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As relações teórico-metodológicas entre Freire e Dussel e suas contribuições para uma práxis axiológico-transformadora 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Maria Thereza Sampaio Lucinio – e-mail: thesampaio@uol.com.br 3 3 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB - Nº BOL0169/2018) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - 423942/2018-2).

Resumo

Autores como Paulo Freire e Enrique Dussel têm sido utilizados em estudos que abordam a questão dos valores necessários a uma educação libertadora. Nesse contexto, o presente estudo objetivou caracterizar a práxis axiológico-transformadora da educação ético-crítica. Para isso, foi realizado um estudo teórico que tem como referência três pontos de discussão: i) as relações teórico-metodológicas entre a pedagogia libertadora freireana e a filosofia da libertação dusseliana; ii) as contribuições da Investigação Temática para o desenvolvimento de um Projeto Pedagógico Libertador; iii) as perspectivas axiológicas a partir das relações entre a pedagogia e a filosofia da libertação. Essa articulação permitiu uma compreensão sobre a importância dos valores da cultura popular no desenvolvimento de um processo educativo ético-crítico.

Palavras-chave
Práxis transformadora; Axiologia; Valores; Paulo Freire; Enrique Dussel

Abstract

Studies that address the issue of the necessary values for a liberating education have been using authors such as Paulo Freire and Enrique Dussel. In this context, the present study aimed to characterize the axiological-transforming praxis of ethical-critical education. For this, a theoretical study was carried out with three points of discussion as reference: i) the theoretical-methodological relations between Freire's liberating pedagogy and the philosophy of Dusselian liberation; ii) Thematic Investigation contributions to the development of a Liberator Pedagogical Project; iii) the axiological perspectives from the relationship between pedagogy and the philosophy of liberation. This articulation allowed to understand the importance of popular culture values in the development of an ethical-critical educational process.

Keywords
Transformative praxis; Axiology; Values; Paulo Freire; Enrique Dussel

Introdução

Estudos em Educação evocam uma série de questões essenciais para a área, propiciando discussões sobre diferentes possibilidades de fundamentação teórico-metodológica para a elaboração de currículos, de processos avaliativos, de estratégias de ensino-aprendizagem, etc. (Saul & Silva, 2009Saul, A. M., & Silva, A. F. G. (2009). O legado de Paulo Freire para as políticas de currículo e para a formação de educadores no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 90 (224), 223-244. https://dx.doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.90i224.507
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; Furlan, 2015Furlan, A. (2015). Concepção de um currículo crítico: a ética como referência praxiológica. [Dissertação de mestrado em Educação]. Universidade Federal de São Carlos.; Agostini, 2018Agostini, N. (2018). Conscientização e Educação: ação e reflexão que transformam o mundo. Revista Pro-Posições, 29, 187-206. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2015-0105
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; Duarte, 2019Duarte, N. (2019). A catarse na didática da pedagogia histórico-crítica. Revista Pro-Posições, 30, 1-23. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2017-0035
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). A preocupação com os valores que norteiam as práticas educativas tem sido destacada por pesquisadores, que investigam a importância de uma práxis axiológica no âmbito escolar, bem como suas contribuições para a superação de problemas, como a indisciplina, a descontextualização dos conteúdos ensinados, as dificuldades na aprendizagem, dentre outras situações adversas à construção colaborativa de conhecimentos com sentido e significado para os educandos (Patrício, 1993Patrício, M. (1993). Lições de axiologia educacional. Universidade Aberta.; Moura, 2011Moura, W. C. (2011). Axiologia e Educação (Física): Discursos de professores e alunos em tempos de relativismo. [Dissertação de mestrado em Desporto para crianças e jovens]. Universidade do Porto.; Lucas, 2014Lucas, L. B. (2014). Axiologia Relacional Pedagógica e a formação inicial de professores de Biologia. [Tese de doutorado em Educação de Ciências e Educação Matemática]. Universidade Estadual de Londrina.; Santos et al., 2019Santos, J. S., Assunção, J. A., Barbosa, L. S., & Gehlen, S. T. (2019). A Dimensão Axiológica na Elaboração de uma Rede Temática na Educação Infantil: Contribuições para o Ensino de Ciências. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, 19, 649-682. https://doi.org/10.28976/1984-2686rbpec2019u649682
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).

A identificação dos valores e desvalores no processo educativo escolar permite uma compreensão de como os educandos se relacionam com o mundo, superando a dicotomia entre sujeito e o contexto no qual está inserido. A práxis axiológica consiste em evidenciar quais são os valores e desvalores que necessitam nortear as práticas educativas, pois a escola é um ambiente oportuno para a promoção dos valores considerados importantes para o ideal de uma sociedade (Patrício, 1993Patrício, M. (1993). Lições de axiologia educacional. Universidade Aberta.).

No âmbito da discussão sobre os valores na educação, autores como Silva (2004)Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. e Furlan (2015)Furlan, A. (2015). Concepção de um currículo crítico: a ética como referência praxiológica. [Dissertação de mestrado em Educação]. Universidade Federal de São Carlos. salientam a importância de uma práxis transformadora, uma vez que ela possibilita a desmistificação da ideia de uma prática ou sistema educacional neutro e imparcial e fomenta um processo educativo comprometido com o desenvolvimento da consciência dos educandos, para que se tornem agentes transformadores da realidade. Esses autores, fundamentados nos aportes teórico-metodológicos de Paulo Freire e de Enrique Dussel, destacam que o não comprometimento ético, político e social com os educandos pode transformar a escola em um lugar de reprodução e perpetuação das relações de dominação e de desigualdade.

Ao considerar que toda prática educativa se direciona à realização de objetivos epistêmicos, políticos, sociais e culturais, entende-se que há um princípio valorativo intrínseco a essa prática (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.). No contexto de uma educação pautada no compromisso político e social com a realidade histórico-cultural dos educandos, faz-se pertinente questionar: quais são os valores que orientam o desenvolvimento da educação libertadora? Nesse sentido, o presente ensaio teórico teve como objetivo caracterizar a práxis axiológico-transformadora da educação ético-crítica. Para isso, necessitou-se investigar, por meio da análise de algumas obras de Dussel e Freire, os seguintes aspectos: i) as relações teórico-metodológicas entre a pedagogia libertadora freireana e a filosofia da libertação dusseliana; ii) as contribuições da Investigação Temática para o desenvolvimento de um Projeto Pedagógico Libertador; iii) as perspectivas axiológicas a partir das relações entre a pedagogia e a filosofia da libertação.

Pressupõe-se que a articulação teórica entre a ética da vida dusseliana – enquanto princípio norteador que revela a dimensão axiológica nas ações docentes – e a Abordagem Temática Freireana – que se pauta na dialogicidade, problematização, humanização e conscientização – possa viabilizar a identificação de valores imprescindíveis ao processo de humanização dos educandos. Após a identificação desses valores, há a possibilidade de se estabelecerem alguns parâmetros axiológicos para orientar a prática docente: os processos formativos, a elaboração de currículos, atividades didático-pedagógicas e processos avaliativos coerentes com uma educação ético-crítica. Isso significa que uma Educação com qualidade política e social deve contemplar as “diferentes dimensões da existência humana, tanto na função sociocultural e axiológica do conhecimento quanto nos limites da própria prática gnosiológica da construção conceitual para a sistematização metodológica do diálogo pedagógico” (Saul & Silva, 2009Saul, A. M., & Silva, A. F. G. (2009). O legado de Paulo Freire para as políticas de currículo e para a formação de educadores no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 90 (224), 223-244. https://dx.doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.90i224.507
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, p. 233).

Axiologia Educacional

A filosofia, desde os seus primórdios, constituiu-se de questões conceitualmente problemáticas, o que motivou pensadores com diferentes perspectivas teóricas a tentarem elaborar parâmetros para a compreensão do que é o bem e o mal, o bom e o ruim, o belo e o feio, a verdade e a mentira, o válido e o inválido etc. À vista disso, algumas subáreas surgiram no âmbito da filosofia, cada uma se ocupando de algumas dessas questões, por exemplo: na ética, busca-se refletir sobre o que pode ser caracterizado como bem ou mal e em que circunstâncias é possível indicar o que é bom ou ruim; na estética, investiga-se se o belo e o feio são percepções subjetivas, ideias objetivas, construções socio-históricas etc.; na lógica, são estabelecidos os critérios de validade e de verdade que permitem a elaboração de argumentos (Aranha, 2006Aranha, M. L. A. (2006). Filosofia da Educação. (3. ed.). Moderna.).

Dentre essas discussões, alguns filósofos evidenciaram que as compreensões acerca de determinados fenômenos são norteadas pelos valores que emergem das relações dos sujeitos com o mundo. Com isso, os estudos filosóficos com o foco nos valores propiciaram o surgimento da axiologia que, por volta do século XIX, tornou-se um ramo específico da filosofia, no qual se teorizam as características, estruturas, natureza e hierarquização dos valores (Hessen, 1974Hessen, J. (1974). Filosofia dos valores. Armênio Amado.).

A premissa da axiologia consiste no entendimento de que as preferências, compreensões e ações humanas são orientadas pelas possibilidades de realização dos valores e, quando esses valores são compartilhados coletivamente, tem-se o fundamento de uma cultura (Frondizi, 1958Frondizi, R. (1958) ¿Qué son los valores? Introducción a la axiología. Fundo de cultura económica.). Nesse sentido, o processo de valoração ocorre à medida que os indivíduos se relacionam entre si, com os objetos e situações em sua realidade. Isso significa que os valores e desvalores, pronunciados implícita ou explicitamente pelos sujeitos, possuem dimensões: hermenêutica, quando permitem compreender de que forma o sujeito interpreta aspectos da realidade; fenomenológica, quando revelam o nível de consciência, as intencionalidades, as percepções dos sujeitos em relação a um determinado fenômeno; deontológica, quando direcionam a conduta moral dos sujeitos; e praxiológica, quando viabilizam ações que transformam a realidade material (Patrício, 1993Patrício, M. (1993). Lições de axiologia educacional. Universidade Aberta.).

A praxiologia dos valores engloba todas as outras dimensões, haja vista que a práxis é a síntese entre reflexão e ação, em que se considera a realidade histórico-cultural dos indivíduos. De acordo com Patrício (1993)Patrício, M. (1993). Lições de axiologia educacional. Universidade Aberta., essas características da práxis axiológica indicam que o processo educativo é o momento privilegiado para a realização dos valores, pois “é a educação, na sua máxima generalidade e profundidade, que atualiza a humanidade do homem” (p. 46).

A ideia de prática, no contexto da axiologia educacional, exige que se considerem os aspectos históricos, políticos, sociais e culturais inerentes à condição existencial dos educandos, uma vez que são esses aspectos que fomentam a formação dos sistemas de valores em cada indivíduo, que se caracteriza por estar em permanente transformação (Patrício, 1993Patrício, M. (1993). Lições de axiologia educacional. Universidade Aberta.). Nessa perspectiva, a prática na axiologia educacional se aproxima do conceito de prática no marxismo, pois em ambas busca-se uma síntese entre teoria e prática, reflexão e ação.

A práxis axiológica, enquanto norteadora das práticas educativas, indica que o princípio dialético permite compreender a dinâmica da formação humana, no sentido do seu ser e do seu valer, em que a realidade social e, consequentemente, os sistemas de valores estão em constante transformação, revelando que “entre valor e ser não pode estabelecer-se qualquer separação profunda e que a esfera axiológica não pode ser autônoma em face da esfera ontológica” (Hessen, 1974Hessen, J. (1974). Filosofia dos valores. Armênio Amado., p. 44).

Isso significa que tanto o ser quanto o valer se constituem socialmente com base nas condições históricas e materiais dos indivíduos. Nesse contexto, o materialismo histórico-dialético evidencia-se como um importante aporte teórico-metodológico para a compreensão de como os diferentes tipos de organizações sociais funcionam, promovendo determinados valores e silenciando ou marginalizando outros, a exemplo da globalização, que tem propiciado a disseminação dos valores das culturas imperialistas e a supressão dos valores das culturas marginalizadas (Auler, 2018Auler, D. (2018). Cuidado! Um cavalo viciado tendo a voltar para o mesmo lugar. Appris.).

Uma educação que negligencia as reflexões e vivências axiológicas pode contribuir para o fortalecimento e perpetuação das relações de opressão, que “se concretizam na convivência entre os sujeitos, na gestão escolar, na organização metodológica de programações e práticas pedagógicas, na seleção dos conteúdos escolares das diferentes disciplinas” (Silva, 2004Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., p. 81).

É importante destacar que alguns estudos têm evidenciado que a proposta pedagógica freireana, articulada aos pressupostos ético-críticos dusselianos, enseja uma práxis axiológica e transformadora por meio de um currículo popular e crítico, de práticas educativas que visam à humanização dos sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, no desenvolvimento de atividades didático-pedagógicas baseadas em problemas com sentido e significado para os educados (Silva, 2004Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.; Furlan, 2014Furlan, A. (2015). Concepção de um currículo crítico: a ética como referência praxiológica. [Dissertação de mestrado em Educação]. Universidade Federal de São Carlos.).

Pressupostos político-pedagógicos freireanos para uma educação libertadora

Para Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra., a educação crítica é o processo no qual o sujeito participa da construção de um conhecimento que lhe possibilita compreender as influências históricas, sociais, políticas, culturais e axiológicas que envolvem a sua situação existencial no mundo. Ou seja, esse tipo de educação permite ao sujeito ascender a novos níveis de consciência, o que contribui para uma compreensão das dinâmicas sociais e para uma ação transformadora da realidade.

Quando Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra. fala em níveis de consciência, está se referindo à percepção que os sujeitos possuem da realidade, que, em alguns casos, é limitada por não contemplar uma compreensão do real em sua totalidade. Influenciado por Goldman (1970)Goldmann, L. (1970). Ciências humanas e Filosofia: que é a Sociologia? (L. C. Garaude e J. A. Giannotti, Trads). (2. ed.). Difusão Europeia do Livro., Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra. classifica os níveis de consciência em: Consciência real efetiva, em que o sujeito possui uma visão limitada da realidade, por questões históricas e sociais, isto é, vive uma contradição social que já se naturalizou e tornou-se imperceptível; e a Consciência máxima possível, que ocorre quando o sujeito atinge a consciência crítica e sua compreensão sobre a realidade contempla as complexidades das relações de opressão construídas historicamente, permitindo-lhe uma atitude transformadora. Milli (2019)Milli, J. C. L. (2019). A Investigação Temática à luz da Análise Textual Discursiva: Em busca da superação do obstáculo praxiológico do silêncio. [Dissertação de mestrado em Educação em Ciências]. Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus., ao ampliar a discussão sobre os níveis de consciência, indica que há uma Consciência possível, que é um momento de transição da Consciência real efetiva para a Consciência máxima possível, pois se pauta “nas possibilidades de pensar e agir que foram obscurecidas à classe ou grupo social” (p. 16).

Portanto, o educador necessita ser um sujeito com a Consciência máxima possível, que oportunize aos educandos, sujeitos em situação de opressão, alcançar outros níveis de consciência, tornando-se mais críticos, reflexivos e ativos na construção do conhecimento e na participação social. Conforme salientado por Freire (1996)Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., a formação do educador é um processo para toda vida, pois a prática pedagógica está permanentemente em construção, devido às mudanças advindas das reflexões sobre sua própria prática, das investigações sobre as metodologias e os conteúdos, e também devido à dinâmica histórica, social, política e cultural que mantém o conhecimento em transformação.

Essa concepção de inconclusão em Freire envolve questões ontológicas, axiológicas e históricas, uma vez que a “humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão” (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra., p. 16). Isto é, os sujeitos em suas relações entre si e com o mundo formam uma consciência de sua existência, de seu valor e de sua historicidade enquanto ser que está se modificando à medida que se relaciona e que busca “Ser mais”.

Como o educador é um ser histórico, sua constituição enquanto tal está em constante transformação ao longo do tempo. Por isso, Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra. depõe contra a educação “bancária”, que prioriza a repetição, a memorização e a fixação dos conteúdos, como se o conhecimento não precisasse ser significativo para o educando, e a realidade pudesse ser recortada e ensinada a partir de fragmentos descontextualizados. Essa concepção de educação alienada e alienante leva o educando a entender a si próprio, a realidade e o conhecimento como coisas imutáveis e mecânicas, estimulando uma racionalidade técnica da educação.

Destarte, entende-se a razão pela qual a proposta freireana está fundada em pressupostos como a dialogicidade, problematização, humanização, conscientização e emancipação. A problematização traz à tona a realidade do educando sob uma perspectiva crítica, que envolve desafio, questionamento, investigação, reflexão e diálogo (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra.). Já a dialogicidade consiste em uma das principais características do processo de construção do conhecimento, visto que as relações que se estabelecem entre educador e educando, escola e comunidade são de interação, cooperação e participação.

O diálogo, de acordo com Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra., constitui-se na relação dialética entre ação e reflexão, pois a ação por si só é um mero ativismo, e a reflexão sem a ação não passa de um verbalismo, ambos alienados e alienantes. Logo, o diálogo é um dos elementos que propicia uma práxis libertadora, uma vez que possibilita aos sujeitos em situação de opressão uma ruptura da cultura silenciadora, a discussão de alternativas de superação das contradições sociais, a participação na construção do mundo, conscientes de seus valores, de sua história e de sua importância para humanidade.

Critérios ético-críticos dusselianos para uma filosofia da libertação

O filósofo argentino Enrique Dussel apresenta, a partir de sua Filosofia da Libertação, um princípio ético que visa a dar voz às vítimas excluídas por um sistema hegemônico. Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes. chama esse princípio de ética da vida, pois traz para o centro das discussões as vítimas do sistema de globalização política, econômica e social que rege o mundo contemporâneo. Os parâmetros para o desenvolvimento da ética dusseliana são as causas e consequências da condição existencial dos sujeitos que estão em situação de exclusão, opressão, negação e dominação política, econômica, social, cultural e axiológica, em que “a afirmação dos valores do ‘sistema estabelecido’ ou projeto de vida boa ‘dos poderosos’ é negação ou má vida para os pobres” (p. 314).

Nesse sentido, a ética da vida se opõe à ética negativa, na qual as vítimas são dominadas para viverem sob o jugo da pobreza, miséria, analfabetismo, resignando-se perante os valores dos dominadores. A ética negativa, como a própria denominação indica, é uma ética que nega determinada parcela da sociedade e se fundamenta na contradição material para manter uma pirâmide social que se baseia na desigualdade, sustentando o sistema capitalista (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.). É importante ressaltar que a ética negativa se diferencia do conceito de negatividade na filosofia dusseliana, pois esta última é um momento dialético, oposto ao momento da positividade, que caracteriza a condição existencial das vítimas negadas por um determinado sistema (Borges, 2010Borges, V. (2010). Paulo Freire: Uma ética pedagógica libertadora à luz do contexto histórico-social da América Latina nas décadas de 1960 e 1970. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica do Paraná.). À vista disso, a ética negativa sustenta-se e propaga-se a partir da perpetuação dos diversos tipos de negatividades que subjugam os sujeitos marginalizados.

Assim como há diferenças entre ética negativa e negatividade, há também entre a ética da vida e a positividade, em razão de que esta última se refere ao momento em que a condição de vítima dos sujeitos é reconhecida, possibilitando o entendimento da corresponsabilidade mútua pelas causas da “vitimação” (Borges, 2010Borges, V. (2010). Paulo Freire: Uma ética pedagógica libertadora à luz do contexto histórico-social da América Latina nas décadas de 1960 e 1970. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica do Paraná.). Já a ética da vida emerge da síntese entre negatividade e positividade, caracterizando-se como uma Ética da Libertação, uma vez que viabiliza a consciência crítica, ou seja, uma compreensão histórica e social das relações de opressão, condição essencial para o desenvolvimento de uma atitude de superação da desumanização.

É nesse sentido que Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes. reconhece o processo de humanização e desumanização como uma dinâmica dialética entre positividade e negatividade das vítimas. Desumanizar consiste em negar o direito ontológico, histórico e social de “Ser” das vítimas, negando o valor da existência de quem está à margem da sociedade, silenciando-os, excluindo-os e oprimindo-os. Enquanto humanizar é dar voz aos excluídos, evidenciar que sua existência é positiva, que seus valores são essenciais para a história da humanidade.

É importante frisar que a dialética dusseliana é denominada de analética, pois visa à superação da dialética tradicionalmente fechada à alteridade, que desconsidera os excluídos de um sistema hegemônico. A analética é o método da filosofia dusseliana que propõe a superação do idealismo da dialética hegeliana, recorrendo ao princípio histórico e material do marxismo para formular uma ética da exterioridade, que, no contexto a que Dussel (1980)Dussel, E. (1980). La pedagógica latinoamericana. Nueva América. se refere, é uma ética de libertação do povo latino-americano. Desse modo, a analética pode ser compreendida como uma dialética que parte da realidade dos oprimidos, permitindo que esses sujeitos, que não são vistos como “outro”, tenham voz e sejam ouvidos, fomentando um sistema ético de responsabilidade mútua entre todos, viabilizando uma compreensão existencial do “Ser” histórico latino-americano, libertando-os da negação ontológica no mundo.

Nessa perspectiva da analética apresentada por Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes., a autoafirmação do ser valioso dos excluídos é o primeiro indicativo de uma conscientização ético-crítica. Essa autovaloração positiva emerge como síntese da relação opressor-oprimido/dominador-dominado, em que há uma superação das percepções limitantes causadas, principalmente, pela autodesvalorização. O segundo indicativo é quando o sujeito entende que é afetado negativamente por um sistema que funciona com base na exclusão de uns e na inclusão de outros. O terceiro indicativo baseia-se na compreensão do sujeito que se percebe explorado, no sentido de ser uma peça importante para o funcionamento de um sistema que o exclui socialmente. E por fim, o quarto indicativo é a percepção da própria condição material como um reflexo das distribuições injustas dos bens, produzidos pelos excluídos e consumidos por aqueles que os excluem.

Com o princípio ético-crítico, Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes. evidencia um nível de consciência que articula a crítica à ética. A consciência ético-crítica, além de contemplar uma compreensão estrutural da realidade que produz a opressão, também abrange o entendimento de que a exclusão das vítimas oprimidas envolve uma responsabilidade social e política mútua entre todos os sujeitos que compõem a sociedade.

A dimensão crítica e a dimensão ética culminam na libertação das vítimas e na transformação da realidade, facultando aos sujeitos que se reconheçam ontologicamente e axiologicamente a partir do seu “Ser” e seu “Valer” para si e para a sociedade (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.). Ao transpor essa ideia para a realidade concreta, o pressuposto necessário à efetivação do princípio ético-crítico é a valorização da sabedoria popular, como forma de reconhecimento de uma comunidade, de fortalecimento dos valores dos excluídos, de autenticidade da existência das vítimas e reafirmação de uma identidade construída historicamente.

No contexto das lutas contra as injustiças sociais na América Latina, Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes. evidencia Paulo Freire como uma figura imprescindível em muitos movimentos sociais que buscam a libertação do povo latino e africano, por meio da efetivação de um plano ético-crítico na educação. Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes. destaca que as perspectivas políticas, pedagógicas e sociais freireanas estão em consonância com o projeto de libertação das vítimas excluídas do sistema hegemônico, visto que a pedagogia freireana se constitui a partir das situações-limites, “trata-se de um ponto de partida material, analítico, econômico e político” (p. 437). Isso quer dizer que esse tipo de projeto educacional se compromete com a realidade do educando, possibilitando-lhe uma compreensão desveladora da realidade, no sentido de uma percepção estrutural do mundo.

i) As relações teórico-metodológicas entre a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana

Baseando-se tanto na discussão sobre os pressupostos político-pedagógicos inerentes à concepção freireana de educação quanto nos critérios ético-críticos fundamentais à filosofia da libertação de Dussel, foi estabelecida uma articulação teórica, a partir dessas duas perspectivas comprometidas com a realidade histórica e social da América Latina, para caracterizar um processo educativo pautado em valores que fomentam o processo de humanização dos educandos.

Segundo Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra., o educador necessita aprender com a visão de mundo que os educandos possuem, para que as contradições sociais, existentes na realidade desses sujeitos, sejam identificadas e sirvam de ponto de partida para a construção dos conhecimentos, práticas e ações que visam à superação dessa condição. Essa postura, conforme explicitado por Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes., caracteriza-se como um dever ético do educador, que auxilia o educando no desvelamento da própria realidade, visto que “o ethos da libertação pedagógica exige que o mestre saiba ouvir, no silêncio e com respeito, a juventude, o povo” (Dussel, 1977Dussel, E. (1977). Filosofia da libertação na América Latina. Edições Loyola., p. 101). Tanto Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra. quanto Dussel (2013)Dussel, E. (2013). Ethics of liberation: In the age of globalization and exclusion. Duke University Press. concordam que isso não é suficiente para que esses sujeitos compreendam as relações de opressão às quais estão submetidos.

Freire reconhece que são as próprias vítimas que ganham consciência crítica. Os professores contribuem com a descoberta de sua condição de vítimas. Isto é, a “consciência” emerge de “dentro” da consciência da vítima, conforme ela é desdobrada pelo professor. "Consciência" não vem a ser do "exterior". Os professores são importantes porque contribuem com um nível mais elevado de crítica. Eles ensinam os alunos como interpretar a realidade objetiva de maneira crítica.

(Dussel, 2013Dussel, E. (2013). Ethics of liberation: In the age of globalization and exclusion. Duke University Press., p. 316, tradução nossa).

Após a superação das limitações da consciência real efetiva, há a possibilidade de um desenvolvimento contínuo da consciência (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra.). Assim, os educandos podem atingir o plano ético-crítico à medida que a compreensão dos problemas vai se expandido e encontrando suas causas reais, históricas e concretas. Nesse nível, os sujeitos já compreendem as teorias que lhes eram incompreensíveis e começam a identificar a opressão do sistema ao qual estavam submetidos. E é nisso que consiste o processo de libertação, que é comunal, visto que o educando não alcança esse nível sozinho, e tampouco o educador tem o poder de libertar o outro por conta própria.

Entende-se que há uma complementariedade entre a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana, em que o educador com consciência ético-crítica caracteriza-se por considerar em sua prática os aspectos que constituem o universo vivenciado pelo educando, visando a um sistema educativo que lhe possibilite superar sua condição de oprimido. Essa característica, de acordo com Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes., consiste em um pressuposto essencial para o comprometimento ético do educador que defende um sistema anti-hegemônico da comunidade das vítimas.

Segundo Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes., é por meio do processo de conscientização que se chega à consciência ético-crítica, em que os sujeitos reconhecem que existe uma responsabilidade mútua entre todos os indivíduos na sociedade. Essa caracterização do educador com consciência ético-crítica encontra-se sintetizada na Figura 1, na qual é salientado que o desenvolvimento de uma práxis transformadora implica necessariamente em um comprometimento ético do educador com o educando, sendo a ética considerada como fundamento da práxis de afirmação ontológica e axiológica do outro silenciado e invisibilizado histórica e socialmente.

Figura 1
Síntese da caracterização do educador com consciência ético-crítico com base na complementariedade entre a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana.

Além de um comprometimento ético, cabe ao educador ético-crítico utilizar o processo educativo como momento de desenvolvimento da consciência dos educandos e da sua própria consciência. Desse modo, as dimensões ética e crítica da práxis transformadora estão relacionadas aos momentos de reflexão e ação de uma educação humanizadora, que se desenvolve de maneira comunal, possibilitando o desvelamento da condição existencial do outro e a superação da negatividade das vítimas de um sistema que funciona com base em injustiças sociais (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.).

Na caracterização do educador ético-crítico, a partir do que há em comum entre a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana, destacam-se aspectos como: atuação pedagógica que concilia as discussões teóricas sobre a educação e a prática educativa crítica; identificação e compreensão das contradições sociais existentes na realidade dos educandos como ponto de partida para a prática educativa crítica; realização do processo de libertação dos educandos por meio de uma relação ética, dialógica e problematizadora; viabilização de alternativas de superação das contradições sociais por meio da educação. A síntese destas características, imprescindíveis ao educador ético-crítico, está apresentada na Figura 2:

Figura 2
Síntese da caracterização do educador ético-crítico com base nas aproximações entre a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana.

A caracterização do educador ético-crítico e a concepção de educação, que resultam da relação teórica entre os pressupostos políticos-pedagógicos freireanos e os critérios ético-críticos dusselianos, não se limitam às questões relacionadas à aprendizagem dos conteúdos disciplinares, às metodologias de ensino e aprendizagem ou ao “saber fazer” pedagógico. Esta proposta, para uma educação ético-crítica, contempla tudo isso e vai mais adiante, já que carrega em si aspectos políticos, sociais, filosóficos e históricos, que vão além dos muros da escola.

A prática ético-crítica demanda uma práxis axiológica, para que se configure enquanto uma ação de comprometimento político e ético com os educandos. Segundo Dussel (2013)Dussel, E. (2013). Ethics of liberation: In the age of globalization and exclusion. Duke University Press., a práxis transformadora necessita possuir uma natureza libertadora, permitindo que se reconheça o outro enquanto outro, como vítimas do sistema opressor. Ou seja, entender que, além de enxergar o outro como sujeito com quem se compartilha o mundo, é necessário perceber também que esses mesmos sujeitos são negados historicamente por uma cultura que subjuga sua visão de mundo para sobrepor a visão da cultura dominadora, de forma tão histórica e ideológica que os sujeitos, além de negados pelo sistema, se negam também, colocando-se ontologicamente como “não-ser” em oposição ao “ser” dos opressores e, axiologicamente, negando seus valores culturais, históricos e sociais, para se adequar aos valores que lhes são impostos por um sistema hegemônico.

A práxis da “transformação” não pode ser reduzida a uma “experiência pedagógica”. Ela não é buscada para aprender nem é aprendida em sala de aula através do exercício da “consciência” teórica; ocorre na própria práxis da “transformação” da realidade histórica e “real”. Ela se desdobra como uma progressiva “conscientização”, isto é, como uma “ação” através da qual a consciência ética é transformada ou, em suma, como libertação.

(Dussel, 2013Dussel, E. (2013). Ethics of liberation: In the age of globalization and exclusion. Duke University Press., p. 318, tradução nossa).

É por isso que a reflexão sobre a atividade docente não deve se restringir à sala de aula, uma vez que o processo educativo ético-crítico tem como propósito a formação de cidadãos críticos, conscientes e atuantes nas transformações sociais. Essa formação necessita contemplar os valores desejáveis, de acordo com o projeto de sociedade que se pretende alcançar, cabendo ao educador ter uma prática que visa a “reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão” (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra., p. 13).

Nota-se que a prática docente, no âmbito da educação libertadora, necessita ser pensada em suas dimensões sociais, históricas e políticas, superando a racionalidade técnica e a atribuição equivocada de uma suposta neutralidade e imparcialidade ao processo educativo. Nessa perspectiva da educação ético-crítica, toda ação humana e, consequentemente, toda ação pedagógica carregam em si valores e direcionamentos, dado que educar consiste em um processo de humanização do sujeito, o que inclui considerar seus valores, crenças e costumes nesse processo (Dussel, 2014Dussel, E. (2014). 14 tesis de ética: El fundamento esencial del pensamiento crítico. Editorial Trotta.).

A reflexão axiológica sobre a prática pedagógica revela sua importância ao possibilitar a identificação dos valores de uma cultura opressora que estão sendo incutidos nos educados, mesmo que de maneira inconsciente. Esse tipo de reflexão também contribui para o planejamento de quais valores considerar a partir da práxis educativa. A prática ético-crítica necessita contemplar os valores do mundo do educando e promover valores que fomentem o processo de humanização dos mesmos, o que supõe uma nova relação entre educador e educando, buscando “a valorização do ‘outro’, como alteridade excluída, do lado de fora do sistema, que clama por libertação” (Borges, 2010Borges, V. (2010). Paulo Freire: Uma ética pedagógica libertadora à luz do contexto histórico-social da América Latina nas décadas de 1960 e 1970. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica do Paraná., p. 172).

ii) As contribuições da Investigação Temática para o desenvolvimento de um Projeto Pedagógico Libertador

Sabendo-se que a efetivação de uma educação libertadora exige um projeto pedagógico que tenha como fundamento os valores da cultura popular (Dussel, 1980Dussel, E. (1980). La pedagógica latinoamericana. Nueva América.), salienta-se que a prática que colocará esse projeto em ação necessita ser sustentada por uma postura ética, crítica e reflexiva. Nesse sentido, é importante ressaltar que a expressão “Projeto Pedagógico” é utilizada por Dussel (1980)Dussel, E. (1980). La pedagógica latinoamericana. Nueva América. em sua obra La pedagógica latino-americana, que faz parte da “Pedagógica”, como um momento entre a política e a erótica na filosofia dusseliana, que propõe discussões para além do âmbito educacional, contemplando aspectos históricos, sociais e filosóficos nas relações intersubjetivas entre os sujeitos.

Ao considerar tanto a pedagogia freireana quanto a filosofia dusseliana, entende-se que a prática ético-crítica caracteriza-se por: propiciar o desenvolvimento de ações que viabilizem a justiça social; possibilitar a apropriação dos conhecimentos necessários para a compreensão e superação dos problemas emergentes da realidade dos educandos; respeitar, valorizar e aprender com os conhecimentos não formais dos alunos; ter o diálogo como parâmetro para o desenvolvimento das aulas; considerar a avaliação da aprendizagem dos educandos de maneira processual, observando o desempenho do aluno como um todo, priorizando a reflexão crítica. A síntese da caracterização da prática pedagógica ético-crítica está indicada na Figura 3:

Figura 3
Síntese da caracterização da prática ético-crítica a partir da articulação entre a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana.

O educador somente poderá desempenhar a prática ético-crítica se for ativo na construção dos propósitos e finalidades de seu trabalho, se assumir funções de liderança nas reformas escolares, produzir novos conhecimentos a partir de sua prática e de outros conhecimentos. A prática ético-crítica possibilita o processo de libertação dos sujeitos em situação de injustiça social por meio da práxis educativa, que se insere em um plano de ação cultural (Silva, 2004Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Nessa perspectiva, a prática do educador ético-crítico realiza-se por meio de uma ação dialógica, que visa à transformação das estruturas sociais opressoras, opondo-se à ação antidialógica, que fomenta as relações de opressão.

Ser ético, crítico, reflexivo e pesquisador são características inerentes ao educador que trabalha numa perspectiva libertadora. A libertação, no contexto educacional que parte da filosofia dusseliana e da pedagogia freireana, diz respeito à criação de um projeto pedagógico original, no sentido da superação de sistemas pedagógicos importados dos países colonizadores, rompendo com os mecanismos de dominação e dependência entre opressores e oprimidos (Dussel, 1980Dussel, E. (1980). La pedagógica latinoamericana. Nueva América.).

Nesse processo de libertação, necessita-se considerar questões ontológicas, históricas, sociais e axiológicas importantes para a compreensão das culturas marginalizadas e para a organização de práticas educativas humanizadoras, por meio de um projeto pedagógico libertador, que se caracteriza por: originar-se da realidade histórico-cultural dos oprimidos; romper com o sistema hegemônico que nega o Ser dos excluídos; contemplar os valores das culturas extenuadas pelas culturas imperialistas; fortalecer a identidade histórica, cultural e social das vítimas que estão na “periferia” do mundo (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.).

Desse modo, construir um projeto pedagógico que contemple todos esses aspectos axiológicos, desde o currículo até a implementação em sala de aula, é um desafio diante da complexidade que envolve a efetivação de uma educação fundamentada em uma filosofia que diverge e combate os pressupostos do sistema educacional tradicional vigente. A própria pedagogia freireana apresenta um aporte teórico-metodológico que pode orientar, no contexto escolar, o planejamento e a organização curricular, denominada de Investigação Temática.

De acordo com Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra., o processo de Investigação Temática exige um esforço para construir um sistema pedagógico em que os conhecimentos sejam significativos aos educandos. Com base nesse entendimento, Silva (2004)Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. destaca que o currículo escolar necessita partir das contradições sociais presentes na realidade dos sujeitos que estão em situação de opressão. O objetivo da Investigação Temática é viabilizar uma educação que desenvolva um olhar crítico e reflexivo dos oprimidos sobre a realidade, de tal modo que a visão limitada que possuem sobre a própria condição existencial seja superada.

Nesse contexto, a situação-limite consiste em um momento em que o sujeito se encontra com uma consciência oprimida, em um nível de consciência real efetiva, que o impossibilita de compreender o mundo em uma dimensão estrutural (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.). O conceito freireano de situação-limite é utilizado por Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes. para corroborar a ideia de que as estruturas de dominação entre opressor e oprimido são imperceptíveis aos próprios sujeitos que estão em situação de opressão.

O entendimento de quais são as situações-limites dos sujeitos de uma determinada realidade constitui o pressuposto que orienta a Investigação Temática, na busca de uma educação libertadora. Esse é o primeiro indicativo da Investigação Temática enquanto um aporte teórico-metodológico que possibilita o desenvolvimento de um Projeto Pedagógico Libertador na perspectiva dusseliana.

O processo de Investigação Temática, proposto por Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra., posteriormente adaptado por Delizoicov (1982)Delizoicov, D. (1982). Concepção Problematizadora do Ensino de Ciências na Educação Formal. [Dissertação de mestrado em Educação]. Universidade de São Paulo. para o contexto da educação escolar, visa à obtenção de Temas Geradores, que se caracterizam como uma síntese das percepções que os sujeitos de uma determinada comunidade possuem, em que há indicativos da existência de contradições sociais (Silva, 2004Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Para a obtenção dos Temas Geradores, no contexto escolar, Delizoicov (1982)Delizoicov, D. (1982). Concepção Problematizadora do Ensino de Ciências na Educação Formal. [Dissertação de mestrado em Educação]. Universidade de São Paulo. sistematizou as seguintes etapas:

  1. Levantamento Preliminar: o início da Investigação Temática exige um reconhecimento local da comunidade. Para isso, são utilizadas: fontes primárias, nas quais as informações são obtidas por meio do diálogo com os próprios moradores da localidade; e fontes secundárias, como os veículos de informações como televisão, rádio, jornal, internet etc. A partir das informações obtidas constrói-se um dossiê;

  2. Codificação: em seguida, iniciam-se a descrição e a análise das situações que se revelaram durante a etapa anterior, com o intuito de selecionar as informações e as falas significativas que indicam possíveis contradições sociais vividas pelos sujeitos da comunidade. Assim, é possível escolher e codificar as prováveis contradições sociais para que possam ser discutidas e legitimadas na etapa seguinte;

  3. Descodificação: apresentam-se aos representantes de diferentes segmentos da comunidade as possíveis contradições sociais indicadas pelas informações das fontes secundárias e pelas falas significativas dos moradores, para que se possa dialogar, problematizar e legitimar a existência desses problemas e necessidades da comunidade. Com isso, legitimam-se as situações-limites que dão origem aos Temas Geradores, que representam uma realidade concreta em que estão imersos os sujeitos em situação de opressão, servindo de ponto de partida para a construção de um currículo que possibilita aos oprimidos o desenvolvimento de uma consciência crítica, oportunizando uma compreensão do seu valor e do seu ser no mundo (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra.);

  4. Redução Temática: nesta etapa há “operação de cisão” dos temas enquanto totalidades, buscando seus núcleos fundamentais, que constituem as suas parcialidades. Desta forma, “reduzir um tema é cindi-lo em suas partes para, voltando-se a ele como totalidade, melhor conhecê-lo” (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra., p. 67). A Redução Temática diz respeito à organização dos conceitos, conteúdos e ações necessários à compreensão do Tema Gerador e que compõem a programação curricular.

Alguns estudos em torno da Abordagem Temática Freireana têm desenvolvido mecanismos que auxiliam na programação curricular nesta etapa da Investigação Temática, a exemplo de: Silva (2004)Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., que desenvolveu a Rede Temática, que facilita a sistematização dos conhecimentos e práticas a partir das falas significativas dos moradores da comunidade; Milli, Almeida e Gehlen (2018)Milli, J. C. L. (2019). A Investigação Temática à luz da Análise Textual Discursiva: Em busca da superação do obstáculo praxiológico do silêncio. [Dissertação de mestrado em Educação em Ciências]. Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus., que, no contexto do Grupo de Estudos sobre Abordagem Temática no Ensino de Ciências (GEATEC), desenvolveram o Ciclo Temático, que auxilia no processo de sintetização das visões dos moradores em relação ao Tema Gerador, indicando causas, consequências e alternativas para a superação das situações-limites, contribuindo para a transformação da realidade local. Sendo assim, o Ciclo Temático é utilizado após a elaboração da Rede Temática na organização dos conhecimentos e ações e na sistematização das Unidades de Ensino.

Para o planejamento das atividades didático-pedagógicas e seu desenvolvimento em diversos contextos educativos, tem sido utilizada a dinâmica dos Três Momentos Pedagógicos (3MP), fomentando a problematização e a dialogicidade (Silva, 2004Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Esses 3MP são estruturados da seguinte maneira: Problematização Inicial (PI) – momento em que são realizados questionamentos que provoquem uma reflexão crítica acerca dos aspectos problemáticos na realidade dos educandos; Organização do Conhecimento (OC) – sistematização dos conhecimentos necessários para a compreensão dos problemas discutidos na PI, presentes em um Tema Gerador; Aplicação do Conhecimento (AC) – etapa na qual são retomadas as problematizações iniciais e o conhecimento construído na OC é direcionado às explicações e/ou possíveis soluções de tais situações problemáticas. Além disso, é nesse momento que o educador analisa a maneira como os educandos se apropriaram dos conteúdos desenvolvidos na aula e também as novas situações que se apresentaram e que necessitam ser problematizadas (Delizoicov, Angotti, & Pernambuco, 2011Delizoicov, D., Angotti, J. A. P., & Pernambuco, M. M. C. A. (2011). Ensino de Ciências: Fundamentos e Métodos. Cortez.).

  • 5. Desenvolvimento em Sala Aula: momento de implementação em sala de aula das atividades didático-pedagógicas, baseadas em um Tema Gerador e estruturadas nos 3MP.

É possível analisar essas etapas da Investigação Temática à luz da filosofia libertadora de Dussel, em que o Levantamento Preliminar, a Codificação, a Descodificação e a Redução Temática se caracterizam como momentos negativos de denúncia, pois são nessas etapas que se revelam as contradições sociais e as situações-limites, aspectos que fomentam os mecanismos de opressão do sistema hegemônico. O Desenvolvimento em sala de aula caracteriza-se como um momento de positividade, visto que se trata do anúncio, na coletividade dos sujeitos envolvidos, das alternativas de superação das contradições sociais e situações-limites. Com isso, a última etapa da Investigação Temática sintetiza esse movimento analético por meio de uma práxis transformadora, ou seja, é o momento em que há a efetivação das ações que podem levar a uma transformação da realidade dos sujeitos em situação de opressão. No Quadro 1 esse movimento analético entre as etapas da Investigação Temática é organizado da seguinte maneira:

Quadro 1
Etapas da Investigação Temática à luz da analética dusseliana.

Com base no Quadro 1, entende-se que há relações entre a denúncia e o anúncio com as categorias do materialismo histórico-dialético, em especial com os momentos dialéticos da tese, antítese e síntese. No contexto da Investigação Temática, analisada com base na analética, entende-se que a denúncia – que corresponde ao momento negativo – apresenta relações com a tese e a antítese, pois consiste no processo em que a comunidade de vítimas, em colaboração com educadores, cientistas, intelectuais etc., utiliza a dialogicidade e a problematização para compreender a visão de mundo dos sujeitos em situação de exclusão e opressão (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.). A partir disso, é possível entender como esses sujeitos são negativados por um sistema desumanizador que os silencia, desvaloriza suas raízes históricas e culturais e os invisibiliza enquanto ser no mundo.

Já o anúncio – que indica um momento positivo – apresenta relações com a síntese, visto que corresponde ao momento de desenvolvimento do projeto de libertação da comunidade de vítimas, após a denúncia das estruturas de opressão que limitavam a visão de mundo dos sujeitos, expressas nas “negatividades presentes nos discursos e na linguagem das vítimas” (Silva, 2004Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., p. 129). Portanto, são as falas significativas, que denunciam as contradições sociais, que servem como ponto de partida para o desenvolvimento de currículos críticos e populares, de práticas pedagógicas ético-críticas, de processos formativos humanizadores etc.

A proposta freireana constitui-se como um tipo de Abordagem Temática4 4 Sabendo-se que existem outros tipos de abordagens temáticas, faz-se necessário destacar que a Abordagem Temática Freireana se diferencia da abordagem conceitual, pois essa última seleciona os conteúdos a partir dos conceitos científicos, ou seja, não há necessariamente uma preocupação em estabelecer uma relação entre os conteúdos e os conhecimentos advindos da cotidianidade dos educandos. Já na Abordagem Temática freireana. os conteúdos devem necessariamente partir de uma situação-limite identificada por meio do processo de Investigação Temática (Delizoicov, 1982). que evidencia o diálogo e a problematização a partir da realidade dos educandos, sustentando a restruturação das práticas educacionais vigentes, isto é, Freire “define precisamente as condições de possibilidade do surgimento do nível do exercício da razão ético-crítica como condição de um processo educativo integral” (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes., p. 435). Nessa perspectiva, a Abordagem Temática Freireana dispõe dos pressupostos necessários para o desenvolvimento e implementação de um Projeto Pedagógico Libertador, originário da realidade existencial dos oprimidos, em que os educandos podem ascender a níveis mais elaborados de consciência, permitindo uma visão ético-crítica do mundo por meio de um processo humanizador.

iii) Perspectivas axiológicas a partir das relações entre a pedagogia e a filosofia da libertação.

A ética, considerada em sua dimensão crítica, foi sistematizada e sintetizada por Dussel (2014)Dussel, E. (2014). 14 tesis de ética: El fundamento esencial del pensamiento crítico. Editorial Trotta. em teses que, no contexto de uma práxis axiológico-transformadora, destacam-se com base nos seguintes princípios: a ética na práxis educativa caracteriza-se como uma teoria ou reflexão das ações humanas concretas; a ação humana atualiza seu ser no mundo, tanto para si mesmo quanto para o outro; os valores possuem tanto um princípio material, que consiste nos objetivos para os quais as ações humanas se direcionam, quanto um princípio formal, que são os modos ou meios utilizados para a realização das ações humanas; as intenções, que servem de parâmetro para a realização das ações morais, são sempre intersubjetivas e comunitárias, pois os valores de uma cultura são compartilhados coletivamente, explícita e implicitamente; o outro não pode ser compreendido como um ente ou uma coisa, pois o outro é um ser vivente que possui uma voz, valores, percepções, consciência de sua própria existência e da existência dos entes no mundo; a realidade, compreendida na perspectiva analética, considera sempre o momento da negatividade, quando são reveladas as estruturas que fomentam as relações de dominação, marginalização e silenciamento das vítimas, e, posteriormente, o momento de positividade, no qual se anunciam as novas estruturas para um sistema que visa a superar as relações de opressão, por meio de uma práxis que emerge da própria comunidade de vítimas e se desenvolve com base em suas necessidades e demandas antes silenciadas.

Assim, foi possível caracterizar o educador e a prática ético-crítica, considerando tanto a complementariedade quanto o que há em comum entre a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana. A partir dessa aproximação teórica, foram identificados os conceitos freireanos e dusselianos a partir de uma perspectiva axiológica5 5 A “Perspectiva axiológica” aqui referida diz respeito à síntese da compreensão sobre os valores com base na definição de valor, valoração e axiologia de autores como Hessen (1974), Frondizi (1958), Patrício (1993) para situar a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana no contexto axiológico. , viabilizando uma análise dos valores em contextos em que se utiliza a Investigação Temática como aporte teórico-metodológico para a efetivação de um Projeto Pedagógico Libertador, conforme mostrado no Quadro 2:

Quadro 2
A relação entre os conceitos freireanos, dusselianos e axiológicos.

Os oprimidos, a quem Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra. se refere, são os sujeitos axiológicos que fazem parte da comunidade de vítimas, na qual os valores compartilhados emergem das relações entre si e da realidade material. Cada comunidade se constitui a partir da intersubjetividade entre os sujeitos, dando origem a uma cultura, uma história, um sistema de valores específico da realidade concreta em que se encontram (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.). Quando uma comunidade é marginalizada, silenciada e invisibilizada, por meio de um sistema hegemônico que subjuga os valores de uma cultura em detrimento de outra, ela se torna uma comunidade de vítimas (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.).

O processo de humanização das vítimas necessita de um projeto de libertação que as conscientize sobre as relações de dominação que as oprimem, viabilizando um resgate dos valores da cultura subjugada (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.). Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra., no âmbito educacional, propõe o processo de Investigação Temática pautado na dialogicidade e problematização que, a partir dos critérios ético-críticos da filosofia dusseliana, pode se caracterizar como um aporte teórico-metodológico que oportuniza a efetivação de um Projeto Pedagógico Libertador emergente da realidade concreta das próprias vítimas.

Essa reflexão da dimensão axiológica, a partir das relações de opressão, dominação, marginalização e exclusão, propiciou uma percepção de que o processo de humanização dos sujeitos envolve necessariamente as dimensões ontológica, epistemológica e praxiológica, sendo impossível a dissociação entre elas (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.). No entanto, as dimensões axiológica e ontológica revelaram-se como a base para a compreensão de como um projeto de dominação se instala, principalmente via sistema educacional, naturalizando as contradições sociais, silenciando e invisibilizando as vítimas desse sistema.

Em contrapartida ao projeto de dominação, a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana, ambas originárias da realidade das vítimas na América Latina, evidenciam elementos e estratégias para a construção de um projeto libertador, tendo como fundamento uma educação dialógico-problematizadora. Nesse sentido, a libertação das vítimas começa pela denúncia dos mecanismos de dominação de um sistema hegemônico, por meio do processo de conscientização mútua entre as vítimas. Em seguida, são anunciadas as alternativas de superação de uma condição existencial fadada ao silenciamento e invisibilização dos valores e do próprio ser das vítimas, isto é, a elaboração e implementação de um sistema anti-hegemônico (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.; Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. (17. ed.). Paz e Terra.).

Nesse contexto, a Abordagem Temática Freireana se caracteriza como uma importante estratégia de implementação de um projeto pedagógico libertador, oferecendo uma alternativa de ressignificação do currículo escolar, de uma prática pedagógica ético-crítica e de processos formativos coerentes com uma proposta de libertação das vítimas (Silva, 2004Silva, A. F. G. (2004). A construção do currículo na perspectiva popular crítica: Das falas significativas às práticas contextualizadas. [Tese de doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.; Furlan, 2015Furlan, A. (2015). Concepção de um currículo crítico: a ética como referência praxiológica. [Dissertação de mestrado em Educação]. Universidade Federal de São Carlos.). A filosofia dusseliana integra-se à Abordagem Temática Freireana como o fundamento teórico que explica seu propósito e sua natureza libertadora, além de justificar as razões pelas quais necessita-se da reflexão em níveis axiológico, ontológico, epistemológico e praxiológico do sistema educativo em relação ao sistema mundo.

A Abordagem Temática Freireana revela sua importância ao contribuir para o rompimento da lógica de exclusão, quando viabiliza um modo de se investigar as demandas dos sujeitos em situação de opressão, considerando seus valores, costumes, crenças e sabedoria popular, possibilitando o desenvolvimento de uma consciência ético-crítica que lhes permite vislumbrar soluções para as demandas negligenciadas historicamente pelo sistema hegemônico, tendo como base valores como respeito, solidariedade, cooperação, coprodução e coaprendizagem (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.; Auler, 2018Auler, D. (2018). Cuidado! Um cavalo viciado tendo a voltar para o mesmo lugar. Appris.).

Algumas considerações

A reflexão sobre a prática docente envolve a atuação do educador tanto na elaboração do currículo quanto nas atividades em sala de aula, influenciando não só na dinâmica da comunidade escolar, mas também na sociedade como um todo (Dussel, 1980Dussel, E. (1980). La pedagógica latinoamericana. Nueva América.). Dessa forma, a caracterização de uma prática educacional ético-crítica necessita ser pensada durante o processo formativo dos educadores, para que estes desenvolvam uma consciência ético-crítica e possam se tornar agentes transformadores por meio de uma práxis libertadora.

Para isso, faz-se necessário incluir as discussões e reflexões sobre os valores em todas as dimensões do processo educativo libertador, pois os valores caracterizam-se como importantes indicativos de como os educandos compreendem sua condição material e existencial. O processo de desvelamento da realidade local realiza-se mediante um processo dialógico entre educador e educando, em que os valores possuem um papel imprescindível na superação da cultura do silêncio. Nesse contexto, a articulação entre a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana viabiliza um aporte teórico-metodológico que permite uma compreensão sobre quais são os valores da cultura popular indispensáveis ao processo educativo, por meio da Investigação Temática enquanto um mecanismo de desenvolvimento de um Projeto Pedagógico Libertador.

O Projeto Pedagógico Libertador pode encontrar na Investigação Temática a fundamentação de uma práxis axiológico-transformadora ao incluir em seu desenvolvimento questões ontológicas, históricas, sociais e axiológicas no processo de desvelamento da realidade e de superação das contradições sociais. A educação ético-crítica, que emerge desse contexto, caracteriza-se como o início do rompimento da lógica opressora do sistema hegemônico, que funciona com base na negação ontológica e axiológica das vítimas que estão na “periferia” do mundo (Dussel, 2002Dussel, E. (2002). Ética da libertação: Na idade da globalização e da exclusão. Editora Vozes.).

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    Normalização, preparação e revisão textual: Maria Thereza Sampaio Lucinio – e-mail: thesampaio@uol.com.br
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    Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB - Nº BOL0169/2018) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - 423942/2018-2).
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    Sabendo-se que existem outros tipos de abordagens temáticas, faz-se necessário destacar que a Abordagem Temática Freireana se diferencia da abordagem conceitual, pois essa última seleciona os conteúdos a partir dos conceitos científicos, ou seja, não há necessariamente uma preocupação em estabelecer uma relação entre os conteúdos e os conhecimentos advindos da cotidianidade dos educandos. Já na Abordagem Temática freireana. os conteúdos devem necessariamente partir de uma situação-limite identificada por meio do processo de Investigação Temática (Delizoicov, 1982Delizoicov, D. (1982). Concepção Problematizadora do Ensino de Ciências na Educação Formal. [Dissertação de mestrado em Educação]. Universidade de São Paulo.).
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    A “Perspectiva axiológica” aqui referida diz respeito à síntese da compreensão sobre os valores com base na definição de valor, valoração e axiologia de autores como Hessen (1974)Hessen, J. (1974). Filosofia dos valores. Armênio Amado., Frondizi (1958)Frondizi, R. (1958) ¿Qué son los valores? Introducción a la axiología. Fundo de cultura económica., Patrício (1993)Patrício, M. (1993). Lições de axiologia educacional. Universidade Aberta. para situar a pedagogia freireana e a filosofia dusseliana no contexto axiológico.

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Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2020
  • Revisado
    25 Jun 2020
  • Aceito
    03 Nov 2020
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