Open-access Como as crianças percebem a hierarquia social? Uma revisão bibliográfica de pesquisas de tradição bourdieusiana

¿Cómo perciben los niños la jerarquía social? Una revisión bibliográfica de la investigación en la tradición bourdieusiana

Resumo

Este artigo apresenta e analisa alguns trabalhos que têm tomado por referência o quadro teórico de Pierre Bourdieu para pensar a infância. Para esta revisão bibliográfica, tomamos como ponto de partida a obra de Chamboredon e Prévot para chegarmos aos recentes trabalhos de Lignier e Pagis. As pesquisas apresentadas contribuem com uma tarefa ainda inconclusa, qual seja, a produção de evidências empíricas que possam corroborar ou tensionar a formulação teórica da construção do habitus na infância. A recepção crítica desses trabalhos evidencia os desafios metodológicos apresentados aos pesquisadores que assumem como objetivo a compreensão das desigualdades na infância, chamando a atenção para a necessidade de se pensar a infância em um quadro teórico interseccional.

Palavras-chave
habitus; Bourdieu; socialização das crianças; classificação social

Abstract

The article presents and analyzes works that use Pierre Bourdieu as a theoretical framework to think childhood. In this bibliographical review, we take Chamboredon’s and Prévot’s writings as a starting point to reach the recent works of Lignier and Pagis. The studies presented contribute to a still inconclusive task: to provide empirical evidence to corroborate or question the theoretical idea of habitus construction in childhood. The critical reception of these works highlights the methodological challenges presented to researchers who aim to understand childhood inequalities, calling attention to the need to consider childhood within an intersectional theoretical framework.

Keywords
habitus; Bourdieu; child socialization; social classification

Resumen

Este artículo presenta y analiza algunos trabajos que han tomado como referencia el marco teórico de Pierre Bourdieu para pensar la infancia. Para ello, tomamos como punto de partida el trabajo de Chamboredon y Prévot para llegar a los trabajos recientes de Lignier y Pagis. La investigación presentada contribuye a una tarea aún inconclusa, a saber, la producción de evidencia empírica que pueda corroborar o tensionar la formulación teórica de la construcción del habitus en la infancia. La recepción crítica de estos trabajos resalta los desafíos metodológicos presentados a los investigadores que apuntan a comprender las desigualdades en la infancia, llamando la atención sobre la necesidad de pensar la infancia brasileña en un marco teórico interseccional.

Palabras clave
habitus; Bourdieu; socialización de los niños; clasificación social

Introdução

O presente artigo tem por objetivo apresentar pesquisas recentes que, no interior da problemática das relações entre desigualdades sociais e infância, vêm se dedicando a compreender empiricamente a perspectiva das crianças sobre as hierarquias sociais, apontando como essa questão foi se construindo ao longo das últimas décadas e quais as contribuições e os desafios que se apresentam aos pesquisadores interessados no tema.

Para empreender tal análise, utilizamos como quadro de referência a Sociologia francófona, de inspiração bourdieusiana, em razão de sua constituição como um campo seminal na produção de teorias e pesquisas acerca dos mecanismos pelos quais as desigualdades sociais são reproduzidas e perpetuadas ao longo das gerações. De Jean-Claude Chamboredon, Jean Prévot, Bernard Zarca e Bernard Lahire, aos trabalhos da nova geração de sociólogos, como Wilfried Lignier e Julie Pagis, esta produção tem enfatizado a precocidade do peso das estruturas sociais na manutenção e na reprodução intergeracional das desigualdades sociais. Nessa linhagem teórica, inspirada na teoria sociológica do habitus de Bourdieu, pretendemos acompanhar e discutir trabalhos que analisam a percepção das crianças em relação ao mundo social, bem como as maneiras, socialmente informadas, por meio das quais elas classificam e hierarquizam o mundo à sua volta.

Para Bourdieu, o habitus pode ser definido como um conjunto sistemático de disposições para agir que, condicionado por nossas propriedades sociais, iniciam-se pela prática e nela se encerram. O caráter prático demonstra que nosso engajamento acontece por meio de um processo repetitivo, implícito e pouco consciente de inscrição de determinada posição social em nossos valores, na nossa forma de pensar e no nosso corpo, processo que lhe confere alguma estabilidade e durabilidade. Na condição de matriz de disposições formada por experiências vividas nos primeiros anos de vida, o habitus primário desempenharia um papel tão importante, que disposições adquiridas posteriormente nunca seriam totalmente alheias a essa primeira realidade. Assim, em oposição a teorias de cunho filosófico, que concebem o ser humano como radicalmente livre e autodeterminado, trata-se de tomar a aquisição precoce desses esquemas de ação como a chave explicativa para se compreender a produção e a reprodução das desigualdades educacionais e sociais (Bourdieu, 1997).

Na esteira da sociologia de matriz bourdieusiana, em 1973, Jean-Claude Chamboredon e Jean Prévot escreviam Le métier d’enfant. Définition sociale de la prime enfance et fonctions différentielles de l’école maternelle, obra que contribuiu para dar visibilidade à infância e ao papel da educação infantil em uma sociedade que vivia o fim dos 30 anos gloriosos e o desencantamento que culminou em maio de 1968. Nesse contexto, por meio do conceito de ofício da criança, Chamboredon e Prévot interrogam a relação entre a família e a escola a partir do pertencimento social e contribuem para o questionamento acerca da naturalização das disposições formadas ao longo do processo de socialização.

No âmbito de uma perspectiva estrutural-funcionalista, trata-se aí de analisar o ofício de criança na comparação entre o habitus familiar e o escolar. Assim, se por um lado o trabalho de Chamboredon contribuiu para mitigar a invisibilidade epistemológica da infância nas Ciências Sociais, por outro, em sua obra, a criança permanece reduzida ao seu papel de aluno.

Na década de 1990, o interacionismo, a fenomenologia e as abordagens interpretativas influenciam as Ciências Sociais a deslocar o foco das macroestruturas para os atores sociais. Os dados sociodemográficos, que marcavam as pesquisas das décadas anteriores, deixam de ser suficientes, cedendo espaço aos estudos etnográficos. Ao revelar a dimensão microssocial, essas pesquisas possibilitam a compreensão de uma criança que não se reduz ao papel de aluno, mas que age em função de seus interesses e de sua capacidade de interpretação do mundo social (Sirota, 2001).

Assim, dos anos de 1990 em diante, estão dadas as condições para a emergência e a consolidação da Sociologia da Infância, campo que compreende a criança como um ator social a partir da crítica a uma concepção excessivamente verticalizada de socialização, tal como encontramos em Durkheim e na maior parte dos autores funcionalistas. No entanto, uma vez que a perspectiva interpretativa adotada enfatiza a produção de sentido pelos indivíduos em detrimento da (re)produção dos comportamentos pelas estruturas sociais, o problema teórico da relação entre ator e estrutura se anunciou, já desde seus primórdios, como intrínseco à Sociologia da Infância (Montandon, 2001).

Nesse sentido, é conhecida a advertência de Alan Prout (2010) para o fato de que esse campo traz consigo traços de seu campo-mãe, a Sociologia mais ampla, replicando dicotomias como ação e estrutura, cultura e natureza ou ser e devir. Com o objetivo de superar esses conhecidos impasses teóricos, o autor sugeriu que fosse considerado um terceiro excluído dessas oposições. Essa parece ter sido a investida de William Corsaro (2015) ao desenvolver o conceito de reprodução interpretativa1 para dar conta do fato de que as crianças assimilam e reproduzem elementos da cultura, mas não o fazem de forma automática, e, sim, a partir de uma perspectiva geracional que inclui seus interesses. No entanto, uma leitura mais atenta da obra do autor mostra que, ao propor o abandono do conceito de socialização, compreendido por ele como um termo que expressa um processo unilateral e verticalizado, Corsaro termina por enfatizar demasiadamente a agência (agency) das crianças.

Tal é a crítica de Bernard Lahire, no livro Enfances de classe (2019), ao Childhood Studies e à Sociologia da Infância francesa:

Assim, sub-repticiamente, os investigadores reintroduziram no campo da infância a questão da “liberdade” individual, que tinha sido largamente excluída do trabalho sociológico sobre adultos. Insistir sobre a capacidade de escolha ou decisão da criança, na parte “ativa” que ela assume na sua educação, agindo como se os estudos sobre a socialização infantil tivessem feito da criança um ser inteiramente passivo (uma cera macia maleável à vontade pelos adultos), para enfatizar o seu próprio poder de agir, que lhe teria sido tirado por sociólogos considerados demasiado “deterministas“, é esquecer tudo o que lhe é imposto e sobre o qual não tem como prescindir: um mundo com a sua linguagem, as suas instituições, as suas técnicas, seu conhecimento, sua divisão do trabalho etc., e suas desigualdades sociais

(p.21 – tradução nossa)2.

Nessa obra, Lahire e uma equipe de 17 colaboradores analisam a influência da origem social na formação de 35 crianças de origens sociais diversas, explorando como as desigualdades de classe moldam as experiências, oportunidades e perspectivas de vida das crianças. Com isso, os autores destacam a importância de considerar o contexto social e familiar ao estudar a socialização nos primeiros anos de vida, fornecendo uma visão crítica e detalhada das dinâmicas de classe na formação das identidades e trajetórias das crianças.

A partir de uma abordagem contextualista e disposicionalista, Lahire enfatiza os determinismos sociais e a dependência das crianças em relação aos adultos e, mais amplamente, a dependência de cada ser humano do mundo social. Dessa forma, pode ser considerado um legatário da tradição bourdieusiana, ainda que seu conceito de disposição traga diferenças em relação à teoria do habitus de Bourdieu. Se para esse último, como vimos, o habitus refere-se ao conjunto de disposições duráveis e estruturadas que são adquiridas por meio da socialização, para Lahire, as disposições seriam manifestações específicas do habitus em situações particulares. Elas representam as tendências ou inclinações comportamentais que são influenciadas pelo habitus, mas que podem se manifestar de maneira mais consciente e específica em contextos cotidianos. As disposições seriam tendências a agir que podem marcar a vida do indivíduo de forma durável, mas a mobilização desses patrimônios de disposições (esquemas de ação) se daria conforme a pluralidade de contextos (que servem como molas de ação).

Em Enfances de Classe, no entanto, o autor pouco trabalha com o contexto de atualização das disposições adquiridas, característica de suas obras anteriores (Lahire, 1995, 2007)3, dedicando-se mais especificamente a descrever e analisar a diversidade das condições materiais e simbólicas nas quais as crianças crescem, e a forma como a desigualdade, vivida precocemente, pode afetar a trajetória escolar e as chances de mobilidade social. Como afirma o autor, as crianças vivem na mesma sociedade, mas não no mesmo mundo.

Apesar da inegável relevância da obra para o estudo das desigualdades na infância, as escolhas metodológicas de Lahire e equipe não incluem a perspectiva das crianças participantes da pesquisa, cujas práticas são conhecidas apenas por meio dos adultos à sua volta. Ao buscar compreender a desigualdade da infância unicamente por meio do ponto de vista de pais e professores, o desenho da pesquisa termina por corroborar uma visão verticalizada e unilateral da socialização (Garnier, 2021). Com isso, a obra deixa de analisar de maneira mais circunscrita a questão que norteia este artigo, qual seja, a perspectiva das crianças sobre as hierarquias sociais e não apenas a maneira pela qual as hierarquias sociais determinam suas chances futuras de ascensão.

Desse modo, nosso interesse se volta para pesquisas com crianças, e não apenas sobre elas, realizadas a partir da teoria bourdieusiana, como aquelas recentemente realizadas de Wilfried Lignier e Julie Pagis (2017), inspiradas na de Bernard Zarca (1999). Acreditamos que a recuperação crítica desses trabalhos pode contribuir para a atualização e o amadurecimento do debate sobre as possibilidades e os limites do quadro teórico bourdieusiano para a compreensão das diversas desigualdades que atravessam a infância, inclusive a brasileira. Esse objetivo se torna ainda mais relevante na medida em que interroga uma fronteira já consolidada entre duas correntes teóricas: os Estudos Sociais da Infância e a Sociologia bourdieusiana. A primeira, apesar de contemplar uma significativa diversidade de perspectivas, é consoante quanto à consideração da criança como ator e da infância como categoria estrutural. A segunda, por sua vez, manifesta-se de forma crítica em relação à ideologia da participação e se mostra reticente quanto a considerar a categoria geração como um componente da estrutura social4 (Salgues, 2018).

Em comum, os trabalhos apresentados têm o objetivo de compreender empiricamente as formas por meio das quais ocorrem os processos diferenciados de socialização das crianças em contextos socioinstitucionais, evidenciando os processos de ressignificação de um mundo social inescapavelmente hierarquizado e cujas estruturas tendem a se converter em disposições e práticas sociais que são retraduzidas pelas crianças. Dito de outro modo, trata-se de investigar a gênese do habitus, construção teórica que vem sendo considerada como altamente explicativa, porém pouco explicitada (Barthez, 1980).

A relevância desse empreendimento já havia sido anunciada no livro Childhood with Bourdieu, coletânea de textos que busca evidenciar a pertinência do uso dos conceitos do autor em estudos com crianças. Em capítulo de sua autoria, Pascale Garnier (2015) defende a importância dos estudos empíricos sobre os processos de socialização das crianças, dado que a evitação desse trabalho poderia implicar na utilização automática de conceitos e teorias para analisar práticas sociais, incorrendo no intelectualismo denunciado pelo próprio Bourdieu (2013). Para ela, as dificuldades éticas ou metodológicas impostas aos pesquisadores pelos trabalhos com crianças (e não apenas sobre elas) não devem servir de justificativa para a evitação desse projeto.

Os trabalhos apresentados a seguir buscam avançar nessa direção, não apenas aplicando o quadro conceitual bourdieusiano, mas colocando-o à prova e criando novas perspectivas a partir dele. Trata-se, portanto, de trabalhos que assumem para si desafios éticos e metodológicos que vêm sendo debatidos há pelo menos quatro décadas pelos pesquisadores dos Estudos Sociais da Infância. Para cumprir esses objetivos, o artigo foi dividido em quatro seções. Na primeira, apresentamos o trabalho de Bernard Zarca, publicado no final da década de 1990, em que o sociólogo tenta compreender como as crianças constroem suas percepções do mundo social, o que ele chama de senso social. Na segunda seção, trazemos o trabalho de Wilfried Lignier e Julie Pagis, em que os autores retomam o trabalho de Zarca quase 20 anos após a publicação de seu artigo Les sens social des enfants, mostrando que as crianças classificam socialmente, reciclando julgamentos sociais internalizados em espaços sociais com os quais possuem maior intimidade. Na terceira, apresentamos e discutimos a recepção desses trabalhos por pesquisadores franceses da Sociologia mais ampla e da Sociologia da Infância, e mostramos como as pesquisas brasileiras podem contribuir com esse debate. Por fim, finalizamos o artigo trazendo algumas considerações sobre um debate ainda em curso.

O senso do social de Bernard Zarca

No artigo Le sens social des enfants, Bernard Zarca (1999) busca avançar na demonstração empírica da formação do habitus, um trabalho ainda inconcluso, como dito anteriormente. Quando o artigo é publicado na revista Sociétés Contemporaines, o campo da Sociologia da Infância não somente já existia como começava a se institucionalizar na Europa. No entanto, ao contrário da tendência majoritária desse campo de interessar-se pela cultura das crianças e pela agência desse grupo etário, Zarca aqui se propõe a investigar empiricamente as clivagens sociais que incorrem nos processos de socialização.

O conceito de senso social5 é resultado dessa tentativa. Para o autor, trata-se do modo diferenciado de se comportar de acordo com as próprias características sociais em relação às propriedades sociais das pessoas com quem interagimos, mas também diz respeito à capacidade de identificar as características sociais mais valorizadas socialmente e perceber as múltiplas diferenças, oposições e hierarquias que conectam os agentes sociais.

Assim, a apreensão do espaço social seria necessariamente limitada e envolveria tanto a projeção de si nessa hierarquia, quanto a possibilidade de imaginar, mesmo que vagamente, os destinos sociais que estão disponíveis ou excluídos para indivíduos na mesma posição social. O senso social, tal como concebido por Zarca, não se restringiria ao senso de si e de alteridade, tampouco às habilidades que são exigidas nas interações em geral, mas consistiria na capacidade de identificar nas relações, simetrias ou assimetrias, paridades ou dominações, tais como elas se cristalizam na sociedade e que cada um de nós experimenta desde muito cedo6.

O processo de construção do senso social nas crianças ocorreria ao mesmo tempo em que elas forjariam sua própria identidade, aprendendo a se situar no espaço social e avaliando, intuitivamente, suas chances de ocupar determinadas posições nesse meio que se lhes apresenta, desde bem cedo, estruturado por relações de dominação. O senso do social é entendido pelo autor como um sentido em ação, no qual são identificadas e analisadas as implicações das propriedades sociais no contexto de interação, propriedades que a criança apreende com o corpo, mas memoriza por meio da linguagem. Ouvindo julgamentos a respeito das pessoas com as quais convive, ela vai adquirindo, ainda que de maneira difusa e incompleta, representações do espaço social que são parciais, muitas vezes implícitas e até mesmo contraditórias.

A partir dos julgamentos que testemunha, a criança construiria sua perspectiva do social, sem deixar, evidentemente, de utilizar suas próprias ferramentas intelectuais e mobilizar seus valores e interesses. Esse processo seria análogo ao que a filosofia da mente denomina atitude proposicional (ver, por exemplo, Russell [1992]), ou seja, diz respeito à relação entre uma criança específica e determinada proposição, de forma a construir uma representação do mundo social que está longe de ser puramente cognitiva, mas que é, antes, informada por receios, desejos, autoprojeções e relações de poder.

Para compreender essa construção, Zarca realizou uma pesquisa de campo em três escolas da região metropolitana de Paris que atendem a famílias socioeconomicamente bastante distintas. Adotando o método clínico, introduzido por Piaget para o estudo do desenvolvimento cognitivo da criança, o autor convidou estudantes entre 7 a 10 anos a classificar 12 cartões com imagens de profissões conhecidas, ora utilizando como critério a remuneração, ora lançando mão da ideia de reputação. Além disso, as crianças foram chamadas a explicitar as razões da classificação7, sendo tomado como dado não apenas aquilo que era dito, mas também os silêncios, os constrangimentos ou a desolação face a uma ocupação profissional julgada menos interessante. Frequentemente, surgiram expressões diversas do imperativo moral – “não existe trabalho ruim!” –, interpretadas por Zarca como uma pronta defesa dos participantes em relação a um pensamento que se sentiram moralmente impedidos de enunciar. Daí a escolha pelo método clínico, recurso que teria por vantagem, segundo o autor, a possibilidade de interpretar essas nuances ao levar em consideração as reações pré-intencionais que acompanham toda a comunicação e que podem dizer mais do que um longo discurso.

Na interação com as crianças, Zarca observou que as classificações observadas em uma situação de pesquisa nunca são neutras, mas dizem respeito à relação da posição social das crianças com a do próprio pesquisador. Como exemplo, descreve uma cena em que uma criança do último ano do CM2, correspondente ao final do Fundamental 1 no sistema educativo brasileiro, lamentou ter rebaixado a ficha referente à profissão de professor, a qual associou ao pesquisador. Diante dessa reação, segue-se o seguinte diálogo entre a criança (filho de um gerente sênior de exportação e de uma gerente assistente), e o pesquisador:

– Você balançou a cabeça enquanto colocava o professor no final, pode me explicar por quê?

(O menino cora, com receio de ter me ofendido)

– Não sei… porque pode não ser… pode não ser legal, mas… pode compensar pouco

(Zarca, 1999, p.80).

Apesar da justificativa dada por Zarca para a escolha do método clínico, vale considerar que a importação de um instrumento metodológico da psicologia reflete a inexistência, no final da década de 1990, de ferramentas próprias da sociologia para trabalhar com crianças, problema que tem sido superado em virtude do esforço de pesquisadores dos Estudos da Infância em criar diversas maneiras de captar a perspectiva infantil, de forma a respeitar as especificidades desse grupo etário.

Em relação ao resultado, no entanto, a pesquisa mostrou que as imagens que as crianças criam do espaço social demonstram relativo conhecimento do grau de exaustão e dos anos de estudos exigidos por cada profissão. No entanto, se as crianças dão provas de um senso social relativamente formado, Zarca demonstra que a capacidade de compreender as hierarquias sociais e de se situar nelas não é universal, mas variável em relação à origem social além de, sobretudo e primeiramente, em relação ao sexo8.

Assim, as meninas participantes da pesquisa geralmente se mostraram dispostas ao que o futuro lhes reserva. Sinalizando uma precoce interiorização do provável, colocaram as profissões intermediárias acima das superiores e evocaram como justificativa sua utilidade social. Os meninos, por sua vez, utilizaram mais frequentemente o critério da remuneração em suas classificações. Mesmo os de menor idade manifestaram menos interesse por profissões socialmente atribuídas às mulheres e por aquelas que exigem disposições altruístas, comumente mobilizadas na socialização feminina, aliás. Quanto à origem social, tem-se que as crianças de classes favorecidas estabelecem hierarquias mais realistas, sobretudo no que diz respeito à remuneração, ao adotarem atitudes positivas em relação às ocupações mais reputadas socialmente. Inversamente, entre as crianças das famílias desfavorecidas, essa correspondência não foi observada.

O autor concluiu que a representação do espaço social não significa a construção de uma imagem imparcial, mas, antes, estaria necessariamente vinculada a uma projeção de si nesse mesmo espaço, razão pela qual a construção da realidade social implicaria também na construção da própria identidade.

Por fim, Zarca reconhece os limites desse trabalho que resulta de um esforço incipiente, sobretudo no que se refere à adoção do método clínico, centrado na linguagem, e seus limites para compreender os processos de incorporação. Também ressalta a necessidade de que se realizem pesquisas com crianças mais novas, projeto que exigiria a adoção de ferramentas metodológicas capazes de captar e analisar outras e diversas linguagens.

A sociogênese da percepção da ordem social: o trabalho de Lignier e Pagis

Declaradamente inspirado pelo artigo de Bernard Zarca, é publicado, em 2017, o livro L’Enfance de l’ordre, de autoria de Julie Pagis e Wilfried Lignier9. Nele, os autores descrevem uma pesquisa etnográfica realizada em duas escolas públicas francesas entre 2010 e 2012, que teve por objetivo explicar a forma pela qual as crianças percebem o mundo social. Os autores demonstram como a sociogênese10 da perspectiva infantil sobre a ordem social ocorre a partir do que denominam reciclagem simbólica, ou seja, da reutilização de esquemas práticos de distinção e hierarquização aos quais as crianças são expostas cotidianamente. Em outras palavras, essa reciclagem consistiria no deslocamento dos esquemas de hierarquização impostos às crianças nos contextos práticos em que estão mais diretamente inseridas, sobretudo da família e da escola, para aqueles contextos mais distantes e nos quais estão menos engajadas. Essa segunda vida oferecida aos recursos simbólicos adquiridos por meio de repetidas injunções educativas permitiria às crianças compreender o espaço social, classificar os outros e, concomitantemente, se autoclassificar.

Para colocar em curso esse projeto, Lignier e Pagis ouviram os julgamentos das crianças a respeito de três dimensões da vida social. Primeiramente, buscaram compreender a percepção desse grupo etário sobre o mundo do trabalho a partir dos valores mobilizados para compreender a hierarquia das profissões? Posteriormente, captaram os julgamentos que sustentavam a maior ou menor afinidade entre as crianças, além dos valores que norteavam suas posições a respeito do universo da política.

No que diz respeito às percepções das hierarquias profissionais, os autores partiram de uma ferramenta metodológica semelhante à que já havia sido utilizada por Zarca: um jogo para classificar empregos. A diferença, no entanto, é que esse novo estudo propôs que a atividade fosse realizada em grupos, com a justificativa de que a classificação nunca é solitária, mas, antes, fruto das interações11. Lignier e Pagis (2017) destacam ainda que foram guiados mais pelo interesse sobre os modos por meio dos quais as crianças classificam os outros (e se autoclassificam) do que propriamente pelo resultado das suas classificações.

Assim, foi realizada uma série de sessões coletivas com cerca de 12 crianças, nas quais elas foram convidadas a ordenar nove cartões com imagens de profissões: três associadas às frações superiores da sociedade (arquiteto, dono de fábrica e professor), três associadas às classes médias (enfermeiro, açougueiro e florista), e três associadas às camadas populares (pedreiro, vendedor em uma loja de brinquedos e faxineira).

Na primeira sessão, foi solicitado que escolhessem a profissão que deveria ficar no topo da escala e a que deveria ficar abaixo de todas as outras, sem que fosse previamente estabelecido o critério a ser utilizado. Isso porque, o objetivo era justamente perceber os critérios e valores evocados pelas crianças para realizar a classificação. Somente em uma segunda sessão foi solicitado o agrupamento das profissões em duas categorias: ricas e pobres.

Lignier e Pagis não deixam de observar que a listagem é um elemento característico das culturas escritas, de forma que as crianças que já sabem ler geralmente são mais familiarizadas com essa habilidade de pensamento, como vieram a confirmar sessões realizadas com crianças ainda menores12. No entanto, coincidindo com os resultados encontrados por Zarca, os dados da pesquisa de campo de Lignier e Pagis mostraram que a idade não é o único e nem mesmo o principal fator de variação das maneiras de classificar, já que a habilidade de classificação social também se mostrou informada por outras propriedades sociais, como classe social, “origem migratória”13 e sexo.

A variação da classificação da profissão de faxineira, tomada aqui como um emprego prototípico, ilustra bem essa ideia. No que diz respeito à idade, por exemplo, os pesquisadores relataram que algumas crianças menores não compreenderam o conceito de emprego e tomaram indistintamente a limpeza da própria casa e a limpeza como profissão. Por isso, as mais novas e aquelas que pertenciam a famílias socialmente privilegiadas tenderiam a colocar a carta da faxineira em uma melhor posição do que as mais velhas do mesmo estrato social. No que diz respeito à classe social, tem-se que as crianças de famílias desfavorecidas colocaram a faxineira em uma posição mediana, enquanto as crianças das frações superiores inseriram essa profissão no último lugar entre as profissões oferecidas para serem hierarquizadas. Por fim, no que diz respeito ao gênero, os autores observam que alguns meninos desqualificaram a profissão de faxineira, justificando se tratar de “trabalho de menina”.

Além dessas variações, vinculadas aos diversos pertencimentos sociais das crianças, os autores observaram também algumas recorrências atribuídas à sociogênese das classificações sociais. Isso se deve ao fato de que, nesse processo, as crianças são submetidas a um certo número de valores que, embora socialmente cambiantes, podem ser também considerados como relativamente estáveis, na medida em que a dominação simbólica a que os sujeitos são submetidos é relativamente durável. Nas sociedades urbanas ocidentais, por exemplo, espera-se incutir nas crianças o dever de se cuidar, de realizar com empenho os trabalhos escolares, de respeitar as regras e os adultos, de atender às injunções de gênero etc.

Assim, tanto os critérios de julgamento que são utilizados no espaço doméstico, frequentemente ligados à higiene e à saúde, assim como aqueles evocados pela cultura escolar, geralmente relacionados à inteligência e à disciplina, e ainda os julgamentos do grupo de pares, mais associados à conformidade em relação às normas de gênero, são internalizados pelas crianças e passam a ser mobilizados por elas para designar pessoas e relações sociais de outros contextos. Dessa maneira, ao classificar as profissões, algumas crianças podem até mobilizar critérios adultos, como remuneração, prestígio ou utilidade social, mas o mais provável é que os julgamentos sejam ancorados em valores como limpeza ou beleza das profissões. É o que apontam os dois diálogos a seguir, realizados com crianças que cursavam o CM1 francês, correspondente ao terceiro ano do Fundamental 1 no Brasil:

Diálogo 1:

Houria: Eu não gosto de arqueologia porque é imundo!

Wilfried: Por quê?

Houria: Eu não sei…

Naima: Eu sujei o rosto então… eu não gosto muito de pó: uma vez eu cavei e não deu certo… eu fiz um buraco bem grande com a terra

(Lignier & Pagis, 2017, p.123).

Diálogo 2:

Pesquisadora: Por que você colocou “guerra” na lista das profissões que você não quer?

Léonce: Porque tem armas, tem morto… Não é bonito. […]

Willem: Eu gosto de circo porque a gente dá cambalhotas… Também gosto porque é muito, muito bonito… Quando eles fazem acrobacias bonitas. […]

Marielle: Eu gostaria de ser dançarina… Porque eu gosto quando a gente faz coisas bonitas. […]

(Lignier & Pagis, 2017, p.128).

Esse ponto de vista higiênico e estético do mundo profissional é interpretado pelos autores como uma consequência indireta e inesperada da socialização primária, principalmente da esfera familiar, constituindo uma forma de perceber o mundo especificamente infantil. Os autores também observaram a reutilização de adjetivos frequentemente empregados para designar as atividades escolares, como “chato” ou “cansativo”, na qualificação das profissões. Os diálogos a seguir, realizados com crianças do CP e do CM, correspondentes no sistema educativo brasileiro à Educação Infantil e ao Fundamental 1 respectivamente, ilustram essa ideia:

Diálogo 1 (com crianças da Educação Infantil):

Pesquisadora: Por que você colocou a faxineira por último?

Alexandre: Porque esse trabalho demora muito tempo…

Pesquisadora: E o que você colocou em cima?

Alexandre: Arquiteto. (Por quê?) Porque eu gosto… (Por quê?) Porque não demora muito. […]

Kevin: Porque é cansativo… (Por quê?) Porque… uma hora de limpeza não é muito interessante…

Diálogo 2 (com crianças do Ensino Fundamental 1):

Tess: Um dia é bom limpar, mas todos os dias, no fim deve ser um pouco estressante.

Ramzi: Eu gostaria de ser arquiteto, porque eu construiria coisas… É para nerds… E vendedor ou vendedora de brinquedos em loja de departamento é chato… […].

Asma: Limpeza não é comigo, professor do ensino médio é muito difícil e açougueiro… carne é nojento!

(Lignier & Pagis, 2017, p.133).

Uma vez que o pai de Asma é funcionário de uma empresa e a mãe é babá, os pesquisadores hipotetizam se a ideia de que a profissão de professor do ensino médio é “muito difícil” não seria a manifestação de um sentimento de ilegitimidade precoce ou a expressão, no universo infantil, de uma espécie de exclusão oculta (cens caché), conceito do cientista político Daniel Gaxie (1978) que busca explicar as formas menos explícitas de exclusão da participação política nas sociedades democráticas.

Assim, a principal contribuição de Lignier e Pagis está em demonstrar que, embora os critérios e as classificações das crianças possam parecer uma inadaptação, na medida em que nem sempre coincidem com os adultos, trata-se, na verdade, de um trabalho de transposições progressivas que fazem parte do processo contínuo de compreensão do mundo social.

Além disso, os autores também chamam a atenção para o fato de que a reciclagem simbólica não se reduz a uma mera aquisição do mundo social, mas que se trata de um processo profundamente pessoal e carregado de afetos. Assim, uma criança pode ter meios intelectuais e informacionais para classificar de acordo com as hierarquias sociais instituídas, mas não ter vontade ou interesse de fazer isso, na medida em que, ao operar com os mesmos critérios dominantes, terminaria por endossar a situação de rebaixamento social de sua família e de si, por consequência.

Pressupondo que qualquer prática de classificação engaja o classificante, podemos então concluir que as crianças cujas famílias são relegadas aos escalões mais baixos da hierarquia social tendem a possuir mais interesse em produzir ranqueamentos alternativos. Essa explicação ajudaria a compreender por que parte das crianças oriundas das camadas populares querem ser policiais “para prender pessoas”, ou manifestam desejo de ser chefe “para despedir muita gente”. No lugar de tomar essas expressões por ingênuas ou desinformadas, os autores chamam a atenção para um esforço sutil de autopreservação, que permite à criança imaginar para si uma posição de poder ou até mesmo de vingança temporária, garantindo proteção contra a violência simbólica da classificação.

Lignier e Pagis reconhecem que classificar figuras com imagens de profissionais pode ser uma atividade bastante abstrata para as crianças, já que a distância entre o universo infantil e o mercado profissional pressupõe a mediação de um adulto, seja ele mãe, pai, tio, vizinho, porteiro, empregada doméstica ou professora. Por isso, a ferramenta metodológica de classificação das profissões não considera os problemas morais que as crianças enfrentam cotidianamente e que provocam consequências amplas e imediatas em suas vidas. Na escola, no recreio ou na rua, não se trata simplesmente de classificar imagens anônimas, mas de citar nomes, julgar pessoas com quem se convive, ser julgado por elas e regular de forma mais ou menos explícita e duradoura as interações reais.

Diante dessa limitação metodológica do baralho de profissões para acessar as hierarquias sociais expressas nas interações mais cotidianas das crianças, foram realizadas entrevistas em que elas foram convidadas a responder quem eram os seus amigos, de quais colegas não gostavam e por quê. De maneira resumida, tratou-se de compreender as proximidades e as distâncias sociais objetivas que correspondem a juízos derivados de esquemas de classificação reciclados pelas crianças, considerando a relação entre afinidades subjetivas e a distância social objetiva.

Os autores observam que, com frequência, as respostas a essas questões tiveram um baixo nível de elaboração simbólica e assumiram uma forma quase pleonástica, como quando as crianças afirmavam que não gostavam de um determinado colega “porque ele não é legal”. Outras vezes, elas se contentaram em argumentar lançando mão de um único episódio, sem chegar a formular uma generalização. Nesses casos, a inimizade era justificada por um conflito localizado: “não gosto dele, porque ele me bateu no recreio” (Lignier & Pagis, 2017, p.156). No entanto, em um grande número de casos, as classificações sociais decorreram das interações cotidianas e das necessidades sociais e pessoais.

A análise das afinidades em rede mostrou que as crianças tendem a estabelecer laços com colegas do mesmo sexo e idade, mas também informadas pela proximidade social e “origem migratória14“, demonstrando que a sociabilidade infantil é fortemente determinada pelas propriedades sociais. Nas entrevistas, quando as crianças tiveram oportunidade de explicar seus desafetos, elas mobilizaram, de forma recorrente, julgamentos relacionados à falta de higiene, aos resultados escolares e à indisciplina, assim como a inadequação em relação às injunções de gênero.

O estudo de caso final, que buscou enfocar a socialização política das crianças e as percepções que elas possuem da conjectura atual, mostrou que as crianças frequentemente se apropriam, por meio da reciclagem simbólica, de preferências ideológicas dos universos familiar e escolar. No entanto, a conversa com as crianças apontou que o apreendido nem sempre era bem compreendido, como no que diz respeito à oposição entre direita e esquerda. Aqui, novamente, os critérios de classificação foram reutilizados, sendo aplicados ao universo político, os juízos internalizados da cultura escolar, sobretudo os ligados à avaliação em relação ao empenho e ao desempenho, assim como a punição ou a recompensa como consequência direta dessa avaliação: Poutou “é nota zero”, “ele só tem 3%”, Macron “copiou” Mélenchon fazendo um canal no YouTube, Marine Le Pen “fala muito palavrão”, “não parece mulher”.

Se, por um lado, o estudo empírico da sociogênese do habitus, realizado por Lignier e Pagis (2017), é declaradamente legatário da abordagem bourdieusiana, caberia enfatizar que se distingue dela ao deslocar a atenção dos processos de incorporação das hierarquias sociais para os processos de significação, compreendendo que a linguagem é, ela também, uma prática. Em suma, tratou-se de demonstrar como o contexto das crianças informa suas percepções, tanto do ponto de vista normativo, quanto do ponto de vista semântico, permitindo que elas se orientem no mundo social e político, apesar da distância que as separa da esfera pública. Por outro lado, essa perspectiva se distingue também de algumas abordagens da Sociologia da Infância norte-americana e europeia, que estão ancoradas em noções como agência ou cultura infantil, considerando as crianças como atores sociais dotados de autonomia, individual ou coletiva, em relação aos sujeitos ou às instituições.

Aqui, vale buscar uma aproximação entre o conceito de reciclagem simbólica de Lignier e Pagis (2017) e o conceito de reprodução interpretativa do Willian Corsaro (2015). Tal colocação se faz ainda mais pertinente na medida em que, como dito anteriormente, o próprio Corsaro reconhece ter tomado o termo “reprodução” da obra de Bourdieu. No entanto, ainda que se dedique a analisar não apenas as relações de amizade e cooperação como também o conflito e a diferenciação social nas culturas de pares, o sociólogo da infância estadunidense o faz apenas para reafirmar que as crianças operam com processos de diferenciação por gênero, raça-etnia e status social (termos do autor), sem se dedicar a explicar como as crianças internalizam e ressignificam as hierarquias sociais, principal contribuição do trabalho de Lignier e Pagis. Além disso, a perspectiva de Corsaro, diferentemente daquela de Bourdieu, abdica de uma posição relacional, assumindo, portanto, uma perspectiva substancialista que trata “as propriedades associadas aos agentes – ocupação, idade, sexo, formação – como forças independentes das relações no interior das quais eles atuam” (Bourdieu, 2007, p.22). Assim, apesar da semelhança entre as duas formulações, trata-se de dois conceitos divergentes.

Perspectivas críticas sobre estes trabalhos

A originalidade dos trabalhos acima apresentados tem oportunizado um fecundo debate de ordem ético-metodológica, mas também teórica. Nesta seção, centraremos na discussão de Pascale Garnier e Camille Salgues sobre a relação entre os Estudos da Infância e a teoria bourdieusiana, além de discutirmos a potencial contribuição das pesquisas realizadas por pesquisadores brasileiros ao debate.

As críticas ético-metodológicas da Sociologia da Infância

Garnier (2020) chama atenção para o fato de que, em diversas pesquisas sobre as desigualdades na infância, incluindo a de Lignier e Pagis, a posição social das crianças decorre de uma objetivação estatística que deduz a relação entre as práticas infantis e as propriedades sociais de seus pais, sem que se possa concluir que se trata de uma relação de causalidade. Embora traga vantagens evidentes, essa operação metodológica poderia escamotear o fato de que sua eficácia interpretativa se deve ao sentido atribuído pelos leitores de obras sociológicas às profissões (Amossé et al. 2018), ao passo que o sentido dos próprios participantes da pesquisa seria menos evidente.

Para Garnier (2020), se, por um lado, ao relacionar infância e desigualdades sociais, Lignier e Pagis abandonam uma visão romântica que tomaria as crianças como pequenos seres justos e inocentes em vias de serem corrompidos pelos sistemas sociais opressores, por outro, ao atribuir aos filhos as propriedades sociais dos pais, tomam por pressuposto a lógica da reprodução intergeracional das propriedades sociais, que destituiria das novas gerações qualquer agência. Além disso, a autora alega que o ponto de partida dessas pesquisas seria uma criança tomada como típica representante de uma determinada classe social, o que seria incoerente com o objetivo de buscar identificar as significações que as próprias crianças dão às propriedades sociais.

No que diz respeito à adoção de entrevistas como ferramenta metodológica, Garnier (2020) adverte que, nelas, as crianças são levadas a falar sobre questões que são distantes de seu universo. Remetendo a Michelle Poretti (2018), considera que, contemporaneamente, a fala infantil tem se tornado não apenas um direito, mas também um dever, como é possível observar nas ações de marketing e nos mais diversos dispositivos participativos, o que inclui as pesquisas acadêmicas. Assim, Garnier (2020) interpreta as respostas complacentes às perguntas dos pesquisadores como um efeito da assimetria entre adultos e crianças e, inspirada em Spyrou (2011), toma o silêncio como uma eloquente resistência à tentativa de fazê-las falar. Outro problema seria a constatação da maior ou menor afinidade entre os termos utilizados pelas crianças e as relações sociais objetivas, o que pressupõe, implicitamente, que as crianças tenderiam a, progressivamente, convergir nas classificações dos adultos.

Ademais, essas entrevistas reificariam as desigualdades pois, como os próprios autores reconhecem, algumas crianças não possuem os recursos linguísticos e informacionais requisitados para expressar uma perspectiva do mundo social e, sobretudo, para abordar temas como a política, relativamente distantes do contexto cultural infantil. Com isso, as questões propostas às crianças por Lignier e Pagis soariam forçadas e tenderiam a produzir “artificialmente artefatos que elas acreditam estar registrando” (Bourdieu, 1990, p.917). Ao pressupor um uso da fala que visa representar o mundo, em vez de agir imediatamente sobre ele, um uso tipicamente escolar a propósito, essas pesquisas converteriam em desigualdades socioculturais aquilo que talvez não passe de variação nas formas pelas quais as crianças se expressam.

Segundo Garnier (2020), uma metodologia mais adequada seria aquela adotada no consagrado trabalho etnográfico realizado por Annette Lareau (2002), no qual a autora demonstrou que as crianças atribuem propriedades sociais às outras pessoas e que regulam suas ações pela relação entre a sua própria posição social e a posição das pessoas com as quais se relacionam. Acompanhando famílias em diversas consultas médicas, a autora observou, por exemplo, que a maneira como as crianças se comportam com o pediatra depende da distância entre a posição social deles. Enquanto um menino, filho de mãe executiva e de pai advogado, demonstrou grande desenvoltura com o médico, não hesitou em fazer perguntas, em interrompê-lo e até contradizê-lo, outro garoto, filho de mãe divorciada que depende de benefícios da assistência social e de pai mecânico, mostrou-se intimidado, falou em voz baixa e respondeu às perguntas que lhe foram feitas de forma monossilábica.

Também contribuiria a análise da materialidade e das diversas linguagens infantis, além da multiplicação das cenas, como defende Lahire (1995), ampliando o lócus da pesquisa para além do espaço escolar. Tal proposta implicaria em uma aproximação com o cotidiano familiar da criança, o que certamente resultaria em um trabalho significativamente mais dificultoso do que indicar a profissão ou a origem social dos pais.

Por fim, no que diz respeito à dimensão ética, o principal ponto levantado por Garnier (2020) se refere ao fato de que a ferramenta de pesquisa empregada por Lignier e Pagis (2017), para analisar o efeito das propriedades sociais das crianças na maior ou menor afinidade entre elas, incitaria a depreciação mútua, exacerbando as diferenças e provocando desentendimentos.

Embora os pontos levantados contribuam significativamente com a discussão, vale lembrar que, como dito anteriormente, essas limitações não escaparam aos autores, mas, ao contrário, foram, em larga medida, antecipadas e discutidas por eles, o que favorece o desenvolvimento de novas pesquisas sobre a sociogênese da percepção da ordem social. Na próxima seção, no entanto, traremos as críticas de Camille Salgues à centralidade da formação nas pesquisas com crianças, em seus mais diversos termos e acepções.

Um sociólogo interroga a redução temática da Sociologia da Infância

Ao discutir as contribuições da perspectiva bourdieusiana para a compreensão da infância e a própria constituição do campo dos Estudos da Infância, os recentes trabalhos de Camille Salgues15 (2018, 2024) também podem colaborar para o debate aqui recuperado. Para o autor, os Estudos da Infância tiveram um papel central na consideração da criança como ator e da infância como uma construção social, assim como na crítica à redução, operada pela Sociologia da Educação, da criança ao ofício de aluno. No entanto, o autor dirige à Sociologia da Infância duas críticas principais.

Primeiramente, ele chama a atenção para o fato de que a gramática liberal, que sustenta a noção de agência da criança, não difere das perspectivas biologizantes da infância, na medida em que igualmente constitui uma abordagem essencialista. Além disso, ainda que tenha ampliado a investigação da socialização para outros espaços para além do escolar, os Estudos da Infância replicaram a perspectiva adultocêntrica, cuja crítica justificou a constituição do campo, ao manter o foco no processo de formação da criança.

Uma das razões que sustentam essa redução temática decorre do fato de que, na França, como também no Brasil, é nas faculdades de Educação em que prioritariamente se encontram pesquisas dedicadas a estudar as crianças e a infância. Essa observação permite a Salgues questionar a própria constituição de um campo independente para o desenvolvimento de pesquisas com e sobre as crianças, advogando que as questões geracionais, assim como aquelas referentes aos outros marcadores sociais, devem atravessar todas as pesquisas e não constituir um campo à parte.

A partir desse postulado, Salgues traz a discussão sobre as desigualdades na infância para dentro das Ciências Sociais. Em investigação sobre crianças de áreas rurais que migram para Xangai, na China, o autor (2024) observa as práticas de apropriação do espaço urbano desse grupo etário e conclui que as atividades infantis não podem ser pensadas unicamente pela lógica bourdieusiana da distinção. Ao contrário, as razões pelas quais as crianças realizam uma atividade e não outra seriam prioritariamente materiais, e não simbólicas, de forma que as lógicas de distinção que afetariam as dinâmicas infantis seriam secundárias, uma vez que derivadas das escolhas parentais. A análise dessas práticas, que constitui um objeto de estudo consolidado em pesquisas francesas, terminaria por reificar o apagamento da perspectiva infantil ao colocar ênfase em uma dinâmica social que o autor considera adulta.

Assim, embora assuma uma abordagem relacional do universo social como forma de superar visões essencialistas, Salgues contraria a perspectiva bourdieusiana ao incluir as relações geracionais como um componente estrutural. O resultado dessa operação é uma maior aproximação da perspectiva infantil sobre o mundo social e a possibilidade de perceber nele relações de colaboração para além dos sistemas de dominação que caracterizam o universo social adulto.

Nesse ponto, sem dúvida, Salgues se distancia da visão de Lignier e Pagis, para quem a criança é também um ator social interessado, cujas práticas estão situadas em um universo social precocemente hierarquizado, e que se converte, por isso, em um espaço de lutas. Ademais, Lignier leva a indissociabilidade bourdieusiana entre o material e o simbólico ao extremo, questionando até mesmo a preferência por acessar o social por meio das práticas e não dos discursos. Para Lignier e Pagis (2017), a linguagem é, ela mesma, uma prática. Assim, ainda que pareça necessário investigar se, como e em que medida as crianças operam na lógica da distinção, o postulado de Salgues (2024) de que elas agem motivadas apenas por interesses materiais, supostamente dissociados de aspectos simbólicos, não poderia também ser lida como uma nova faceta do mesmo essencialismo que o autor busca combater?

A ausência de uma abordagem interseccional da infância nas pesquisas francesas

Por fim, chamamos a atenção também para a maneira como a questão racial foi abordada nos trabalhos de Zarca, Lignier e Pagis. Assim como em grande parte da sociologia produzida na França, nas pesquisas apresentadas neste artigo, o conceito de raça, desenvolvido no contexto estadunidense, não é mencionado, sendo, quando muito, substituído pelo termo “origem migratória” ou “cor de pele”.

Para Brun e Cosquer (2022), essa ausência nas pesquisas francesas se deve, por um lado, a uma reserva em relação ao próprio conceito de raça (Guillaumin, 1972; Fassin & Fassin, 2006; Simon, 2008) e, por outro, à suspeita de que sua adoção implicaria em uma forma de imperialismo cultural, ou mais especificamente, acadêmico (Bourdieu & Wacquant, 2002), ao promover a importação automática de conceitos surgidos nas pesquisas estadunidenses para pensar outras realidades.

No entanto, embora essa seja uma advertência relevante, Bessone (2018) observa que a redução de raça a um conceito intraduzível e pertinente apenas a contextos bastante específicos não deixa de expressar, também, uma forma de etnocentrismo, uma vez que os processos migratórios na França não estão isentos de atravessamentos decorrentes de relações coloniais ou pós-coloniais (Brun & Cosquer, 2022).

Nessa direção, em seu mais recente trabalho, La societé est en nous, Lignier (2023) abandona o termo “origem migratória” e esboça uma tentativa de corrigir o silenciamento da sociologia francesa sobre a formação racializada do habitus e as consequências disposicionais da experiência precoce do racismo16. O esforço de Lignier (2023), embora ainda embrionário, parece promissor. O autor se propõe a discutir a questão racial por meio da articulação entre o que ele chama de tempos fracos e os tempos fortes, metáforas para explicar os momentos diferenciados em que a socialização atua com mais ou menos intensidade sobre os indivíduos.

Os “tempos fortes” seriam caracterizados por uma alta densidade de interações e por uma forte influência de agentes de socialização, de forma que, neles, o habitus tenderia a ser mais fortemente consolidado pelas estruturas sociais. Os “tempos fracos”, por sua vez, envolveriam uma menor intensidade de interações sociais, marcadas por períodos em que a socialização é menos explícita, mas ainda está presente de maneira difusa e contínua, tendo por efeito uma maior flexibilidade, fluidez, possibilidade de reinterpretações, adaptabilidade a mudanças e influências. Esse modelo ajuda a entender como a interiorização das normas e práticas sociais se dá de maneira adaptativa e contextual.

Para demonstrar a relação entre racialização e essas duas modalidades de temporalidade, Lignier remete a uma observação de campo em uma creche parisiense, com bebês menores de um ano. Nela, o autor observou que as famílias dos bebês negros, filhos de imigrantes oriundos do Oeste da África, tendiam a assentar seus filhos no chão desde cedo, a fim de que, progressivamente, sintam-se capazes de permanecer sentados. No entanto, ainda que essas crianças tendessem a um melhor desenvolvimento motor, as profissionais da escola, brancas, agiam de outro modo, preferindo deitar todas as crianças, fossem elas brancas ou negras.

O que se observa é que as formas de pensar e agir do grupo étnico-racial majoritário se impõem sobre o minoritário, produzindo uma diferença disposicional precoce que se realiza nos tempos fracos: a postura corporal das crianças negras é tendencialmente desqualificada, enquanto a das brancas é legitimada, as crianças negras experimentam desde cedo a inadaptação, enquanto as brancas vivenciam o ajustamento (Lignier, 2023, p.118)17. Com isso, Lignier pretende elucidar como a abordagem sociogenética pode contribuir para demonstrar que o racismo age não apenas produzindo estereótipos e formas de pensar, mas também é incorporado precocemente, produzindo disposições racializadas.

Se voltarmos os olhos para a realidade brasileira e a produção dos estudos sobre a questão racial no país, podemos dizer que, a despeito de uma diversidade de perspectivas teóricas, o Brasil tem contribuído para a compreensão do processo de racialização na infância já desde a metade do século XX. Um exemplo paradigmático é a pesquisa da socióloga e psicanalista Virgínia Bicudo (1955). Intitulado “Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor de seus colegas”, o trabalho buscava analisar os sentimentos, as atitudes e os mecanismos de defesa relacionados à identidade racial em crianças e adolescentes entre cinco e 19anos, estudantes de escolas do município de São Paulo. Além de entrevistar cerca de 30 pais, a pesquisadora aplicou, a mais de 4 mil estudantes, um questionário contendo oito perguntas18 como junto a quem o estudante gostaria de se sentar e que companhia preferia evitar. Os resultados mostram que, além de serem informadas pela diferenciação sexual, essas escolhas eram determinadas também por questões raciais (Bicudo & Maio, 2010).

Mais recentemente, inúmeras pesquisas têm buscado desnaturalizar os mecanismos por meio dos quais o racismo opera nas instituições de educação infantil (Martins & Melo, 2010; Oliveira & Abramowicz, 2010; Santiago, 2020). Muitos desses trabalhos assumem a tarefa de realizar uma análise interseccional entre raça, gênero, classe social e idade, evitando um modelo meramente acumulativo entre os marcadores (Rosemberg, 1996). Sem dúvida alguma, as pesquisas francesas que buscam analisar de forma articulada infância e desigualdades sociais poderiam se beneficiar desse acúmulo das pesquisas realizadas no Brasil. Por outro lado, a sociologia francesa forneceu um quadro teórico para a análise da socialização que se tornou incontornável, tanto por sua capacidade de síntese das dimensões micro e macrossociológicas, quanto por sua inegável influência na sociologia brasileira.

Considerações finais

Sem a pretensão de esgotar um debate ainda em curso, ao longo deste artigo foram apresentados trabalhos que contribuem com uma tarefa ainda inconclusa, qual seja, a produção de evidências empíricas que possam corroborar ou, ao contrário, tensionar a formulação teórica da construção do habitus de classe na infância. A relevância desses trabalhos está no fato de que, sem a empiria, a teoria de Bourdieu sobre a socialização, amplamente utilizada na Sociologia, poderia incorrer em um intelectualismo que o próprio autor recriminaria.

Declaradamente tributários da abordagem bourdieusiana, os trabalhos de Zarca, Lignier e Pagis não devem ser compreendidos como uma mera aplicação da teoria do habitus em um determinado universo empírico. Antes, mostram-se como uma tentativa de dar continuidade à compreensão de como as disposições são construídas precocemente e, mais do que isso, como as crianças percebem a hierarquia social, localizam-se nela e agem de forma interessada a partir dessa interpretação. São, portanto, pesquisas com, além e contra Bourdieu. Delas emergem conceitos como senso social das crianças ou reciclagem simbólica das hierarquias sociais, formulações teóricas que podem se mostrar significativas em um campo científico bastante produtivo do ponto de vista empírico, mas que nem sempre conta com conceitos e teorias que respondam a seus desafios.

Do ponto de vista ético-metodológico, as pesquisas apresentadas possuem limitações, em grande medida reconhecidas pelos próprios autores, mas também discutidas por pesquisadores interlocutores. A retomada desse diálogo nos permite pensar em formas de investigar os processos de socialização diferenciada que ocorrem na infância e as desigualdades decorrentes desse processo sem, com isso, incorrer em violências simbólicas ligadas à posição social e geracional do pesquisador. Como abordar as disputas sociais que atravessam as relações entre as crianças sem fomentá-las? Como tomar a posição socioeconômica das crianças para além da ocupação ou da renda de seus pais? Seria possível abordar a construção da identidade racial nas crianças sem a heterodeterminação realizada por adultos?

No que diz respeito à atribuição de categorias dos pesquisadores às crianças, tal postura não nos parece adultocêntrica, mas apenas uma especificidade do fazer sociológico, qual seja, tomar os marcadores sociais como um dado fático, sobretudo em sociedades capitalistas ocidentais, a despeito de qualquer consciência ou enunciação dos atores sociais em relação aos sistemas de dominação. O emprego de categorias pré-determinadas não significa, no entanto, a desconsideração da criança como um ator social, mas está ancorado na compreensão de que todo agenciamento se dá dentro de um universo estrutural e simbólico também predeterminado. Essa operação também não suplanta a possibilidade e a importância de perceber o significado atribuído pelas crianças a esse mundo pré-determinado. Ao contrário, trata-se de compreender o que se produz simbolicamente a partir da reprodução.

Os recentes trabalhos sobre a socialização diferenciada se apresentam, portanto, como uma possibilidade de reiterar a superação da dicotomia entre agente e estrutura, pois, neles, a criança é compreendida como um ator social que, assim como um adulto, age, ainda que de forma não consciente, em favor dos interesses de seu grupo (social, sexual, racial e etário), tendendo a classificar com os seus e contra os outros. Isto porque os interesses de seu grupo social são, em alguma medida, seus próprios interesses também. No entanto, a compreensão da precocidade da luta simbólica pelo sentido do mundo não implica na inexistência de relações de cooperação, tanto é que Lignier e Pagis se interessaram também pelos laços de amizade. Implica, no entanto, em tomar as relações de afinidade como expressões de afeto socialmente situadas, necessariamente permeadas pelos marcadores sociais.

O debate apresentado também nos permite observar que a maior parte das pesquisas que buscam compreender a infância a partir da perspectiva bourdieusiana são centradas no habitus de classe, analisam as relações de gênero, mas só muito recentemente passaram a considerar os processos de dominação e resistência racial. A tendência de ampliação da análise para outros marcadores sociais também pode ser observada em trabalhos desenvolvidos por uma geração mais nova de bourdieusianos, como Édouard Louis (2018) e Didier Eribon (2008, 2020), estando o último, inclusive, interessado em uma aproximação entre a perspectiva de Bourdieu e os escritos de Fanon (2008), Baldwin (2020), Chamoiseau (1997). Nesse sentido, insistimos que as Ciências Sociais brasileiras têm, desde a sua constituição, dado grande contribuição para a compreensão interseccional das experiências precoces de subalternização.

Assim, entendemos que o debate sobre a apropriação diferenciada da hierarquia social realizada pelas crianças não só agrega novos elementos para as pesquisas sociológicas e educacionais, como também amplia a compreensão da reprodução intergeracional das desigualdades, uma vez que evidencia que a construção do habitus na infância é um processo complexo, influenciado por diversos marcadores sociais e agentes de socialização, bem como distintas temporalidades. Compreender esses processos nos parece fundamental para analisar como ocorrem a reprodução e a transformação das estruturas sociais, na medida em que eles influenciam o modo como as crianças percebem o mundo, comportam-se, e interagem umas com as outras, no momento presente, mas também ao longo de suas vidas.

  • Apoio e financiamento:
    Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio recebido (Processo 311496/2023-7).
  • Ética em pesquisa:
    Não se aplica. A pesquisa não traz dados de empiria, portanto, prescinde de avaliação do COEP.
  • Revisão textual:
    Normalização bibliográfica (APA 7ª Ed.), preparação e revisão textual em português: Júlia Alves revisao@tikinet.com.br
    Versão e revisão para língua inglesa: Viviane Ramos vivianeramos@gmail.com
  • 1
    Apesar da advertência de Prout (2010), a dicotomia entre agente e estrutura já havia sido enfrentada por Bourdieu, no âmbito da Sociologia Geral, e antes da constituição da Sociologia da Infância. Tanto é que Corsaro reconhece no termo reprodução interpretativa a influência do sociólogo francês.
  • 2
    Original: Les chercheurs ont ainsi réintroduit subrepticement sur le terrain de l’enfance la question de la « liberté » individuelle qui avait été largement écartée des travaux sociologiques portant sur les adultes. Insister sur la capacité de choix ou de décision de l’enfant, sur la part « active » qu’il prend dans son éducation, en faisant comme si les études sur la socialisation enfantine avaient fait de l’enfant un être entièrement passif (une cire molle malléable à volonté par les adultes), mettre l’accent sur sa puissance d’agir propre que lui auraient ôtée les sociologues jugés trop « déterministes », c’est oublier tout ce qui s’impose à lui et sur lequel il n’a guère de prise : un monde avec sa langue, ses institutions, ses techniques, ses savoirs, sa division du travail, etc., et ses inégalités sociales.
  • 3
    Tanto o livro Tableaux de familles (1995), quanto Retratos Sociológicos (2007) de Bernard Lahire exploram nuances que ampliam a compreensão sobre o papel da transmissão do capital cultural. Por meio de uma abordagem microssociológica (configurações familiares no primeiro caso e biografias individuais, no segundo), o autor explora a ideia de que os indivíduos não são unidimensionais e possuem disposições variadas, moldadas por diferentes contextos de socialização. Assim, as contradições e os conflitos também moldam as experiências dos sujeitos, uma vez que todo indivíduo é, de alguma maneira, o depositário de disposições de pensamento, sentimento e ação produzidas em experiências socializadoras múltiplas, mais ou menos duradouras e intensas, ocorridas em diversos grupos e diversas formas de relações sociais. Essas experiências demonstram a força e contraforça às quais os indivíduos são submetidos desde o seu nascimento.
  • 4
    Ver, por exemplo, os textos “A opinião pública não existe” (pp.233-245) e “Juventude é apenas uma palavra” (pp.112-121), ambos publicados em Bourdieu, P. (1983). Questões de sociologia. Editora Fim de Século.
  • 5
    Bernard Zarca utiliza a expressão le sens social des enfants, conforme o título do seu artigo aqui referido (1999). Nós traduzimos a expressão por “senso social”, mas acreditamos que ela também pode ser traduzida como “sentido social”. A expressão reflete a capacidade das crianças de conceber, ordenar e classificar o mundo social a partir de uma situação prática vivida em interação com outras crianças e em diversas situações sociais.
  • 6
    Vale dizer que, antes da sociologia, a psicologia do desenvolvimento, seja na vertente piagetiana, seja na vertente culturalista, deu importante contribuição para a compreensão das relações entre a criança e a sociedade. No entanto, ainda que essa contribuição seja inegável, tradicionalmente, os trabalhos desenvolvidos nesse campo tenderam a adotar uma concepção universalista e a não priorizar os fatores extra cognitivos. Assim, mesmo que buscassem compreender as relações sociais, considerando-as como conflituosas ou de cooperação, os psicólogos do desenvolvimento raramente lançaram mão, em suas análises, das posições sociais dos atores nas diversas estruturas de dominação. Uma crítica à redução do social a relações interindividuais e a uma visão da socialização excessivamente independente da estrutura social nas pesquisas sobre a infância pode ser encontrada na obra do autor marxista David Ingelby (1974).
  • 7
    Luc Boltanski e Laurent Thévenot (1983) já haviam utilizado um jogo de classificação de cartas com profissões para compreender a maneira como adultos representam o espaço social.
  • 8
    Durante a primeira metade do século XX, as pesquisas tendiam a tratar a infância como uma categoria homogênea, ignorando diferenças baseadas no sexo ou gênero. Com o avanço do feminismo e das teorias críticas, reconhece-se o papel central do gênero na socialização infantil, superando uma perspectiva que tomava a criança como um sujeito universal. A partir da década de 1980, o processo de socialização diferenciada segundo as variáveis sexo/gênero ganham visibilidade nas pesquisas sobre e com crianças, sendo a pesquisa de Zarca reconhecida por trazer uma contribuição notável nesse campo.
  • 9
    Julie Pagis e Wilfried Lignier são egressos da École Normale Supérieure (ENS) e pesquisadores do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Pagis atua no Institute for Interdisciplinary Research on Social Issues (IRIS) e Lignier no Centre Européen de Sociologie et de Science Politique (CESSP).
  • 10
    Inspirados pela tradição sociológica de Norbert Elias e Pierre Bourdieu, Lignier e Pagis utilizam o conceito de sociogênese para descrever o processo pelo qual práticas, categorias ou formas de percepção humanas se desenvolvem e se consolidam como resultado de dinâmicas sociais e históricas. Empregado como um termo concorrencial à ontogênese, o conceito reforça que os fenômenos sociais não surgem de forma espontânea ou natural, mas são produtos das interações.
  • 11
    Em seminário realizado em 24 de julho de 2018 na ENS, um ano após a publicação de L’Enfance de l’ordre (Lignier & Pagis, 2017), com a participação de Lignier, Pagis e Zarca, o último defendeu que a realização de entrevistas individuais não pressupõe que o trabalho de construção das hierarquias sociais não seja coletivo. Disponível em: <http://ses.ens-lyon.fr/articles/les-perceptions-enfantines-de-lordre-social>.
  • 12
    Nessas seções, os pesquisadores verificaram três características do julgamento infantil: (i) as crianças pequenas do grupo pesquisado mobilizaram, simultaneamente, diversos critérios na realização de uma mesma classificação (o que os autores chamaram de multidimensionalidade das classificações); (ii) tenderam a recontextualizar a classificação à escala individual (pensamento anedótico); e (iii) não raro, recorreram a narrativas humorísticas e fictícias.
  • 13
    Optamos por manter o termo utilizado pelos autores e discuti-lo ao fim do artigo.
  • 14
    Optamos por manter o termo utilizado pelos autores e discuti-lo ao fim do artigo.
  • 15
    Assim como Lignier e Pagis, Salgues cursou ciências sociais na École Normale Supérieure (ENS Paris). Posteriormente, desenvolveu pesquisa orientada por Didier Fassin na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).
  • 16
    A bem da verdade, em Meditações Pascalianas, Bourdieu (2001, p. 206) tangencia a questão racial. Ao falar sobre o poder simbólico, discorre sobre como a violência simbólica pode ser (re)vivida como uma emoção corporal (vergonha, ansiedade ou culpa), expressão de relações de dominação experimentadas na infância. Para isso, recorre a uma passagem da obra de James Baldwin (2020), na qual uma criança negra é levada a perceber a crueldade da hierarquia racial. É o tom de voz amedrontado de seus pais, ao preveni-la quanto aos riscos impostos pela violência do racismo, que evidencia à criança uma hierarquia social que transcende à familiar. Se encontramos aqui uma pista sobre o que seria um habitus racializado, a busca por análises mais aprofundadas na obra de Bourdieu sobre o tema não vai muito longe.
  • 17
    Bourdieu descreve a experiência de inadaptação por meio da imagem do peixe fora d ‘água e a confluência entre o habitus do agente e um determinado campo social como um peixe que não sente o peso da água. Referindo-se a essa passagem, em My body, myself: how does black woman do sociology?, Felly Nkweto Simmonds (1997, pp.226-227) afirma que, neste mundo branco, ela se sente como um peixe de água doce nadando na água do mar. Um peixe que sente o peso da água no corpo.
  • 18
    O questionário aplicado aos alunos continha as oito perguntas, listadas abaixo: 1- Perto de quem você gostaria de sentar-se?; 2 – Por que você gostaria de sentar-se perto desse (ou dessa) colega?; 3 – Dê o nome de outro (ou outra) colega perto de quem você gostaria de sentar-se; 4 – Por que você gostaria de sentar-se perto desse outro (ou dessa outra) colega?; 5 – Perto de quem você não gostaria de sentar-se?; 6 – Por que você não gostaria de sentar-se perto desse (ou dessa) colega?; 7 – Dê o nome de outro (ou outra) colega perto de quem não gostaria de sentar-se; 8 – Por que você não gostaria de sentar-se perto desse outro (ou dessa outra) colega? (Bicudo, 1955, p. 228).

Disponibilidade de dados:

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Referências

  • Amossé, T., Penissat, E., & Sinthon, R. (2018). Trouver une profession mystère – Le sens social, entre appuis institutionnels et réflexivité ordinaire. Politiques de communication, 1(10), 159-191. https://shs.cairn.info/revue-politiques-de-communication-2018-1-page-159?lang=fr&ref=doi
    » https://shs.cairn.info/revue-politiques-de-communication-2018-1-page-159?lang=fr&ref=doi
  • Baldwin, J. (2020). da próxima vez, o fogo. Companhia das Letras.
  • Barthez, J. (1980). De l’habitus expliquant à l’habitus explique. Sociologie du Sud-Est, (26), 17-49.
  • Bessone, M. (2018). Faire l’histoire de la race. Avant-propos. Archives de Philosophie, 81(3), 453-454.
  • Bicudo, Virgínia Leone (1955) Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor dos seus colegas. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo Editora Anhembi/Unesco.
  • Bicudo, V. L., & Maio, M. C. (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. In Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (pp.189-189). Editora Sociologia e Política.
  • Boltanski, L., & Thévenot, L. (1983). Finding one’s way in social space: a study based on games. Social Science Information, 22(4-5), 631-680. https://doi.org/10.1177/053901883022004003
    » https://doi.org/10.1177/053901883022004003
  • Bourdieu, P. (2013). O senso prático Vozes.
  • Bourdieu, P. (1983). Questões de sociologia Editora Fim de Século.
  • Bourdieu, P. (1990). Coisas ditas Editora Brasiliense.
  • Bourdieu, P. (2001). Meditações Pascalianas Bertrand Brasil.
  • Bourdieu, P. (2007). A distinção: crítica social do julgamento Edusp.
  • Bourdieu, P., & Wacquant, L. (2002). Sobre as artimanhas da razão imperialista. Estudos afro-asiáticos, 24(1), 15-33. https://doi.org/10.1590/S0101-546X2002000100002
    » https://doi.org/10.1590/S0101-546X2002000100002
  • Brun, S., & Cosquer, C. (2022). Sociologie de la race. Armand Colin.
  • Chamboredon, J., & Prévot, J. (1973). Le “métier d’enfant”. Définition sociale de la prime enfance et fonctions différentielles de l’école maternelle. Revue française de sociologie, 14(3), 295-335. https://www.jstor.org/stable/3320469?origin=crossref
    » https://www.jstor.org/stable/3320469?origin=crossref
  • Chamoiseau, P. (1997). Écrire en pays dominé Gallimard.
  • Corsaro, W. A. (2015). Sociologia da infância (2a edição). Artmed.
  • Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.
  • Ingleby, D. (1987). Psychoanalysis and Ideology. In J. M. Broughton (Ed.), Critical Theories of Psychological Development: Path in Psychology (pp.177-210). Springer. https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-1-4757-9886-9_7
    » https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-1-4757-9886-9_7
  • Eribon, D. (2008). Reflexões sobre a questão gay Companhia de Freud.
  • Eribon, D. (2020). Retorno a Reims Editora Âyiné.
  • Fassin, É., & Fassin, D. (2006). De la question sociale à la question raciale? Représenter la société française La Découverte. https://shs.cairn.info/de-la-question-sociale-a-la-question-raciale--9782707158512?lang=fr
    » https://shs.cairn.info/de-la-question-sociale-a-la-question-raciale--9782707158512?lang=fr
  • Garnier, P. (2015). Between Young Children and Adults. In Leena Alanen, Liz Brooker & Berry Mayall (Eds.), Childhood with Bourdieu (pp. 57-77). Palgrave MacMillan.
  • Garnier, P. (2020). Penser les inégalités sociales entre enfants. Revue des Sciences Sociales, (64), 54-61. https://journals.openedition.org/revss/5786
    » https://journals.openedition.org/revss/5786
  • Garnier, P. (2021). Quand les sociologues mettent les enfants à l’épreuve. Sociétés et jeunesses en difficulté, (25). http://journals.openedition.org/sejed/10654
    » http://journals.openedition.org/sejed/10654
  • Gaxie, D. (1978). Le cens caché: Inégalités culturelles et ségrégation politique Seuil.
  • Guillaumin, C. (1972). L’idéologie raciste. Genèse et langage actuel. Institut d’Études et de Recherches Interethniques et Interculturelles.
  • Ingelby, D. (1974). The psychology of child psychology. In M. P. M. Richards (Ed.), The integration of a child into a social world (pp. 295-308). Cambridge University Press.
  • Lareau, A. (2002). Invisible inequality: Social class and childrearing in black families and white families. American sociological review, 67(5), 747-776.
  • Lahire, B. (1995). Tableaux de famille. Heurs et malheurs scolaires en milieux populaires. Le Seuil.
  • Lahire, B. (2007). Retratos Sociológicos: Disposições e variações individuais. Editora Artmed.
  • Lahire, B. (2019). Enfances de classe: De l’inégalité parmi les enfants. Seuil.
  • Lignier, W., & Pagis, J. (2017). L’enfance de l’ordre: Comment les enfants perçoivent le monde social Seuil.
  • Lignier, W. (2019). Prendre: Naissance d’une pratique sociale élémentaire Seuil.
  • Lignier, W. (2023). La société est en nous: comment le monde social engendre des individus. Seuil.
  • Louis, É. (2018). O fim de Eddy Editora Planeta do Brasil.
  • Martins, M., & Mello, A. (2010). Dor de mordida tem cor? In A. M. Mello, C. M. S. Corrêa, F. R. Vieira, N. Bortolaci, R. H. Flauzino, & V. C. D. Sobral (Orgs.). O dia a dia das creches e pré-escolas: Crônicas brasileiras (pp.54-56). ArtMed.
  • Montandon, C. (2001). Sociologia da infância: balanço dos trabalhos em língua inglesa. Cadernos de Pesquisa, (112), 33-60. https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000100002
    » https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000100002
  • Simmonds, F. (2017). My Body, Myself: How does a Black woman do sociology? In J. Price, & M. Shildrick, Feminist theory and the body (pp.50-63). Routledge.
  • Oliveira, F., & Abramowicz, A. (2010). Infância, raça e “paparicação“. Educação em Revista, 26(2), 209-226. https://doi.org/10.1590/S0102-46982010000200010
    » https://doi.org/10.1590/S0102-46982010000200010
  • Poretti, M. (2018). Unexpected allies. Expanding the theoretical toolbox of the children’s rights sociologist. In C. Baraldi, & T. Cockburn (Eds.), Theorising childhood: citizenship, rights and participation (pp.111-134). Palgrave Macmillan.
  • Prout, A. (2010). Reconsiderando a nova sociologia da infância. Cadernos de pesquisa, 40(141), 729-750. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004
    » https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004
  • Rosemberg, F. (1996). Educação infantil, classe, raça e gênero. Cadernos de Pesquisa, (96), 58-65 https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/814/824
    » https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/814/824
  • Russell, B. (1992). Theory of knowledge: the 1913 manuscript Routledge.
  • Salgues, C. (2018). Bourdieu without childhood: Methods and theoretical postulates of a study on French working-class children. Childhood, 25(1), 109-122. https://doi.org/10.1177/0907568217732120
    » https://doi.org/10.1177/0907568217732120
  • Salgues, C. (2024). Une Après-Midi à Shanghai – L’enfance et la question anthropologique de l’âge Éditions ies.
  • Santiago, F. (2020). “Não é nenê, ela é preta”: educação infantil e pensamento interseccional. Educação em Revista, 36, e220090. https://doi.org/10.1590/0102-4698220090
    » https://doi.org/10.1590/0102-4698220090
  • Sirota, R. (2001). Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. Cadernos de pesquisa, (112), 07-31. https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000100001
    » https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000100001
  • Simon, P. (2008). The choice of ignorance: the debate on ethnic and racial statistics in France. In P. Simon, V. Piché, A. Gagnon (Eds.), Social Statistics and Ethnic Diversity Springer. https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-319-20095-8_4
    » https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-319-20095-8_4
  • Spyrou, S. (2011). The limits of children’s voices: from authenticity to critical, reflexive representation. Childhood, 18(2), 151-165. https://doi.org/10.1177/0907568210387834
    » https://doi.org/10.1177/0907568210387834
  • Zarca, B. (1999). Le sens social des enfants. Sociétés contemporaines, (36), 67-101. https://doi.org/10.3406/socco.1999.1731
    » https://doi.org/10.3406/socco.1999.1731

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2024
  • Revisado
    15 Mar 2025
  • Aceito
    30 Abr 2025
location_on
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro