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Apresentação

DOSSIÊ

ENSINO DE FILOSOFIA E CIDADANIA

Apresentação

Renê José Trentin Silveira

Professor do Departamento de Filosofia e História da Educação e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Educação (Paideia) da Faculdade de Educação da Unicamp. Campinas, SP, Brasil. rene@unicamp.br

''Morreu Giorgio Baratta''! Assim inicia a nota da International Gramsci Society que veiculou a triste notícia em 20 de janeiro último. Por uma dessas estranhas coincidências que a vida nos reserva, recebi-a exatamente nos dias em que me debruçava sobre seu artigo, com o objetivo de apresentá-lo neste dossiê. Encontrava-me em Roma, cidade onde ele vivia, dedicando-me, na Fondazione Istitute Gramsci, à execução de um projeto de pós-doutoramento, que envolvia o estudo de textos gramscianos, incluindo justamente os que constituem o referencial teórico de suas considerações. É possível que este tenha sido o último texto escrito por ele, o que, a despeito da tristeza que o momento enseja, dignifica e honra a Pro-Posições e a Faculdade de Educação da Unicamp e, de um modo especial, a mim, que tenho o privilégio de apresentá-lo. Escrevo, portanto, movido pelo impacto emocional desses acontecimentos.

Giorgio Baratta foi um dos fundadores da International Gramsci Society1 1 . As informações biográficas aqui reproduzidas foram colhidas na referida nota de falecimento, disponível em: < http://www.gramscitalia.it/news.htm>, acessado em 29 jan. 2010 e em nota da UFBA, disponível em: < http://www.portal.ufba.br/ufbaempauta/2010/Janeiro/sabado23/badeusBaratta>; acessado em 29 jan 2010. e da IGS-Italia, da qual era presidente. Foi professor de Filosofia na Universidade de Urbino, especializando-se na filosofia do Renascimento e do Iluminismo, em Husserl, em Sartre, e no marxismo, até sua descoberta de Gramsci, autor do qual se tornou um dos pesquisadores mais respeitados e conhecidos no mundo. Não lhe faltava também a veia artística, que o levou a dedicar-se ao estudo de temas culturais, especialmente na área musical, produzindo diversos trabalhos, entre eles: Leonardo e la musica; Verdi nella cultura italiana; Poesia e musica nella bossa nova; Il pensiero musicale di Adorno. Possuía fortes vínculos com o Brasil. Além da relação orgânica que mantinha com a IGS-Brasil, presidida por Carlos Nelson Coutinho que, em sua mensagem de adeus, publicada na página da IGS-Itália, a ele se refere como ''meu caríssimo amigo'', intermediou a parceria entre a Universidade Federal da Bahia e a Universidade de Nápoles, da qual resultaram diversos projetos culturais. Tinha, ainda, especial interesse pela música brasileira que, nas palavras de Coutinho, ''ele amava e conhecia muito bem''. No campo propriamente filosófico, dentre suas obras mais importantes destacam-se: As rosas e os cadernos: o pensamento dialógico de Antonio Gramsci (DP&A Editora, 2004) e Antonio Gramsci in contrappunto (Carocci editore, 2007). A ele dedico o presente dossiê. Como um tributo à sua memória, tomo a liberdade de trazê-lo comigo neste breve diálogo com os demais articulistas sobre aspectos particulares de suas reflexões, a fim de fazê-lo presente ao longo de minha exposição.

Por que um ''dossiê'' sobre ensino de Filosofia e cidadania?

O ano de 2008 trouxe uma novidade para a educação brasileira: a volta da Filosofia2 2 . O termo ''filosofia'' será grafado com inicial maiúscula sempre que se referir à disciplina curricular. ao Ensino Médio como disciplina obrigatória, por força da Lei Nº11.684, que altera o artigo 36 de LDB (Lei nº 9.394/1996). Novidade sim, mas nem tanto. Na realidade, o ensino de Filosofia no nível médio é tão antigo quanto a própria educação formal no Brasil, figurando já no currículo das escolas jesuíticas. De lá para cá, ele oscilou entre estar presente e ausente, guiado por uma e outra tendência pedagógica ou filosófica, ao sabor das inúmeras reformas empreendidas no sistema de ensino, visando adequá-lo às transformações econômicas e políticas da sociedade brasileira3 3 . Uma boa síntese da história do ensino de Filosofia no Brasil pode ser encontrada em M. T. Cartolano, Filosofia no ensino de 2º Grau. São Paulo, Cortez, 1985. A esse respeito, ver também: } R. J. T. Silveira, Ensino de Filosofia no Segundo Grau: em busca de um sentido. Campinas: FE-Unicamp, 1991 (Dissertação de Mestrado). .

No contexto da ditadura civil-militar pós-1964, com a decretação da Lei 5692/1971, a disciplina foi efetivamente eliminada. De fato, em uma educação amarrada aos princípios da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento4 4 . Sobre a relação entre a exclusão da Filosofia do Ensino Médio e a DSND, ver: R. J. T. Silveira. Filosofia e segurança nacional: o afastamento da Filosofia do currículo do Ensino Médio no contexto do regime civil-militar pós-1964. In: R. J. T. Silveira e R. Goto (Org.), A filosofia e seu ensino: caminhos e sentidos. São Paulo, Loyola, 2009. p. 53-78. e pautada pelo tecnicismo pedagógico, não havia lugar para as humanidades. Em contrapartida, irromperam no currículo, em caráter obrigatório, Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, mais afinadas com aqueles princípios.

Todavia, a eliminação da disciplina não tardou a gerar a reação de professores e estudantes de Filosofia que almejavam seu retorno, dando início a um movimento reivindicatório que, aos poucos, foi ganhando proporções nacionais, atuando em várias frentes e envolvendo diferentes setores da sociedade civil. No conjunto dessas frentes, destaca-se o Poder Legislativo, com a apresentação de diversos projetos de lei propondo a reinserção da disciplina.5 5 . A respeito desse movimento e desses projetos, bem como dos embates por eles desencadeados, ver: R. J. T. Silveira, Ensino de Filosofia no Segundo Grau: em busca de um sentido. Campinas: FE-Unicamp, 1991 (Dissertação de Mestrado). Mais recentemente, uma dessas iniciativas foi o Projeto de Lei 3178/1997, do deputado federal Padre Roque (PT-PR), que propunha justamente a alteração na LDB ora concretizada. Aprovado no Congresso Nacional em 2001 foi vetado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Pouco tempo mais tarde, alterada a conjuntura política do país, a iniciativa foi repetida pelo deputado Ribamar Alves (PSDB-MA) com o PL Nº 1.641/2003, que logrou parecer favorável do Conselho Nacional de Educação e, em 2008, a sanção presidencial.

A obrigatoriedade que ora se confirma, portanto, resulta, ao menos em parte, de mais de três décadas de luta, repleta de idas e vindas, avanços e recuos, vitórias e derrotas. Foi, sem dúvida, uma conquista da maior importância para a construção de uma educação mais comprometida com a formação humanística e crítica dos jovens brasileiros, mas que também traz enormes desafios para os educadores que, atuando em condições frequentemente adversas, precisam encontrar formas eficazes de garantir a qualidade do ensino desta disciplina, sua especificidade e a consecução de seus objetivos. Desafios que podem ser retratados por questões tais como: Que cidadania é essa propugnada pela lei e confiada à Filosofia? O que significa formar para a cidadania numa sociedade como a brasileira, ainda tão marcada pela desigualdade e pela exclusão? Que conteúdos ensinar? Por meio de quais estratégias metodológicas? Que lugar ocupa a história da filosofia? O que significa oferecer aos jovens e adolescentes uma formação filosófica que concorra para sua autonomia e criticidade? Enfim, qual é o sentido da presença da Filosofia no Ensino Médio?

O presente dossiê não visa a dar respostas prontas para essas e tantas outras indagações suscitadas por seu tema gerador, nem tampouco harmonizar diferentes perspectivas em torno de qualquer consenso. Antes, pretende fomentar o debate, incitar ao pensar, convidar à ação, dirigindo-se de modo particular àqueles que cotidianamente fazem acontecer o ensino de Filosofia nas escolas: os seus professores.

Os autores

Giorgio Baratta, já apresentado, abre a série de artigos que compõem o presente dossiê, explorando o tema proposto a partir de Gramsci, autor em cuja obra a preocupação com o ensino da filosofia é recorrente e destacada. Leandro Konder é Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde atua, sobretudo, nas áreas de filosofia política e filosofia da educação. Notório especialista em autores da tradição dialética, como Lukács, Adorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin, entre outros, além do próprio Marx, é, deste ponto de vista, temperado por sua própria experiência como professor universitário, que traz sua contribuição para o debate que o dossiê pretende ensejar. Antonio Joaquim Severino é Professor Titular de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP. Historicamente engajado nas lutas pelo retorno da Filosofia ao Ensino Médio, tem inúmeras publicações sobre temas afins, particularmente sobre a relação entre educação, filosofia e cidadania, além de obras diretamente voltadas para professores e estudantes de Filosofia. Newton Duarte é Professor Titular da Universidade Estadual Paulista - Campus de Araraquara, na área de Psicologia da Educação, onde tem se notabilizado pela crítica ao que ele denomina de ''pedagogias do aprender a aprender'', em especial, o construtivismo e a ''pedagogia das competências''. É nessa linha de reflexão que contribui para o dossiê. Silvio Gallo é Professor Livre-Docente de Filosofia da Educação da FE-Unicamp, integrante da linha de pesquisa Ensino de Filosofia, vinculada ao grupo de pesquisa Paideia. Estudioso da filosofia francesa contemporânea, com ênfase em autores como Foucault, Deleuze e Guatari, tem destacada atuação nos debates sobre a questão do ensino de Filosofia e ampla publicação sobre essa temática. Renata Lima Aspis é Professora de Filosofia do Colégio Santa Cruz, em São Paulo. Doutoranda em educação pela FE-Unicamp, onde participa do Grupo de Pesquisa DIS, investiga a questão do ensino de filosofia, inclusive para crianças, valendo-se também da filosofia francesa contemporânea e, ainda, dos pressupostos do Programa de Filosofia para Crianças, de Mathew Lipman. Roberto Goto também é Professor de Filosofia da Educação da FE-Unicamp. Conhecido por sua veia literária e pelo trato de autores clássicos, participa, assim como Gallo, da linha de pesquisa Ensino de Filosofia, na qual tem assumido a coordenação executiva dos Simphilo - Simpósio sobre Ensino de Filosofia - evento tri-anual da FE que tem gerado livros em forma de coletânea, dos quais ele participa como autor e coorganizador.

Observa-se, assim, o caráter saudavelmente ''poliédrico'', para usar um termo de Giorgio Baratta, da participação dos autores no dossiê. Cada qual, a seu modo, aponta direções, sugere alternativas, faz recomendações, fornece subsídios para a reflexão; mas também problematiza, perturba, incomoda, desinstala, como, aliás, convém à filosofia.

Os artigos

Em seu texto ''Escola, filosofia e cidadania no pensamento de Gramsci: exercícios de leitura'', Giorgio Baratta propõe-nos, como o próprio título evidencia, uma reflexão a partir de dois exercícios de leitura de excertos da obra Cadernos do cárcere.

Antes, porém, de iniciar a exposição desses exercícios, esclarece que, do ponto de vista gramsciano, há uma necessária relação de reciprocidade entre os conceitos de escola, filosofia e cidadania. Para explicitá-la, retoma as teses gramscianas de que ''todos os homens são intelectuais'' (Gramsci, 2006, C12, §1, p. 18) e de que ''todos os homens são 'filósofos''' (Gramsci, 2001, C11, §12, p. 93), ainda que se trate de uma filosofia espontânea, própria do senso comum. Dessa forma, explica Baratta, Gramsci registra a '''morte da filosofia' separada'', isto é, da filosofia concebida como privilégio dos filósofos especialistas, a fim de analisar como uma concepção mais ampla do ''fazer filosofia'' pode contribuir com a luta hegemônica por um ''progresso intelectual de massa''. Essa ''filosofia ampliada'' encontra na escola um ''resultado orgânico e privilegiado'', o que traz imediatamente à tona a conexão entre filosofia e cidadania: na perspectiva de Gramsci, segundo Baratta, a educação deve formar o cidadão para que este se transforme de ''governado'' em ''governante''. Para tanto, a Filosofia, como disciplina escolar, tem uma contribuição significativa que consiste em proporcionar uma formação filosófica a pessoas que dificilmente terão outra oportunidade de contato com ela.

Mas a tese de que ''todos os homens são 'filósofos''', diz o autor, precisa ser compreendida à luz da pergunta: ''o que é que o homem pode se tornar?'', visto que, para a filosofia da práxis, o homem é um devir e constitui-se historicamente por meio de múltiplas mediações. Esse é o fundamento teórico que sustenta a perspectiva pedagógica e política de que esta filosofia espontânea pode e deve ser superada, elevada e educada, a fim de liberar os ''subalternos'', os ''simples'', dos ''preconceitos e ancoramentos tradicionais'' que dificultam o desenvolvimento de sua '''autonomia' de julgamento e de ação''. Em termos práticos, isso significa '''ajudar' os não filósofos a 'crescer''', isto é, a ''passar da espontaneidade (com seus elementos e não organicidade e incoerência) a uma consciência crítica e intelectualmente organizada''.

Essa atitude de Gramsci, diz Baratta, distancia-se daquela visão, bastante difundida entre os intelectuais, inclusive na escola, segundo a qual a consciência do homem urbano adulto ''médio'' é tomada como paradigma e critério de cidadania. A sua abordagem, na verdade, representa uma ''novidade'' derivada do seu ''stile de pensamento'': um pensamento que vive uma tensão dialética entre a sua ''qualidade de intelectual-educador'' e a sua capacidade de situar-se ''com uma orgânica profundidade - ao lado, do ponto de vista e do horizonte cultural dos subalternos'', dos ''simples''. É um ''pensamento em movimento'' que oscila, num ''contínuo vai e vem entre esses dois polos: o intelectual e o não intelectual''. Mas ele é também um intelectual de tipo diferente, ''que se deixa investir pela energia intelectual dos não intelectuais'' e que, sendo educador, sabe-se também educado pelos educandos. Portanto, para Gramsci, segundo o autor, no trabalho de elevação da filosofia espontânea das massas, o ponto de chegada almejado não é a imitação de um modelo previamente estabelecido, mas a superação da contradição entre ''intelectuais e não intelectuais'', ''educadores e educandos'', ''governantes e governados'', ''dirigentes e dirigidos''. Impossível essas considerações não remeterem, quase que naturalmente, às posições de Paulo Freire6 6 . Sobre possíveis aproximações entre Gramsci e Freire, ver: Diana Conben, Radical heroes. Gramsci, Freire and the politics of adult education, New York / London, Garland Publishing, 1998; T. Ireland, Antonio Gramsci and adult education: reflections on the Brazilian experience. Manchester, Manchester University Press, 1987; Peter Mayo. Gramsci, Freire and adult education: possibilities for transformative action. London/New York, Zed Books, 1999. .

Entrando nos exercícios de leitura, o primeiro proposto por Baratta é intitulado ''O 'filósofo democrático', ou seja, pensar juntos'' e refere-se ao Parágrafo 44 do Caderno 10. O autor subdivide a estrutura temática desse parágrafo em duas fases. A primeira é aquela na qual se esboça a ''concepção ampliada de filosofia'', expressa no triângulo ''filosofia-linguagem-cultura'', segundo a qual esses três elementos constituem uma única concepção do mundo. Numa das passagens por ele reproduzidas, lê-se: ''Linguagem significa também cultura e filosofia (ainda que no nível do senso comum)'' (Gramsci, 2001, C 10, §44, p. 398). É nesse sentido que, segundo Baratta, Gramsci afirma que ''todos os homens são 'filósofos''' (Gramsci, 2001, C 11, §12, p. 93).

Na segunda fase do Parágrafo 44, encontra-se a articulação entre a necessidade de conquista de um mesmo clima cultural e a educação. Sempre citando seus excertos, Baratta esclarece que, para Gramsci, a relação pedagógica deve pautar-se pelo princípio de que ''todo professor é sempre aluno e todo aluno, professor'' (Gramsci, 2001, C 10, §44, p. 399). Esse mesmo princípio deve ser observado pelo filósofo individual em sua ''luta cultural para transformar a mentalidade popular'' (idem, p. 398). Para tanto, é preciso que ele estabeleça com o ambiente cultural que deseja modificar uma relação do tipo ''professor aluno'', entendida como uma ''relação ativa, de vinculações recíprocas'' (idem, p. 399), ou seja, uma ''relação dialética'' pela qual o ambiente cultural ''funciona como professor'' (idem, p. 400) do filósofo e o obriga a uma ''permanente autocrítica'' (idem, p. 400). Constitui-se, assim, o ''filósofo democrático'' (idem, p. 400) que dá título a esse primeiro exercício de leitura: aquele que é ''consciente de que a sua personalidade não se limita à sua individualidade física, mas é uma relação social ativa de modificação do ambiente cultural'' (idem, p. 400). É por isso que ele pode ''pensar junto'' com aqueles cuja mentalidade quer modificar. E essa possibilidade não decorre apenas de sua vontade individual, mas também e, sobretudo, de sua condição ontológica. O requisito para a existência desse novo tipo de filósofo é a ''liberdade de pensamento e de expressão do pensamento'' (idem, p. 400).

O segundo exercício de leitura aplica-se aos Parágrafos 1, 2 e 3 do Caderno 12 e intitula-se ''Especialista + político ou o novo tipo de intelectual''. Baratta lembra que, para Gramsci (2006, C 12, §3, p. 52), ''não existem não intelectuais'', já que toda e qualquer atividade humana, mesmo as mais mecânicas e degradantes, tem sempre um mínimo de elaboração intelectual. Por outro lado, reconhece a existência de uma distinção (mas não separação) entre aqueles que exercem na sociedade a função específica de intelectuais (o intelectual no sentido estrito) e os demais, isto é, ''os simples''.

Há, porém, um local, uma instância da sociedade civil, em que ''o encontro entre intelectuais e '''simples''' (a começar pelas crianças) é a realidade cotidiana: a escola''. Nela fincam-se as raízes do ''americanismo'' e seu componente mais significativo, o taylorismo. Mas, sendo local privilegiado de encontro entre os intelectuais e os ''simples'', também pode proporcionar ''um progresso intelectual de massa'' (Gramsci, 2001, C 11, §12, p. 103).

Este é o desafio que, segundo o autor, Gramsci propõe à classe operária e que talvez pudéssemos estender aos professores de Filosofia. Nas palavras de Baratta: ''não presentear a burguesia industrial com a centralidade do conhecimento e da intelectualidade'', isto é, não abrir mão de socializar o desenvolvimento intelectual, e, sim, travar uma ''batalha política'', uma ''verdadeira luta hegemônica'' para ''aprofundar e ampliar 'a intelectualidade' de cada indivíduo''. Para tanto, é preciso reivindicar uma educação capaz de conciliar o ''especialismo'' (visto que ele também é necessário aos trabalhadores) com uma ''consequente renovação dos conteúdos e dos métodos da instrução''; que, como se lê numa das passagens de Gramsci (2006, C12, §2, p. 49) recolhidas pelo autor, forme o jovem das camadas populares ''como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige''; que concilie a nova ciência com o velho humanismo; em suma, uma educação pela qual ''cada 'cidadão' possa tornar-se 'governante''' (idem, p. 50). Transparece, assim, a concepção gramsciana da cidadania e a forma como ela se articula com a educação. Cumpre formar o ''especialista'' que também seja ''político'', isto é, um novo tipo de cidadão, mais bem preparado para participar da sociedade civil e da luta hegemônica.

Esses são alguns dos ''aspectos mais diretamente intelectuais e escolares'' que, segundo Baratta, compõem ''a grande tarefa política e cultural, ou seja, a vasta 'luta hegemônica' para a qual é chamado o 'filósofo democrático''' e, por que não, o professor de Filosofia.

Leandro Konder inicia seu artigo, intitulado ''Filosofia e educação: as mediações da política cultural'', relembrando sua experiência como professor universitário de Filosofia e a resistência de seus alunos ao estudo de conceitos abstratos: conseguiu interessar quatro deles pela leitura de Hegel, ''num percurso de mais de quarenta turmas''.

Para ele, essa situação reflete o problema do distanciamento entre intelectuais (os ''de cima'') e povo (os ''de baixo'', os ''pobres'') e a dificuldade que enfrentam para se compreender reciprocamente; dificuldade que não está apenas no domínio da linguagem, mas também no da filosofia, dado que possuem experiências diversas dos conceitos filosóficos, como por exemplo, do conceito de ''tempo''. O autor ilustra essa diversidade com a história do senhor Keuner (a qual me abstenho de reproduzir para não furtar ao leitor o prazer de encontrála no texto de Konder), extraída do livro Estórias de calendário, de Brecht. Aos olhos de um intelectual, a forma de o senhor Keuner conceber o tempo e lidar com ele tende a parecer resignação e capitulação; para o próprio senhor Keuner, porém, era o jeito possível de resistir, combinando ''rebeldia'' e ''prudência''. Nas condições e no tempo de que dispunha e com a competência que lhe era peculiar - a de gastrônomo - conseguiu construir as mediações que o levaram a vencer seu opressor.

O poema de Brecht, segundo Konder, causou entusiasmo em seus alunos, gerando boas discussões, talvez por reunir ''qualidade artística'' e ''densidade teórica'', além de conter ''uma opção ética de revolta contra a covardia'' que, no contexto da luta contra a ditadura civil-militar, ia ao encontro das aspirações libertárias dos estudantes. Qualidade artística, densidade teórica e adequação ao contexto histórico: são indicações metodológicas que talvez devessem ser consideradas pelos professores de Filosofia.

Assim, conclui o autor, ''é preciso incentivar desde cedo (o que no nosso caso significa desde o Ensino Médio) a especulação filosófica'', como um dos possíveis caminhos para a superação do distanciamento entre os intelectuais e o povo. A escola e a cultura tornam-se, assim, ''campos de batalha'' de uma luta mais ampla que, em última instância, envolve ''o destino coletivo do país''.

De uma outra perspectiva, como vimos, Baratta também discute a questão do distanciamento entre o intelectual e as massas, apontando numa direção que, assim como a indicada por Konder, propicia interessantes desdobramentos para a prática pedagógica. Se ''todos os homens são intelectuais'' e ''filósofos'', ainda que nem todos exerçam na sociedade a função específica de intelectuais e o ''ser filósofo'' da maioria se restrinja à posse de uma concepção do mundo espontânea, desagregada, típica do senso comum, o professor (intelectual por profissão) precisa reconhecer que o seu aluno (inclusive aquele do período noturno, já absorvido pelo processo produtivo) também é um intelectual, um ''filósofo'', uma vez que é capaz de pensar, criar, criticar, exprimir uma concepção do mundo. Cabe à escola, justamente, pela mediação do professor, elevar esse aluno a um patamar superior de elaboração intelectual, ajudando-o a ultrapassar os limites dessa ''filosofia espontânea'' e a adquirir um filosofar mais sistemático e crítico, mais próximo daquele dos filósofos especialistas, que lhe proporcione os instrumentos intelectuais necessários ao exercício crítico e autônomo da cidadania.

Antonio Joaquim Severino discute a ''Formação política do adolescente no Ensino Médio: a contribuição da Filosofia''. Já na introdução, explicita sua concepção do vínculo entre ensino de Filosofia e cidadania. Salienta que, embora se trate de uma atribuição de todas as disciplinas do Ensino Médio, a Filosofia tem uma contribuição específica e significativa a oferecer para a formação integral dos adolescentes, a qual ele sintetiza na expressão: ''subsidiar o jovem aprendiz a ler o seu mundo para se ler nele''. Trata-se, em suma, de auxiliar os jovens no exercício de uma reflexão autônoma, consistente e historicamente situada sobre os sentidos ''conceituais e valorativos'' que norteiam sua existência e sua condição humana, a fim de que possa dar novo significado à sua experiência como cidadão.

A tarefa da Filosofia é, portanto, eminentemente antropológica, e desdobra-se simultaneamente em três direções: uma propriamente antropológica (análise hermenêutica do sentido da existência humana), uma epistemológica (crítica dos processos de conhecimento e das ideologias) e uma axiológica (explicitação dos valores que norteiam o agir humano). Para cumpri-la, Severino afirma que se impõem algumas condições, dentre as quais, a meu ver, merece destaque o papel que atribui à história da filosofia, entendida não como exposição mecânica e abstrata do pensamento dos filósofos, ou como escavação de ''resíduos fósseis'', mas como manancial de ''mediações conceituais para pensar as temáticas do existir humano'' e para superar o senso comum.

O autor põe em relevo o aspecto epistemológico para mostrar que, a despeito do enorme poder ideológico exercido pela escola, ela é também lugar de elaboração de um ''discurso contraideológico'' e de uma ''nova consciência social''; ou seja, mesmo nessa instituição que aí está, com seus vieses ideológicos e com suas limitações estruturais, é possível educar ''contraideologicamente''. Para tanto, cumpre ''utilizar, com a devida competência e criticidade, as ferramentas do conhecimento'', mediação fundamental pela qual a escola realiza a formação política dos jovens. No caso da Filosofia, o conhecimento por ela trabalhado deve referir-se a temas relacionados às três mediações apontadas por Severino como constitutivas da condição humana: o trabalho, a sociedade (e a política) e a cultura. O autor chama a atenção, porém, para alguns ''descaminhos'' que podem levar à ''perda de direção'', como, por exemplo, imprimir à filosofia um ''enviesamento ideológico'' e convertê-la em mecanismo de doutrinação.

A imagem do ''filósofo democrático'', trazida por Baratta, talvez seja um possível ''caminho'' para o enfrentamento deste risco. Desse ponto de vista, se o trabalho do filósofo (e também do professor de filosofia) pode ser concebido como ''luta cultural'' para a elevação da ''mentalidade popular'', cumpre transformar o ambiente cultural em que vive e atua (incluindo o ambiente escolar), o que significa, entre outras coisas, criticar as diferentes concepções do mundo que povoam o senso comum dos estudantes. A filosofia, certamente, tem excelentes recursos para isso. Mas essa sua relação com o ambiente cultural, sendo ativa, dialética, afeta também a personalidade do filósofo e do professor, ''obrigando-o a uma permanente autocrítica'' em relação às suas posições e estratégias de ação. Consciente desse fato, o professor/filósofo democrático, sem abrir mão do compromisso maior de elevação cultural de seus alunos, não se contenta com o próprio pensamento, não faz dele uma verdade irretocável, pois o sabe historicamente situado, transitório, limitado. Esta talvez seja uma imagem inspiradora para ajudar o professor de Filosofia a afugentar o fantasma da doutrinação.

Newton Duarte, em ''Limites e contradições da cidadania na sociedade capitalista'', procura ''questionar a compatibilidade entre a cidadania e a lógica social do capitalismo'', pondo em xeque o estabelecimento da primeira como ''eixo curricular do ensino de Filosofia''.

Ancorando sua argumentação em pressupostos marxianos, o autor parte da observação de que existem interseções entre cidadania e moral, pois a definição da primeira supõe parâmetros dados pela segunda. Ocorre que, segundo o autor, a sociedade capitalista, para a qual o essencial é o ''valor de troca'' que permite a extração da mais-valia e a acumulação de capital, é, ''por sua própria essência, oposta ao desenvolvimento moral das pessoas''. Assim, indiferentemente às sanções morais, ''tudo no capitalismo se transforma em mercadoria, até o trabalho humano'', o que, na opinião do autor, constitui um fator impeditivo para o desenvolvimento moral.

Não se trata, porém, esclarece, de negar toda e qualquer possibilidade desse desenvolvimento, uma vez que as contradições inerentes à relação entre capital e trabalho manifestam-se também em outras instâncias da sociedade e da vida humana, inclusive na moral, de modo que há também ''valores morais positivos na ética do trabalho''.

Algo semelhante ocorre com a cidadania que, na perspectiva do autor, também estaria ''em conflito'' com a lógica capitalista, podendo realizar-se apenas idealisticamente, abstratamente, na forma de um ''cidadão idealizado'' e em permanente oposição ao ''indivíduo real''.

A partir dessas considerações iniciais, Duarte analisa a Proposta Curricular do Estado de São Paulo para o ensino de Filosofia no nível médio, procurando explicitar o seu alinhamento com as chamadas ''pedagogias do aprender a aprender'' e, particularmente, com a ''pedagogia das competências''. Tal pedagogia, a seu ver, tem um ''forte acento pragmático'', em função do qual a conjugação entre ela e a formação para a cidadania pode conduzir à ''rarefação do conhecimento nos currículos escolares'', comprometendo ainda mais a qualidade do ensino.

Talvez pudéssemos reivindicar do autor que, a partir do seu próprio referencial teórico (e justamente por causa dele), salientasse também em relação à cidadania (como o fez em relação à ética) o reflexo que ela sofre das contradições sociais, permitindo visualizar mais nitidamente as possibilidades de luta hegemônica no interior da escola. Em apoio a essa reivindicação, poderíamos agregar as posições de Konder, relembrando a ''rebeldia'' com ''prudência'' do senhor Keuner como estratégia de resistência e de construção de mediações; de Severino, para quem, mesmo na escola que temos hoje, com seus vieses ideológicos e suas limitações estruturais, é possível ''educar contraideologicamente''; e de Baratta, que vê na escola o local onde se dá cotidianamente ''o encontro entre intelectuais e simples''. Esta cotidianidade é, sem dúvida, uma condição privilegiada que, a despeito de todas as reais limitações levantadas por Duarte, faz irromper também inúmeras possibilidades de intervenção por parte do professor, inclusive no sentido gramsciano da cidadania, apontado por Baratta, de formar pessoas capazes de ''pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige'', isto é, de transformar ''cada cidadão'' em ''governante''.

De todo modo, a reflexão trazida por Duarte faz uma forte interpelação aos professores sobre uma questão precedente à da relação entre ensino de Filosofia e cidadania: afinal, é possível formar para a cidadania numa sociedade de classes? Enfrentá-la com filosófico rigor é pré-requisito para evitar a adesão fácil ao discurso hegemônico que proclama a formação para a cidadania (com todos os adjetivos que o termo pode carregar) como panacéia para os problemas sociais. E isso é particularmente importante para os professores de Filosofia, que têm a existência de sua disciplina justificada legalmente por esse discurso.

Assim como Duarte, mas arrimados em pressupostos teóricos distintos, colhidos em autores como Lipovetsky, Deleuze e Foucault, Silvio Gallo e Renata Lima Aspis, em ''Ensino de filosofia e cidadania nas 'sociedades de controle': resistência e linhas de fuga'', procedem à crítica da sociedade contemporânea, na qual ''tudo é mercadoria, tudo está à venda e pode ser comprado'' e a cidadania é definida essencialmente pelo consumo. São os ''tempos hipermodernos'', de Lipovetsky, em que os axiomas do ''mercado'', da ''eficiência técnica'' e do ''indivíduo'' são elevados à enésima potência, operando sem os ''freios da modernidade''.

No âmbito político, a hipermodernidade tem como consequência as ''sociedades de controle'', na perspectiva deleuzeana, nas quais atua o que, segundo os autores, Foucault denomina de ''biopoder'', isto é, um poder não mais dirigido aos indivíduos pelos ''meios de sequestro'' e de confinamento, característicos das ''sociedades disciplinares'', mas sim a grandes grupos populacionais. É um poder que escapa às instituições, tornando-se ''mais tênue, mais fluido'' e, por isso mesmo, ''mais poderoso'', e que tem como alvo preferencial ''os elementos imateriais da sociedade'', a saber: a ''informação'', o ''conhecimento'' e a ''comunicação''.

Recorrendo a Rancière, os autores consideram que nesse tipo de sociedade há uma oposição entre ''política'' e ''polícia''. A polícia é ''o exercício do controle como administração do tecido social'', um ''mecanismo de administração do instituído'' voltado para a produção de consensos. A política, por sua vez, pressupõe o dissenso e só se realiza quando tomam a palavra aqueles a quem ela é negada. Assim, o cidadão na ''sociedade de controle'' é ''aquele que é administrado, controlado, policiado''; um '''cidadão hipermoderno''' convertido em consumidor desenfreado e movido por um ''hedonismo apressado''.

Em face desse contexto, os autores lançam a pergunta: ''é a serviço dessa cidadania que estará o ensino de Filosofia?''. Sua resposta é peremptoriamente negativa, pois consideram que, assim como mudam os instrumentos de dominação, podem-se mudar também as formas de combatê-la. Citando Deleuze, complementam: ''não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas''. Na visão dos autores, ''passeatas'', ''greves'', ''movimentos sindicais'', ''peito contra tanque pela paz'' são formas de luta que não funcionam mais, ''porque o próprio capitalismo não funciona mais assim''. Daí a necessidade de se criar novas armas.

Em suma, na perspectiva de Gallo e Aspis, o ensino de Filosofia deve estar comprometido com a ''política'' e não com a ''polícia'', favorecendo a tomada da palavra pelos silenciados. Para tanto, cumpre desenvolver ''práticas de resistências'' e ''linhas de fuga'', atuando como um ''menor'' (no sentido proposto por Deleuze e Guattari) dentro do maior, provocando uma ''sub-versão'' dentro da versão oficial. O caminho para isso é, na perspectiva dos autores, o ''desenvolvimento de uma disciplina filosófica no pensamento'', isto é, o aprendizado do pensar filosófico, por meio, por exemplo, da leitura de textos filosóficos, da análise dos discursos e da criação de conceitos: ''A saída dá-se a partir de um conceito que se cria''. Assim, concluem os autores, o ensino de Filosofia pode constituir-se como ''um ato de jogar sementes ao vento'', cujo objeto da semeadura é o próprio ''pensar filosófico''.

Duarte talvez identificasse um viés idealista na concepção de Gallo e Aspis, que parecem confiar em demasia no poder do pensamento e do conceito para a superação da ''sociedade de controle''. Mas o ponto que me parece mais interessante da reflexão proposta pelos autores é a concepção do ensino de Filosofia como instrumento para a tomada da palavra, a qual, a meu ver, remete à importância da linguagem. Numa perspectiva radicalmente diversa, Baratta também chama a atenção para esse aspecto, salientando a importância crucial que assume a questão da linguagem quando se concebe o trabalho filosófico como ''luta cultural para transformar a 'mentalidade' popular e difundir as inovações filosóficas que se revelem 'historicamente verdadeiras''' (Gramsci, 2001, C10, §44, p. 398). Ora, também a filosofia possui uma linguagem própria, constituída pelos termos e conceitos criados e recriados pelos filósofos ao longo de sua história, cujo domínio precisa ser socializado para que ocorra a referida transformação. A apropriação desses conceitos - talvez anterior ou simultânea à criação de outros - é que propicia aos alunos compreender mais rigorosa e criticamente as diversas visões de mundo (incluindo a dos ''tempos hipermodernos'' e da ''sociedade de controle'') que, de forma espontânea e desagregada, norteiam suas práticas cotidianas, ajudando-os a superar o senso comum.

Finalmente, em ''O cidadão Sócrates e o filosofar numa democracia'', Roberto Goto faz emergir toda a complexidade das relações entre filosofia e política, através da discussão que empreende sobre as razões e os significados da condenação do filósofo ateniense.

Amparando-se em autores do porte de Mossé, Finley, Diógenes Laércio, Tucídides, Aristófanes, Aristóteles, Platão, Xenofonte e Nietzsche, recorda a imagem de Sócrates (ou pelo menos uma das muitas que se construíram dele) como um ''cidadão modelar'', tanto pelo ''senso'' quanto pela ''prática'' da justiça, entendida esta como observância da lei, à qual permanece fiel, mesmo diante da ameaça de morte. Sua ''resistência ao arbítrio'' exortava indiretamente seus concidadãos a viver a ''areté'' e ''os educava politicamente pela ação, pelo exemplo - mais por atos do que por palavras''.

A forma principal de sua ação política e educativa era a ''palavra falada'', o ''diálogo vivo'', pelo qual ele procurava influenciar seus interlocutores. Assim, se a palavra, ''isto é, a fala'', é o que define a natureza da política, conclui o autor, ''Sócrates foi sem dúvida o mais público, o mais político, o mais cidadão de todos os filósofos''. Encontra-se nessa articulação entre a política e o uso da fala um ponto de contato entre as posições de Goto e Gallo & Aspis, a despeito da diversidade de perspectivas e do fato de, no caso do primeiro, não serem explicitadas suas implicações para o ensino da Filosofia.

A retórica socrática, porém, é, segundo o autor, uma ''retórica negativa'' ou uma ''não retórica''; ou, ainda, uma ''antirretórica'', pois a ação política que ele exerce pela palavra não se dá na forma discursiva (como na retórica sofística), mas dialógica. Nela, o sujeito que fala não é proprietário do discurso que profere, visto que o diálogo socrático ''pressupõe e implica um compartilhamento do logos, que, nesse caso, a rigor, não pertence a ninguém'', podendo circular livremente entre os sujeitos. Emerge, aqui, uma vez mais, ao menos como analogia, a figura gramsciana do ''filósofo democrático'' caracterizada por Baratta.

É esse seu modo peculiar de agir, mais do que o de pensar, que, na visão de Goto, leva à condenação de Sócrates. Um agir, de resto, essencialmente democrático: que ''bate'' (em sentido metafórico) e também apanha, inclusive literalmente; que jamais recorre à violência nem ao ''autoritarismo'', mas à ''persuasão'' pelo diálogo; que rejeita a demagogia e a bajulação. Em suma, o cidadão Sócrates incomoda porque ''exerce a cidadania como uma forma de filosofar e pratica a filosofia como um direito e um dever de cidadania'', conjugando teoria e prática em sua própria existência. Depois dele, afirma o autor, a filosofia ''refugiou-se na escrita'', ''nos guetos acadêmico-escolares'', ''na teoria'', lançando o filósofo no ''isolamento'' e na ''solidão'' e consolidando a dicotomia teoria e prática.

É curioso que Goto, ao contrário dos demais autores, não faça referência explícita ao ensino de Filosofia. Curioso mas compreensível, se visto como uma sutil e refinada coerência com o estilo de filosofar do protagonista de seu texto. Socraticamente, parece adotar uma ''retórica negativa'', recusando-se a proferir o próprio discurso e a indicar objetivamente caminhos e diretrizes. Antes, prefere educar pelo exemplo, o de Sócrates, propondo uma espécie de ''exercício de leitura'' da vida e do jeito de filosofar do ilustre ateniense. Ao fazê-lo, porém, acaba educando também pelo seu próprio exemplo, ao reproduzir a prática pedagógica de seu protagonista.

A preocupação do autor com o isolamento do filósofo talvez possa ser atenuada pela noção de ''filosofia ampliada'', proposta por Baratta, fundamentada na tese gramsciana de que ''todos os homens são 'filósofos''' e que decreta '''a morte da filosofia' separada''. Desse ponto de vista, a sala de aula pode ser concebida como uma nova ágora onde, no encontro entre o filósofo especialista (o professor de filosofia) e os ''filósofos'' em sentido amplo (os alunos) estabeleçam-se diálogos à moda socrática, num ''trabalho de 'interrogar, examinar, confundir'''.

***

Esses são, portanto, os artigos que compõem o presente dossiê, em relação aos quais procurei explicitar algumas poucas possibilidades de interlocução, confronto, problematização. Outras tantas são possíveis, como o leitor constatará, dada a riqueza contida no conjunto destes textos, tanto pela reflexão mesma que oferecem individualmente, quando pela diversidade de suas posições.

Uma última palavra. A filosofia está de volta ao Ensino Médio! É uma vitória que, se não pode ser tomada como solução taumatúrgica para a questão da cidadania no Brasil, também não pode ser subestimada. Seu retorno representa uma marca potencialmente progressista impressa na educação brasileira por força da luta social. Isso não é pouca coisa. A tarefa que se impõe agora, principalmente aos professores, é dar a máxima efetividade possível a essa conquista: construindo, nas condições materiais e de tempo de que se dispõem, as mediações didáticas necessárias para a formação intelectual dos ''de baixo'' (Konder); fazendo da história da filosofia um manancial de ''mediações conceituais para pensar as temáticas do existir humano'' (Severino); permanecendo alertas para os limites e as contradições, por vezes maquiados pelo discurso oficial, da questão da formação para a cidadania numa sociedade de classes (Duarte); inventando ''práticas de resistência'' e ''linhas de fuga'' que permitam aos jovens das escolas públicas retomar a palavra que lhes foi subtraída (Gallo; Aspis); aprendendo com Sócrates a ensinar a filosofar pelo exemplo e a fazer da sala de aula um espaço dialógico que propicie ''um compartilhamento do logos'' entre todos (Goto); atuando como um ''filósofo democrático'', disposto a ''pensar junto'' com o aluno, ajudando-o a ''passar da espontaneidade (com seus elementos de não organicidade e incoerência) a uma consciência crítica e intelectualmente organizada'' (Baratta); enfim, de todas as maneiras que a criatividade e o compromisso dos professores forem capazes de produzir. Em suma, há ainda muito o que fazer. Mas também já há bons motivos para celebrar.

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 03 fev. 2010.
  • BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2010.
  • BRASIL. Lei 11.684 de 2 de junho de 2008. Altera o art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11684.htm>. Acesso em: 03 fev. 2010.
  • GRAMSCI, A. Caderno 10 (1932-1935) A Filosofia de Benedito Croce. In: GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere Edição de Carlos Nelson Coutinho com Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 277-430. v. 1.
  • GRAMSCI, A. Quaderno 10 (XXXIII) (1932-1935) - La filosofia de Benedeto Croce. In: GRAMSCI, A. Quaderni Del Cárcere Edizione critica dell'Istituto Gramsci. A cura di Valentino Geratana. Torino, Giulio Einaude editore, 2007, p. 1205-1362. volume secondo.
  • GRAMSCI, A. Caderno 12 (1932). Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: Cadernos do cárcere Edição de Carlos Nelson Coutinho com Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 13-54. v. 2.
  • GRAMSCI, A. Quaderno 12 (XXIX) - 1932 - Apunti e note sparse per un gruppo di saggi sulla storia degli intellettuali. In: GRAMSCI, A. Quaderni Del Cárcere. Edizione critica dell'Istituto Gramsci. A cura di Valentino Geratana. Torino, Giulio Einaude Editore, 2007. p. 1511-1552. volume terzo.
  • 1
    . As informações biográficas aqui reproduzidas foram colhidas na referida nota de falecimento, disponível em: <
    acessado em 29 jan. 2010 e em nota da UFBA, disponível em: <
  • 2
    . O termo ''filosofia'' será grafado com inicial maiúscula sempre que se referir à disciplina curricular.
  • 3
    . Uma boa síntese da história do ensino de Filosofia no Brasil pode ser encontrada em M. T. Cartolano,
    Filosofia no ensino de 2º Grau. São Paulo, Cortez, 1985. A esse respeito, ver também: }
    R. J. T. Silveira,
    Ensino de Filosofia no Segundo Grau: em busca de um sentido. Campinas: FE-Unicamp, 1991 (Dissertação de Mestrado).
  • 4
    . Sobre a relação entre a exclusão da Filosofia do Ensino Médio e a DSND, ver: R. J. T. Silveira.
    Filosofia e segurança nacional: o afastamento da Filosofia do currículo do Ensino Médio no contexto do regime civil-militar pós-1964. In: R. J. T. Silveira e R. Goto (Org.),
    A filosofia e seu ensino: caminhos e sentidos. São Paulo, Loyola, 2009. p. 53-78.
  • 5
    . A respeito desse movimento e desses projetos, bem como dos embates por eles desencadeados, ver: R. J. T. Silveira,
    Ensino de Filosofia no Segundo Grau: em busca de um sentido. Campinas: FE-Unicamp, 1991 (Dissertação de Mestrado).
  • 6
    . Sobre possíveis aproximações entre Gramsci e Freire, ver: Diana Conben,
    Radical heroes. Gramsci, Freire and the politics of adult education, New York / London, Garland Publishing, 1998;
    T. Ireland,
    Antonio Gramsci and adult education: reflections on the Brazilian experience. Manchester, Manchester University Press, 1987; Peter Mayo.
    Gramsci, Freire and adult education: possibilities for transformative action. London/New York, Zed Books, 1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010
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