saga do homem em busca de si mesmo. Porto Alegre: Sagra., p. 38)

É evidente que há bem mais representações sobre as pessoas cegas e com baixa visão do que essas, mas se pode ter uma ideia geral dos discursos que circulam na sociedade. Waldin de Lima conhecia os discursos sobre as cegueiras, visto que foi cego e atuou durante muitos anos em movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência visual. Nesse excerto e no decorrer do livro, o autor traz em forma romanceada muitas de suas experiências ao longo da vida.

Por muito tempo, as representações videntistas permaneciam quase sozinhas no cenário social. Queremos dizer, com isso, que a “visão” sobre as pessoas com deficiência visual era advinda na maioria das vezes de pessoas que não faziam parte desse grupo. Muitas vezes, as lentes usadas para tal representação se baseavam no espelho da normalidade.

É preciso deixar claro também que muitas pessoas cegas ou com baixa visão são subjetivadas pelos discursos videntistas. Na própria obra de Waldin de Lima, o personagem Ronaldo, que fica cego, considera sua condição digna de misericórdia, algo que lhe causará sofrimento para sempre e o fará viver em um mundo de trevas. Mais do que isso, pessoas com deficiência visual podem ser vistas como um perigo para si mesmas e para quem está ao redor, conforme verificamos nesse excerto de Lina Meruane:

Mas secava umas lágrimas esquivas e voltava a medir os passos, a memorizar: cinco largos até a sala e oito curtos de volta ao quarto, à esquerda a cozinha, dez para o banheiro, à esquerda. As janelas deviam estar em algum lugar e dei de cara com Ignacio. Você é um perigo, disse ele, alterado, contendo-se para não gritar comigo; pare de dar voltas, não vá quebrar os ossos. … Sim, respondi, devagar. Sim, mas sou apenas uma aprendiz de cega, com escassas ambições no ofício, e sim, cega e perigosa. Mas não vou me sentar numa cadeira e esperar passar. Ignácio teria preferido que eu ficasse quieta meditando, mas já não há nada em que pensar, falei, arrebatando-lhe às cegas o cigarro e dando uma tragada proibida.

(Meruane, 2015Meruane, L. (2015). Sangue no olho. São Paulo: Cosac Naify., p. 22)

O excerto demonstra a existência de certos conflitos nas relações entre cegos e videntes. Nesse caso, Ignácio é marido de Lina, que por ter ficado cega recentemente busca encontrar formas de conviver com sua condição, dependendo o mínimo possível de ajuda. Esse processo leva a uma série de dificuldades, entendidas como incapacidade de Lina ou “perigos” para si e para os outros.

Essa relação de dependência e de percepção de inferioridade é muitas vezes justificada como “preocupação” com a integridade física da pessoa cega. Porém, assim como Lina, outras tantas pessoas cegas não “esperam sentadas” e buscam novas possibilidades de encontrar sua autonomia e resistir às expectativas de incapacidade. De certa forma, esse excerto representa bastante no que diz respeito à atual reivindicação de autonomia e independência, que enfrenta uma série de entraves e obstáculos, muitos deles relacionados com atitudes videntistas.

Quem convive com pessoas com deficiência visual – caso de um dos autores deste artigo – nota que muitas dessas pessoas incorporam as baixas expectativas, estereótipos e estigmas videntistas. Portanto, não estamos dicotomizando dois grupos, mas apontando atravessamentos de perspectivas de como representamos o mundo e de como a norma impera.

Em algumas obras analisadas, como em Toda luz que não podemos ver, Adorável heroína e “La ceguera”, a deficiência é representada não como a principal constituidora da vida da pessoa com deficiência, mas como uma entre diversas características pessoais. Nesses textos, a pessoa cega não é apenas um “imenso olho que não enxerga”, mas sim alguém com uma série de outras capacidades que a limitação visual não apaga. O sucesso e o fracasso não estão na condição da cegueira, mas na incapacidade da sociedade em contemplar as especificidades dessas pessoas.

Em sua narrativa autobiográfica, Hingson conta as dificuldades e os pontos positivos de sua cegueira, adquirida ainda na infância. Ao relatar seu desencaixe na escola, sua ascensão profissional e as dificuldades cotidianas diante da falta de acessibilidade e das barreiras atitudinais, o autor conta como escapou da queda das torres do World Trade Center ajudado por seu cão-guia, chamado Square. Dentre inúmeros excertos que poderíamos citar, destacamos os seguintes:

Tive toda uma vida para desenvolver as habilidades necessárias para andar em um mundo que não foi criado para mim. E, se há uma coisa que eu realmente aprendi é: a visão não é a última bolacha do pacote. Ser cego não é um obstáculo; é algo com que eu sempre vivi. O verdadeiro obstáculo surge do preconceito que as pessoas têm com relação a isso.

(Hingson, 2012Hingson, M. (2012). Adorável heroína. São Paulo: Universo dos Livros., p. 108)

Se há uma mensagem sobre a cegueira que eu gostaria de passar para aqueles que enxergam é essa: não há nenhum problema em ser cego. A cegueira não vai arruinar a sua vida ou acabar com todas as suas alegrias. Não vai destruir sua criatividade ou diminuir sua inteligência. Não vai impedir que você viaje e tenha experiências em outros lugares. Não vai separá-lo de seus amigos e familiares. Não vai impedir que você se apaixone, case-se e constitua uma família. Não vai impedi-lo de ter um emprego e ganhar a vida, a cegueira não é o fim do mundo. E, com tecnologia e educação, a cegueira pode deixar de ser algo desgastante e se tornar apenas mais uma limitação humana. E existem muitas limitações humanas. A vida vai muito além do funcionamento dos olhos.

(Hingson, 2012Hingson, M. (2012). Adorável heroína. São Paulo: Universo dos Livros., p. 147)

Um dos objetivos dessas narrativas de pessoas cegas e com baixa visão é afirmar outras formas de ser e estar no mundo. Ou seja, a intenção é deixar claro que a ausência completa ou parcial da visão não compromete as capacidades do indivíduo.

Diante disso, nas narrativas analisadas, a cegueira não é o “fim do mundo”; mais do que isso, é representada como uma possibilidade para vivenciar novos horizontes de acordo com as circunstâncias de vida dos sujeitos. São inúmeros os casos de pessoas cegas e com baixa visão que alcançam êxito em suas profissões, como Hingson, executivo em uma importante empresa do ramo financeiro, ou Borges, escritor de grande sucesso, ou Marie-Laurie, personagem de Toda luz que não podemos ver, uma renomada cientista. Ainda que devam ser tratados como exceções diante das diversas formas de discriminação existentes em nossa sociedade, esses exemplos apresentam vindouros horizontes para pessoas cegas ou com baixa visão. Assim, os processos de representação e participação social estão muito além de embates por posições sociais ou consolidação de identidades.

Essa percepção valorativa da cegueira tem muito a ver com reivindicações, com a conquista de determinados direitos e o acesso a oportunidades sociais outrora fechadas para esse grupo. No entanto, tal percepção não é tão recente assim, como podemos notar em um excerto de Borges (2009, p. 157)Borges, Jorge Luis. (2009). La ceguera. In Siete noches (pp. 52-58). Madrid: Alianza Editorial. de 1977:

A cegueira é uma dádiva. Já cansei vocês com os dons que ela me deu; me deu o inglês, deu-me o anglo-saxão, deu-me parcialmente o escandinavo, deu-me o conhecimento de uma literatura medieval que eu teria ignorado, deu-me o fato de ter escrito vários livros, bons ou maus, mas que justificam o momento em que foram escritos. Além disso, o cego se sente rodeado pelo carinho de todos. As pessoas sempre têm boa vontade para com um cego.

Mais do que demonstrar que a cegueira pode ter aspectos positivos, Borges a considera a principal responsável por diversas passagens que marcaram sua trajetória de vida e sua obra enquanto escritor. A palavra “dádiva” traz consigo a ideia de que é algo trazido – quase por ordem divina – pela deficiência.

Porém, especificamente nesse caso, lendo o texto completo de Borges, percebe-se que o uso de “dádiva” se caracteriza como a aquisição de uma capacidade que outrora o autor não tivera, de ver o mundo de outras maneiras, contrapondo-se a representações da cegueira como escuridão ou algo limitador. A aquisição de outros conhecimentos e experiências proporciona outras visões sobre a vida, demonstrando que a deficiência visual não é o fim do caminho, mas pode ser um novo começo.

No romance Toda luz que não podemos ver, de Anthony Doerr, a personagem central da história é Marie-Laure, que fica cega aos seis anos de idade. A trama se passa na França do começo da Segunda Guerra Mundial e chega até os dias atuais. Apesar das perdas e das dificuldades vividas durante a guerra, a protagonista, seja quando criança, adolescente ou mulher, demonstra autonomia e capacidade para resolver os conflitos que surgem.

Marie-Laure não é retratada como heroína ou vítima da sociedade; a cegueira é uma dentre tantas de suas características, não sendo o centro dos conflitos, o que é algo incomum na maioria das obras em que o protagonista tem deficiência visual. Mais do que isso, a cegueira da personagem passa longos trechos sem ser sequer mencionada diretamente, a não ser por uma ou outra referência ao uso de uma bengala branca ou à audição aguçada de Marie-Laure.

No romance é relatada a experiência de tornar-se cega aos 6 anos, momento em que a personagem ouve muitos comentários dos vizinhos, que demonstram comiseração para com ela e o pai, tomando a deficiência como um problema muito grave, a ponte de a classificarem como parte de uma “maldição”:

O que é a cegueira? Onde deveria haver uma parede, as mãos nada encontram. Onde não deveria haver nada, uma perna da mesa arranha sua canela; roncos de carros nas ruas; murmúrios de folhas pelo céu; o sussurro do sangue em seus ouvidos. Na escada, na cozinha, mesmo ao lado da sua cama, vozes de adultos falam sobre desespero.

“Pobre criança.”

“Pobre Monsieur LeBlanc.”

“Ele não deve ter a vida fácil, sabe? O pai morreu na guerra, a mulher morreu no parto, e agora isso.”

“Como se estivessem amaldiçoados.” …

O desespero não dura. Marie-Laure é jovem demais, e seu pai é paciente demais. Maldições, ele lhe assegura, não existem. Existe sorte, talvez, boa ou má. Cada dia com uma leve inclinação ao sucesso ou ao fracasso. Mas maldições, não.

(Doerr, 2015Doerr, A. (2015). Toda luz que não podemos ver. Rio de Janeiro: Intrínseca., p. 35).

Para Doerr (2015)Doerr, A. (2015). Toda luz que não podemos ver. Rio de Janeiro: Intrínseca., as dificuldades iniciais são evidentes, mas se trata da adaptação do indivíduo à sua deficiência e de encontrar soluções e alternativas para os problemas que surgem. Porém, passada essa fase de transição e adaptação, o cotidiano se torna menos incômodo; afinal, “não há desespero que dure” (parafraseando o excerto acima).

No livro analisado, fica evidente que a deficiência não é algo perturbador ou central na vida da personagem. A cegueira é representada como uma marca importante, como dificuldade a ser enfrentada, mas não como mazela.

No desfecho da história, Marie-Laure conclui seu doutorado e se torna uma cientista conceituada no estudo de moluscos e caramujos. Ela volta a viver em Paris, casa-se duas vezes e tem uma filha chamada Hélene, que lhe dá um neto com quem passeia nos dias de folga, contando-lhe histórias de seu passado (Doerr, 2015Doerr, A. (2015). Toda luz que não podemos ver. Rio de Janeiro: Intrínseca., p. 523). Trata-se, portanto, da narração de uma trajetória de vida em que não há depreciação ou supervalorização da deficiência.

Obras que tematizam a deficiência visual atravessam diferentes gêneros e estilos literários e proliferam pela literatura adulta e infantil, em parte porque as deficiências têm se tornado uma temática emergente numa sociedade que diz valorizar a diversidade, e em parte pelo fato dos editores vislumbrarem, nas pessoas com deficiência, um mercado com potencial para ser explorado. Assim, há condições que têm possibilitado o aumento de produtos literários relacionados à deficiência visual, o que amplia as representações expostas por esses meios.

Nesse sentido, muitos outros livros podem ser analisados, e sob outros vieses de investigação, o que significa que a análise aqui proposta não conclui nem fecha caminhos, mas abre outras trilhas a serem percorridas. Muitas questões sobre a representação de pessoas com deficiência visual continuam em aberto, e outras tantas podem ser problematizadas e analisadas.

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi analisar as representações trazidas por pessoas com deficiência visual em narrativas ficcionais e autobiográficas. Não tivemos a pretensão de encerrar o assunto, muito menos de analisar todas as obras em que essas representações podem ser encontradas. Ficou claro que é por meio da cultura e da linguagem, pensadas neste contexto de análise, que a elaboração e a circulação de significados ocorrem, e esse não é um processo tranquilo, sem tensionamentos ou resistências. Entretanto, algumas representações ainda atuam mais fortemente no cenário de luta pelas significações.

Há o predomínio de concepções ligadas às questões clínicas da deficiência visual, como a ideia de sujeitos defeituosos que, diante de suas limitações corporais, são incapazes de realizar plenamente a maioria das atividades feitas pelas pessoas consideradas normais. Nessa concepção, o foco está direcionado na centralidade da deficiência na vida de pessoas cegas ou com baixa visão.

Muitas representações atuam como espécie de hierarquização social entre videntes e cegos, com a inferiorização dos segundos, na medida em que são tidos como anormais. Tais ideias sobre as pessoas com deficiência visual foram denominadas aqui de “videntismo”, um processo que atua no sentido de manter a hegemonia dos videntes, considerados “normais”, nas relações de poder.

As representações relacionadas a dificuldades, incapacidades e inferioridades das pessoas com deficiência visual operacionalizam o videntismo. De um lado, seus efeitos ainda são intensos sobre as pessoas cegas e com baixa visão – na medida em que as representações sobre elas e sobre si mesmas estão ainda muito vinculadas à ideia do que falta, e não a potencialidades e protagonismos. Por outro lado, esse não é um processo contínuo e sem resistência. Diante do incremento de direitos – tais como as reservas de vaga no mercado de trabalho e no ensino superior – e da participação de pessoas com deficiência na sociedade, muitos desses grupos reivindicam o direito a ser diferente, a ter suas peculiaridades e a fomentar esses processos de identificação.

Outras representações passaram a fazer parte do cenário social, construídas pelas próprias pessoas com deficiência a partir de suas narrativas e de outras formas de manifestação sobre as especificidades e diferenças de sua condição. Tais narrativas valorizam a deficiência como possibilidade de aprendizado, como forma diferente de ver o mundo e até como um “dom”.

Mais do que isso, essas representações propõem outras formas de pensar a deficiência visual, “apresentando” aos videntes o ponto de vista sobre o cotidiano e as percepções sobre o mundo de pessoas com deficiência visual. Assim, essas narrativas desconstroem estereótipos e desconstroem a ideia de que não enxergar está ligado à incapacidade do sujeito e a outras situações que o inferiorizam.

Tais representações pedagogizam o olhar sobre as pessoas cegas e com baixa visão, por educarem o olhar tanto dos videntes quanto dessas próprias pessoas. Elas ensinam “como são os cegos”, “de que modo agir com eles” e mostram “o que fazer” e “como proceder”, criando uma espécie de currículo para ensinar sobre a deficiência e suas implicações.

Não queremos dizer, com isso, que as representações construídas por pessoas cegas e com baixa visão sejam corretas ou erradas, até porque o debate empreendido não busca soluções dessa ordem. No entanto, é interessante questionar as diferentes representações acerca desse grupo. Afinal, há muitos modos de ser cego, muito mais do que visões de incapacidade e de inferioridade. É possível contemplar as peculiaridades e proporcionar oportunidades para pessoas cegas ou com baixa visão, que possuem capacidades, habilidades e competências da mesma forma que as demais pessoas.

Assim, muito ainda pode ser pesquisado no que diz respeito a esses processos de representação e os tensionamentos que provocam no cenário social. O importante é trilhar novos horizontes e lançar olhares sobre diferentes pontos de vista nessa temática ainda pouco tateada.

  • 1
    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Caique Zen (Tikinet) – revisão@tikinet.com.br
  • 3
    Mais informações sobre o lema “nada sobre nós sem nós” em http://www.bengalalegal.com/nada-sobre-nos. Acesso em: 18 set. 2019.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2017
  • Revisado
    21 Out 2017
  • Aceito
    02 Maio 2018
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