Resumo
São muitas as “vozes da infância” que ecoam na literatura de Clarice Lispector. Elas vão desde as inúmeras personagens crianças que protagonizam seus textos até os livros dedicados ao público infantil, passando pelas crônicas que ilustram a interação da cronista com seus filhos. Este artigo busca focar-se, primeiramente, em alguns contos cujas personagens infantis se deparam com acontecimentos e encontros que lhes suscitam uma quebra na fantasia, desencadeando nelas um processo no qual a infância começa a findar-se. Em seguida, serão analisadas crônicas nas quais a escritora descreve momentos de interação com seus filhos crianças. Essa análise se fará a partir de uma leitura que demonstra o quanto o olhar infantil para o mundo produz na linguagem um efeito similar ao da poesia e serve de grande substrato para a criação literária. Por fim, discute-se o fato de as crianças serem, assim como os bichos, personagens com grande efeito na escritura clariceana, aproximando-a do seu leitmotiv: o informe e irrepresentável.
Palavras-chave
Clarice Lispector; Infância; Criação; Gilles Deleuze
Abstract
Many childhood voices echo in Clarice Lispector's literature. They range from the countless child characters who star in her texts to the books dedicated to children, including the chronicles that illustrate the interaction between the writer and her children. This article focuses, firstly, on some short stories in which child characters face events and encounters that shatter their fantasies, triggering a process in which childhood begins to come to an end. Next, we will analyze chronicles in which the writer describes moments of interaction with her children. This analysis will be based on the understanding that a child's worldview produces an effect in language similar to that of poetry, serving as a powerful foundation for literary creation. Finally, it discusses how children, as well as animals, are characters with significant effect in Clarice's writing, bringing it closer to her leitmotif: the shapeless and unrepresentable.
Keywords
Clarice Lispector; Childhood; Creation; Gilles Deleuze
Apresentação
Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
(Lispector, 1999a, p. 114)
A infância é um tema essencial na literatura, fortemente presente nos textos modernos. No Brasil, muitos autores abordaram o mundo por meio dos olhos e das vozes das crianças: José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Manuel de Barros, para citar apenas alguns clássicos. Cada qual aborda a temática de maneira muito particular, em diálogo com características mais amplas de suas literaturas. Neste artigo, apresenta-se um recorte do modo como as vozes da infância ecoam nos textos de Clarice Lispector. Ainda que esse enfoque já tenha sido estudado pela crítica clariceana, pretende-se aqui, além de retomar maneiras como ele foi abordado, apresentar uma análise comparativa entre alguns contos e algumas crônicas da escritora e demonstrar a forma como a infância se presentifica de maneira peculiar em textos desses dois gêneros.
Assim, na primeira parte, percorremos alguns contos protagonizados por personagens infantis que, de certa maneira, remetem à infância da escritora, sem, contudo, limitarem-se a uma história particular. Ao construir enredos que ilustram crianças solitárias, carentes, buscando pertencimento, Clarice demonstra o modo como o mundo adulto, em suas demandas e durezas, tende a aprisionar a “fantasia solta” da criança, fazendo com que ela se torne um ser oprimido à mercê de vontades alheias. Nesse sentido, “crescer” parece libertário e acaba sendo o que almejam essas personagens. Sousa (2000), ao analisar a obra de Clarice, aponta: “podem-se exemplificar alguns dos modos pelos quais as personagens vão dar corpo a essa matéria moldável, terreno propiciador da construção de uma identidade” (p. 412). Dessa maneira, muitas narrativas clariceanas destacam personagens em fase de transição – seja da infância à adolescência, seja da adolescência à vida adulta –, que se veem compelidas a entrar nos padrões socialmente impostos e a se revestir de construtos que as afastam cada vez mais do mundo das sensações e da fantasia solta.
Em seguida, ao analisarmos crônicas em que são retratados momentos de interação entre a narradora e seus filhos, destaca-se a potência criativa que há no olhar infantil sobre o mundo. Nessa parte, traça-se um diálogo com a filosofia deleuze-guattariana, mobilizando para a análise o que esses autores dizem da infância. Nesse ínterim, recorre-se ao devir-criança como um elemento marcante nos escritos clariceanos, em estreita relação com o papel que os animais, os elementos informes e a natureza exercem em sua literatura.
Assim, buscou-se destacar a forma como o tema da infância se presentifica nos contos da escritora que possuem protagonistas infantis, com destaque àqueles publicados em Felicidade clandestina (Lispector, 1971) e em suas crônicas, especialmente aquelas que apresentam momentos de interação entre a cronista e seus filhos. Tanto nos contos quanto nas crônicas, a ideia de fantasia solta, ou seja, da infância como um momento de potência criativa da vida e de conexão com os desejos, de um olhar insurgente que atribui novos significados ao mundo, aparece. Contudo, nos contos, essas características tendem a ser tolhidas pelo entorno das protagonistas infantis, ao passo que nas crônicas elas são exploradas literariamente. Por fim, as vozes infantis nos textos de Clarice Lispector são múltiplas e também se abrem a múltiplas interpretações; neste artigo, destacam-se duas maneiras como elas ecoam, fazendo, por vezes, um coro dissonante às formas como já foram anteriormente abordadas pela crítica.
A infância impossível
Em célebre entrevista dada ao jornalista Júlio Lerner para o programa “Panorama” da TV Cultura, em fevereiro de 1977, Clarice Lispector fala a respeito da sua comunicação com as crianças. Em meio a um difícil diálogo, no qual o entrevistador muito se esforça para tirá-la dos seus inúmeros e longos momentos de silêncio, ele questiona a escritora:
̶ Quando me comunico com criança é fácil, porque sou muito maternal. Quando me comunico com adulto, estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma.
̶ O adulto é sempre solitário?
̶ O adulto é triste e solitário.
̶ E a criança?
̶ A criança tem a fantasia solta.
̶ A partir de que momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai se transformando em triste e solitário?
̶ Isso é segredo. Eu não vou responder.
[Após uma longa pausa, ela diz] – A qualquer momento da vida. Basta um choque um pouco inesperado e isso acontece. (Sebo Labirinto, 2015)
A princípio, foquemo-nos na frase “a criança tem a fantasia solta”. Ela ressoa fortemente no conto “Restos do carnaval”, publicado no livro Felicidade clandestina de 1971. Na narrativa em primeira pessoa, a personagem inicia sua história aludindo ao título do conto, dizendo que os “restos” aos quais se refere não são do último carnaval vivido, mas trata-se de restos mais longínquos, de um carnaval de sua infância no Recife, que deixara nela marcas tão profundas a ponto de lhe serem ainda pouco compreensíveis.
A menina, que anualmente esperava ansiosa pela chegada do carnaval, não participava de nenhum baile infantil e, principalmente, não era nunca fantasiada. Mas ela podia ficar sentada nos degraus em frente à casa com as duas “coisas preciosas” ganhadas todos os anos: um saco de confetes e um lança-perfume. Esses elementos aproximavam-na da festa e da fantasia e permitiam-lhe ser um pouco “mais criança”. Afinal, a narradora já adulta, ao recordar, constata: “mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz” (Lispector, 2016, p. 397). Essa personagem, em certa medida, contraria a fala da escritora em entrevista. Em vez de ter a fantasia solta, esta parece lhe ser tolhida, ou viver oculta, de alguma maneira recalcada pelo árduo ambiente familiar no qual vivia: “Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança” (p. 398). Essa mãe adoecida representa, ao longo do conto, uma culpa com a qual a personagem convivia, fazendo com que sua capacidade de prazer fosse secreta, deixando-se vir minimamente à tona nos períodos do carnaval, quando era possível permitir-se o prazer e o lúdico, já que todos nas ruas igualmente se permitiam o mesmo.
Talvez, por esse motivo, ela esperasse tão ansiosamente por esse momento do ano. “E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava?” (Lispector, 2016, p. 397). Contudo, apesar de ser tomada por uma certa euforia frente à chegada da grande festa, a narradora nos diz que dela pouco participava: “Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem” (p. 397). Ela se aprazia sendo espectadora da diversão alheia, vendo um mundo onde aparentemente era possível estar livre e leve, distante das preocupações que a dura realidade impõe. “Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu” (p. 397).
O evento festivo aparece no trecho como uma sinédoque da própria alegria. Uma alegria que vivia nela e que, apesar de secreta, clandestina – dada a necessidade de recalque imposta por sua culpa, como discutiremos adiante –, também a constituía enquanto criança: ser desejante e criativo. O carnaval permitia-lhe vislumbrar uma forma de dar vazão à sua fantasia, portanto, era como um brinquedo (talvez por isso fosse dela), por meio do qual ela vivenciava uma outra realidade que não a sua. Uma realidade inventada como fazem as crianças quando brincam1. E também como fazem os adultos, quando, nessa festa anual, se fantasiam, se fingem de outros, brincam, se divertem e se permitem maior abertura aos encontros, dando vazão aos desejos.
No carnaval, a menina guardava todos os anos um lugar de distância, mantendo-se à beira da festa, na calçada, à margem da alegria, e não mergulhada em suas entranhas. No entanto, aquele que ocupava com seus restos a memória da narradora havia sido diferente dos demais. Havia nele a perspectiva de que ela pudesse, enfim, fazer parte da celebração, pertencer, ser possuída pelo evento em vez de apenas secretamente possuí-lo:
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
(Lispector, 2016, pp. 398–399)
Nesse trecho, surge a possibilidade de a fantasia ser vivenciada em sua plenitude, através da bondade e do cuidado de uma mãe. Afinal, estar vestida de rosa permitiria a ela integrar-se aos demais e fazer parte da festa, pertencer ao carnaval2. É aqui, contudo, que os restos ressurgem: a fantasia é feita das sobras do material da roupa da amiga e com as sobras do carinho, do tempo e do cuidado de outra mãe que não a sua. Em relação a isso, a narradora comenta: “Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola” (Lispector, 2016, p. 399). Pois era assim, a partir dos restos, que ela poderia viver sua maior fantasia – ser outra que não ela mesma e viver, talvez, uma infância mais parecida com a da amiga. Mas há também outro elemento que ecoa nessa passagem: a fantasia de ser uma rosa, com a qual poderia vestir-se.
A metáfora da rosa se faz presente desde o início do conto, no qual a voz narrativa compara a proximidade do carnaval com o mundo se abrindo “de botão que era em grande rosa escarlate” (Lispector, 2016, p. 397). Para a personagem, ser uma flor representa o desabrochar3. Escapar da infância na qual não era vista, para ser enfim olhada e ocupar um lugar no mundo. Também por esse motivo ela esperava ansiosa pelo carnaval todos os anos, pois o mundo, abrindo-se em grande rosa, possibilitava-lhe vislumbrar um escape para sua “secreta capacidade de prazer” (p. 397). Como nos conta a protagonista, apesar de não ser nunca fantasiada, ela era maquiada pela irmã que acedia ao seu “sonho intenso de ser uma moça” (p. 398) e assim, com batom forte e ruge nas faces, ela se “sentia bonita e feminina” e “escapava da meninice” (p. 398).
Naquele carnaval, porém, em que a fantasia poderia ser completa, o dia é atravessado por um mal acontecimento e a rosa murcha ainda mesmo em botão:
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
(Lispector, 2016, p. 399)
A piora do estado de saúde materno fez com que a fantasia se perdesse, a menina se desencantasse de seu estado de rosa – “não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina” (Lispector, 2016, p. 400) – e fosse novamente lançada à sua dura realidade, tendo de se haver com sua desimportância de criança frente aos graves problemas do mundo adulto. Depara-se, dessa forma, mais uma vez, com o remorso por sua “fome de sentir êxito” (p. 400) ao lembrar-se da doença de sua mãe, impedindo a própria alegria de aflorar e obrigando-se a conviver apenas com os espinhos, sem o colorido e o perfume da flor.
A culpa que a personagem sente frente ao estado de saúde materno ressoa na infância da própria escritora Clarice Lispector4. Conforme compartilha em sua crônica “Pertencer” (Lispector, 1999a, pp. 110-112), ela nascera com a mãe doente e fora concebida com o propósito de curá-la. No entanto, por volta de seus 9 anos, sua progenitora morre e Clarice convive com o fardo de ter “falhado em sua missão de vida”: “Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe” (Lispector, 1999a, p. 111).
O livro Felicidade clandestina (Lispector, 2016, pp. 393-434), do qual “Restos do carnaval” (Lispector, 2016, pp. 397-401) faz parte, possui outras narrativas que parecem ter sido inspiradas na infância da escritora5. A própria história que dá nome à obra, por exemplo, trata da saga de uma menina apaixonada por livros que teria a chance de ter em suas mãos aquele mais cobiçado: Reinações de Narizinho. Para tanto, ela vai diariamente à casa da filha do dono da livraria, que lhe prometera emprestar o livro, mas sempre se depara com uma desculpa da garota, que lhe nega a entrega de seu objeto de desejo. Até que um dia, a dona da casa, percebendo algo estranho na presença diária daquela menina loura em sua porta, intervém na maldade da filha e lhe empresta o livro, revelando que ele sempre estivera lá. E, sobretudo, permite que a protagonista fique com o livro pelo tempo que quiser.
Não podemos deixar de notar que “Felicidade clandestina” adequar-se-ia muito bem como título de “Restos de carnaval”, no qual a felicidade da personagem, como vimos, era essa coisa sempre recalcada, proibida. E são comparáveis alguns aspectos entre as protagonistas e os enredos das duas histórias: ambas vivem em um sobrado na cidade de Recife e ambas têm seu desejo atendido por uma “boa mãe” que não as suas.
Voltando à questão do pertencimento, ela reaparece, em dualidade com a posse, em outro conto do mesmo livro, “Cem anos de perdão” (Lispector, 2016, pp. 408-411), no qual, mais uma vez, a narradora relembra sua infância no Recife, deixando claras, logo de início, as diferentes segmentações socioeconômicas que compunham a cidade. A pequena personagem não fazia parte, certamente, de uma classe abastada, pois uma de suas brincadeiras prediletas com uma amiguinha consistia em andar pelas “ruas dos ricos” – a construção da expressão as exclui desse grupo –, “ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins” (Lispector, 2016, p. 408); e brincar de decidir a qual das duas pertenciam os palacetes. Assim, “faziam de conta” que eram também ricas.
Em uma dessas ocasiões, a protagonista se vê em frente a uma casa “que parecia um pequeno castelo” (Lispector, 2016, p. 408), no jardim da qual havia uma “rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo” (p. 408). Frente àquela rosa, o desejo de posse não ganha satisfação de forma fantasiosa e precisa concretizar-se materialmente: “Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria” (p. 408). Assim, ela adentra sorrateira o jardim para apropriar-se de seu objeto de desejo – “Até chegar à rosa foi um século de coração batendo” (p. 409).
É interessante notar a rosa, flor que habita largamente o universo clariceano, presente em mais um conto de Felicidade clandestina (Lispector, 2016, pp. 393-434). E aqui, novamente, como metáfora do tornar-se uma mulher adulta, no caso, o botão que começara há pouco a se abrir representa a própria menina crescendo, prestes a também desabrochar. E, mais uma vez, parece ser esse desabrochar que obceca a personagem, ela o deseja e busca; quer, talvez, assim como a bela flor, ser notada e apreciada. Porém, por que possuir a rosa? O narrador de “A menor mulher do mundo” (Lispector, 2016, pp. 193-201) responderia: “porque é bom possuir” (Lispector, 2016, p. 200). Em “Cem anos de perdão” (Lispector, 2016, pp. 408-411), a narradora nos conta: “O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha” (Lispector, 2016, p. 409). Contudo, talvez esse desejo de posse carregue em si outra necessidade. Afinal, se a flor simboliza a protagonista e se faz com que ela tenha vontade de possuí-la, então, podemos interpretar que também a garota almeja despertar em outrem esse desejo e, assim, pertencer6.
No conto “Tentação” (Lispector, 2016, pp. 304-316), mais um em que há uma menina que carrega alguns traços que podem remeter a Clarice criança, a questão da posse também está presente. Apesar de nele, diferentemente dos demais, não haver um narrador protagonista expondo suas memórias – e sim um narrador flutuante entre observador e onisciente, que presencia o encontro entre a menina e o cachorro bassê –, há aspectos semelhantes às narrativas já mencionadas, como, por exemplo: uma criança do sexo feminino sentada nas escadas em frente à sua casa. Aqui ela olha para a rua vazia e entediante, sem a alegria da festa carnavalesca, sob um calor escaldante. Essa pequena sente-se isolada e diferente pelo fato de ser ruiva. “Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?” (Lispector, 2016, p. 314). Novamente a ideia do tornar-se adulta como uma solução para o deslocamento e a solidão, que caracterizam também o despertencimento.
A personagem, em desalento, não parece ainda mais triste e solitária (como seria um adulto nas palavras clariceanas já citadas) porque “o que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos” (Lispector, 2016, p. 314). Que bolsa seria aquela? De quem teria sido, já que pela descrição parece ter mais idade que a menina? O que simbolizaria? O conto não nos dá elementos para uma análise mais profunda a esse respeito, mas podemos perceber que possuir tal objeto é importante para a garota, que a ele se agarra e que por ele é salva.
Mas eis que aparece na história um outro mais substancial, que poderia mesmo livrá-la de sua solidão: um bassê; um cachorro ruivo como ela. “Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos” (Lispector, 2016, p. 315). Nele, a garota reconhece um semelhante – e, a partir desse estado de identificação, surge a vontade de possuí-lo7. “Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro” (p. 315). Diferentemente, contudo, das personagens que desejavam unilateralmente o livro, a rosa ou a fantasia, a protagonista desse conto também se viu desejada pelo cachorrinho: “Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos” (p. 315). Um viu no outro a saída para aquilo que sentiam e daquilo que eram.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne.
(Lispector, 2016, p. 315)
No entanto, esse mútuo pertencimento não poderia se realizar, bastaria “um instante e o suspenso sonho se quebraria” (Lispector, 2016, p. 315), pois “ambos eram comprometidos. Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada” (p. 315). Essa passagem nos remete a “Restos do carnaval” (Lispector, 2016, pp. 397-401), visto que uma “infância impossível” parece ser aquela em que não se pode ser criança e “ter a fantasia solta”. Guimarães (2017) analisa que essas personagens infantis habitam “um ambiente marcado pela falta em que predomina a vontade de chegar à vida adulta e de fazer parte de algo maior” (p. 16). Daí a necessidade do “desabrochar”. Dessa maneira, a fantasia poderia instaurar-se no âmbito literário e/ou sexual.
Ambos são elementos que, nas narrativas, levam à transformação das protagonistas meninas em mulheres, o que abre caminho para que elas possam flertar com a vida adulta, livrando-se, ao menos em parte, de sua condição de criança e conhecendo uma outra forma de escape e libertação.
(Guimarães, 2017, p. 16)
Nesses contos, percebemos a infância como um lugar de vulnerabilidade, no qual a criança está exposta, sem máscaras: “mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil” (Lispector, 2016, p. 400). A fantasia seria, portanto, um espaço seguro, protetivo, que libertaria essas personagens de sua solidão e despertencimento. Contudo, viver a fantasia, grande parte das vezes, é algo interdito pela dura realidade das personagens infantis que convivem com carências diversas8, tanto socioeconômicas, visíveis nos contos “Cem anos de perdão” (Lispector, 2016, pp. 408-411), “Felicidade clandestina” (Lispector, 2016, pp. 393-397)9 e mesmo “Restos do carnaval” (Lispector, 2016, pp. 397-401)10, quanto afetivas, marcadas neste último pela ausência de cuidados consequentes de um lar em que a mãe, em vez de cuidar, requer cuidados, ou pelo fantasma da culpa que assola essa personagem devido à sua impotência frente ao estado de saúde materno. Também a menina de “Tentação” (Lispector, 2016, pp. 314-316) expressa essa carência, tendo em vista sua solidão na tarde quente.
Essa fantasia, portanto, ganha vazão por meio do contato com a literatura – no caso de “Felicidade clandestina” (Lispector, 2016, pp. 393-397) – ou com a festa carnavalesca, no caso de “Restos do carnaval” (Lispector, 2016, pp. 397-401). Mas também, especialmente, por meio do escape da vida infantil, cujo caminho se faz nesses contos, protagonizados por crianças, por meio da descoberta da sexualidade. É nesse processo que essas personagens se veem como passíveis de serem desejadas por um outro. Afinal, no âmbito familiar se sentem deslocadas, sozinhas e fracassadas no propósito que lhes foi dado, e não pertencentes e desejadas. Vivem, assim, uma “infância impossível”. A saída é, por fim, crescerem e serem cobiçadas por seus atributos de mulher. Por esse meio, a menina de “Restos do carnaval”, após o acontecimento traumático que atravessa sua euforia, pôde, enfim, tornar-se uma rosa.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
(Lispector, 2016, p. 400)
Nessa cena que encerra o conto, ela se sente vista e admirada por um outro, tal qual uma deslumbrante e perfumada rosa. Há o início do desabrochar e o botão começa a abrir-se em flor. Outros contos também têm o final marcado por elementos que remetem à descoberta da sexualidade ou ao erotismo. Em “Felicidade clandestina” (Lispector, 2016, pp. 393-397), por exemplo, temos esta passagem: “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo” (Lispector, 2016, p. 396). Estar na rede com seu objeto de desejo e atingir um êxtase puríssimo são componentes da cena que podem remeter a um momento erótico. Essa interpretação reforça-se com a frase final narrativa: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante” (p. 396).
Em “Cem anos de perdão” (Lispector, 2016, pp. 408-411), após o arrebatamento que sente ao roubar a rosa, a protagonista passa a roubar pitangas. Ao analisar esse desfecho, Guimarães (2017) constata que as conotações sexuais são evidentes no final do conto e reforçam-se pela última frase: “As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens” (Lispector, 2016, p. 410). A esse respeito, Guimarães (2017) ainda afirma:
Assim, invés de “amadurecer e morrer no galho virgens”, ambas, pitanga e menina, finalmente encontram com uma parte vital da sua razão de existir, e é esse reconhecimento a chave para que se possa integrar o coletivo e livrar-se da clandestinidade que, nos contos de Clarice Lispector parece sempre assolar a infância. (p. 53)
Reafirma-se, portanto, nos desfechos desses contos de Felicidade clandestina (Lispector, 2016, pp. 393-434), o término da infância não como “um final feliz”, mas como a saída do impossível para o possível. Nisso ressoa a frase de Deleuze (2010): “um pouco de possível, senão eu sufoco” (p. 135). O caminho, contudo, que as personagens desses contos seguem talvez não sejam saídas, no sentido kafkaniano11, mas a entrada em um mundo formatado, em que a liberdade criativa é tolhida e a fantasia aprisionada12. Isso porque, como veremos adiante, em diálogo com Deleuze e Guattari (1997, 2003, 2004) e com base em algumas crônicas de Clarice, a infância é o tempo do informe, da insurgência, das linhas de fuga.
Devir-criança, seres minoritários, criação
Um dos recortes da infância presentes na literatura de Clarice Lispector, como pudemos ver, corresponde às vozes dessas personagens infantis, construídas a partir de aspectos que ecoam sua própria vida quando criança. Outro diz respeito à sua relação com os filhos, a qual parece fazer reverberar a fantasia solta da infância que observa e com a qual se relaciona, em contraponto à fantasia tolhida das personagens anteriormente citadas. A escritora, em inúmeras de suas crônicas – duas, inclusive, presentes em Felicidade clandestina (Lispector, 2016, pp. 393-434), a saber, “Come, meu filho” (Lispector, 2016, pp. 401-403); e “Uma esperança” (Lispector, 2016, pp. 411-414) –, relata momentos de interação com os filhos pequenos, destacando a poética do olhar da criança sobre o mundo.
Na primeira das crônicas citadas, temos o seguinte diálogo:
– Irreal.
– Por que você acha?
– Se diz assim.
– Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?
– Parece. (Lispector, 2016, pp. 401-402)
Clarice transforma em crônica essa conversa com seu filho provavelmente por perceber a potência poética do olhar infantil sobre o mundo. Sobral e Viana (2014) observam que “a palavra da criança, como a do poeta, cria outra realidade no lugar daquela já existente, uma realidade imaginada com elementos os quais a realidade concreta não comporta” (p. 442). A criança o faz por estar ainda livre dos construtos sociais, institucionais etc. que determinam nosso olhar sobre as coisas e regem nossas opiniões. Já o poeta consegue se libertar desses construtos, consegue descascar a tinta com que lhe foram pintados os sentidos e desencaixotar suas emoções verdadeiras13, a fim de dar novos significados àquilo que o cerca.
A respeito disso, Clarice desenvolve uma reflexão em sua crônica “O artista perfeito”14 (Lispector, 1999a, pp. 228-229). Nela, a escritora não fala sobre a criação poética, mas artística, estabelecendo um comparativo entre esta e a criatividade infantil. Assim, em um primeiro momento, a cronista, a partir de uma proposição bergsoniana de que o grande artista “seria aquele que tivesse, não só um, mas todos os sentidos libertos do utilitarismo” (Lispector, 1999a, p. 228), levanta a hipótese de que
se pudesse educar, ou não educar, uma criança, tomando como base a determinação de conservar-lhe os sentidos alertas e puros. Que se não lhe dessem dados, mas que os seus dados fossem apenas os imediatos. Que ela não se habituasse
(Lispector, 1999a, p. 228),
então teríamos um artista perfeito. Porém, em seguida, essa hipótese é desconstruída com base no pensamento de que essa pessoa, criada a esse modo, não seria um artista e sim um inocente. “E arte, imagino, não é inocência, é tornar-se inocente” (Lispector, 1999a, p. 229). Contudo, talvez essa reflexão a tenha levado a entender que o olhar inocente da criança poderia ajudar o artista (seja ele um literato ou não) a inocentar-se também. Ou seja, poderia ensiná-lo a despir-se do que aprendeu, a esquecer do modo de lembrar que lhe ensinaram15.
Essa visão de infância remete muito claramente ao pensamento deleuze-guattariano sobre essa fase da vida, que não é encarada pelos autores apenas como uma etapa que se supera, mas é vista como um momento fundamental de desenvolvimento e potencialidades e de resistências às formas de controle. O olhar infantil, de quem olha e percebe pela primeira vez as coisas, não está ainda atrelado às cadeias referenciais da recognição16 e, por isso, consegue atribuir novos sentidos ao mundo. É o que se passa com o personagem da minicrônica “Menino” (Lispector, 1999a, p. 287), também publicada com o título “Futuro de uma delicadeza” (Lispector, 1999b, p. 16). Ele diz: “Mamãe, vi um filhote de furacão, mas tão filhotinho ainda, tão pequeno ainda, que só fazia mesmo era rodar bem de leve umas três folhinhas na esquina” (Lispector, 1999a, p. 287). Essa bela imagem nos revela a grandiosidade presente no pequeno e no banal. Um vento que faz rodar algumas folhinhas é elevado à furacão, e algo corriqueiro se torna um acontecimento especial pelo olhar admirado da criança, que também expressa afeto pela cena através da escolha carinhosa dos termos “filhote” e “filhotinho”. Como afirma a escritora, “são o que se pode esperar de uma criança: limpidez e pureza e criatividade e afeto e naturalidade” (p. 372).
Deleuze, em entrevista dada a Parnet (2015), afirma: “Tornar-se criança através do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo e restaurar esta infância. Eis as tarefas da literatura”. Restaurar essa infância seria restaurar a liberdade, a espontaneidade e a criatividade perdidas. Reestabelecer, na vida, a sabedoria dos inocentes. Na crônica “O que Pedro Bloch me disse” (Lispector, 1999a, pp. 472-474) Clarice escreve: “Para captar tantas coisas maravilhosas ditas pelas crianças é só ter ouvidos de ouvir criança” (Lispector, 1999a, p. 472). E ainda: “Aprendo com as crianças tudo o que os sábios ainda não sabem” (p. 472).
Essa última frase remete-nos mais uma vez ao poema de Caeiro (Pessoa, 2020), que nos lembra da importância do desaprender, do desfazer-se das camadas e dos construtos que nos foram engendrados vida afora e, muito especialmente, na infância, por meio da educação, não apenas escolar. Aprender o que os sábios não sabem é desapegar-se de formas já conhecidas de saberes, é buscar um momento anterior ao entendimento de qualquer coisa, conectar-se com a sensação pura e não mediada de um pensamento ainda não formado.
Em “Lição de filho” (Lispector, 1999a pp. 138-139) a escritora enaltece um desses aprendizados que tem com as crianças e nos narra que, quando viu na televisão uma moça, da qual gostava, tocar piano, começou a chorar – e, então, diz: “Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele: -Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção” (Lispector, 1999a, p. 138). E a cronista encerra assim o texto: “Entendi, aceitei, e disse-lhe: -Não vou tomar nenhum calmante. E vivi o que era para ser vivido” (pp. 138-139). Essa passagem nos faz pensar, justamente, sobre a dificuldade dos adultos de lidar com as suas sensações puras, sem atribuir a elas um significado ou sem tentar amenizá-las. Ou seja, respeitar a verdade das próprias emoções, sem encobri-las, parece ser uma das coisas que Clarice busca absorver do universo infantil. Para tanto, podemos afirmar que ela mesma e sua escrita são tomadas por um devir-criança17.
Lembremo-nos que para Deleuze e Guattari (2004) o devir é sempre minoritário18. Isso porque o devir é necessariamente insurgente; ele não define a norma, ao contrário, ele a questiona, ele a infringe. Por isso faz sentido que haja um devir-criança e por isso também é coerente que esse devir tome conta da escrita clariceana19.
Dinis (2023) analisa que,
no universo Clariceano, tornar-se criança é procurar escrever com o sentimento dos alertas puros rompendo com a domesticação do olhar que civilizou o adulto. Escrever com os sentidos libertos do utilitarismo para que se possa olhar e experimentar o mundo de forma sempre nova e inusitada. Mas se tornar-se criança é a forma que permite ao narrador clariceano afastar-se da hegemonia do olhar adulto, criando uma arte da ruptura, tornar-se bicho é também um dispositivo que permite afastar-se da hegemonia do mundo racional humano, é tentar aproximar-se da vida de uma forma mais direta e instintiva. (pp. 150-151)
Assim, a atenção da autora é sempre capturada por essas existências mais instintivas, e sua escrita conecta-se profundamente com os seus bichos e filhos, aos quais dedica e nos quais inspira páginas e páginas de seus textos. Em “Lembrança de filho pequeno” (Lispector, 1999a, p. 139), ela descreve a cena em que observa o filho tomar sorvete. Compenetrado, deliciando-se com aquele prazer, o menino “não se incomoda de ser observado nesse seu ato íntimo, vital e delicado” (Lispector, 1999a, p. 139). Sua imagem de ávido desejo contrasta com a da mãe que o observa e se descreve como alguém “pesada”, “impenetrável”, “desconfiada”, “estrangeira”, de “olho vazio”, de coração “pesado, obstinado, inexpressivo, fechado a sugestões” (p. 139). Essa imagem nos remete a alguém imóvel, sem avidez e “recuada. Recuada diante de tanto” (p. 139). É uma cena que contrapõe a imagem do adulto preso e limitado à da criança, indelimitada e livre.
Essa imagem de algo liberto de limites, formas e convenções é recorrente na literatura clariceana e se faz presente por meio de signos que costumam aludir ao informe – como o interior do ovo, a massa da barata, a geleia viva –, mas também se presentifica nas personagens minoritárias que povoam sua obra. Personagens como Pequena Flor, de “A menor mulher do mundo” (Lispector, 2016, pp. 193-201), cuja natureza selvagem se desprende dos saberes institucionalizados, da linguagem e da razão e se aproxima do instintivo, do sensorial, do pré-racional. É nesse campo semântico também que se insere a criança nos textos clariceanos, de um dessaber convencional aberto à criação, a novos e inusitados olhares e sentidos.
Crianças povoam a obra de Clarice Lispector, em convite à desintelectualização: caminho de retorno à realidade viva e autêntica do homem. Em convite ao eu profundo. Porque não penetraram na idade da razão, não têm ainda adestrados os instrumentos racionais de defesa. E são muito mais espontaneidade e quase só estesia: olhos espantados ao olhar o mundo-aí. Descobrindo, compreendendo, e descortinando.
(Pessanha, 1989, p. 187)
Esse mundo aí equivale a um mundo de sensações mais “puras”, não mediadas pela razão e pelas interpretações que dela decorrem. As crianças mais fabulam que interpretam. E, ao fabularem, constroem saberes novos, não generalizados. Pessanha (1989) nos diz: “porque não treinaram a razão discursiva, as crianças olham o mundo mais de perto” (p. 187). Para o autor, como na infância não possuímos ainda um destacamento intelectual, quase não há distanciamento do mundo-aí e todas as coisas são percebidas como uma presença singular e absorvente. É o olhar de quem vê pela primeira vez e, encantado, absorto, cria sentidos que fogem dos usuais. Novamente: é aprender o que os sábios não sabem.20
Por isso podemos dizer que o devir-criança em Clarice Lispector (dentre outros tantos devires que habitam sua escrita) é muito presente. Justamente porque a escritora se deixa afetar por essa força que emana desses pequenos seres que, por serem “inocentes”, se esquivam dos caminhos costumeiros, de soluções dadas de antemão, e constroem mundos à parte, ainda que fantasiosos, mundos que mostram possibilidades para este em que habitamos. Afinal, como diz Deleuze (2011), “a criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente” (p. 73). Ou seja, a criança não cessa de encontrar saídas e de desenhar linhas de fuga. Por mais díspares que possam parecer as reflexões deleuzeanas e freudianas em relação à infância, caberia aqui também a alusão ao que diz Freud (1996) em Escritores criativos e devaneios: “toda a criança, ao brincar, se comporta como um criador literário, pois constrói para si um mundo próprio” (p. 327).
Mas Clarice é perspicaz e sabe o modo como o mundo busca aprisionar a fantasia solta da criança. Como moldar e formatar é um importante mecanismo de poder. Por isso os recortes da infância que faz em sua obra abrangem tanto o ser livre e indelimitado, criativo e inovador, quanto o ser subjugado, carente, despertencente, sendo moldado a ser o que não é.
Na crônica “A nossa natureza, meu bem” (Lispector, 1999b, p. 31), a escritora registra mais uma fala de um filho: “É tão engraçado, mamãe, descobri que a natureza não é suja. Quer ver esta árvore? Está toda cheia de cascas e pedaços, e não é suja. Mas esse carro, só porque tem poeira, está sujo mesmo” (Lispector, 1999b, p. 31). É interessante perceber que o olhar da criança se atenta aos detalhes, às miudezas que tantas vezes passam desapercebidas por nós21. É essa clareza de detalhes da natureza que também percebe Ana, do conto “Amor” (Lispector, 2016, pp. 145-156), quando entra no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e se vê capturada pela “vida secreta” que ali habitava. Essa vida secreta estava relacionada à natureza e a seu ciclo, aos frutos apodrecendo, ao cheiro das flores, às circunvoluções dos caroços, às patas da aranha. A esses elementos, a narradora do conto chama de “crueza do mundo” (Lispector, 2016, p. 151), da qual a personagem, adulta, foge assustada e retorna à sua vida conhecida, em casa, com seu marido e filhos. Essa crueza nos remete ao mundo-aí, natural, selvagem e não racionalizado.
Esse mundo, como bem sabe a criança, não é sujo, pois está em seu estado primevo, natural. Já as coisas feitas pelo homem, como o carro, “se sujam” ao serem tocadas pelo natural – a terra, a poeira. Talvez tenhamos nessa imagem uma metáfora potente para o que é feito das crianças: faz-se delas adultos “fabricados em série”, como um carro, os quais ao serem atravessados por algo “cru”, não mediado, se sentem “sujos” e buscam rapidamente limpar-se. Ou seja, buscam um enquadramento dentro do que já conhecem, uma atribuição de sentido que os livre da embaraçosa sensação que se sobrepõe à razão.
Considerações finais
Ao compararmos as vozes da infância que ecoam em alguns contos clariceanos às vozes da infância que aparecem em suas crônicas, sobretudo àquelas em que a cronista recupera momentos de interação com seus filhos, percebemos que nos contos imperam crianças que buscam se livrar da fase da vida na qual se encontram, pois sentem-se à mercê da soberania dos adultos que lhes tolhem a fantasia e a criatividade. Em contrapartida, as crônicas destacam a visão que a criança tem do seu entorno, uma visão inventiva, que atribui novos significados ao mundo. Assim como os poetas, essas personagens das crônicas subvertem a linguagem, redimensionam os acontecimentos, percebem além de olhares costumeiros e banalizados.
Tanto os contos quanto as crônicas recuperam elementos da vida da própria escritora, como já foi apontado por Gotlib (2013), ao pesquisar a “personagem Clarice”. Contudo, percebemos que, ainda que haja resquícios memorialísticos nesses textos, o que impera neles é o devir-criança, que eleva a infância a uma potência impessoal, restaurando, assim, na arte literária, o poder criativo e a insurgência do olhar e da experiência infantil. Afinal, como afirma Deleuze (2011), “não se escreve com as próprias lembranças” (p. 14), mas, antes, faz-se delas, na escrita, a possibilidade de criação de um porvir.
A criança, na condição de força minoritária, é perceptível em todos os textos analisados, seja por suas observações poéticas, seja por suas ações subversivas, como o roubo da rosa em “Cem anos de perdão” (Lispector, 2016, pp. 408-411); pela conexão com os bichos, no caso do conto “Tentação” (Lispector, 2016, pp. 314-316); ou mesmo pela maneira como uma festa feita o carnaval – na qual se libertam os desejos – afeta a menina do conto “Restos do carnaval” (Lispector, 2016, pp. 397-401). Percebemos, pelas análises, que as crianças, assim como os bichos e os demais personagens minoritários, assumem, na escrita de Clarice, um papel revelador e criativo que constrói linhas de fuga e aponta saídas possíveis dos caminhos marcados e previsíveis. A partir da visão infantil, o literato e o poeta podem aprender o que os sábios ainda não sabem ou despir-se do que aprenderam, voltar a ser um animal humano que a natureza produziu22 e, assim, ajudar a restaurar a infância no mundo e “liberar a vida lá onde ela é prisioneira” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 222).
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Apoio e financiamento:
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo 2022/00059-4.
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Revisão textual:
Normalização bibliográfica (APA 7ª Ed.), preparação e revisão textual em português: Andréa de Freitas Ianni andreaianni1@gmail.com>Versão e revisão em língua inglesa: Viviane Ramos vivianeramos@gmail.com>
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1
Ver Freud (1996).
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2
Permanecendo ainda no campo do conceito de “pertencimento/não pertencimento”, o psicólogo Abraham Harold Maslow (1908-1970) publica em 1954 o livro Motivation and personality, em que apresenta sua teoria da hierarquia das necessidades humanas – a chamada Pirâmide de Maslow –, mostrando que, sem o sentimento de “pertencimento”, o ser humano não consegue construir autoestima, o que leva ao desenvolvimento de neuroses e ao não alcance do último estágio das necessidades humanas, isto é, da realização pessoal, em suma, o que poderíamos chamar de felicidade (Ribeiro-de-Sousa, 2021).
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3
Para Sousa (2000), grande parte dos contos de Clarice que envolvem personagens crianças ou adolescentes “são histórias de iniciação. Na perspectiva das crianças meninas, elas veem-se a si mesmas crescendo como rosas” (p. 114).
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4
Gotlib (2003), em seu livro Clarice: uma vida que se conta, demonstra o modo como algumas das narrativas de Lispector possuem um tom híbrido entre confissão e ficção, incorporando em si materiais a princípio não literários.
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5
Nessa hibridez, essas personagens infantis são construídas mais em função de um devir-criança que toma a escritora do que em função apenas de suas memórias.
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6
O sentimento de “pertencimento”, assim, carrega consigo acolhimento, oferece identidade coletiva, reforça o eu individual e o equilíbrio psíquico. O “não pertencimento” seria, por oposição, um sentimento de desenraizamento, de exclusão, de rejeição, de isolamento, o que, em casos extremos, prejudicaria a construção e as funções do ego (Ribeiro-de-Sousa, 2021).
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7
A identificação imaginária é identificação para um certo olhar do Outro. A questão é saber para quem o sujeito desempenha determinado papel quando ele se oferece ao Outro como seu objeto de desejo. Lacan destaca a identificação imaginária, esta “imagem na qual nós parecemos ser passíveis de ser amados” (Zizek, 1991, p. 105), como dependente da identificação simbólica. É a partir desse ponto de identificação simbólica que nos observamos e nos julgamos. É ele que determina a imagem segundo a qual parecemos dignos de amor (Wendling, 2010).
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8
Guimarães (2017) nos lembra que “as crianças que habitam esses contos são em sua maior parte oprimidas por um entorno que não as compreende, mas dotadas de notável apetite pela fantasia, universo ao qual de fato parecem pertencer, tornando-se desamparadas, estrangeiras, quando transitando pelo árduo território da vida real” (p. 142).
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9
O livro, objeto de desejo da protagonista, era, ela nos diz: “completamente acima de minhas posses” (Lispector, 2016, pp. 393-394).
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10
A passagem “Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete” (Lispector, 2016, p. 397) demonstra que a personagem se encontrava em um contexto de recursos econômicos limitados.
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11
Como diz Kafka, não se trata do problema da liberdade, mas é o de uma saída (Deleuze & Guattari, 2003).
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12
Dessa maneira faz sentido que toda a libido seja destinada à sexualidade.
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13
Baseado em poema de Alberto Caeiro (Pessoa, 2020).
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14
A respeito dessa crônica, ler mais em Rufinoni (2021).
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15
Baseado em poema de Alberto Caeiro (Pessoa, 2020).
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16
Deleuze (1988) afirma que “a recognição se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido” (p. 221).
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17
“Por que há tantos devires do homem, mas não um devir-homem? É primeiro porque o homem é majoritário por excelência, enquanto que os devires são minoritários, todo devir é um devir-minoritário” (Deleuze & Guattari, 2004, p. 369).
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18
Para Deleuze e Guattari (2003), o devir é um campo de indiscernimento entre dois seres. Aquele que está em devir é afetado por um outro, sempre minoritário, que faz com que seus próprios limites sejam borrados e irreconhecíveis. Nesse sentido, o devir-criança não se refere à imitação do infantil, mas ao afetar-se por essas forças moleculares que habitam a infância.
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19
“A escrita é inseparável de um devir” (Deleuze, 2011, p. 11).
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20
“A questão central de um entendimento alternativo em Clarice Lispector é a que passa pelo erigir de um não lugar ou do lugar de um não entendimento. A mais sábia forma de entender é encontrada nos animais, nas crianças, nos pobres de espírito, ou num Deus no qual se acolhe a loucura do mundo como na frase citada por Derrida ao falar do não nomeável lugar de Deus” (Sousa, 2000, p. 206).
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21
Mello e Souza (2009) afirma que a literatura de Clarice adquire uma “visão míope”, pois “as coisas muito próximas adquirem uma luminosa nitidez de contornos” (p. 97).
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22
Novamente referências ao poema de Alberto Caeiro (Pessoa, 2020).
Disponibilidade de dados:
Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
Referências
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Editado por
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Editores responsáveis:
Editor Associado: Adrián Cangi https://orcid.org/0000-0002-0755-6699>Editora Chefe: Chantal Medaets https://orcid.org/0000-0002-7834-3834>
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
18 Out 2024 -
Revisado
20 Jul 2025 -
Aceito
02 Set 2025
