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Classe social e conflito na implementação de prescrições curriculares para o ensino de arte1 1 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisão@tikinet.com.br.

Resumo

Interessado no debate sobre educação e desigualdades, o artigo tem por objetivo discutir o processo de afirmação de uma dada cultura e de determinados modos de sua transmissão, como aqueles que o Estado, por seu poder, determina que o sistema de ensino deverá assumir. Assim, pesquisamos quatro mediações, analisadas como relações conflituosas, pelas quais as prescrições curriculares oficiais procuram se impor e legitimar no cotidiano de escolas públicas, organizando o trabalho do professor. As conclusões estão orientadas por uma ideia central: tais prescrições procuram universalizar a cultura e as disposições estéticas das elites letradas, sem discutir suas condições sociais de produção, reprodução e difusão.

Palavras-chave
educação e desigualdades; currículo; trabalho do professor; ensino de arte; ensino fundamental

Abstract

This paper focuses on education inequalities, discussing the process of assertion of a given culture and of certain ways of transmitting it, such as those determined by the State to be applied by the school system. By analyzing how these advantages are taught within public schools, and how this should help to organize and legitimize the teachers’ work, four conflicting relations were identified. This paper concludes that such conflicts exist because the curricular prescriptions aims at generalizing the dispositions and the relationship with the arts that is very specific to a certain social group, the educated elites, without discussing the social conditions of their production, reproduction and diffusion.

Keywords
education inequalities; curriculum; teacher’s work; arts education; elementary school

Introdução

Igualdade e desigualdade são relações, e analisá-las pressupõe, como afirma Bobbio (1993)Bobbio, N. (1993). Igualdad y liberdad. Barcelona: Paidós Ibérica., responder a pelo menos duas perguntas: igualdade entre quem? Em relação a quê?

A literatura sobre desigualdade educacional constrói como sujeitos de análise grupos definidos por sua posição social (indicada normalmente por escolaridade e renda) e por marcadores de identidade (usualmente gênero e raça). Analisam-se, por exemplo, as chances de indivíduos desses grupos cumprirem diferentes etapas da trajetória escolar (Ribeiro, Cenevita, & Brito, 2015Ribeiro, C. A. C., Ceneviva, R., & Brito, M. M. A. (2015). Estratificação educacional entre jovens no Brasil: 1960 a 2010. In M. Arretche (Org.), Trajetória das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos (pp. 79-108). São Paulo: Editora Unesp, Centro de Estudos da Metrópole.; Mont’Alvão Neto, 2011Mont’Alvão Neto, A. L. (2011). Estratificação educacional no Brasil do século XXI. Dados: Revista de Ciências Sociais, 54(2), 389-430.), alcançarem as aprendizagens esperadas (Alves, Soares, & Xavier, 2016Alves, M. T. G., Soares, J. F., & Xavier, F. (2016). Desigualdades educacionais no ensino fundamental de 2005 a 2016: hiato entre grupos sociais. Revista Brasileira de Sociologia, 4(7), 49-81.) ou acessarem posições na estrutura de classes (Ribeiro, 2003Ribeiro, C. A. C. (2003). Estrutura de classes, condições de vida e oportunidades de mobilidade social no Brasil. In C. Hasenbalg, & N. Valle Silva, Origens e destinos: desigualdades sociais ao longo da vida (pp. 381-430). Rio de Janeiro: Topbooks.; Hasenbalg, 2003Hasenbalg, C. (2003). A transição da escola ao mercado de trabalho. In C Hasenbalg, & N. Valle Silva, Origens e destinos: desigualdades sociais ao longo da vida (pp. 147-172). Rio de Janeiro: Topbooks.) e determinados níveis de renda (Menezes Filho & Kirschbaum, 2015Menezes Filho, N., & Kirschbaum, C. (2015). Educação e desigualdade no Brasil. In M. Arretche (Org.), Trajetória das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos (pp. 109-132). São Paulo: Editora Unesp, Centro de Estudos da Metrópole.).

Essa literatura tem sido essencial para a compreensão da realidade educacional brasileira. Entretanto, ela não se propõe a discutir certo aspecto da produção de desigualdades educacionais: a construção social do conhecimento escolar, cuja distribuição pode-se considerar mais ou menos desigual.

O objetivo geral deste trabalho é discutir conflitos no processo de afirmação de uma dada cultura e de determinados modos de sua transmissão, como aqueles que o Estado, por seu poder, determina que o sistema de ensino deverá assumir. Seguindo caminho já aberto pelos estudos sobre currículo e história das disciplinas escolares (Chervel, 1988Chervel, A. (1988). L’histoires des disciplines scolaires: reflexions sur un domaine de recherche. Histoire de l’Éducation, 38, 59-119.; Goodson, 1997Goodson, I. (1997). A história social das disciplinas escolares. In A construção social do currículo (pp. 17-26). Lisboa: Educa.; Goodson & Dowbiggin, 1995Goodson, I. F., & Dowbiggin, I. (1995). História do currículo, profissionalização e organização social do conhecimento: um paradigma alargado para a história da educação. In I. Goodson, Currículo: teoria e história (pp. 97-115). Petrópolis: Vozes.; Moreira & Tadeu, 2011Moreira, A. F., & Tadeu, T. (2011). Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In Currículo, cultura e sociedade (pp. 13-47). São Paulo: Cortez.; Julia, 2001Julia, D. (2001). A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, 1, 9-44.; Viñao, 2008Viñao, A. (2008). A história das disciplinas escolares. Revista Brasileira de História da Educação, 18, 173-215.), pesquisamos mediações pelas quais a perspectiva de determinados grupos, firmada como prescrições curriculares oficiais, procura se impor e legitimar no cotidiano de escolas públicas, organizando o trabalho do professor.

Para abordar a relação entre o prescrito e o espaço escolar, mobilizaremos a noção de duplo arbitrário da ação pedagógica, formulada por Bourdieu e Passeron (2008)Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (2008). A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes.. Para esses autores, tanto a cultura legítima a ser transmitida pelas escolas quanto o modo legítimo de transmiti-la são arbitrários, produtos de relações sociais, e não fenômenos fundados em princípios universais extrassociais, quaisquer que sejam. Desse modo, a conquista de legitimidade da cultura a ser transmitida pelo sistema escolar e dos modos de transmiti-la depende do poder dos grupos sociais que sustentam essas construções para assegurar que sua imposição seja aceita no interior do sistema de ensino e, mais amplamente, no espaço social.

Estudamos condições sociais de realização das prescrições oficiais para o ensino de arte nos anos finais do ensino fundamental (EF2). Nosso objetivo foi identificar conflitos que medeiam essa realização, os quais podem colaborar ou não para legitimar tais prescrições nas escolas.

A pesquisa foi realizada no EF2 em duas escolas públicas estaduais do município de Campinas, no estado de São Paulo. Nessa etapa educacional, arte é disciplina obrigatória, e para ela há diretrizes curriculares oficiais. Foram considerados dois documentos prescritores, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o Currículo do Estado de São Paulo (Brasil, 1998Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília.; São Paulo, 2012São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. (2012). Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias (2a ed.). São Paulo.), nos quais a União e o estado apresentam as linguagens artísticas a serem ensinadas para todos os estudantes, bem como a relação que estes devem desenvolver com a disciplina ao longo do EF2.

A pesquisa

Optamos por estudar escolas de uma diretoria regional de ensino de Campinas, a Leste, que abrange tanto a área central e mais rica da cidade, quanto bairros mais periféricos e pobres. Escolhemos duas unidades para realizar o trabalho de campo, procurando posições antagônicas no sistema de ensino público.

As escolas foram selecionadas a partir de seu desempenho acadêmico e do perfil socioeconômico dos discentes. Para tanto, utilizamos o resultado dos alunos do 9º ano na prova de língua portuguesa do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) e o Indicador de Nível Socioeconômico (Inse) do corpo discente calculado por este sistema de avaliação. Todas as escolas da diretoria Leste foram ordenadas duas vezes, em função dessas variáveis. Selecionamos aquelas que pertenciam ao mesmo tempo aos quintis superior e inferior de cada ordenamento. Assim produzimos dois grupos de escolas, que pertenciam concomitantemente: (i) ao quintil inferior do Idesp e ao quintil inferior do Inse; e (ii) ao quintil superior do Idesp e ao quintil superior do Inse.

Obtidos os dois grupos, procuramos uma escola em cada um deles. A de maior desempenho no Saresp e maior Inse será chamada de Deputado, enquanto a de menor desempenho e menor nível socioeconômico será chamada de Bispo3 3 Atribuímos nomes fictícios às escolas e às docentes pesquisadas. .

A pesquisa de campo foi feita por uma de nós, à época licencianda em Dança pela Unicamp. As estratégias utilizadas foram: observação de aulas e da rotina escolar; entrevistas informais e semiestruturadas com professoras, abordando suas trajetórias social, escolar e profissional; conversa informal com alunos; participação nas atividades docentes, seja auxiliando as professoras na montagem de planos de aula e na realização de atividades, seja substituindo-as eventualmente.

Prescrições oficiais para o ensino de arte

Como já mencionado, foram analisadas duas prescrições oficiais para o ensino de arte na rede estadual paulista, os PCN (Brasil, 1998Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília.) e o Currículo do Estado de São Paulo, instituído em 2008 (São Paulo, 2012São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. (2012). Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias (2a ed.). São Paulo.). Os PCN de arte foram redigidos logo após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDB), de 1996Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996, 23 de dezembro). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, seção 1., quando arte se tornou uma disciplina obrigatória do currículo básico, substituindo o que então se chamava educação artística. Tais parâmetros elevaram à condição de prescrição oficial a perspectiva de arte-educadores que acumularam experiências e relações com pares internacionais nas décadas anteriores, mas que até pouco tempo antes tinham pouco poder no campo educacional brasileiro.

Ana Mae Barbosa, personagem central desse grupo, publicou em 1989 um relato da situação do ensino de arte no Brasil, trazendo informações importantes a esse respeito. O trabalho foi redigido sob encomenda da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a International Association for Education trough Art (Insea), entidade criada no início dos anos 1950 na esteira dos debates ocorridos na Unesco. O documento integral, do qual o relato brasileiro é parte, foi organizado por Elliot W. Eisner. Em 1998, Eisner apareceria como autor de referência dos PCN, posição dividida com Barbosa, que também seria consultora do documento.

Em 1989, o diagnóstico de Barbosa possui tom de narração catastrófica. Com a exceção concedida a duas escolas privadas paulistanas, ambas voltadas a frações intelectualizadas de sua elite, a educadora sustenta:

Eu não quero parecer apocalíptica em afirmar que 17 anos de ensino obrigatório da arte não desenvolveu a qualidade estética da arte-educação nas escolas. O problema de baixa qualidade afeta não somente a arte-educação mas todas as outras áreas de ensino no Brasil. A atual situação da educação geral no Brasil é dramática.

(Barbosa, 1989Barbosa, A. M. (1989). Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estudos Avançados, 3(7), 170-182., p. 173)

Dez anos depois, a primeira parte dos PCN formulam uma história do ensino de arte no Brasil na qual se apresenta a ruptura com o que seriam duas grandes perspectivas dominantes, responsáveis pelo legado catastrófico caracterizado por Barbosa em 1989: “uma que propõe exercícios de repetição ou a imitação mecânica de modelos prontos. Outra, que trata de atividades somente auto estimulantes” (Brasil, 1998Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília., p. 94).

A primeira é a perspectiva tradicional, orientada pela reprodução de modelos e pelo primado da técnica, que remonta à fundação do ensino de arte nas escolas do país, em 1854 (Brasil, 1998Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília., p. 23). Segundo os PCN,

na escola tradicional, valorizavam-se principalmente as habilidades manuais, os “dons artísticos”, os hábitos de organização e precisão, mostrando ao mesmo tempo uma visão utilitarista e imediatista da arte. Os professores trabalhavam com exercícios e modelos convencionais selecionados por eles em manuais e livros didáticos. O ensino de Arte era voltado essencialmente para o domínio técnico, mais centrado na figura do professor. Competia a ele “transmitir” aos alunos os códigos, conceitos e categorias, ligados a padrões estéticos de ordem imitativa, que variavam de linguagem para linguagem, mas que tinham em comum, sempre, a reprodução de modelos.

(Brasil 1998Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília., p. 23)

Essa tradição atravessaria o século XX e ganharia novo impulso com a LDB de 1971, quando o ensino de arte foi dominado pelo desenho artístico (Barbosa, 1989Barbosa, A. M. (1989). Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estudos Avançados, 3(7), 170-182.; Brasil, 1998Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília.).

A segunda perspectiva, orientada pela autoexpressão livre e espontânea, firmou-se como contraposição à tradição tecnicista. Sob influência da estética modernista e do escolanovismo, foi experimentada em diversas escolas no Brasil a partir dos anos 1920, mudando os modelos e padrões vigentes no ensino de arte até então. Segundo os PCN, nessa abordagem

o ensino de arte volta-se para o desenvolvimento natural do aluno, centrado no respeito às suas necessidades e aspirações, valorizando suas formas de expressão e de compreensão do mundo. As práticas pedagógicas, diretivas, com ênfase na repetição de modelos e no professor, são revistas, deslocando-se a ênfase para os processos de desenvolvimento do aluno e sua criação.

(Brasil, 1998Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília., p. 24)

A perspectiva assumida pelos PCN se apresenta como ruptura às outras duas. A abordagem tradicional é criticada por se restringir à reprodução de modelos consagrados e por não se orientar para o desenvolvimento da criatividade. As experimentações orientadas pela autoexpressão livre e espontânea, por sua vez, são criticadas porque, ao pressuporem o desenvolvimento natural do aluno, rejeitam o ensino das linguagens artísticas dos adultos, deixando os professores em posição passiva. Assim, se os alunos não tiverem contato prévio com as linguagens artísticas, seus trabalhos se restringirão a práticas com pouca reflexão e escassa apropriação das linguagens.

Limitados pela determinação legal que incluiu em uma só disciplina quatro linguagens artísticas – artes visuais, dança, música e teatro –, os PCN buscam definir uma perspectiva única para abordar cada uma delas, organizada a partir da experiência artística. Essa proposta está estruturada em três eixos indissociáveis: o fazer artístico, a apreciação artística e a reflexão histórica. Na primeira menção que faz a essas três dimensões organizadoras do ensino de arte, os PCN apresentam as referências teóricas pelas quais se orientam, dentre elas Ana Mae Barbosa, também consultora do documento, e Elliot W. Eisner.

Em seu relato de 10 anos antes, ao narrar intervenções públicas que fez ao longo dos anos 1980, falando para professores de arte em diversos estados brasileiros em defesa de diretrizes que na década seguinte estariam nos PCN, Barbosa deixa clara a rejeição das plateias à posição que defendia. Em alguns casos, a reação de seus interlocutores adeptos da posição por ela chamada de espontaneísta foi agressiva. “Em lugar de perguntas eles me enviaram acusações escritas de ser conservadora, alienada, escrava do capitalismo internacional, de rechaçar a arte-educação, etc.” (Barbosa, 1989Barbosa, A. M. (1989). Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estudos Avançados, 3(7), 170-182., p. 180). Enquanto isso,

um orador convidado, que foi aplaudido quase histericamente pelo público, manifestou-se contra a avaliação e mesmo contra o comentário do trabalho de arte dos estudantes em sala de aula, e definiu a arte como “uma sonora gargalhada para oxigenar a vida quando a velhice chega”.

(Barbosa, 1989Barbosa, A. M. (1989). Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estudos Avançados, 3(7), 170-182., p. 180)

Não abordaremos as disputas pelas quais, no campo das políticas públicas de educação, uma posição que tinha pouco poder – e era até mesmo rechaçada pelos arte-educadores – 10 anos depois conseguiu esta vitória expressiva: viabilizar-se, pelo poder do Estado, como parâmetro curricular nacional para o ensino de arte. Contudo, esse processo é uma mediação fundamental da constituição do fenômeno que abordamos, produzindo uma contradição que retomaremos nas considerações finais.

A segunda parte dos PCN apresenta o conteúdo de sua proposta, trabalhando as quatro linguagens artísticas em suas especificidades. Para cada uma delas são apresentados objetivos gerais, conteúdos e critérios de avaliação. Além de prescrever orientações para o ensino, o documento também prescreve a relação esperada entre aluno e arte no fim do EF2. Trata-se de uma relação não utilitária, não instrumental, que deve ser prazerosa, voltada à própria experiência artística e à criação cultural.

Esses estudantes devem dominar as diversas linguagens artísticas ao se apropriarem de obras, adquirindo os conhecimentos necessários para contextualizá-las sócio-historicamente. Deverão também ser capazes de mobilizar esses conhecimentos em realizações autorais que, em conjunto, deverão ser pensadas como parte integrante da cultura dos jovens. Nas palavras oficiais,

nesse momento, além de ter aprendido sobre as normas e convenções das distintas linguagens artísticas, o aluno pode interpretá-las, reconhecer com mais clareza que existe contextualização histórico-social e marca pessoal nos trabalhos artísticos e é nesse sentido que inclui esses componentes nos próprios trabalhos. Essa marca ou estilo próprio agora realizados com intenção, aliados ao prazer em explicitar seus argumentos e proposições poéticas, surgem agora como ingredientes fortes e conscientes e fazem parte dos valores da cultura dos jovens. Agora o estudante pode identificar com bastante clareza a posição que sua comunidade ocupa no contexto de diferentes espaços de produção cultural, comparando, interpretando e posicionando-se em relação a uma gama variada de propostas artísticas da sua região e de outras regiões do país e de outros países. A identificação das transformações históricas que ocorrem nas produções artísticas das distintas comunidades passa a ser compreendida, pois fica mais claro para o aluno a cronologia dos diferentes momentos da história das artes.

(Brasil, 1998Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília., p. 61)

A partir de sua publicação, os PCN foram assumidos como referências para a reorganização do ensino no país, associando-se a outras políticas públicas, tais como as de avaliação de livros didáticos e as de formação de professores, e influenciariam também os currículos de unidades da federação. O Currículo do Estado de São Paulo foi elaborado 10 anos depois dos PCN, por iniciativa da Secretaria da Educação paulista, em 2008, quando gestores que haviam sido responsáveis por produzir os PCN passaram a comandar a política educacional do estado.

O documento paulista, além de expor objetivos gerais para o ensino, propõe modos de planificar e organizar o trabalho do professor, incluindo objetivos, temas, conteúdos e habilidades a desenvolver, bem como a progressão esperada do aluno nas disciplinas e metodologias de avaliação. Esses tópicos são detalhados em três cadernos: o do Professor, com propostas de temas, aulas, tarefas para casa, pesquisas, solução de exercícios e metodologias de avaliação; o do Aluno, que apresenta textos, imagens e atividades; e o do Gestor, que não analisamos.

O Currículo do Estado de São Paulo e os PCN têm muitos pontos em comum. A história do ensino de arte no país que esses documentos constroem é, grosso modo, a mesma. O currículo paulista cita os PCN, posicionando-se explicitamente “de acordo” com eles ao organizar o ensino de arte por três eixos metodológicos: criação/produção, fruição estética e reflexão (São Paulo, 2012São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. (2012). Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias (2a ed.). São Paulo., p. 197). Ana Mae Barbosa é a referência central do documento paulista para a formulação dessa proposta triangular (São Paulo, 2012São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. (2012). Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias (2a ed.). São Paulo., p. 197).

Ambos os documentos partilham do objetivo de, pelo ensino, estabelecer uma relação específica dos estudantes com a arte e a cultura. Eles pretendem fortalecer a identidade artística individual dos alunos, fomentar o sentimento de pertença a grupos sociais, bem como incentivar a relação entre os aprendizados escolares e a cultura em geral.

Essas semelhanças de fundo não são abaladas por suas diferenças. Por exemplo, o currículo paulista inclui uma quinta linguagem, a audiovisual. Para além dessa disparidade óbvia, há entre eles distinções propriamente pedagógicas, que podem ser explicadas por mudanças no campo das políticas públicas de educação ocorridas nos 10 anos que separam os documentos, fruto da emergência de outros grupos com poder para influenciar essas políticas.

Nesses 10 anos, competência se tornou uma categoria central na construção de currículos (Dolz & Ellaigner, 2004Dolz, J., & Ellagnier, E. (Orgs.). (2004). O enigma da competência em educação. Porto Alegre: Artmed.). Assim, o documento paulista se apresenta como um “currículo que promove competências” (São Paulo, 2012São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. (2012). Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias (2a ed.). São Paulo., p. 14). Outra mudança ocorrida nesse período foi a construção das políticas de avaliação de sistemas educacionais. Articulando essas duas mudanças, o documento paulista define “como competências para aprender aquelas que foram formuladas no referencial teórico do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)” (São Paulo, 2012São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. (2012). Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias (2a ed.). São Paulo., p. 20).

Também não abordaremos as condições pelas quais, na formulação de políticas públicas, o grupo que havia obtido poder para transformar sua perspectiva de ensino de arte em prescrição oficial precisaria dividir esse poder e encontrar soluções de compromisso com outros grupos, que impuseram, no centro das políticas educacionais, a formulação de competências articuladas às políticas de avaliação de sistemas de ensino.

Não obstante essas diferenças, os dois documentos partilham de referências comuns quanto à relação a ser estabelecida entre os alunos e a arte. Na sessão “Fundamentos do ensino de arte” (São Paulo, 2012São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. (2012). Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias (2a ed.). São Paulo., p. 186), o currículo paulista define a apropriação da obra artística como a experiência de percorrer um mundo construído, específico e distinto do cotidiano, que materializa a “experiência e percepção do mundo, transformando o fluxo de movimentos em algo visual, textual ou musical. A arte cria uma espécie de comentário” (Kruger, B. citado por São Paulo, 2012São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. (2012). Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias (2a ed.). São Paulo., p. 189).

Os dois documentos pretendem universalizar uma relação rara com as obras de arte, que pressupõe o desenvolvimento de disposições estéticas autonomizadas, liberadas das urgências das necessidades e das aplicações práticas (Bourdieu, 2011Bourdieu, P. (2011). Gênese histórica de uma estética pura. In O poder simbólico (pp. 281-298). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.). Ambos pressupõem docentes que tenham desenvolvido essas disposições, e pretendem que os estudantes as desenvolvam, apropriando-se do que é reconhecido como patrimônio cultural e artístico e formando-se como criadores de cultura.

Ao instituírem como prescrição oficial para ensino de arte uma proposta até pouco tempo minoritária, os documentos tratam como universalizável o que é socialmente específico e raro: as disposições estéticas próprias de grupos específicos – frações letradas das elites – que pressupõem a independência dos sujeitos em relação às urgências da necessidade e as injunções práticas (Bourdieu, 1983Bourdieu, P. (1983). Gostos de classe e estilos de vida. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu: sociologia (pp. 73-111). São Paulo: Ática.). Ao fazerem isso, os documentos não abordam as condições de realização do que prescrevem; não tratam as condições sociais de aceitação, de legitimação dessa proposta nos sistemas de ensino, tampouco as possibilidades de desenvolvimento das disposições estéticas prescritas, que são geradoras do olhar puro, estetizante e criador.

Não obstante, o elidido no discurso que as prescrições constroem sobre si, procurando se legitimar, é dimensão fundamental da abordagem proposta pelos estudos sobre a construção histórica do currículo e das disciplinas escolares (Chervel, 1988Chervel, A. (1988). L’histoires des disciplines scolaires: reflexions sur un domaine de recherche. Histoire de l’Éducation, 38, 59-119.; Goodson, 1997Goodson, I. (1997). A história social das disciplinas escolares. In A construção social do currículo (pp. 17-26). Lisboa: Educa.; Goodson & Dowbiggin, 1995Goodson, I. F., & Dowbiggin, I. (1995). História do currículo, profissionalização e organização social do conhecimento: um paradigma alargado para a história da educação. In I. Goodson, Currículo: teoria e história (pp. 97-115). Petrópolis: Vozes.; Julia, 2001Julia, D. (2001). A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, 1, 9-44.; Viñao, 2008Viñao, A. (2008). A história das disciplinas escolares. Revista Brasileira de História da Educação, 18, 173-215.). Esses estudos destacam o papel criativo da escola, considerando que as disciplinas escolares se constituiriam na interação entre as prescrições, as comunidades de educadores e os discentes. Dessas interações, as culturas escolares são construídas como amálgamas, estabelecendo compromissos entre subgrupos e tradições em disputa (Goodson, 1997Goodson, I. (1997). A história social das disciplinas escolares. In A construção social do currículo (pp. 17-26). Lisboa: Educa.; Goodson & Dowbiggin, 1995Goodson, I. F., & Dowbiggin, I. (1995). História do currículo, profissionalização e organização social do conhecimento: um paradigma alargado para a história da educação. In I. Goodson, Currículo: teoria e história (pp. 97-115). Petrópolis: Vozes.). Elas definiriam, então, conhecimentos e normas a serem transmitidos e práticas a serem realizadas que, apoiadas por comunidades de educadores, fundam tradições que passam a ocupar posições no espaço escolar. E nesse espaço, as diferentes disciplinas, com suas tradições, disputam status, recursos e territórios, o que define relações de poder entre elas.

Os esforços para impor novas prescrições, desse modo, deverão lidar com as culturas escolares e as hierarquias existentes nesse campo, o que produz conflitos visíveis nas práticas (Julia, 2001Julia, D. (2001). A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, 1, 9-44.). Neste trabalho, estudamos a relação entre as prescrições legais e as culturas escolares, buscando ver a relação entre as disposições artísticas dos sujeitos sobre cujas práticas as prescrições incidem.

Escolas e professoras4 4 A apresentação das escolas e das docentes se baseia em informações construídas por diferentes estratégias metodológicas, expostas anteriormente. De posse das informações, procuramos construir retratos com o máximo respeito ao observado, mas priorizando as questões que nos interessa analisar. Eventuais desequilíbrios nas informações entre docentes e escolas são fruto dos limites impostos pelas diferenças nas relações construídas no trabalho de campo e que não nos foi possível superar, mesmo posteriormente, nas checagens pontuais que efetuamos.

Julia (2001)Julia, D. (2001). A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, 1, 9-44. propõe três níveis de análise da cultura escolar como objeto histórico: prescrições, docentes e práticas. Tendo apresentado as prescrições, analisaremos as duas escolas e as duas docentes investigadas. As unidades escolares serão apresentadas a partir de suas posições no campo escolar campineiro e das tradições de ensino de arte que nelas se consolidaram e que definem tanto fins e valores para o ensino de arte defendidos por educadores e discentes quanto a posição de arte na hierarquia das disciplinas. As docentes serão apresentadas a partir da posição social de suas famílias e de suas trajetórias escolares e profissionais, pelas quais procuraremos apreender as disposições estéticas que desenvolveram e os fins e valores que defendem para o ensino de arte. Pela formação delas, por suas disposições estéticas e práticas docentes, procuraremos analisar conflitos pelos quais são estabelecidas soluções de compromisso que, ao amalgamar diferentes fins e valores, definem o ensino de arte realizado.

A escola Deputado e a professora Juliana

A escola Deputado integra o grupo de unidades da Diretoria Leste que simultaneamente têm maior desempenho em língua portuguesa no Saresp e discentes com maior nível socioeconômico. Nela, foram realizadas 35 horas de trabalho de campo ao longo do segundo semestre letivo de 2015. Acompanhamos as atividades em uma classe de sexto ano e em duas classes de sétimo ano no período vespertino, todas sob responsabilidade da professora Juliana.

Essa escola se localiza na região central de Campinas, a cerca de 3 km da Prefeitura, em área que concentra moradores de posição alta no espaço social da cidade. A secretaria da escola informou que o corpo discente vem predominantemente de bairros vizinhos onde, segundo o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), predominam famílias em situação de baixa vulnerabilidade social.

A escola possui dois grandes blocos de salas de aula construídos em um mesmo terreno, onde também há um pátio, duas salas de vídeo e um laboratório de ciências. Em outro terreno, no lado oposto da rua, fica a quadra poliesportiva, na qual, devido ao alto absenteísmo docente, sempre há alunos.

A professora Juliana estava em seu primeiro ano como docente da rede estadual. Ela só trabalhava na escola Deputado, contratada em caráter emergencial na categoria O. Os professores sob esse regime não são efetivos e, embora assumam a disciplina durante o ano letivo, não têm garantia de renovação de contrato nem de permanência na escola no ano seguinte.

A mãe de Juliana nasceu em Maringá, Paraná. Toda sua escolarização básica foi feita em escolas públicas. Sempre leu literatura de ficção. Concluiu o ensino médio e parou de estudar quando engravidou de Juliana. Depois que a filha completou 5 anos, cursou Letras. Posteriormente, graduou-se também em Direito. Trabalhou como professora de inglês e português em escolas particulares e públicas estaduais, tendo sido coordenadora, vice-diretora e diretora de escolas públicas. Atualmente é secretária de educação de um município no interior de São Paulo, onde também atua como advogada.

O pai de Juliana nasceu em Registro, São Paulo. Cursou um ano de Administração de Empresas na Universidade Mackenzie, na capital paulista. Quando a filha nasceu, interrompeu os estudos e se mudou com a família para Registro, onde se graduou em Contabilidade. Atualmente trabalha na Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), em cargo de gestão intermediária. Nunca teve relação próxima com as artes. Sempre deu apoio à trajetória escolar e profissional de Juliana, mas nunca ficou contente com sua escolha, tendo chegado a dizer que “a dança corrompeu” a filha.

Juliana nasceu em São Paulo, mas foi criada em Registro. Estudou em uma escola da Fundação Bradesco, mas se transferiu para uma escola privada, onde completou o ensino médio. A mudança foi feita como estratégia da família para ampliar as chances da filha de ser aprovada em uma universidade seletiva.

A relação de Juliana com a disciplina de arte foi boa nos anos iniciais de sua escolarização. Ela relata experiências prazerosas. A professora da escola da Fundação Bradesco, formada em Artes Visuais, abordava diferentes linguagens. Como Juliana atuava em um grupo de dança e em outro de teatro, estabeleceu relação de cumplicidade com a professora. Na escola privada, a disciplina enfatizava a história das artes visuais e suas manifestações vanguardistas. Nessa época, Juliana desenvolveu uma relação de desprazer e desmobilização com a disciplina, chegando a ficar em recuperação.

Começou a fazer sapateado e balé aos 6 anos, e após os 13, dedicou-se exclusivamente ao sapateado. Entre 15 e 17 anos, antes de ingressar no ensino superior, deu aulas de dança em um projeto para famílias realizado em escolas públicas, em uma academia de dança e em uma escola de educação infantil.

Apesar dessas experiências de adolescência, Juliana graduou-se em Direito, em 2010, na Universidade Estadual de Maringá. Durante a graduação, participou do grupo de sapateado da universidade, para o qual também deu aulas.

No último ano de graduação, Juliana torceu o pé e desde então não pode mais dançar. Ao concluir o curso, trabalhou como recepcionista em uma academia de dança enquanto fazia o curso preparatório para o exame da OAB. Entretanto, desinteressada pelo Direito, pouco se dedicou ao exame, no qual foi reprovada.

Não podendo dançar e desestimulada a prosseguir na carreira em Direito, Juliana cogitou fazer um curso técnico em dança com o objetivo de dar aulas de dança em espaços não escolares. Foi sua mãe quem lhe sugeriu cursar uma licenciatura em dança, calculando que esse diploma também lhe daria a possibilidade de lecionar arte na educação básica. Juliana seguiu a orientação materna e se mudou para São Paulo, onde cursou licenciatura em Dança na Faculdade Paulista de Artes (2012-2014).

No segundo ano dessa graduação, foi diagnosticada com hérnia de disco. Então, além de não mais poder dançar, viu-se impossibilitada de dar aulas de dança em espaços não escolares, como desejava. Restou-lhe converter-se à docência de arte na rede estadual de ensino.

Segundo seu relato, durante os anos de formação sempre consumiu arte. Em Registro a oferta era restrita; eram raros os espetáculos vindos de fora, e nas montagens da própria cidade, normalmente ela integrava o elenco. Nesses anos, porém, Juliana viajou algumas vezes para São Paulo para assistir musicais, espetáculos teatrais e de sapateado. Em sua segunda graduação, entrou em contato com a dança contemporânea. Morando em São Paulo, pôde assistir a espetáculos apresentados em palcos de prestígio, como o teatro Sérgio Cardoso e o Programa Rumos do Instituto Itaú Cultural.

Quando foi entrevistada, Juliana disse ir raramente a eventos culturais. Ela se via elaborando desculpas para não frequentá-los, como o excesso de trabalho, sua irritação com barulho ou a programação cultural restrita de Campinas. Em outro momento, disse que sua frustração com a impossibilidade de voltar a dançar levou-a a deixar de assistir espetáculos. Entretanto, não frequentar a programação cultural de Campinas ou São Paulo era vivido por ela como uma experiência negativa, não só por não mais poder dançar, mas também por causa de sua conversão profissional à docência. Segundo Juliana, sendo professora de arte que não consome arte, ela pode ser chamada de educadora, mas não de arte-educadora, o que para ela é a verdadeira função do professor de arte.

Antes de começar a lecionar na educação básica, Juliana tinha expectativas baixas para o ensino de arte em escolas públicas, fruto da visão pessimista que formou ao testemunhar as dificuldades relatadas por sua mãe: falta de materiais, de infraestrutura, de profissionais qualificados e interessados, entre outras.

Às vésperas de sua primeira aula na rede estadual, estava em pânico. Acredita que sua experiência prévia e o curso de licenciatura a haviam formado como professora de dança e que estava bem preparada para lecionar em espaços não escolares; entretanto, via-se despreparada para atuar como professora de arte na educação básica. Poucos de seus professores tinham experiência na educação básica, e ela não conhecia as prescrições oficiais.

Para planificar seu curso, Juliana estudou os PCN e as atividades propostas nos Cadernos do Estado. Ela ressalta que as atividades propostas são muito extensas, sendo difícil, em um ano letivo, cumprir todas e alcançar todos os objetivos prescritos. Salienta, ainda, que as propostas do Caderno do Professor são de difícil entendimento, pois mobilizam referências teóricas e linguagens artísticas que os professores nem sempre conhecem.

Além das prescrições oficiais, dedicava-se, com boa vontade, ao estudo de referências complementares para cada linguagem, procurando sempre autores reconhecidos: para dança, Rudolf von Laban e Isabel Marques; para teatro, Viola Spolin; para música, Émile Jaques-Dalcroze.

Juliana se empenhava para realizar uma proposta de ensino de arte compatível com as prescrições oficiais. Ela trabalhava as quatro linguagens artísticas em atividades variadas, explorando os três eixos definidos nas prescrições. Buscava, ainda, articular as referências culturais dos alunos e suas experiências cotidianas às propostas culturais presentes no currículo.

Juliana propunha aulas teóricas e práticas, justificando sua escolha com um argumento semelhante ao usado nas prescrições para criticar a tradição chamada de espontaneísta. Segundo a docente, nas aulas anteriores os alunos apenas desenhavam, sem que lhes fossem oferecidas, sistematicamente, referências.

A escola possuía materiais diversos, como papéis variados, canetas, tinta, pincéis, lápis, tinta em spray, papelão, cartolinas, aparelhos audiovisuais, tesouras, diferentes tipos de cola, barbantes, réguas e, caso fosse preciso algum material adicional, era possível solicitá-lo à direção. Apesar disso, Juliana se queixava da falta de infraestrutura. A escola não contava com espaço adequado e, apesar da possibilidade de utilizar o pátio, esse espaço sempre precisava ser dividido com os alunos sem aula. Não havia local para deixar as produções secando em segurança, tampouco espaço adequado para colocá-las em exposição. A escola não tinha instrumentos musicais.

Juliana afirmou que a escola reconhecia arte como área de conhecimento. Entretanto – e apesar de seu esforço para se adequar às prescrições oficiais –, a legitimidade de sua proposta era questionada. Ela enfrentava resistências por causa das expectativas que outros docentes, a direção, a coordenação pedagógica e os estudantes possuíam sobre a disciplina.

Seus colegas e a equipe pedagógica pressionavam-na para que abordasse conhecimentos de outras disciplinas, como se a arte fosse um estoque de tempo disponível para atender demandas prioritárias. A professora era chamada a trabalhar tópicos de língua portuguesa (gramática e compreensão de texto) e de matemática (conceitos de geometria e leitura de gráficos).

No período da pesquisa, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo anunciou uma grande reorganização da rede, e a escola Deputado chegou a ser ameaçada de fechamento. Para evitar esse risco, o planejamento pedagógico foi readequado, enfatizando as atividades que mais diretamente pudessem aumentar o desempenho dos estudantes nas provas de português e matemática do Saresp. A professora de arte foi cobrada que trabalhasse interpretação de texto. Embora não tenha mudado drasticamente seu plano de curso, Juliana precisou fazer alterações na organização das aulas, nos conteúdos e na avaliação.

Os alunos, por sua vez, raramente aderiam às propostas de Juliana. À exceção do engajamento em poucas atividades de criação (percussão corporal) e de crítica teórica e fruição (cultura afro-brasileira e publicidade), normalmente os estudantes questionavam a legitimidade do que era proposto e participavam com muita relutância das atividades de prática artística. A indisposição era maior para as atividades de dança, mas também era visível no proposto para outras linguagens. Os discentes também não gostavam das aulas expositivas, tampouco de estudar elementos de teoria. Questionavam com frequência a validade dos conhecimentos, a necessidade dos exercícios e a pertinência das práticas artísticas. Para eles, em arte deveriam aprender técnicas de desenho e desenvolver habilidades para atividades manuais, evocando a lógica da tradição tecnicista.

Devido a esse conflito com os alunos, a professora procurou fazer outros ajustes no seu plano de curso. Entretanto, rotineiramente, quando lhes eram prescritas discussões e atividades em grupo, se os estudantes não fossem acompanhados e cobrados de perto e com frequência pela docente, facilmente se dispersavam e não faziam a atividade indicada. Como Juliana havia explicado que o cumprimento das atividades faria parte da avaliação, quando os alunos questionavam muito intensamente o que lhes era proposto, ela dizia que valia nota. Forçados, os alunos executavam resignados as atividades.

A escola Bispo e a professora Jane

A escola Bispo faz parte das pertencentes à Diretoria Leste que simultaneamente têm menor desempenho em língua portuguesa no Saresp e discentes com menor nível socioeconômico. Ali foram realizadas 25 horas de trabalho de campo, distribuídas ao longo do segundo semestre de 2015. Acompanhamos duas classes de sexto ano e uma classe de sétimo ano no período matutino, todas sob responsabilidade da professora Jane.

A escola está localizada a 8,2 km da Prefeitura Municipal de Campinas, e seus alunos vêm do bairro próximo, que concentra famílias em situação de alta vulnerabilidade social, segundo o IPVS. A região possui características comuns às periferias pobres: escassez de serviços públicos e precariedade de moradias e infraestrutura.

No terreno da escola há três blocos interligados por um corredor central. Ao todo, há quatro corredores com salas de aula, um corredor com salas para a administração, três pátios, uma quadra e um parquinho. A professora de arte dispunha de uma sala temática, específica para a disciplina.

Jane pertence à categoria F do magistério estadual. Os professores sob esse contrato foram aprovados em concurso, gozam de estabilidade e não podem ter carga horária maior que 8 horas diárias e 200 horas mensais. Jane é professora da rede estadual há 22 anos, 8 deles na escola Bispo.

Seu pai completou os anos iniciais do ensino fundamental (EF1) e trabalhou em um escritório de contabilidade, em atividades de rotina. Sua mãe tinha a mesma escolaridade que o marido e trabalhou como empregada doméstica. Ambos possuíam relação muito distante das artes. A escolarização de Jane se deu em escolas públicas de Campinas, onde ela só teve aulas de arte no EF2, não estabelecendo nenhuma relação especial com a disciplina, assim como seus pais.

A primeira aposta profissional de Jane foi em contabilidade. Concluiu o ensino médio técnico na área e conseguiu emprego no escritório em que o pai trabalhava. Contudo, quando o dono do escritório faleceu, ela perdeu o emprego e não conseguiu recolocação nesse mercado.

Até essa ocasião, Jane nunca havia cogitado trabalhar como professora de arte. Entretanto, era início dos anos 1990 e a disciplina tornava-se obrigatória na educação básica. Enquanto grupos de arte-educadores disputavam a prerrogativa de definir as orientações curriculares para a disciplina, e o estado de São Paulo realizava concursos públicos para docentes da área, Jane identificava a oportunidade de conseguir um novo emprego. Para tanto, cursou uma licenciatura curta em Arte, de dois anos, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, seguida de um terceiro ano de especialização em Artes Plásticas. Logo seria aprovada em um concurso.

Nessas duas décadas como professora de arte, Jane cursou apenas as formações obrigatórias oferecidas pela Diretoria Regional de Ensino. Tampouco desenvolveu relação mais próxima com as artes. Ela afirma que gosta de desenhar com metragem, em papel milimetrado; são desenhos que mobilizam recursos técnicos simples, desenhos técnicos, figurativos e paisagens naturais e urbanas. Segundo a docente, ela já pintou em tecidos e em tela. Como consumidora de arte, Jane frequenta exposições de artes visuais apenas em visitas organizadas pela escola para os alunos. Nessas ocasiões, ela acompanha os estudantes. Perguntada sobre seus gostos, sua resposta foi que aprecia “obras de autores consagrados”. Chamada a mencionar alguns autores, citou dois autores do impressionismo francês, Edgar Degas e Claude Monet, sem dar prosseguimento ao assunto.

Ao mencionar os princípios pelos quais orienta o trabalho dos alunos e seus critérios de avaliação, as preferências estéticas da professora se explicitavam. O gosto de Jane se volta a elementos figurativos, ao conteúdo considerado belo, à “proporção natural” e a ideais clássicos de simetria e harmonia, ao que ela chama de “bem pintado”.

O gosto explicitado e os artistas citados são coerentes com um elemento central do ensino de arte na escola Bispo: a prioridade às artes visuais. Não se viu trabalho algum com as demais linguagens artísticas.

Entretanto, nas atividades efetivamente propostas aos discentes, as poucas referências às artes visuais se perdiam. Elas estavam orientadas por uma variante da tradição tecnicista e eram destinadas à produção de itens com valor utilitário. A professora priorizava o desenvolvimento de habilidades manuais por meio de atividades como recorte, pintura, colagem e contorno de figuras diversas, como esqueletos, bruxas, abóboras e fantasmas que enfeitaram a festa de Halloween. Com frequência, a professora copiava um texto na lousa e pedia aos alunos que o ilustrassem. Como critérios de avaliação, observava “se o chão e o céu estão pintados, se o aluno fez as margens direito se o desenho ocupou a maior parte da folha”.

Para a Jane, o trabalho baseado na produção itens de decoração e peças de comunicação se justifica porque “a pintura e o recorte trabalham a coordenação fina, o desenho das formas geométricas e a execução de dobraduras auxilia” o aprendizado de tópicos de matemática. Ademais, alega que essas atividades facilitam a avaliação dos alunos e produzem resultados que podem ser mostrados para os pais.

Na escola, a disciplina de arte funcionava como estoque de tempo pronto para ser mobilizado para atender demandas prioritárias do corpo gestor e de outras disciplinas. Para o corpo gestor, arte prestava serviços de produção de itens de decoração e peças de comunicação, sobretudo cartazes. Para as demais disciplinas, arte cumpria três papéis auxiliares: servia de aula de reforço, sobretudo de língua portuguesa e matemática; prestava apoio didático, elaborando maquetes e peças de comunicação; e cedia seu tempo, quando a professora permitia que sua aula fosse usada para professores e alunos concluírem atividades de outras disciplinas.

Diante da enorme distância entre o realizado na escola e o prescrito nos documentos oficiais, perguntou-se à professora se ela conhecia os PCN ou o Currículo do Estado. Ela não só afirmou que os conhecia como também declarou organizar suas aulas com base nos Cadernos do Estado. O uso mais recorrente que vimos foi a indicação de páginas para que os alunos lessem e respondessem exercícios, além da proposição de leitura de textos disponíveis nos Cadernos para que, em seguida, fossem representados em desenhos.

A docente declarou ter dificuldade para trabalhar com conteúdos citados nos Cadernos e mencionou seu desconhecimento de dança e música. Por essa razão, ela critica os Cadernos, mas se justifica afirmando que estão “desconectados da realidade dos alunos”.

Havia na escola grande variedade de materiais, como folhas de tipos e tamanhos diversos, canetas, tintas, pincéis, lápis, argila, gesso, fitas, tesoura, cola, glitter, cola colorida, cola quente, isopor, réguas, desenhos e moldes prontos. Dada a grande disponibilidade de material, a professora não fazia um controle rígido sobre a quantidade usada. Contudo, decidia quais alunos trabalhariam com quais materiais segundo uma escala de comportamento e capricho: os mais comportados e caprichosos podiam trabalhar com as tintas; os bem-comportados, mas não tão caprichosos trabalhavam com colagem; os malcomportados e não caprichosos coloriam desenhos.

A escola Bispo dispunha de salas de aula especializadas para disciplinas, o que facilitava o armazenamento dos materiais e dos trabalhos produzidos. Jane nunca fez uso dos três pátios e da quadra poliesportiva. Durante o trabalho de campo, a sala de audiovisuais só foi utilizada uma vez, na sexta-feira esvaziada de uma semana em que houve feriado. Nesse dia, a direção juntou todos os alunos presentes para assistir ao filme Poeira em alto mar, protagonizado por Renato Aragão. A atividade foi elaborada de improviso para entreter os alunos, aproveitando que, por acaso, um docente portava uma cópia do filme em seu pen-drive.

Jane é uma professora disciplinadora. Em sua opinião, a política de progressão continuada teria produzido efeitos negativos: o mau comportamento crescente e o desengajamento dos alunos. Ela os obriga a se sentarem em lugares previamente definidos no mapa da sala e controla o comportamento deles constantemente, usando de repreensões e ameaças diversas, tais como notas baixas, broncas da diretora e privação do intervalo. Por vezes, diante da dispersão do grupo de trabalho, Jane lembrava os alunos da nota que seria dada à atividade e de seu peso na nota final, a ser registrada nos boletins.

Entretanto, ao longo do semestre observado, não foram verificados conflitos relacionados ao ensino de arte na escola Bispo. Tudo parecia funcionar bem e havia concordância entre as expectativas dos envolvidos. A direção estava satisfeita com o que era feito na disciplina. A professora não só cumpria regularmente o papel que lhe era destinado como, para ela, esse papel evidenciava a importância dada pela escola ao ensino de arte. Os alunos, igualmente, mostravam-se satisfeitos. Engajavam-se nas atividades sem relutância, cumprindo-as sem questionamentos, e buscavam constantemente a aprovação da professora, que distribuía elogios e apresentava os melhores trabalhos como exemplos para os demais. Prova disso foi a montagem da Feira Cultural. Para finalizar os produtos e a decoração da escola, houve intensa interação entre os alunos, que se animaram com a proposta de enfeitar a escola e, para tanto, mobilizaram o que aprenderam na disciplina de arte: técnicas de dobradura, colagem e pintura.

Quatro mediações da realização das prescrições

A apresentação das escolas e das trajetórias e práticas pedagógicas das docentes foi elaborada para destacar relações conflituosas pelas quais as prescrições se confrontam com fins e valores associados ao ensino de arte na cultura escolar de cada unidade, definindo, pelo compromisso entre posições diferentes, o ensino de arte que se realiza (Julia, 2001Julia, D. (2001). A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, 1, 9-44.; Goodson, 1997Goodson, I. (1997). A história social das disciplinas escolares. In A construção social do currículo (pp. 17-26). Lisboa: Educa.; Goodson & Dowbiggin, 1995Goodson, I. F., & Dowbiggin, I. (1995). História do currículo, profissionalização e organização social do conhecimento: um paradigma alargado para a história da educação. In I. Goodson, Currículo: teoria e história (pp. 97-115). Petrópolis: Vozes.). Nessas relações, identificamos conflitos entre disposições estéticas (Bourdieu, 1983Bourdieu, P. (1983). Gostos de classe e estilos de vida. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu: sociologia (pp. 73-111). São Paulo: Ática., 2007Bourdieu, P. (2007). Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 2011Bourdieu, P. (2011). Gênese histórica de uma estética pura. In O poder simbólico (pp. 281-298). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.) prescritas e o contexto escolar no qual buscam se realizar. Identificamos quatro elementos nesse contexto: (i) disposições dos docentes, (ii) disposições dos discentes, (iii) disposições supostas nas tradições escolares e na hierarquia de disciplinas, e, por fim, (iv) os materiais e espaços disponíveis nas escolas. Pela relação das prescrições com cada um desses elementos contextuais, definimos quatro mediações pelas quais as prescrições buscam se impor.

A primeira mediação é definida pela relação entre, de um lado, as disposições estéticas pressupostas nas prescrições e, de outro, as disposições dos professores. O docente culto, capaz de mobilizar nas três dimensões as quatro linguagens, é raro.

A docência foi uma escolha negativa para as duas professoras entrevistadas, após a frustração de outros planos. Ambas são formadas em apenas uma linguagem artística e, nas escolas, são chamadas a abordar quatro linguagens nas três dimensões prescritas.

As disposições delas relacionadas à arte são diferentes, no entanto. Juliana é próxima das manifestações artísticas mais legítimas; além de seu gosto se direcionar às manifestações de maior prestígio, ela mantém com a arte relação mais autonomizada, vivida como experiências desinteressadas. As disposições de Jane, por sua vez, são distantes das práticas artísticas mais prestigiosas; muito embora declare reconhecer “obras de autores consagrados”, seu gosto se inclina para manifestações de menor prestígio e utilitárias.

A maior proximidade com a lógica das prescrições faz Juliana ter mais recursos para se apropriar de suas propostas, para buscar formação complementar estudando autores reconhecidos na área e para se aproximar das outras linguagens. Contudo, essa aproximação não é simples, podendo resultar em atividades frustradas, a exemplo de quando a professora tentou explorar o círculo cromático para mostrar que o branco é a união de todas as cores. Os alunos construíram e pintaram seus círculos, mas, quando os rotacionaram, a cor resultante não foi branca. A professora não sabia que, para a atividade dar certo, seria preciso que as cores estivessem em tons e intensidades precisas e que os círculos deveriam ser rotacionados em alta velocidade.

Jane, por sua vez, tem duas maneiras de lidar com sua distância em relação às prescrições: por meio de redução curricular, não abordando nenhuma outra linguagem senão aquela em que tem alguma formação; e organizando sua disciplina de acordo com a tradição tecnicista. Em suma, o ensino de arte levado a cabo por Jane passa ao largo das prescrições.

A segunda mediação é definida pela relação entre as disposições do aluno concebido nas prescrições e as disposições dos alunos reais. O conflito nasce da universalização, nas prescrições, da relação entre arte e ensino de arte que é própria de alguns grupos sociais: as elites que cultivam a experiência gratuita e desinteressada com a fruição, com o fazer artístico e com a história da arte.

Nas duas escolas, as disposições estéticas dos alunos são distantes das que orientam as prescrições. Eles manifestam expectativas mais próximas da tradição tecnicista de ensino de arte do que as prescritas e frequentemente reivindicam a utilidade dos saberes artísticos.

Na escola Deputado, as disputas eram agudas. Em uma das ocasiões em que a professora propôs atividade de percussão corporal, houve grande resistência dos alunos. Questionados no fim da aula sobre os motivos da não adesão à proposta, responderam: “Isso não é arte, não seve pra nada, na aula de arte a gente tem que aprender a desenhar”.

Na escola Bispo, havia a intenção expressa de que as produções feitas em arte tivessem utilidade. Enquanto variante da tradição tecnicista, o projeto da escola Bispo atende as expectativas da equipe gestora da escola, das famílias e dos alunos. De igual modo, professora e alunos possuem disposições geradoras de preferências semelhantes. Por isso, ao negar a prescrição, afirmando uma das tradições do ensino de arte, a escola e a professora produzem uma grande concórdia entre suas expectativas, reduzindo drasticamente os conflitos.

A terceira mediação define-se pela relação entre as disposições estéticas prescritas e as tradições escolares de ensino de arte. Como vimos, a proposta expressa nos PCN estava em posição dominada no campo educacional brasileiro até 10 anos antes de sua publicação e, ao se afirmar, pretendeu romper com as tradições em vigor.

A proposta para arte que buscava se afirmar na escola Deputado procurava se orientar pelas prescrições oficiais. Entretanto, apesar de a professora ter disposições estéticas próximas das supostas nas prescrições e de seu esforço para seguir as orientações oficiais o mais estritamente que podia, a realização das prescrições se dava em ambiente institucional conflituoso com os alunos, com a equipe técnica e com o corpo docente. Tais embates reforçavam a não legitimação da proposta prescrita nos documentos oficiais, assumida pela professora e compatível com suas disposições.

A tradição dominante na escola Bispo concebe arte como espaço para desenvolvimento de técnicas e produção de peças de decoração e comunicação, limitando-se às artes visuais. Além disso, na escola, arte cumpria papel de reserva de tempo para atendimento de demandas prioritárias de outras disciplinas e do corpo gestor. Se essa proposta está muito distante da prescrita, por outro lado se aproxima bastante das expectativas das famílias, dos alunos e está fortemente enraizada na cultura escolar. Se os Cadernos do Estado devem ser usados compulsoriamente, a professora buscava nele, subvertendo-o, meios para seguir com a tradição e passar ao largo de suas orientações pedagógicas.

A quarta mediação define-se pela relação entre a necessidade de materiais e espaços pressupostos nas prescrições e o que estava disponível nas escolas. Alguns materiais eram mais comuns. Instrumentos musicais e equipamentos eletroeletrônicos, como projetor e aparelho de som, eram raros. Espaço é um recurso ainda mais raro.

Na escola Deputado, as propostas da professora Juliana eram regularmente restringidas pela falta de espaço adequado. Quando planejava práticas corporais, precisava realizá-las no pátio, cujo uso era sempre compartilhado com os alunos sem aula. Assim, a presença de alunos estranhos reforçava a relutância dos estudantes em se engajar nessas atividades. Quando propôs a elaboração de um painel para compor o cenário de uma peça, não havia na escola nem onde deixar o painel secando nem onde realizar os ensaios.

A escola Bispo, até por causa da redução curricular, dispunha de todos os materiais necessários, inclusive havia estrutura subutilizada. Dispõe de muito mais espaço que a Deputado, como salas livres e uma quadra que pode ser usada sem necessidade de compartilhamento. A professora contava ainda com uma sala ambiente, específica para arte, que facilitava o armazenamento de materiais e produções. Nela, restrições de materiais ou espaços só emergiriam como problemas se o currículo se aproximasse das prescrições.

Considerações finais

Em uma sociedade de classes, é de se esperar que os grupos com maior poder para definir a cultura legítima e as formas legítimas de relação com essa cultura sejam aqueles que conseguem impor ao sistema de ensino a cultura a ser transmitida e os modos de sua transmissão. Como não se trata de processo mecânico, tanto a definição das prescrições como sua realização se dão em espaço de disputas entre grupos e frações de classe, no qual diferentes agentes, ocupando diferentes posições no campo educacional, lutam pelo poder de impor seus arbitrários culturais.

Os PCN de arte e os Cadernos do Estado são a expressão da vitória de arte-educadores que acumularam experiência e que se articularam em redes internacionais até o final dos anos 1980, mas que, até então, estavam em posição dominada no campo do ensino de arte. Na segunda metade dos anos 1990, esse grupo conseguiria chegar ao centro do poder, transformando sua perspectiva em parâmetro curricular nacional. Mesmo precisando negociar com outros grupos que acumulam poder para definir as prescrições, esses arte-educadores continuaram em posição que lhes permitia definir as prescrições para ensino de arte nos anos 2000.

Quase 20 anos após a publicação dos PCN e quase 10 anos depois de implementado o Currículo do Estado de São Paulo, ao analisarmos os conflitos da realização dessas prescrições no espaço escolar, podemos afirmar que a proposta vigente para o ensino de arte nesses documentos está estruturada em uma contradição de base. Por um lado, nela se encontra um nítido impulso democratizador do acesso à arte como direito universal. Não obstante, esse impulso baseia-se em um pressuposto que não é problematizado: o de que a cultura das elites letradas e as disposições estéticas dessas elites podem ser universalizadas no e pelo sistema de ensino – portanto, compulsoriamente – como se fossem a realização de um atributo humano geral e não a imposição, em espaço de disputa, de um arbitrário cultural sobre outros.

Por isso, ao buscarmos apreender conflitos presentes na realização das prescrições, procuramos caracterizá-los como mediações do esforço de afirmação e legitimação, pelo monopólio da violência simbólica exercido pelo Estado (Bourdieu & Passeron, 2008Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (2008). A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes.), da cultura de frações letradas das elites sobre outros grupos. Esses grupos têm suas posições definidas no campo escolar que se quer transformar e disputam com essas frações das elites letradas a mesma prerrogativa de definir o que e como será ensinado em arte.

É possível haver uma configuração de máxima conformidade entre prescrição e condições de realização, na qual os conflitos das quatro mediações apontadas anteriormente se reduzirão ao máximo. São configurações raras, mais prováveis de encontrar em escolas dos grupos sociais mais ricos em capital cultural, como as duas exceções parciais apontadas por Barbosa (1989)Barbosa, A. M. (1989). Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estudos Avançados, 3(7), 170-182., uma delas estudada por Almeida (2009)Almeida, A. M. F. (2009). As escolas dos dirigentes paulistas: ensino médio, vestibular, desigualdade social. Belo Horizonte: Argvmentvm.. Considerada a forte segregação escolar existente no país, não é esse o caso das duas escolas pesquisadas, tampouco do sistema público de ensino, apesar de todas as diferenças internas.

Outra configuração extrema possível, oposta a essa, seria a de máxima inconformidade entre o prescrito e o realizado. É o caso da escola Bispo, onde a negação da prescrição é condição para reafirmar a conformidade entre disposições e expectativas de docentes, discentes, famílias e equipe técnica, bem como para que esta reproduza uma tradição.

Entre esses extremos há um vasto campo de possibilidades. Esse mundo entre os extremos, como sugere o caso da escola Deputado, é espaço de conflitos abertos.

A contradição de base que apontamos nas prescrições é uma manifestação do que Bourdieu (2007)Bourdieu, P. (2007). Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. chama de erro escolástico. Elas parecem pressupor que o sistema escolar seria capaz de desenvolver universalmente, para todos, as disposições estéticas próprias das elites urbanas cultas, sem precisar considerar as condições sociais de produção e reprodução dessas disposições. Ao universalizar sua posição, as prescrições não discutem nem a relação de diferentes classes sociais com a cultura nem a relação de dominação simbólica entre classes, tampouco os conflitos que podem ser esperados na difusão da cultura das disposições das elites letradas. Por consequência, os documentos parecem pressupor que sua legitimidade seria assegurada por sua oficialidade – o poder do Estado – e pela justificativa que elaboram para sua posição: a avaliação negativa das realizações tradicionais que querem superar e a universalidade que atribuem à própria posição.

Pode-se formular boas razões para defender que o ensino de arte seja orientado pela cultura e pelas disposições das elites letradas. Essa cultura pode ser considerada como valor – e como um direito – por razões extrínsecas e intrínsecas. Por um lado, ela é valorizada socialmente, conferindo aos seus possuidores poder simbólico e propiciando a eles vantagens em diferentes campos sociais. Por outro, nela há acúmulo de bens simbólicos e possibilidades de manifestação e desenvolvimento do imaginário e das emoções que antecedem e ultrapassam os grupos que, num dado momento, concentram as condições sociais de sua apropriação. Baseando-se nessa argumentação, pode-se pensar as desigualdades de acesso dos diferentes grupos sociais à cultura das elites.

Embora válido, esse argumento não resolve a contradição apontada aqui. Para tanto, é preciso construir como objeto de reflexão as condições sociais de produção, reprodução e legitimação, nos sistemas de ensino de sociedades de classes, da relação com a cultura própria das elites letradas, indagando as condições sociais para generalizar o ato de liberação das necessidades e das finalidades práticas para a imersão no mundo específico criado pela arte.

  • 1
    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisão@tikinet.com.br.
  • 3
    Atribuímos nomes fictícios às escolas e às docentes pesquisadas.
  • 4
    A apresentação das escolas e das docentes se baseia em informações construídas por diferentes estratégias metodológicas, expostas anteriormente. De posse das informações, procuramos construir retratos com o máximo respeito ao observado, mas priorizando as questões que nos interessa analisar. Eventuais desequilíbrios nas informações entre docentes e escolas são fruto dos limites impostos pelas diferenças nas relações construídas no trabalho de campo e que não nos foi possível superar, mesmo posteriormente, nas checagens pontuais que efetuamos.

Referências

  • Almeida, A. M. F. (2009). As escolas dos dirigentes paulistas: ensino médio, vestibular, desigualdade social Belo Horizonte: Argvmentvm.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2017
  • Revisado
    22 Maio 2018
  • Aceito
    16 Ago 2018
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