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Ecos da poesia no leitor mirim 1 1 Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq n° 43/2013; Narrativa visual no PNBE 2014: composição e leitura; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Desafios e acolhimentos da literatura infantil).

Poetry effectiveness to the child-reader

Resumo

Este artigo relata, a partir de pesquisa empírica, como estudantes de 4° ano do Ensino Fundamental configuram o poético, por meio do estudo orientado de poemas veiculados em obras selecionadas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Parte de investigação maior, o artigo propõe procedimentos mediadores para o poema "O eco", de Cecília Meireles, problematizando o letramento poético. A investigação apoia-se principalmente em Huizinga e Kirinus. O problema posto justifica-se em virtude de a formação de leitores ser um desafio para o âmbito educacional e para a criação e a manutenção de políticas públicas. O artigo contribui para apresentar possibilidade de inserção escolar do acervo do PNBE e aponta caminhos para o desenvolvimento do poético, que tende a ser pouco explorado na escola.

Palavras-chave:
mediação cultural; literatura infantil; leitura

Abstract

This article aims to investigate, based on an empirical research, how fourth-grade students constitute the poetical value, through a mediated study of poems, presented in collections of the School Library National Program (PNBE). Part of a larger research, this article proposes certain mediation procedures to be applied to the poem "O eco", by Cecília Meireles, discussing the poetic literacy. This investigation is based mainly on Huizinga and Kirinus. As the process of reader formation is considered a challenge for the educational framework and for the creation and maintenance of public policy, this investigation is easily justified. This paper contributes to present a possibility of school insertion on PNBE collections, pointing ways to the poetic development, which tends to be insufficiently explored in schools.

Keywords:
cultural mediation; children's literature; reading.

Ecos da Poesia no Leitor Mirim

A poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens. Manoel de Barros (1990, p. 310)

Anterior à ciência e à norma linguística, a palavra poética devolve ao homem a infância do mundo, quando as convenções não estavam demarcadas, os limites da linguagem não estavam estabelecidos, as categorias não tinham ainda sido nomeadas. Com a missão de infantilizar a linguagem, a palavra poética assegura ao homem o usufruto livre e gratuito das potencialidades da linguagem, numa tentativa de reinstaurar o inusitado e o curioso, dando voz à perplexidade e à inquietação humana.

A pregação poética cumpre-se como ato de fé e coragem, que desafia o olhar automatizado, a linguagem costumeira e viciada de lugares-comuns. A poesia pega desvios, escapando à obviedade da estrada, reinventando o caminho e o jeito de caminhar. Como, aliás, fazem as crianças, quando se espantam do que não tinham visto, quando fazem analogias surpreendentes. O fazer poético possibilita ao homem a prática da infância, quando a linguagem é um brinquedo flexível, cujas possibilidades estão além do manual de instruções gramaticais.

Atentando para as relações entre poesia e infância, o presente estudo2 2 Este artigo foi construído a partir da tese Brincadências com a poesia infantil: um quintal para o letramento poético (Marangoni, 2015). investiga como estudantes de 4° ano do Ensino Fundamental configuram o poético a partir de leitura mediada de poemas veiculados em obras selecionadas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE (Brasil, 2009Brasil. (2009). FNDE. Programa Nacional Biblioteca da Escola: PNBE. Edital PNBE 2010. Brasília, DF. Recuperado em 23 julho de 2014, de Recuperado em 23 julho de 2014, de http://www.fnde.gov.br/index.php/programas-biblioteca-da-escola
http://www.fnde.gov.br/index.php/program...
). Este artigo focaliza a construção e a aplicação de procedimentos mediadores para o poema "O eco", de Cecília Meireles, problematizando a constituição do sujeito letrado em poesia e buscando apontar caminhos para a constituição e o desenvolvimento do poético no interior da escola. Nesse sentido, objetiva-se formular uma resposta possível à questão da formação de leitores, que desafia o âmbito educacional e as políticas públicas voltadas à leitura.

Para tanto, inicialmente, o texto olha para a presença do poético no acervo do PNBE 2010, a partir do qual se desenvolveu a pesquisa, discutindo como os livros de poesia destinados à infância, por meio do referido acervo, configuram sua proposta de leitura. A seguir, o artigo procura elucidar vínculos que entrelaçam a experiência poética à infância, no intuito de desenhar um espaço de intervenção junto a leitores em formação. Focalizando o poema "O eco", o estudo investiga como se configura a proposta de sua leitura, destacando a presença de brinquedos poéticos na composição, como fator de interlocução com o ser infantil. Por fim, explicita a concepção do projeto Brincadências Poéticas, dedicado a promover o letramento poético de leitores em formação, a partir da leitura mediada de poemas previamente selecionados. Nesse contexto, acompanha-se a leitura do poema "O Eco" pelos leitores participantes do referido projeto, destacando a mediação efetivada e alguns resultados observados, em termos de apropriação do poético.

Poesia no PNBE 2010

Palavras são como estrelas facas ou flores elas têm raízes pétalas espinhos são lisas ásperas leves ou densas para acordá-las basta um sopro em sua alma e como pássaros vão encontrar seu caminho Roseana Murray (1999)

Para tornar acessível à criança a palavra poética, em sua riqueza e diversidade, em sua beleza e poder de mobilização, algumas iniciativas têm sido desenvolvidas, dentre as quais se destaca o PNBE, por sua amplitude e continuidade, em nível nacional. Criado em 1997, o Programa integra o Plano Nacional do Livro e Leitura e tem passado por redirecionamentos, destinando livros de literatura ora para as bibliotecas escolares, ora diretamente para os alunos. Desde 2004, as bibliotecas escolares têm acolhido os livros, uma vez que se estabeleceu o propósito de valorizar esse espaço, como promotor da universalização do acesso a acervos e ao conhecimento que eles abrigam. No ano de 2010, o Programa selecionou e encaminhou às escolas públicas do País, do conjunto de 100 títulos, um total de 30 obras poéticas3 3 As classificações das obras são realizadas por pesquisadores, para o estudo e a divulgação dos acervos. Podem ser encontradas diferenças na classificação das obras como poéticas, uma vez que, dependendo dos critérios adotados, há modos distintos de classificar os títulos. Assim, as diferenças ligam-se ao modo como o poético é compreendido, podendo ser contemplados textos em verso e prosas poéticas, por exemplo. No caso deste estudo, privilegiou-se o gênero poema. , distribuídas em quatro acervos, direcionados aos anos iniciais do Ensino Fundamental, conforme a Tabela 1:

Tabela 1
Obras poéticas selecionadas no PNBE 2010 - anos iniciais

Tais obras constituem conjunto significativo e variado de produções, e incluem alguns títulos recentes, como Dia brinquedo, de Fernando Paixão, e Conversa de passarinhos, de Alice Ruiz S. e Maria Valéria Rezende, ao lado de reedições de clássicos da literatura infantil brasileira, como Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles e A arca de Noé, de Vinícius de Moraes. Comparecem, ainda, textos originalmente destinados a leitores adultos, redirecionados aos infantis, com roupagem renovada pela atualização da materialidade do objeto livro, através de ilustrações, cores e disposição textual. É o caso dos poemas que integram Só meu, de Mário Quintana; O fazedor de amanhecer, de Manoel de BarrosBarros, M. (1990). Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.; Berimbau, de Manuel Bandeira; e A cor de cada um, de Carlos Drummond de AndradeAndrade, C. D. de. (2004). Procura da poesia. In C. D. de Andrade, Antologia poética (53.a ed., organizada pelo autor). Rio de Janeiro: Record..

Quanto à organização dos títulos, veem-se, em maior número, obras nas quais figuram vários textos poéticos, permitindo leitura autônoma de cada poema e não necessariamente na ordem em que se apresentam, tais como Lé com cré, de José Paulo Paes, e Lua no brejo, de Elias José.

Ao lado desses materiais, encontram-se obras compostas de um único poema, que desenham proposta de leitura linear e previamente ordenada, em vista de que o sentido se constrói na sequência dos versos. São elas: Feita de pano, de Valéria Belém; No risco do caracol, de Maria Valéria Rezende; Ervilina e o Princês, de Sylvia Orthof; O caso da lagarta que tomou chá de sumiço, de Milton Célio de Oliveira Filho; E um rinoceronte dobrado, de Hermes Bernardi Júnior; Anacleto, de Bartolomeu Campos de Queirós; Duelo danado de Dandão e Dedé, de Lenice Gomes e Arlene Holanda; e Se um dia eu for embora, de Anna Göbel. Dentre essas propostas, algumas apresentam um viés marcadamente narrativo, como é o caso de: Ervilina e o Princês, de Sylvia Orthof, pela renovação versificada do conto clássico A princesa e as ervilhas; O caso da lagarta que tomou chá de sumiço, de Milton Célio de Oliveira Filho, realizando uma aproximação ao enigma e até ao conto policial, a partir de pistas para a elucidação de um mistério; e Duelo danado de Dandão e Dedé, de Lenice Gomes e Arlene Holanda que retoma trava-línguas e trovas populares, em um episódio em que dois trovadores se desafiam.

Igualmente variadas, as temáticas contempladas pelo conjunto das 30 obras exploram interesses infantis, denotando preocupação com o destinatário e com a sua captação para o universo simbólico. Seres e elementos da natureza se veem, predominantemente, em Bichos, de Ronaldo Simões Coelho; Bicho que te quero livre, de Elias José; No risco do caracol, de Maria Valéria Rezende; Rimas da floresta, de José Santos; Japonesinhos, de Lalau, entre outros; aspectos do cotidiano lúdico infantil são tematizados, por exemplo, em Dia brinquedo, de Fernando Paixão; Circo mágico, de Alexandre Brito; Brincriar, de Dilan Camargo; E um rinoceronte dobrado, de Hermes Bernardi Júnior; seres fantásticos são contemplados por outras obras, tais como Poemas da Iara, de Eucanaã Ferraz, e Poemas para assombrar, de Carla Caruso; inquietações subjetivas predominam em Fardo de carinho, de Roseana MurrayMurray, R. (1999). Receita de acordar palavras. In R. Murray, Receitas de olhar (Elvira Vigna, ilustr. 3a ed.). São Paulo: FTD.; Se um dia eu for embora, de Anna Göbel; Feita de pano, de Valéria Belém; O fazedor de amanhecer, de Manoel de BarrosBarros, M. (2010). Menino do mato. São Paulo: Leya..

O tratamento de tais temáticas desenvolve-se pela pluralidade de recursos por meio dos quais as obras constroem a poeticidade. Metáforas, comparações, repetições, entre outras figuras de linguagem, viabilizam a intenção de surpreender, a criação de imagens inusitadas, a criticidade, o jogo intertextual. O uso adequado de tais ferramentas linguísticas resulta poéticas as produções, que, ora obtêm efeitos de humor, predominantes em Lé com Cré, de José Paulo Paes, e Boi da cara preta, de Sérgio Caparelli, por exemplo, ora enfatizam o lirismo e a sensibilidade, em propostas como Se um dia eu for embora, de Anna Göbel, e Fardo de carinho, de Roseana Murray.

Além do olhar renovador para a temática, a exploração criativa da forma também é instrumento para a concretização do poético. Pelas rimas, repetições, aliterações, assonâncias e outros parentescos sonoros, institui-se a camada musical através da qual as referidas obras inovam a linguagem. Em produções como Trava-língua quebra-queixo rema-rema remelexo, de Almir Correia; Anacleto, de Bartolomeu Campos de Queirós; e Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, a exploração dos sons da língua no arranjo musical e na criação de ritmos ganha ainda maior evidência, como que conduzindo, em alguns poemas, o tom poético do texto. Nas obras de Almir Correia e de Bartolomeu Campos de Queirós, destacam-se o aproveitamento e a renovação de brincadeiras folclóricas, como trava-línguas e parlendas, nos quais os sons parecem se deixar levar uns aos outros, gratuitamente. Na de Cecília Meireles, a organização sonora é artificialmente construída, para dar dinamicidade ao texto, contribuindo para a proposição imagética.

A atmosfera lúdica predomina no conjunto das obras, o que dá leveza e interatividade à leitura, pressupondo a brincadeira, seja com a língua, seja com os objetos e os seres do mundo, através de perspectivas e olhares novos. As produções compreendem diferentes níveis de complexidade, atendendo, portanto, a distintas experiências letradas e, em certos casos, com a mediação de um leitor-guia, contemplando o acesso de leitores, sejam eles iniciantes - através de produções como Trava-língua quebra-queixo rema-rema remelexo, de Almir Correia -, sejam receptores mais experientes, acolhidos em obras como A cor de cada um, de Carlos Drummond, de maior complexidade imagética.

Distantes do comprometimento pedagógico que norteou as primeiras produções da literatura infantil no País, as obras mobilizam recursos intencionalmente artísticos. Embora destinadas à circulação no âmbito da escola, não há engajamento com os currículos escolares, explícitos ou ocultos. A preocupação com a fuga aos estereótipos, aos preconceitos e aos lugares-comuns de que, muitas vezes, a palavra é veículo potencializa a liberdade poética, superando contradições inerentes à escolarização/didatização do texto literário. A poeticidade desses textos nutre-se, sobretudo, da riqueza no uso das palavras.

Diante da potencialidade dos textos poéticos, acompanhando a investigação bibliográfica e analítica sobre conceitos-chave e estudo de obras, implementou-se pesquisa-ação para efetivar a investigação. Essa opção metodológica ocorre porque a pesquisa-ação pressupõe alcance na resolução de problemas educacionais, já que é considerada como pesquisa social com base empírica e estreitamente associada a uma ação ou à resolução de um problema entre o pesquisador e os sujeitos. Conforme Thiollent (2004Thiollent, M. (2004). Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez., p. 15), nesse tipo de pesquisa é necessário que o pesquisador desempenhe um papel ativo no equacionamento dos problemas encontrados, no acompanhamento e na avaliação das ações desencadeadas em função dos problemas.

A proposta de investigação referenda a transformação social, com vistas à emancipação dos sujeitos e das condições que possibilitam esse processo emancipatório, a partir de abordagem interpretativa de análise, estruturada por meio da participação crítica, cujo processo de pesquisa deverá proporcionar novas configurações de significados e caminhos no decorrer de todo o processo.

Nesse sentido, a investigação que tem o texto literário como fonte dialoga com a metodologia de caráter formativo e emancipatório e atende a determinados princípios, denominados por Franco (2005Franco, M. A. S. (2005). Pedagogia da Pesquisa-Ação. Educação e Pesquisa, 31 (4), 483-502. Recuperado em 12 agosto de 2014, de Recuperado em 12 agosto de 2014, de http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n3/a11v31n3.pdf
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) de "princípios fundantes", indicando que a investigação sobre a prática educativa deve contemplar: a ação conjunta entre pesquisador e pesquisados; a realização da pesquisa em ambientes onde acontecem as próprias práticas4 4 Uma das autoras do estudo é professora do grupo de alunos participantes da investigação. ; a organização de condições de autoformação e emancipação aos sujeitos da ação; a criação de compromissos com a formação e o desenvolvimento de procedimentos crítico-reflexivos sobre a realidade; o desenvolvimento de uma dinâmica coletiva que permita o estabelecimento de referências contínuas e evolutivas com o coletivo, no sentido de apreensão dos significados construídos e em construção; as ressignificações coletivas das compreensões do grupo, articuladas com as condições sócio-históricas; e o desenvolvimento cultural dos sujeitos da ação.

Assim, os procedimentos metodológicos direcionam o trabalho para uma pesquisa de cunho qualitativo. E, a partir do desenvolvimento de vivências de leitura com leitores em formação, o propósito foi delinear percursos de significação do poético e sua instrumentalização, para interagir com os recursos e as especificidades do gênero, tendo em vista sua formação como letrados em poesia. Para tanto, o projeto Brincadências poéticas foi desenvolvido com uma turma dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pública do município de Bento Gonçalves. O intuito foi perceber, pela escuta atenta, pela discussão e pela análise, os recursos que cooperam para instaurar possibilidades de sentido poético para o leitor e a maneira pela qual tais recursos são apropriados por aquele que lê. O objetivo foi, além disso, colocar em movimento o ar, inventando sopros que acordem as palavras poéticas adormecidas no interior das caixas, para que elas encontrem, enfim, o seu caminho: os olhos, a cognição e o coração do leitor iniciante.

Poesia e infância

Nosso conhecimento não era de estudar em livros. . Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos. Manoel de Barros (2010, p. 11)

Os saberes da criança estão ligados aos sentidos do corpo, ao que é concreto e sensível. Não constituem, portanto, conteúdos livrescos, mas são, frequentemente, construções anteriores ao processo de escolarização, enraizadas no espaço, na observação da natureza, na experiência. A expressão poética guarda íntima associação com a infância, sobretudo por se aproximar do jogo e por ensejar a exploração da linguagem e do mundo, próprias desse momento singular da vida humana.

Mais do que qualquer outra, a linguagem poética é portadora dos elementos lúdicos que proporcionam prazer à leitura do texto, pois dirige apelo evidente à sensibilidade do sujeito em formação. Em razão de suas peculiaridades, a poesia estimula intelectualmente o leitor, formando-o cognitiva e esteticamente e, por consequência, desempenhando o papel de provedora de prazer.

O que torna nítida a associação entre o ludismo e a poesia é o fato de o texto poético empregar, na sua construção, mecanismos relacionados ao jogo. Huizinga (2000Huizinga, J. (2000). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura (4a ed.). São Paulo: Perspectiva. ) entende que o ludismo constitui uma categoria primária da vida, anterior até mesmo à cultura e, originalmente, presente com igual intensidade em todas as etapas da existência humana. A atividade lúdica possibilita ao sujeito a satisfação de carências vitais e culturais. O autor argumenta que as variadas formas de jogo são dotadas de uma capacidade criadora de cultura, devido ao fato de permitirem o desenvolvimento das necessidades humanas inatas de ritmo, harmonia, mudança, alternância, contraste, clímax, etc.

Assim como o jogo, para Huizinga (2000Huizinga, J. (2000). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura (4a ed.). São Paulo: Perspectiva. ), a poesia representa simbolicamente uma luta e, por consequência, propõe tematicamente situações humanas tão intensas que são capazes de transmitir um sentimento de tensão ao leitor. Além disso, a poesia convida o leitor ao exercício lúdico da luta, na medida em que se concretiza por meio de proposição enigmática que provoca o leitor. À semelhança de um enigma, o poema encobre propositalmente o sentido, apresentando-o em linguagem cifrada e, assim, mobilizando o leitor a descobri-lo. Nesse desafio, como acontece com toda ação lúdica, a solução - correspondente aqui à conquista do sentido -, é precedida pela tensão e pelo contraste.

Discutindo a relação entre poesia e infância, Kirinus (2011Kirinus, G. (2011). Synthomas de poesia na infância. São Paulo: Paulinas.) avalia que alguns comportamentos infantis considerados patológicos pelos adultos constituem, na verdade, sintomas de poesia, isto é, manifestações ou exercícios do poético. Para a autora, (p. 34), a dificuldade de o adulto compreender a criança tem razões históricas, já assinaladas por Ariès (1981Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (2a ed., D. Flaksman, trad.). Rio de Janeiro: LTC. ), quais sejam a desvalorização do ser infantil e o tardio reconhecimento de um lugar social para a infância, fatores que persistem ao longo do tempo, em diferentes medidas.

Kirinus (2011Kirinus, G. (2011). Synthomas de poesia na infância. São Paulo: Paulinas.) enfatiza ainda a facilidade com que a criança recebe a poesia, já que "é sua antiga conhecida, desde sempre. Basta dar um poema aqui que ela responde e corresponde com outro lá. A poesia é origem e pressupõe originalidade, e a criança responde bem a esse jogo de surpresas com a linguagem" (p. 26).

Ora, se as crianças convivem com o poético de modo tão espontâneo e prazeroso, importa questionar os motivos pelos quais tal vínculo tem sido pouco explorado pela instituição escolar. Refletindo sobre a questão, Kirinus (2011Kirinus, G. (2011). Synthomas de poesia na infância. São Paulo: Paulinas.) assinala que

esse fascínio natural que a criança sente pela palavra e toda sua dinâmica imaginal normalmente fica reprimido na sala de aula, uma vez que os professores apreciam somente o valor funcional e pragmático da linguagem e ignoram todo o seu potencial estético, representado na voz da criança. A lógica poética passa pelo fascínio diante da palavra, pelos olhos de maravilhamento perante o mundo, mas esta atitude não tem valor avaliativo nas tarefas e nas redações escolares, que primam sua atenção na informação e no conteúdo, considerando pouco ou nada o riquíssimo continente imaginal. E isto acontece por descaso, ou por desconhecimento, tanto da criança como da qualidade da literatura infanto-juvenil. (p. 41)

A infância, segundo assinala Kirinus (2011Kirinus, G. (2011). Synthomas de poesia na infância. São Paulo: Paulinas.), é "o tempo privilegiado do brincar, em que a natureza lúdica não está dissociada da natureza do trabalho" (p. 34). A diferença é que, para a criança, "o trabalho está revestido do lúdico e significa criar, produzir, a partir de um ato voluntário destituído de tempo, espaço e remuneração". Nesse sentido, como brinquedo infantil, a poesia irrompe do cotidiano e, ainda que orientada pela intenção e ordenação estética, não se sujeita aos rigores do tempo e do espaço. Ao invés disso, ela "canta uma canção eterna nutrida em cantos e preces que até sabiam alegrar ou curar" (p. 26). Essa canção, que rescende a milagres primordiais, ecoa no poema a seguir, integrante do acervo PNBE 2010, e cuja exploração norteou a experiência de leitura poética a que se dedica o presente estudo.

O eco (Cecília Meireles) O menino pergunta ao eco onde é que ele se esconde. Mas o eco só responde: "Onde? Onde?" O menino também lhe pede: "Eco, vem passear comigo!" Mas não sabe se o eco é amigo ou inimigo. Pois só lhe ouve dizer: "Migo".

O poema "O eco" (Meireles, 2002Meireles, C. (2002). O eco. In C. Meireles, Ou isto ou aquilo (6a ed., Thais Linhares, ilustr.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. , p. 93) integra a obra Ou isto ou aquilo, evidenciando o insólito diálogo entre um menino e o eco que, de certo modo, traduz a voz infantil em busca de respostas, a princípio, inexistentes. O menino tematizado pelos versos supõe que o eco seja outro sujeito, com vida própria e independente, como tendem a pensar os pequenos diante do fenômeno sonoro. Trata-se, portanto, da surpresa diante de um espelho (não da imagem física, mas vocal), no qual a criança, inicialmente, não se reconhece. Ouvem-se, pois, três vozes: o sujeito lírico que revela ao leitor o encontro do menino com o eco; a voz do menino, que, em discurso direto, interroga o eco; e a resposta do eco, insuficiente e vaga.

No terceto que inicia o poema, o sujeito lírico relata que o menino pergunta ao eco onde ele se esconde, "Mas o eco só responde: 'Onde? Onde?'". A resposta do eco desencontra a pergunta que o menino lança ao ar, mas ele insiste na conversa, que se desenrola nos três dísticos seguintes. Nesses, o menino convida: "Eco, vem passear comigo!". De fato, o eco persegue nossas passadas, nos acompanhando no trajeto. Mas, como a voz só responde "Migo", a criança não sabe se ele é amigo ou inimigo, isto é, se a companhia é amistosa ou hostil.

Entre a admiração e o espanto, a reação interrogativa e investigativa do sujeito infantil diante do eco mostra disponibilidade para a interação com esse desconhecido que fala sem se revelar. A resposta do eco, como de costume, repete o final da palavra emitida. Nesse caso, o resultado é uma palavra gramatical, que não tem sentido por si só. É o ouvinte que deve completá-la, e as possibilidades são antagônicas (ele pode ser amigo ou inimigo), colocando em conflito o interlocutor. Assim, entre ditos e não ditos, o poema prevê a atuação de um leitor, supõe a presença de um sujeito disposto à experiência do texto, à interlocução e ao enfrentamento.

De diferentes comprimentos, os versos exploram o encontro entre o menino e o eco, mas o conteúdo narrativo gira em torno da face concreta do vocábulo, pela qual a abstração da palavra ganha materialidade e se manifesta explicitamente aos sentidos. O recurso sonoro mais evidente corresponde, portanto, à repetição do final da palavra, gerando musicalidade e polissemia, já que surgem novos vocábulos e possibilidades de sentido, na voz do eco: "esconde" e "responde" ligam-se a "onde"; "comigo" liga-se a "amigo", "inimigo" e "migo". A resposta do eco fica "no ar", gerando indefinição e dubiedade. Trata-se do jogo do espelho que, ao mesmo tempo, revela e esconde, desnuda e oculta. A face que se mostra no espelho não corresponde ao todo, assim como a resposta do eco é parcial. Nesse espelhamento que a circunstância do poema constrói, alguns brinquedos poéticos emergem, guardando espaços para a atuação do sujeito infantil: o faz de conta e o esconde-acha.

Faz de conta

Agora eu era o herói E o meu cavalo só falava inglês. Chico Buarque (1993)Buarque, C. (1993). João e Maria. In: C. Buarque, Perfil (um disco sonoro). Manaus: Universal Music.

O improvável e o ilógico são amigos da infância, quando a fantasia ignora as fronteiras do pensamento racional. É possível, ao pequeno, ser o herói grandioso e admirado. É possível, à sua montaria, relinchar no idioma deslumbrante e sofisticado dos mocinhos da televisão. O ingresso no território fantástico costuma ser assinalado pela mescla entre o passado o presente, quando agora eu era.

No faz de conta poético, a exploração das possibilidades, a invenção e a inversão têm lugar privilegiado. Como no brinquedo infantil, a convivência entre diferentes temporalidades é possível. A poesia torce o cotidiano, ventilando e nutrindo o que não e óbvio, o que é distante possibilidade. Com frequência, o faz de conta é recurso para o humor, quando o disparate alimenta o riso dos leitores. Há outras ocasiões em que o ingresso nas searas da imaginação colhe a sensibilidade e o movimento empático do leitor, para certos temas ou figuras, como no poema "O eco" (Meireles, 2002Meireles, C. (2002). O eco. In C. Meireles, Ou isto ou aquilo (6a ed., Thais Linhares, ilustr.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. ).

Esconde-acha

[... ] Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? [... ] Carlos Drummond de Andrade (2004, p. 187)

Sob a face neutra das palavras, o poema esconde e camufla, propositadamente, seus significados. Cabe ao leitor desvendar o que é secreto nos versos, o que não está na superfície do texto, o que não é evidente. Para isso, cada poema indaga ao seu leitor pela chave que será capaz de abrir a porta dos sentidos. O caso é que cada leitor tem a sua, feita das suas experiências e horizontes. Para descobri-la, precisa olhar as palavras de perto, parar diante delas e mirá-las em sua materialidade de espelho, multifacetado como o próprio sujeito que olha.

Quando se identifica com o que leu, quando o escondido do mundo ou da subjetividade se revela, ganha nome, forma e concretude, o leitor encontrou sua chave. Assim, é possível que o lido migre para as vivências do leitor e que o poema mude de lugar (da folha de papel para dentro de quem lê). O leitor se choca, ri ou chora, reagindo ao poema, pois os versos respondem a uma pergunta, ou problematizam uma realidade, concreta ou subjetiva. Quando se sente em frente ao evasivo eco, o leitor encontra algo que o recoloca frente a si mesmo e ao seu entorno. Nesse movimento de transferência, também chamado de interpretação, enquanto se criam sentidos, nada se perde, mas se transformam o texto e o leitor.

Uma pergunta ecoa

Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas. José Saramago (1982 Saramago, J. (1982). Memorial do convento. Lisboa: Caminho., p. 225)

Perguntas e respostas querem delimitar fronteiras entre o conhecido e o desconhecido. No processo de conhecer, contudo, as perguntas desencontram as respostas, o papel de quem pergunta e de quem responde precisa inverter-se, os espaços precisam mudar de lugar e os tempos devem avançar e retroceder. Quando se pergunta sobre o letramento poético, é preciso escutar as respostas que emergem do cotidiano, as respostas que se perdem ante olhares costumeiramente distraídos.

Por isso, para problematizar o letramento poético, além de analisar um conjunto de obras e de formular discussões de cunho teórico, mostrou-se necessário desenvolver vivências de leitura com leitores em formação, buscando delinear seu percurso de significação do poético e sua instrumentalização, para interagir com os recursos e as especificidades do gênero, tendo em vista sua formação como letrados em poesia. Nesse intuito, o projeto Brincadências poéticas dedicou-se a promover encontros de leitura de poesia com estudantes do 4º ano de uma escola pública, situada em Bento Gonçalves.

Para tanto, dez poemas do acervo PNBE 2010 foram selecionados e analisados em sua proposta poética, bem como organizados segundo um percurso de apropriação. O itinerário partiu de textos que enfocaram a musicalidade, o nível mais concreto e familiar de captura do texto poético, passando por um nível intermediário, para enfocar, após, a instância imagética, que envolveu relações mais complexas entre os dados textuais. Por fim, compreendeu a visualidade da página, pela disposição diferenciada do texto verbal, como outra dimensão possível para a constituição do poético.

Os poemas eleitos procuraram atender ao percurso que caracteriza o ingresso no poético e qualificar a interação do leitor com a poesia, visando a seu letramento literário. A meta foi propiciar rupturas e questionamentos que ampliassem progressivamente o horizonte de expectativas que os leitores envolvidos sustentavam em relação ao poético, através da aplicação do método recepcional, formulado por Bordini e Aguiar (1988 Bordini, M. da G., & Aguiar, V. T. (1988). Literatura: a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto.) como operacionalização à Estética da Recepção, que tem em JaussJauss, H. R. (1979). A estética da recepção: colocações gerais. In H. R. Jauss et al., A literatura e o leitor: textos de estética da recepção (Luiz Costa Lima, coord. e trad., pp. 43-61). Rio de Janeiro: Paz e Terra. seu principal expoente. Nesse sentido, as escolhas partiram da ênfase à sonoridade, passando por um nível intermediário, para enfocar, na sequência, a exploração imagética e, após, a visualidade na disposição das palavras no espaço da página, conforme mostra a Tabela 2:

Tabela 2:
Estações do projeto Brincadências poéticas

Cada sessão de leitura poética se organizou em torno de alguns momentos pedagógicos, explicitados na Tabela 3:

Tabela 3
Momentos pedagógicos das Brincadências Poéticas

A seguir, relatam-se as vivências que tiveram lugar em uma das sessões de leitura poética, destacando as propostas desenvolvidas e alguns dos resultados construídos na direção do letramento poético como competência para interagir com o poema e produzir poesia. O momento voltou-se para uma vivência em torno do poema "O eco" (Meireles, 2002Meireles, C. (2002). O eco. In C. Meireles, Ou isto ou aquilo (6a ed., Thais Linhares, ilustr.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. , p. 93) e visou enfocar o diálogo entre a sonoridade e a construção imagética. Nas vivências iniciais de leitura propostas pelo projeto Brincadências poéticas, foram enfocados aspectos sonoros das composições. Nessa ocasião, buscou-se intermediar o enfoque a aspectos menos concretos da poesia, que costumam parecer mais obscuros ao leitor iniciante.

Para resguardar a identidade dos alunos envolvidos, eles são identificados, no estudo, por meio do nome de pássaros, denotando a liberdade e a multiplicidade de vozes e cores que povoaram o quintal das leituras poéticas, no contexto do projeto Brincadências Poéticas.

No momento inicial, os leitores pássaros ou pássaros leitores foram brinconvidados a ouvir e cantar uma canção denominada "Eco" (Palavra Cantada, 2005Palavra Cantada. (2005). Eco. In Palavra Cantada, Pé com pé (dois discos sonoros, Sandra Peres e Paulo Tatit, prod.). São Paulo: MCD.), que tematiza o eco, assim como o poema cuja leitura centraliza a vivência. Depois da audição, o grupo foi convidado a sugerir possíveis respostas para alguns questionamentos: Quem fala na canção? Onde o eco se manifesta na canção? Como "a voz" do eco se denuncia? Qual é o elemento que se repete, no eco? Que imagens ou cenas engraçadas comparecem nessa canção? Sabiá comenta a parte em que o eco se faz ouvir na canção: "Parece que tem um monte de gente". E salienta: "Gostei da parte do pirulito". Por sua vez, Uirapuru pede: "Bota de novo!". Curió destaca que, na canção, ouvem-se "o aventureiro e o eco", dado que será explorado na produção do seu grupo, no momento final da leitura. A mediadora questiona como se identifica a voz do eco, na música. Canário esclarece que se sabe que a manifestação é do eco "porque ele falou uma vez e deu muitas vezes".

Na sequência, a proposta sugeriu que se levantassem possíveis relações entre causas e consequências veiculadas pela música, tais como tomar muito sol e sentir-se um ovo frito; ver a mata verde e sentir-se um periquito; ver um doce gostoso e sentir-se um pirulito. A reflexão buscou estabelecer um elo possível entre as ideias apresentadas e a noção de eco, como uma resposta que emana da própria pergunta, como uma reação a determinado som, ação ou fenômeno, ao mesmo tempo resultado e repetição. Curió destaca que "o eco é um jeito de repetir".

Foi apresentado, então, o poema ceciliano, para ser ouvido pela voz da mediadora, primeiramente, e, após, lido voluntariamente pelos alunos. O excerto a seguir, extraído da transcrição da sessão de leitura, explicita que o leitor tende a receber o poético, tentando aplicar recursos da narrativa, gênero com o qual está mais familiarizado:

Mediadora: Quem é que fala nesse poema? A gente ouve a voz de quem? .

Curió: O menino e o eco. .

Mediadora: E mais quem? Ninguém? .

...

Bentevi: E mais ninguém, só. .

Mediadora: Só? .

Gaivota: O "ranador".

A analogia feita entre o sujeito poético e o "narrador"- figura que, na prosa, conduz a narração - revela a atividade do leitor na busca de coincidências entre sua bagagem e o universo apresentado pelo texto. Ancorando elementos do poema em águas conhecidas, o leitor coopera com a proposta de sentido enunciada pelo poema e possibilita sua concretização.

A seguir, procedeu-se à leitura do poema em três "vozes", de modo que um grupo representou o sujeito que "conta" o episódio, outro veiculou a voz do menino diante do eco e o terceiro assumiu a "fala" do eco. Os leitores foram instigados a comentar o poema lido e a explicitar semelhanças em relação ao texto enfocado na Brincadência anterior "Telefone sem fio" (Camargo, 2007Camargo, D. (2007). Brincriar (Joãocaré, ilustr.). Porto Alegre: Projeto., pp. 8-9). Eles destacam que, assim como no "Telefone sem fio", o som chega "passando um pelo outro" (Canário), "parecido, mas de um jeito diferente" (Curió).

Durante a brinconversa, o grupo foi instado a formular o que o menino representado sabe ou imagina sobre o eco e a destacar quais palavras do poema têm como eco os fragmentos "onde" e "migo". Ainda refletindo sobre os sons que o eco repete, o grupo foi levado a explicitar o que a brincadeira do eco faz com as palavras que a gente diz. Os leitores foram, além disso, indagados a exemplificar combinações de palavras existentes no poema. Nesse momento, Cacatua assinala a proximidade sonora entre "menino" e "amigo"/ "inimigo", indicando sua atenção ao parentesco menos evidente de sons. Para manifestar que imagem as palavras desse poema constroem, Andorinha explicita que imagina "o menino falando e... vindo um som..."; ou, ainda, "e o eco respondendo", como diz Gralha. Já Curió descreve uma cena: "O menino tá acampando, daí ele vai num alto de uma montanha e fala com o eco".

Uma brincadeira de eco deu continuidade à discussão e à análise das relações entre sons e imagens. Em uma caixa, foram colocadas algumas palavras presentes no poema ("menino", "pergunta", "também", "pede", "passear", "sabe", "ouve", "dizer"). A turma dividiu-se em dois grupos. Cada um à sua vez pescou uma palavra da caixa e "lançou-a" ao ar, em alta voz, como estivesse diante de um abismo distante e precisasse fazer a palavra chegar ao outro lado. O outro grupo produziu o eco resultante da palavra pronunciada. A brincadeira buscou destacar a manutenção de sons e o sentido divergente ou inexistente, resultante do eco (por exemplo, "passear: ar"; "menino: nino/hino"; "pergunta: unta"; "também: bem"). As palavras explicitadas foram registradas no quadro e, posteriormente, foram analisadas as modificações e as permanências verificadas entre sons e sentidos.

Levada a termo, a ruptura de sentido conduz ao nonsense, quando a lógica estabelece o seu reverso, inventando o absurdo e fazendo o mundo gravitar de ponta-cabeça. O primeiro grupo lança ao ar a palavra pergunta! O segundo grupo ecoa: Unta! Unta! Unta! Logo, Gralha explora as possibilidades humorísticas da brincadeira sonora, propondo: A pergunta vai untar a forma! Um cérebro untado por questionamentos é, certamente, uma forma cujas ideias podem ser servidas e experimentadas com facilidade. Bem se sabe que as dúvidas impedem a aderência excessiva dos pensamentos, de modo que as certezas ficam despegadas. Assim faz o menino diante do eco. Assim fazem as crianças diante das palavras. Brincando de eco com as palavras do poema "O eco" (Meireles, 2002Meireles, C. (2002). O eco. In C. Meireles, Ou isto ou aquilo (6a ed., Thais Linhares, ilustr.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. , p. 93), produzem-se sentidos delirantes, para a diversão coletiva.

Para o momento de brincriar, cada leitor foi convidado a pensar em um "eco" (uma terminação de palavra) e registrá-lo em uma tira de papel. Os "ecos" foram trocados entre os colegas. Cada um colou a tira recebida em uma página e registrou em torno dela palavras que poderiam ter gerado o "eco" pensado pelo colega. Após o registro, o escrito foi cotejado com as palavras incialmente pensadas pelo propositor do "eco", completando o esquema, em alguns casos. Por exemplo, Guará-pitanga registrou o eco "tina", pensando na palavra "Argentina". Ao recebê-lo, Canário registrou "Valentina" e, na socialização, Gralha sugeriu "cortina", Garça propôs "cantina" e Sabiá acrescentou à lista "Clementina".

Em grupos, a partir dos registros, sugeriu-se uma composição em que as palavras fizessem eco entre si, podendo resultar uma imagem engraçada. As produções feitas foram socializadas e avaliadas pelos leitores. Elas mostraram a compreensão dos grupos acerca das potencialidades dos sons, apresentando, em sua maioria, ecos como rimas, a exemplo da produção de Cacatua, Pardal, Uirapuru e Canário: A ave encontrou a chave e viu a Simone com fome comendo panetone.

O registro de Andorinha, Pintassilgo e Gralha explora o eco como um recurso para ressaltar a rima e alcançar o humor, sob o título de Um poema para ela:

A Daniela, avistou uma cadela, ela, ela/ Ela era bela, ela, ela, ela/ A Daniela logo lhe deu um nome,/ de Arabela, bela, bela, bela/ E logo levou para a casa dela, ela, ela, ela/ E logo disse:/ - Eta, não faz careta, eta, eta, eta.

Já no poema de Guará-pitanga, Rolinha e Bem-te-vi, o eco também serve à rima, mas, no verso final, é empregado para fins enfáticos, uso que não havia sido previsto na proposição do exercício: Quando vejo/ Quando vejo/ uma bolacha/ lembro da mulher/ do caixa que/ se chama Natacha/ lembro que ela se/ acha, acha, acha, acha.

Ao exercício poético de Curió, Garça, Gaivota e Quero-quero, o eco empresta, além da graça, certa intensidade à ação, sugerindo a repetição das tentativas que o sujeito empreende diante das respostas do eco e gerando como efeito uma força capaz de dilatar ou subtrair. O texto organiza-se narrativamente, mas o recurso sonoro aproxima-o do poético, trazendo a figura do aventureiro diante do eco: Chico e o eco.

O Chico, ico, ico, foi oi oi na montanha, anha, anha, anha falar lar, lar com o eco, eco, eco, eu te pego, ego, ego, ego, eu te amasso, asso, asso, asso, e te asso, asso, asso, asso na minha forma de aço, aço, aço, ceu (sic) palhaço, aço, aço, aço.

Atenta-se que o eco do nome Chico infantiliza o nomeado e, de certo modo, o diminui, enquanto o eco das suas ameaças e provocações aproxima-se de um aumentativo, ampliando-as. Resulta engraçado ver o sujeito fazer-se maior diante do eco, como Dom Quixote ante os moinhos de vento.

Na brincadeira de ecoar palavras, a partir do poema "O eco" (Meireles, 2002Meireles, C. (2002). O eco. In C. Meireles, Ou isto ou aquilo (6a ed., Thais Linhares, ilustr.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. , p. 93), joga-se menino! de um lado; do outro, Gralha responde com Vamos cantar o hino. Se Gralha diz: Marreca, Sabiá emenda: Profe, eu ganhei uma cueca!. Ao fim do trabalho com esse poema, questionou-se acerca do momento mais apreciado na Brincadência: Tudo, tudinho, opina Andorinha; Tudinho, inho, inho, ecoa Guará-pitanga, dando continuidade ao jogo. A brincadeira com a musicalidade da língua é pegadiça, contagia quem desejava calar, pois de repente um novo eco pede para ser dito e garante a propagação dos sons. Como é possível perceber, as associações pelo som são apreciadas pelos leitores infantis, que assim descobrem o curioso, o possível e o imprevisto da língua em seu nível mais concreto. Nas produções dos leitores, destaca-se o emprego das estratégias de reiteração sonora, que agregam intensidade à repetição, em um movimento que ora simula o vaivém, ora delineia movimento ascendente. A exploração da linguagem, a evidência da sonoridade e o gozo dos sons salientam-se nos ecos e repetecos linguísticos.

Por fim, uma pergunta ecoa: Como a poesia reverbera nos exercícios dos letrandos? As produções mostram-se emissárias de um poético da simplicidade, inventado no cotidiano e nas relações entre os sujeitos e os outros. A seleção e a ordenação singular das palavras, a criação intencional de um efeito específico, de riso ou sensibilização, a instauração de silêncios propositais, tendo em vista o poético, a tentativa de ultrapassar lugares comuns, são alguns dos procedimentos que dão visibilidade ao processo de letrar-se para a poesia, experimentado no nível da produção.

Ecos de poesia

Mas o eco só responde: "Onde? Onde?" Cecília Meireles (2002) Cecília Meireles (2002Meireles, C. (2002). O eco. In C. Meireles, Ou isto ou aquilo (6a ed., Thais Linhares, ilustr.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. )

Quando se propõe buscar caminhos para a experiência do poético, entende-se que as respostas são parciais e exigem o complemento das esperanças e ações do próprio sujeito que indaga. Por isso, pergunta-se ainda pela poesia e suas concretizações, especialmente no tempo da infância e no espaço da escola. Ora, se a poesia está na infância, e o acervo do PNBE é direcionado à infância, então, a poesia precisa comparecer nos títulos e depois sair desses títulos e respingar nos leitores concretos que habitam as escolas brasileiras. A experiência vivenciada no interior do projeto Brincadências Poéticas mostra que a poesia produz ressonâncias no leitor em formação, como mostra a sua acolhida ao texto poético e a disponibilidade com que o enfrenta. Já a leitura cuidadosa das obras de poesia do PNBE revela como leitor implícito um sujeito infantil que está aberto para explorar o brinquedo de palavras e mobiliza experiências de poesia no encontro com os versos. Contudo, esse leitor esperado não está pronto de fato, mas precisa do texto e das suas demandas, para continuar nascendo. Por isso, letrar para a poesia é processo que carece de intencionalidade e constância para se concretizar. Apenas ler não é o bastante. Entre as rotinas, as paredes fechadas e as grades curriculares da escola, é preciso abrir intervalos que abriguem pousos e horizontes, para que esse leitor possa aprender o voo através das malhas do texto poético.

Um caminho para a apropriação do poético desenha-se a partir da ênfase à musicalidade do texto, alcançando o enfoque imagético, de modo a complexificar, progressivamente, a atuação do leitor. O estudo de que se ocupa o presente artigo revela as relações entre o conhecido e o estranho, a brincadeira com a ambiguidade de sentido, a exploração dos sons da língua, a manifestação do nonsense como elementos que favorecem a instauração e a consolidação da experiência poética na infância. Além de acessar o poético "de dentro" do poema, seja lendo ou escrevendo, também é importante falar sobre ele, examiná-lo estando "de fora", desde as partes ao todo e vice-versa. Nesse aspecto, a formação de um grupo de interlocução é fundamental para que a leitura saia do monólogo. Para provocar ecos, a poesia precisa encontrar espaços de propagação, de circulação, de "bate e volta" entre as paredes da escola.

Nesse sentido, parece imprescindível que os investimentos acolham a natureza poética e infantil, pautando-se no ludismo. O brincar é a atividade que mais mobiliza o sujeito infantil. Pelo pensamento lúdico, um graveto é um avião supersônico, sem, contudo, deixar de ser um simples graveto. Uma bailarina que se apresenta com um vestido de mentira está mais deslumbrante do que se trajasse tafetá e seda. Pelo pensamento lúdico, é possível ao poético existir, pois uma palavra em uso poético torna-se uma coisa e outra, sem deixar de ser ela mesma. A linguagem feita poesia ganha transparência para revelar, através de si, o que está além.

Por isso, uma das possibilidades mais promissoras para a concretização da mediação pedagógica tendo em vista o poético é o recurso à experiência lúdica, que vai ao encontro da maneira como a criança se apropria do mundo. Quando se trata da poesia, a intervenção lúdica é inerente à leitura, já que a proposição poética se origina da disponibilidade do autor para brincar com a língua e com as possibilidades do seu entorno. Como sugere o nome do projeto que ensejou a prática aqui relatada, as leituras poéticas têm mais chance de sucesso quando orientadas para o brincar, seja com a linguagem, seja com o corpo, com os sentidos e com o outro. Parece-nos, pois, fundamental que a escolarização da leitura não corrompa a natureza lúdica do poético e conserve a sua legitimidade, que é gratuita e provocativamente construída.

O leitor que a escola acolhe já viveu a poesia do mundo. Importa que ele também tenha espaços e recursos para lidar com a poesia que as letras propõem. Letramento poético significa, pois, possibilitar que o leitor seja leitor de poesia, viabilizando o exercício de coautoria que autoriza o interlocutor a atribuir sentido ao poético. A convicção que norteia o presente estudo é que, fazendo eco na subjetividade e na cognição dos leitores em formação, a leitura poética assume lugar decisivo no processo de emancipar o sujeito e permitir-lhe a autonomia, que tanto desafia a escola e a sociedade de modo geral.

Trata-se de possibilitar às inquietações da infância, que tantas vezes escapam aos olhares distraídos, encontrarem uma voz, com a qual as crianças podem surpreender-se, formular perguntas, viver a ambiguidade das respostas e brincar. Desse modo, a prática leitora pode revelar-se um prazer acessível de ser vivido como experiência, sustentando-se para além da sala de aula.

Realizando essas reflexões, a partir da pesquisa vivenciada, o presente artigo procura propor possibilidades de uso e significação dos acervos destinados às escolas pelo PNBE. Assim, evidencia-se a necessidade de construir pontes entre o livro e os leitores em formação, já que a presença de bons textos nas escolas não tem garantido que eles sejam lidos e apropriados. Busca-se, outrossim, contribuir para a construção de uma resposta possível às dificuldades que a instituição escolar tem enfrentado, no seu desafio de formar leitores e, sobretudo, leitores que leem com prazer: leitores que encontram no ato de ler um eco para o viver.

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  • 1
    Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq n° 43/2013; Narrativa visual no PNBE 2014: composição e leitura; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Desafios e acolhimentos da literatura infantil).
  • 2
    Este artigo foi construído a partir da tese Brincadências com a poesia infantil: um quintal para o letramento poético (Marangoni, 2015).
  • 3
    As classificações das obras são realizadas por pesquisadores, para o estudo e a divulgação dos acervos. Podem ser encontradas diferenças na classificação das obras como poéticas, uma vez que, dependendo dos critérios adotados, há modos distintos de classificar os títulos. Assim, as diferenças ligam-se ao modo como o poético é compreendido, podendo ser contemplados textos em verso e prosas poéticas, por exemplo. No caso deste estudo, privilegiou-se o gênero poema.
  • 4
    Uma das autoras do estudo é professora do grupo de alunos participantes da investigação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2015
  • Aceito
    21 Jan 2016
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