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Debater para encontrar caminhos: a evolução da presença da filosofia ao longo dos vinte anos do Enem (1998-2018) 1 1 Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) - comercial@tikinet.com.br 3 3 Apoio: Inep, processo 23036.006540/2018-22; FAPDF, Edital 03/2016 Demanda Espontânea e CNPq Chamada Universal 01/2016.

Resumo

Embora a presença da filosofia no ensino médio seja preconizada em vários referenciais curriculares nacionais nas últimas décadas, sua presença no Enem no mesmo período ocorreu de forma lenta e inconstante. Através de uma análise da evolução de quantitativo e cobertura de itens de filosofia ao longo das edições do exame, este trabalho ilustra alguns desafios e possibilidades que o exame oferece à implementação de referenciais curriculares. O estudo ganha particular relevância com a recente publicação da Base Nacional Comum Curricular e a anunciada reforma do ensino médio. O artigo é dividido em três partes: 1) panorama quantitativo do componente de filosofia no Enem; 2) análise das habilidades e competências mobilizadas pelos itens de filosofia nas diferentes fases do exame; e 3) considerações sobre a BNCC à luz das possibilidades e desafios para a filosofia apresentados no corpo deste trabalho.

Palavras-chave
Enem; filosofia; Ensino Médio; referenciais curriculares; BNCC

Abstract

Although the official curricular documents in Brazil in the last couple of decades recommend that philosophy be taught during high school, its presence in Enem was slow and inconstant. From an analysis of the evolution of the number and coverage of philosophy questions in the exam, this paper illustrates some challenges and possibilities that the exam offers to the implementation in curricula. This study gains particular relevance with the recent publication of Brazil’s new common core curriculum (BNCC – Base Nacional Comum Curricular) and the reform of high school education. This article is divided into three parts: 1) a quantitative overview of philosophy coverage over Enem’s history; 2) an analysis of the skills mobilized by philosophy questions over the exam’s different phases; 3) considerations about BNCC from the possibilities and challenges to philosophy presented in the body of this article.

Keywords
High school philosophy; large scale assessment; curricular documents,; Enem; BNCC

Introdução

A resolução nº 3 do Conselho Nacional de Educação, publicada em 21 de novembro de 2018, que atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, reafirma em seu artigo 11, par. 4, inciso VIII o disposto na Lei nº 13.415 de 2017 sobre a obrigatoriedade da filosofia e da sociologia (Lei nº 13.415…, 2017Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. (2017). Altera as Leis n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Diário Oficial da União. Brasília, DF: Presidência da República., art. 3º). Essa resolução também estipula em seu artigo 32 que “as matrizes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e dos demais processos seletivos para acesso à educação superior deverão necessariamente ser elaboradas em consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Resolução nº 3…, 2018Resolução nº 3, de 21 de novembro de 2018. (2018). Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Diário Oficial da União: Seção 1, pp. 21-24.). Publicada pelo Conselho Nacional de Educação em 4 de dezembro de 2018, a Base Nacional Comum Curricular lista a filosofia como integrante da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (Ministério da Educação, 2018Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio. Ministério da Educação., p. 547).

Entretanto, normativas legais e referenciais curriculares, apesar de necessários, não são suficientes para garantir a presença da filosofia seja no Enem, seja no ensino médio. A oferta de filosofia no ensino médio tem sido preconizada em documentos referenciais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), de 1999; as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+), de 2002; as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCEM), de 2006 e a redação dada pela Lei nº 11.684/08Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996). Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília, DF: Presidência da República. à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996. Contudo, como demonstrarei neste estudo, sua presença no Enem ocorreu de forma lenta e inconstante, e só se consolidou nos últimos anos a partir da contribuição do debate público com a sociedade e profissionais da área.

O presente trabalho adere à concepção teórica do “ciclo de políticas” de Stephen Ball e Richard Bowe que pode ser resumida da seguinte forma:

Essa abordagem destaca a natureza complexa e controversa da política educacional, enfatiza os processos micropolíticos e a ação dos profissionais que lidam com as políticas no nível local e indica a necessidade de se articularem os processos macro e micro na análise de políticas educacionais.

(Mainardes, 2006Mainardes, J. (2006). Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, 27(94), 47-69., p. 49).

Este estudo parte do pressuposto que deve haver coerência entre o que é disposto nos referenciais curriculares nacionais, o que é ensinado em sala de aula e o que é aferido em avaliações em larga escala, em particular o Exame Nacional do Ensino Médio. Uma maneira de pensar a interação entre esses elementos seria o que na administração é conhecido como ciclo PDCA, do inglês Plan (Planejar), Do (Fazer), Check (Verificar), Act (Agir) (Deming, 1982Deming, W. E. (1982). Out of the Crisis. MIT Press.). Se pensarmos na política curricular como um todo, poderíamos ver os referenciais curriculares como a primeira etapa do ciclo (Plan); a implementação nas escolas seria a segunda etapa (Do); a avaliação em larga escala viria em terceiro (Check); e, por último, teríamos a quarta etapa, que faz as decisões necessárias para iniciar um novo ciclo. Neste modelo, o Enem entraria na terceira etapa (Check), como instrumento de monitoramento que permite angariar informações para medir o sucesso da ação e fornecer subsídios para o ciclo seguinte (ver também Macedo, 2021Macedo, E. (2021) Filosofia nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio e no Enem: lacunas temporais e conceituais. Educação e Pesquisa,47, e228013. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147228013.
https://doi.org/10.1590/S1678-4634202147...
). Na prática, porém, segundo a concepção de “ciclo de políticas” de Ball e BoweBowe, R., Ball, S. J., & Gold, A. (1992). Reforming education & changing schools: case studies in policy sociology. Routledge.:

Esses contextos estão interrelacionados, não têm uma dimensão temporal ou sequencial e não são etapas lineares. Cada um desses contextos apresenta arenas, lugares e grupos de interesse e cada um deles envolve disputas e embates

(Mainardes, 2006Mainardes, J. (2006). Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, 27(94), 47-69., p. 50).

Em relação ao ensino da filosofia no nível médio, por exemplo, os PCN abrem o capítulo dedicado a esta área do conhecimento com as seguintes questões:

[É] mesmo necessária esta disciplina ou ela é apenas para mostrar que este colégio tem mais disciplinas que os outros” ou ainda “se a Filosofia não cai no vestibular, por que temos que estudá-la?” Questões surgidas, na maior parte das vezes, logo nos primeiros contatos dos alunos com essa “nova realidade” (…) Aliás, se considerarmos que sua reinclusão curricular vem ocorrendo de modo gradativo há quase duas décadas, nem se admite mais que essa “nova realidade” possa ser tratada como “novidade”.

(Ministério da Educação, 1999, p. 44, aspas no original)

Nesses vinte anos depois da publicação dos PCN, com a consolidação do Enem e publicação da nova Base Nacional Comum Curricular em dezembro de 2018, essas questões poderiam parecer superadas. Desde 2008, com a Lei nº 11.684/2008 que alterava o artigo 36 da LDB, a filosofia e a sociologia são obrigatórias no ensino médio, não sendo mais apenas acessórios opcionais para alguns colégios apresentarem vantagens quantitativas sobre outros. Como aponta Silvio Gallo, em seu texto Filosofia e Exame Nacional do Ensino Médio: Desafios e Perspectivas da Avaliação:

Muitos têm se referido a esse processo como uma “volta da Filosofia aos currículos”, o que me parece equivocado; como pode retornar algo que nunca esteve presente? Se tomamos os estudos históricos sobre a presença da disciplina Filosofia nos currículos da educação média Brasileira, vemos um jogo de presença e ausência, e essa presença nunca foi tão completa e intensa quanto aquela que se definiu atualmente.

(Gallo, 2013Gallo, S. (2013). Filosofia e Exame Nacional do Ensino Médio: Desafios e Perspectivas da Avaliação. In Avaliações da Educação Básica em Debate: Ensino e Matrizes de Referências das Avaliações em Larga Escala (pp. 413-429). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira., p. 416)

Mesmo se concordarmos com Gallo que a filosofia nunca foi tão presente no ensino médio, em tempos mais recentes sua obrigatoriedade sofreu alguns abalos, fato que expõe mais uma vez sua fragilidade. A Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, alterou a redação do artigo 36 da LDB de forma que o ensino de filosofia e sociologia não mais constavam como obrigatórios. Felizmente, ao ser convertida na Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, a inclusão do artigo 3º retomou a obrigatoriedade da filosofia (bem como de educação física, arte e sociologia), que tiveram seu status reafirmado no final de 2018 nas Diretrizes Curriculares e na BNCC. Esta reviravolta indica que, mesmo com todos os avanços dos últimos anos, não se pode assumir que a filosofia se encontra firmemente consolidada no ensino médio. Ao contrário, ela ainda mantém o caráter de perene “novidade” apontado nos PCN em 1999, com sua obrigatoriedade intermitente ao longo das últimas décadas.

Outro ponto levantado neste trecho dos PCN que poderia à primeira vista parecer datado, mas que acaba por reforçar a tese deste trabalho, é a pergunta retórica sobre como justificar o estudo de filosofia, uma vez que não cai no vestibular. Vinte anos depois, com a presença crescente nas edições do Enem nos últimos anos, essa questão poderia parecer sem importância, ainda mais considerando que a função de orientar o que deve ou não ser ensinado não é função da avaliação em larga escala, mas dos referenciais curriculares, incluindo os próprios PCN. Ainda assim, no que toca a filosofia no Enem, este estudo mostra que o efeito indutor dos referenciais curriculares no exame não tem sido nem imediato, nem linear, nem autossuficiente. Pelo contrário, tem sido um processo cheio de idas e vindas, períodos de dormência, de maiores ou menores transformações e maiores ou menores interlocuções com o público externo e profissionais da área.

A proposta deste trabalho, portanto, é mais do que um exercício de curiosidade histórica. Além de ser fundamental para melhorar o Enem enquanto exame, esse exercício serve também como reflexão sobre o papel do debate no reconhecimento das limitações e possibilidades que a avaliação de larga escala traz na operacionalização de referenciais curriculares. Através de uma análise da evolução de quantitativo e cobertura de itens de filosofia ao longo das edições do exame, este trabalho ilustra alguns desafios e possibilidades que o exame oferece à implementação dos referenciais curriculares. Este estudo ganha particular relevância neste momento, tendo-se completado dez anos da obrigatoriedade da filosofia no ensino médio (2008-2018), e vinte anos do Enem (1998-2018), além da recente publicação da nova Base Nacional Comum Curricular em dezembro de 2018 e a atual reforma do ensino médio. Ele é dividido em três partes: 1) panorama quantitativo do componente de filosofia ao longo dos vinte anos do Enem; 2) análise das habilidades e competências mobilizadas pelos itens de filosofia nas diferentes fases do exame; e 3) considerações sobre a BNCC à luz das possibilidades e desafios para a filosofia apresentados no corpo deste trabalho.

Filosofia no Enem: quantitativos

Ao analisar as provas do Enem nesses 20 anos desde seu surgimento,4 4 As provas do Enem estão disponíveis em http://portal.inep.gov.br/provas-e-gabaritos. constata-se a presença de aproximadamente setenta itens5 5 Os itens utilizados nesta análise estão listados no apêndice. com temáticas ou abordagens compatíveis com o ensino de filosofia no ensino médio, configurando, em tese, uma média de cerca de 3 a 4 itens por ano. Porém, a distribuição de itens de filosofia mostra-se irregular ao longo dos anos, podendo ser dividida em três blocos principais: 1999-2003, 2009-2011 e 2012-2018, conforme ilustrado no gráfico a seguir:

Gráfico 1
Quantidade de itens de filosofia em cada prova do Enem - 1998-2018

Nos primeiros onze anos do Enem, entre 1998 e 2008, foram apenas dez itens de filosofia, o que resultaria em uma média de um pouco menos de um item por prova. Porém, somente quatro desses onze anos traziam algum item de filosofia (1999-2001 e 2003), não havendo item algum da área nos anos de 1998, de 2002 e em todo período entre 2004 e 2008. Considerando-se então somente o período 1998-2003, a média foi de 1,66 item por prova (Macedo, 2015Macedo, E. (2015) Filosofia no Enem: Um estudo analítico dos conteúdos relativos à filosofia ao longo das edições do Enem entre 1998 e 2011. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.).

Com a nova matriz, itens de filosofia começam a ressurgir, porém de maneira tímida e irregular. Em 2009, tanto a prova que foi aplicada, quanto a prova original, que foi anulada por vazamento6 6 Disponível em: https://educacao.uol.com.br/ultnot/2009/10/01/ult1811u397.jhtm , contavam apenas com um item de filosofia cada. Em 2010, houve um salto para seis itens, mas esse patamar não foi mantido: no ano seguinte houve um único item que tangencialmente poderia ser considerado de filosofia, configurando uma média de 2,66 itens por prova nesses três anos.

A prova de 2011 sofreu fortes críticas por parte da comunidade do ensino de filosofia. Em um colóquio na sede do Inep ao final de 2011, intitulado Avaliações da Educação Básica em Debate: Ensino e Matrizes de Referências das Avaliações em Larga Escala, Silvio Gallo, por exemplo, argumentou:

[S]endo a Filosofia agora um componente curricular obrigatório, desfrutando plenamente de sua “cidadania curricular”, ele não pode ficar de fora dos processos de avaliação de larga escala em curso no País. A consolidação de sua presença nos currículos passa também por sua presença em avaliações como o Enem. Não vejo alternativa, então, para o momento, do que a de buscarmos alguns referenciais provisórios, que possam articular elementos desses três documentos oficiais produzidos na última década, mesmo que eles apresentem perspectivas distintas e por vezes inconciliáveis, e mesmo que eles tenham sido produzidos em um contexto em que a Filosofia não era ainda disciplina obrigatória e, portanto, não apresentem exatamente matrizes referenciais para seu ensino. Mas que sejam referenciais provisórios, utilizados enquanto ganhemos consistência na produção de um currículo de Filosofia que possa, efetivamente, no futuro nortear a presença de conhecimentos de Filosofia nos exames de larga escala, como o Enem e o Encceja.

(Gallo, 2013Gallo, S. (2013). Filosofia e Exame Nacional do Ensino Médio: Desafios e Perspectivas da Avaliação. In Avaliações da Educação Básica em Debate: Ensino e Matrizes de Referências das Avaliações em Larga Escala (pp. 413-429). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira., p. 426)

Poucas das trinta habilidades de Ciências Humanas da Matriz de Referência do Enem de 2009,7 7 Disponível em: http://download.inep.gov.br/download/enem/matriz_referencia.pdf. na sua redação literal, abrem espaço para conteúdos e abordagens de filosofia compatíveis com o ensino médio, o que pode ser explicado, em parte, por sua origem: mais um exemplo de como diferentes políticas públicas são interligadas.

A matriz do Enem de 2009 surgiu a partir da matriz do Encceja Ensino Médio,8 8 Disponível em: http://inep.gov.br/web/guest/educacao-basica/encceja/matrizes-de-referencia. com alterações pontuais. O Encceja Ensino Médio é um exame para medir habilidades e competências de pessoas com mais de 18 anos que não concluíram sua escolarização na idade adequada.9 9 Segundo o site do Inep, “o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) foi realizado pela primeira vez em 2002 para aferir competências, habilidades e saberes de jovens e adultos que não concluíram o Ensino Fundamental ou Ensino Médio na idade adequada.” Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/guest/educacao-basica/encceja) Ele parte do pressuposto de um público-alvo com experiência fora da sala de aula, parte de uma abordagem menos acadêmica, menos escolar e mais fundamentada numa experiência de vida adquirida principalmente no mercado de trabalho. Levando em consideração essa origem da matriz do Enem de 2009, e o argumento de Gallo, é possível entender por que os espaços mais propícios para a filosofia são tão exíguos. Citando Gallo novamente:

A Matriz de Referência para o Enem 2009 não apresenta, diretamente, competências e habilidades relativas à Filosofia, embora possamos ver em alguns dos “eixos cognitivos” gerais e mesmo nas competências e habilidades relativas aos campos da História e da Geografia aspectos passíveis de serem desenvolvidos nas aulas de Filosofia. Esse fato explica-se porque, como se sabe, apenas em 2008 foi sancionado pela Presidência da República o Projeto de Lei substitutivo da LDB que tornou Filosofia e Sociologia obrigatórias no currículo do ensino médio. A questão é, pois, pensar como a Filosofia pode integrar essa matriz de referência para o Enem.

(Gallo, 2013Gallo, S. (2013). Filosofia e Exame Nacional do Ensino Médio: Desafios e Perspectivas da Avaliação. In Avaliações da Educação Básica em Debate: Ensino e Matrizes de Referências das Avaliações em Larga Escala (pp. 413-429). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira., p. 415-416)

Partindo das observações de Gallo, o ano de 2012 para a filosofia no Enem é um divisor de águas em vários aspectos. A questão de quantitativo por si só já é significativa: foram sete itens nesse ano, patamar que se manteve nos anos subsequentes. Esse aumento é um avanço não só em relação à prova de 2011, mas também a todo o período anterior, considerando que nos dez anos entre 2002-2011 foram apenas nove itens de filosofia nas aplicações principais (Macedo, 2015Macedo, E. (2015) Filosofia no Enem: Um estudo analítico dos conteúdos relativos à filosofia ao longo das edições do Enem entre 1998 e 2011. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.). Porém, além do aspecto quantitativo, os itens de filosofia que surgiram a partir de 2012 trouxeram inovações e reflexões sobre a matriz que acabam por transparecer na Base Nacional Comum Curricular, publicada em dezembro de 2018.

Filosofia na Matriz de Referência (2009)

Desde sua reformulação em 2009, o Enem passou a ser dividido em quatro áreas do conhecimento, cada uma com sua matriz de referência. Na área de Ciências Humanas e suas Tecnologias, são trinta habilidades, organizadas em seis competências, cada uma com cinco habilidades. Numa prova de quarenta e cinco questões com uma distribuição equilibrada, toda habilidade é mobilizada por pelo menos um item, e por não mais de dois itens.

Focando nos itens elaborados sob a vigência dessa matriz, os sessenta itens de filosofia entre 2009-2018 cobrem quatorze das trinta habilidades10 10 A habilidade atendida por cada item está disponível nos microdados do Enem: http://inep.gov.br/microdados. , distribuídos da seguinte maneira:

Gráfico 2
Quantidade de itens de filosofia por habilidades e competências da matriz de referência do Enem (2009) - 2009-2018

Em primeiro lugar, com doze itens, vem a habilidade H23 “Analisar a importância dos valores éticos na estruturação política das sociedades”. Além das funções que a tarefa exigida por essa habilidade exerce dentro dos objetivos próprios do Encceja, o que explica sua presença na matriz do Enem, a H23 permite trabalhar uma área central da filosofia: a ética. Estes dois fatores combinados explicam em parte a maior ocorrência dessa habilidade no grupo de itens de filosofia do exame.

A ética é também a área da filosofia diretamente em questão no texto da LDB que institui a obrigatoriedade da filosofia, junto com a sociologia, em sua redação trazida pela lei nº 11.684 de 2008, ao exigir do concluinte do ensino médio “domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”. (Ministério da Educação, 2008Ministério da Educação. (2008). Orientações curriculares nacionais para o ensino médio: ciências humanas e suas tecnologias (v. 3). Ministério da Educação., art. 1º). Nas Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais, (PCN+),11 11 Disponíveis em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/CienciasHumanas.pdf. de 2002, ela também ocupa papel central, sendo inteiramente dedicado a esse campo o segundo de seus três eixos: A Construção do Sujeito Moral. Todos os temas deste eixo permitem operacionalizar a H23. Também nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (Ocem),12 12 Disponíveis em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_03_internet.pdf. de 2006, vários dos trinta conteúdos sugeridos podem fornecer elementos para itens que mobilizem a H23, por exemplo: o conteúdo 9 (a ética antiga; Platão, Aristóteles e filósofos helenistas); o conteúdo 15 (a teoria das virtudes no período medieval); o conteúdo 22 (éticas do dever; fundamentações da moral; autonomia do sujeito).

A título de comparação, nenhum dos dez itens de filosofia produzidos na matriz de 199813 13 Disponível em: http://download.inep.gov.br/download/enem/1998/relatorio/EnemRelatorioFinal.doc. trabalham com esses temas e conteúdos, ou conteúdos correlatos que também poderiam mobilizar a H23, como o conteúdo 18 (vontade divina e liberdade humana) e o 20 (o contratualismo). Isso atesta em parte a força de indução dos referenciais que lhes são posteriores (PCN+, Ocem e a Matriz de 2009): enquanto antes desses documentos não havia nenhum item de filosofia nesses temas, nos anos imediatamente posteriores a introdução da nova matriz os itens de ética ganham destaque, com três dos oito itens de filosofia aplicados entre 2009 e 2011 (Macedo, 2015Macedo, E. (2015) Filosofia no Enem: Um estudo analítico dos conteúdos relativos à filosofia ao longo das edições do Enem entre 1998 e 2011. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.).

A habilidade que teve o segundo maior número de itens de filosofia entre 2009 e 2018, com dez itens, foi a H1, “Interpretar historicamente e/ou geograficamente fontes documentais acerca de aspectos da cultura”. Retomando a origem das habilidades do Enem no Encceja, percebe-se aqui que a atividade proposta ao respondente é “interpretar historicamente e/ou geograficamente”: de maneira condizente com a finalidade do Encceja, não se pede ao respondente para interpretar “filosoficamente e/ou sociologicamente”, uma tarefa que é mais acadêmica do que a que o exame se propõe. Assim, para que itens de filosofia mobilizem essa habilidade, é necessário ou incluir implicitamente a possibilidade de uma tarefa de “interpretar filosoficamente”, ou considerar campos específicos da filosofia, por exemplo, toda a epistemologia, como “aspectos da cultura”.

Essa leitura da matriz é condizente com o exercício proposto por Gallo ao final de 2011, de “pensar como a Filosofia pode integrar essa matriz de referência para o Enem”. Neste ponto, vale observar que entre os dez itens de filosofia que trabalham essa habilidade entre 2009 e 2018, somente um foi produzido antes de 2012: todos os outros nove surgiram depois desse ano. Itens de filosofia que exigem essa habilidade tendem a ser de temas centrais da filosofia que não encontrariam outro espaço na Matriz de Referência do Enem. Entre esses temas estão, por exemplo, todos os que compõem o terceiro eixo dos PCN+, intitulado “O Que é Filosofia”, com questões sobre teoria do conhecimento, pensamento filosófico, método científico e estética. Comparando mais uma vez com os itens aplicados sob a vigência da matriz anterior, observa-se que dois dos dez itens aplicados entre 1998 e 2008 abordam essas temáticas: um sobre John Locke em 200014 14 Item 53 no caderno amarelo, disponível em http://portal.inep.gov.br/provas-e-gabaritos. e um sobre Francis Bacon em 200115 15 Item 18 no caderno amarelo, disponível em http://portal.inep.gov.br/provas-e-gabaritos. . Tais itens só poderiam ser aplicados sob a matriz atual se admitidos como operacionalização da H1, o que mostra a lacuna que a matriz de 2009 deixa nessa área, conforme apontado por Gallo.

Assim, a ampliação da presença da filosofia no Enem nos últimos anos pode ser constatada não só na maior quantidade e regularidade de itens no período de 2012-2018, mas também na maior abrangência de temáticas e abordagens, que se traduz também numa maior diversidade de habilidades e competências da matriz mobilizadas por itens de filosofia. Por exemplo, os dez itens de filosofia da primeira matriz do Enem, se transpostos para a matriz atual, operacionalizariam apenas quatro habilidades: a H1, H4, a H12 e a H14, conforme tabela a seguir:

Tabela 1
Itens de filosofia em cada prova aplicada na vigência da 1ª Matriz de Referência do Enem (1998) e respectivas habilidades - 1999-2008

Entre 2009 e 2011, são quatro habilidades também: H11, H23, H24 e novamente a H12, totalizando sete habilidades cobertas por itens de filosofia em quatorze anos. Neste último período de 2012 a 2018, porém, os itens de filosofia passam a cobrir quatorze das trinta habilidades do Enem, como ilustrado anteriormente.

Gráfico 3
Quantidade de itens de filosofia por habilidades da Matriz de Referência do Enem (2009) - 1998-2018

Uma análise do ponto de vista das competências mostra este ponto de maneira ainda mais clara. Na primeira década do Enem, os itens de filosofia concentravam-se em temas e abordagens que, na matriz atual, se concentrariam em apenas duas competências: seriam cinco itens na competência 1 e cinco itens na Competência 3. Já entre 2009 e 2011 foram oito itens distribuídos também em duas competências: três itens na competência 3 e cinco na competência 5.

Entre 2012 e 2018, apesar de mantida a concentração nas competências 1, 3 e 5, as temáticas e abordagens dos itens de filosofia do Enem diversificaram o suficiente para que a presença da filosofia passasse a permear todas as seis competências, conforme demonstra o gráfico a seguir:

Gráfico 4
Quantidade de itens de filosofia por competências da Matriz de Referência do Enem (2009) - 1998-2018

Analisando competência por competência, vemos que a C1 foi a que mais cresceu, passando de seis itens nos quatorze anos entre 1998-2011 para vinte e três itens no período 2012-2018. Isso reflete um aumento de itens mobilizando habilidades como a H1, conforme mencionado anteriormente. Em segundo lugar veio a competência 5, passando de cinco itens em todo o período de 1998-2011 para quinze itens no último período. Não houve nenhum item de filosofia mobilizando essa competência na primeira matriz do Enem, estendendo às outras habilidades desta competência os argumentos que apresentei em relação à H23. A competência 3 foi a que teve comportamento relativamente mais equilibrado: teve sete itens entre 1998-2011 e dez no último período.

Inovações podem ser percebidas na abordagem de habilidades das competências 2, 4, 6, que antes de 2012 nunca haviam sido trabalhadas por itens de filosofia. Na Competência 2 Compreender as transformações dos espaços geográficos como produto das relações socioeconômicas e culturais de poder, houve somente um item em todos os vinte anos do Enem que trabalhasse com temas ligados à filosofia. Foi um item na prova de 2015 (item 42 do caderno azul), que utilizava um texto da filósofa Simone de Beauvoir para mobilizar a H10, “Reconhecer a dinâmica da organização dos movimentos sociais e a importância da participação da coletividade na transformação da realidade histórico-geográfica”. O item trabalha de forma interdisciplinar o texto da filósofa, ao propor ao respondente a tarefa de situá-lo como uma contribuição aos movimentos sociais por igualdade de gênero.

Gráfico 5
Quantidade de itens de filosofia por competência da Matriz de Referência do Enem (2009) - 1998-2018

Na Competência 4, “entender as transformações técnicas e tecnológicas e seu impacto nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social” foram dois itens em todos os vinte anos, ambos na H20 “selecionar argumentos favoráveis ou contrários às modificações impostas pelas novas tecnologias à vida social e ao mundo do trabalho”. O primeiro foi um item em 2013, sobre a visão de natureza e ciência em autores como René Descartes e Francis Bacon e toda tradição iluminista (item 31 no caderno azul). O segundo foi em 2016, em um item com texto base do filósofo contemporâneo Hans Jonas (item 25 no caderno azul), que trata sobre a ameaça das tecnologias modernas e a responsabilidade ética com as gerações futuras.

E por último, na prova de 2018, vemos um item relacionado à filosofia trabalhando pela primeira vez uma habilidade da competência de área 6, “compreender a sociedade e a natureza, reconhecendo suas interações no espaço em diferentes contextos históricos e geográficos”. O item é o número 89 no caderno azul, utilizando um item sobre diferentes visões sobre produção sustentável para trabalhar o entendimento sobre formulação de modelos científicos. Ele mobiliza a H30, “avaliar as relações entre preservação e degradação da vida no planeta nas diferentes escalas”.

Todos esses itens exigem competências e habilidades que, à primeira vista, não abririam margem para questões de filosofia. Ao mesmo tempo, todas eles abordam temáticas absolutamente pertinentes à área, de uma maneira compatível ao ensino da disciplina nesta etapa. São assim bons exemplos para pensar não só como a filosofia pode integrar a matriz do exame, conforme desafio proposto por Gallo, mas também de que maneira a consolidação da filosofia no ensino médio pode oferecer subsídios para fomentar debates atuais e relevantes junto ao público-alvo e à sociedade como um todo.

Reflexos e reflexões sobre a filosofia na BNCC

[S]eria ignorar a natureza das mudanças sociais, entre elas as educacionais, supor que o novo Ensino Médio deverá surgir do vácuo ou da negação radical da experiência até agora acumulada, com suas qualidades e limitações. De fato (…) os saberes e práticas já instituídos constituem referência dos novos, que operam como instituintes num dado momento histórico.

(Ministério da Educação e do Desporto, 1998, p. 65)

Este estudo adota como referencial teórico o ciclo de políticas de Ball e Bowe, que permite visualizar diferentes políticas públicas de uma maneira não linear, e ricamente imbricada, em que diferentes atores com diferentes interesses e em diferentes esferas e diferentes momentos influenciam e são influenciados uns pelos outros.16 16 “Ball (1998a) argumenta ainda que a análise de políticas exige uma compreensão que se baseia não no geral ou local, macro ou microinfluências, mas nas ‘relações de mudança entre eles e nas suas interpenetrações’ ” (Mainardes, 2006, p. 56). Em termos específicos deste estudo, esse aporte teórico permite visualizar a avaliação em larga escala, no caso o Enem, não só como receptor da influência de documentos curriculares, mas também como indutor destes documentos, seja em sua implementação, seja na própria composição destes documentos.

Para exemplificar como o exame contribui para a implementação dos referenciais curriculares, mencionamos o papel que os próprios PCN atribuem ao “vestibular” (ou sua falta) em relação à presença (ou ausência) de uma área do conhecimento como a filosofia no ensino médio, especialmente considerando que naquele momento a filosofia não era ainda obrigatória e as orientações apresentadas pelos PCN para a área não tinham valor rigidamente normativo.

Já no caso da BNCC, as Diretrizes Curriculares de 2018 explicitamente mencionam a normatividade da base sobre o Enem. É o exame que deve se adequar à base, e não o contrário. Embora a BNCC detenha, assim, prioridade legal explícita sobre o Enem, a prioridade temporal do exame sobre ela exerce influência perceptível em sua composição. Utilizando duas habilidades analisadas com maior detalhe na seção anterior (H1 e H23) e suas respectivas competências, nesta seção exemplifico não só como algumas habilidades e competências de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da BNCC são conceitualmente próximas às do Enem atual, mas observo também como os desafios e possibilidades apontados neste estudo para a filosofia no Enem se reconfiguram na BNCC.

Em termos de operacionalização por itens de filosofia, a redação oferecida pelas habilidades da BNCC oferece muito mais possibilidades que a matriz do Enem. Mesmo com forte ênfase interdisciplinar, os espaços onde a filosofia pode transitar na BNCC são demarcados muito mais claramente do que na matriz atual do Enem. Retomando os exemplos anteriores, os itens de filosofia do tipo que atualmente mobilizam a H1, ainda que tangencialmente, poderiam ser utilizados para trabalhar, agora com muito mais propriedade, a habilidade EM13CHS101 da BNCC:

Enem (2009): H1: Interpretar historicamente e/ou geograficamente fontes documentais acerca de aspectos da cultura.

BNCC (2018): Habilidade EM13CHS101:Analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão e à crítica de ideias filosóficas e processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais. (Grifo meu)

Percebe-se que ao mesmo tempo que a BNCC traz o elemento central da H1 do Enem, que é a análise de diferentes tipos de fontes acerca de aspectos da cultura, ela o faz de maneira muito mais rica, ao incluir explicitamente, entre outras possibilidades, a compreensão e a crítica de ideias filosóficas como objetivos abarcados por essa habilidade. O texto da respectiva competência de área também segue esse padrão:

Enem (2009): Competência de área 1: Compreender os elementos culturais que constituem as identidades.

BNCC (2018): COMPETÊNCIA ESPECÍFICA 1: Analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturaisnos âmbitos local, regional, nacional e mundial em diferentes tempos, a partir de procedimentos epistemológicos e científicos, de modo a compreender e posicionar-se criticamente com relação a esses processos e às possíveis relações entre eles. (Grifo meu)

Aqui também é possível notar que a redação da competência mantém as mesmas características listadas em relação ao texto da habilidade: ela mantém o núcleo central “compreender os elementos culturais que constituem as identidades”, mas de forma mais abrangente, com uma lista maior de possibilidades, para além do cultural; incluindo explicitamente nesta lista aspectos específicos da filosofia, neste caso por meio da especificação “a partir de procedimentos epistemológicos e científicos”.

De maneira similar, esse comportamento permeia todas as habilidades que poderiam ser utilizadas por itens de filosofia na matriz do Enem e na forma que elas transparecem na BNCC. Retornando, por exemplo, à H23 “analisar a importância dos valores éticos na estruturação política das sociedades”. Em tese, pelo texto da habilidade em si, itens que mobilizam a H23 poderiam transitar em quaisquer das habilidades da Competência Específica 5 da BNCC:

BNCC (2018): COMPETÊNCIA ESPECÍFICA 5

Reconhecer e combater as diversas formas de desigualdade e violência, adotando princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos Humanos.

(EM13CHS501) Compreender e analisar os fundamentos da ética em diferentes culturas, identificando processos que contribuem para a formação de sujeitos éticos que valorizem a liberdade, a autonomia e o poder de decisão (vontade).

(EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana (estilos de vida, valores, condutas etc.), desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito, e propor ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais.

(EM13CHS503) Identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas causas, significados e usos políticos, sociais e culturais, avaliando e propondo mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos.

(EM13CHS504) Analisar e avaliar os impasses ético-políticos decorrentes das transformações científicas e tecnológicas no mundo contemporâneo e seus desdobramentos nas atitudes e nos valores de indivíduos, grupos sociais, sociedades e culturas.

Na prática, os itens de filosofia da atual H23 do Enem mediriam com mais propriedade a habilidade EM13CHS501, cujo texto guarda o tipo de semelhança que apontei acima em relação a habilidade H1 e a competência C1. Em relação à EM13CHS504, também, itens como o 12 de 2014, sobre clonagem humana e bioética, ou o 25 de 2016, sobre sustentabilidade e responsabilidade com gerações futuras, oferecem bons exemplos de como tais habilidades podem ser trabalhadas no Enem. Todavia, embora seja possível pensar em itens de filosofia que abordem a habilidade EM13CHS502, ou a EM13CHS503, nenhum dos setenta itens analisados neste estudo serviriam para operacionalizar essas habilidades de maneira adequada.

Uma análise das outras competências revelaria lacunas semelhantes, de forma que se na matriz atual os itens de filosofia levaram vinte anos para cobrir quatorze das trinta habilidades, transpostos para a BNCC estes mesmo itens cobririam apenas quatro ou cinco das trinta e uma habilidades propostas para as Ciências Humanas. Este fato em si não é um problema, afinal, apesar de ter pontos de contato com a matriz do Enem, a BNCC não é e nem deve ser idêntica a ela.

Não temos aqui, portanto, o problema que Gallo identificou em relação à Matriz do Enem, de não apresentar, “diretamente, competências e habilidades relativas à Filosofia”. (Gallo, 2013Gallo, S. (2013). Filosofia e Exame Nacional do Ensino Médio: Desafios e Perspectivas da Avaliação. In Avaliações da Educação Básica em Debate: Ensino e Matrizes de Referências das Avaliações em Larga Escala (pp. 413-429). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira., p. 415-416). Pelo contrário, a BNCC abre espaço para filosofia tanto no sentido de demarcar um espaço mais claro nas habilidades e competências já exercitadas pelos itens de filosofia do Enem, quanto no sentido de propor possibilidades de temáticas específicas dentro do campo filosófico que poderiam ter sido abordadas nesses vinte anos do Enem, mas não foram ainda; por exemplo, “identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas causas, significados e usos políticos, sociais e culturais, avaliando e propondo mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos”, como pede a EM13CHS503.

Contudo, o suporte teórico de Ball e Bowe nos permite extrair outro insight valioso dessa análise. A partir dessa ótica, vemos a avaliação em larga escala, no caso o Enem, na dupla capacidade de receber e de exercer influência, não só em relação a documentos curriculares, como também em relação a debates centrais sobre a educação no país. Como resume Mainardes:

No ciclo de políticas descrito anteriormente, a simplicidade e a linearidade de outros modelos de análise de políticas são substituídas pela complexidade do ciclo de políticas. A abordagem do ciclo de políticas traz várias contribuições para a análise de políticas, uma vez que o processo político é entendido como multifacetado e dialético, necessitando articular as perspectivas macro e micro.

(Mainardes, 2006Mainardes, J. (2006). Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, 27(94), 47-69., p. 55, grifo meu).

Todos os anos, já há algum tempo, temos visto que o Enem tem funcionado como indutor de debate em vários níveis, em várias esferas, com vários atores, com maior ou menor grau de influência, envolvimento ou conhecimento. Temos visto bem menos o Enem na condição de receptor de debate. Digo receptor, e não só objeto de debate, pois a ênfase aqui não é o quanto se discute sobre o exame, e sim o quanto o exame está aberto a sofrer transformações a partir dessa discussão. Esta é uma condição em que o exame deveria estar constantemente, e em especial neste momento de reformulação. É neste ponto que o aspecto “multifacetado e dialético” característico do ciclo de políticas mostra sua força.

Tal debate é difícil e complexo, porém necessário. Seja na forma de colóquios ou discussões acadêmicas, seja na forma de consultas públicas on-line ou audiências públicas, tais debates não só são trabalhosos e custosos para organizar como é impossível que fazer com que eles incluam e levem em consideração todas as diversas visões. Essa impossibilidade, porém, não esvazia a necessidade do debate. Pelo contrário, como nenhum debate é final e conclusivo, este arcabouço teórico reafirma o valor do debate constante (Young, 2000Young, I. (2000). Inclusion and Democracy. Oxford University Press.), um preceito central tanto na formação filosófica, quanto na formação democrática.

Enquanto, em 2011, Gallo apontava para a necessidade de referenciais provisórios, para serem “utilizados enquanto ganhemos consistência na produção de um currículo de Filosofia que possa, efetivamente, no futuro nortear a presença de conhecimentos de Filosofia nos exames de larga escala, como o Enem e o Encceja” (Gallo, 2013Gallo, S. (2013). Filosofia e Exame Nacional do Ensino Médio: Desafios e Perspectivas da Avaliação. In Avaliações da Educação Básica em Debate: Ensino e Matrizes de Referências das Avaliações em Larga Escala (pp. 413-429). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira., p. 426), talvez possamos dizer que, com a publicação da BNCC, agora tenhamos tal documento norteador. No entanto, como argumentei neste estudo, entre documento curricular e operacionalização no exame há um percurso longo, no qual o debate com diferentes setores é obrigatório. Tal obrigatoriedade de debate é tanto ética quanto pragmática. Ética, pois o debate está no cerne do espírito democrático, especialmente quando se tem como objeto algo tão central na formação do país. E pragmática, pois como demonstrado neste estudo, é a partir do debate com diferentes atores em diferentes esferas que políticas públicas saem do papel e se materializam.

Conclusão

A implementação de políticas públicas não ocorre de maneira linear, líquida e certa. Ela é um trabalho complexo fruto de constante debate e em construção permanente (Mainardes, 2006Mainardes, J. (2006). Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, 27(94), 47-69.). O caso da filosofia no ensino médio mostra isso de maneira particularmente contundente, especialmente se considerarmos a fragilidade histórica da filosofia nesta etapa de ensino. Observar sua evolução ao longo no Enem, retomando documentos anteriores, como os PCN, PCN+, OCEM, e à origem da Matriz de Referência do Enem no Encceja, além de ser fundamental para melhorar o exame enquanto exame, serve também para o reconhecimento dos desafios e possibilidades que a avaliação de larga escala traz em relação à operacionalização de referenciais curriculares, além da importância do debate em todo esse processo.

Esse tipo de exercício é crucial neste momento em que olhando para o passado, completamos dez anos da obrigatoriedade da filosofia no ensino médio (2008-2018), e vinte anos do Enem (1998-2018), ao mesmo tempo que, olhando para o futuro, refletimos sobre a recém-publicada BNCC, e sobre como se darão a anunciada reforma do ensino médio e a consequente reformulação da matriz do exame. Em meio a tais reflexões, a filosofia e o debate fazem-se necessários não só como objeto de estudo, mas também como forma de trabalho, seja para estudantes, professores e profissionais do ensino médio, seja para formuladores de políticas públicas, pesquisadores da área e sociedade em geral.

Referências

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  • Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996). Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília, DF: Presidência da República.
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  • Young, I. (2000). Inclusion and Democracy. Oxford University Press.

Apêndice

Os itens utilizados neste estudo estão listados abaixo. Todas as provas do Enem estão disponíveis disponível em: http://portal.inep.gov.br/provas-e-gabaritos.

Ano Nº de Itens de Filosofia Itens Caderno 1998 0 -- Amarelo 1999 2 10, 31 2000 3 4, 52, 53 2001 4 18, 30, 31, 57 2002 0 -- 2003 1 48 2004 0 -- 2005 0 -- 2006 0 -- 2007 0 -- 2008 0 -- 2009 1 58 Azul 2010 6 29, 30, 34, 39, 44, 45 2011 1 2 2012 7 1, 7, 9, 25, 28, 30, 31 2013 7 4, 10, 22, 24, 27, 36, 41 2014 8 4, 11, 12, 14, 19, 24, 25, 29 2015 8 3, 13, 16, 17, 26, 28, 34, 42 2016 8 1, 6, 20, 23, 24, 25, 28, 37 2017 8 49, 64, 65, 66, 84, 85, 88 2018 7 49, 51, 52, 66, 83, 89, 90

Editado por

1
Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2019
  • Revisado
    06 Nov 2019
  • Aceito
    04 Jan 2020
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