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Problematizando o campo de saber da educação ambiental1 1 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). ,2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Aline Maya (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

Troubling the environmental education knowledge field

Resumo

Este artigo inscreve-se na possibilidade de pensar e provocar alguns ditos recorrentes em pesquisas científicas voltadas à educação ambiental. Para isso, analisamos 121 produções científicas que se voltam para os fundamentos epistemológicos, filosóficos, políticos e educacionais do seu campo de saber, a partir da perspectiva crítica. Como aporte teórico-metodológico, utilizamos três ferramentas presentes em diferentes obras de Michel Foucault. São elas: (i) suposição de que os universais não existem, (ii) problematização, e (iii) documentos vistos como monumentos. Com a realização deste estudo foi possível problematizar a potência que a interdisciplinaridade, a emancipação social e a transformação social possuem na formação do campo da educação ambiental.

Palavras-chave:
educação ambiental; campo de saber; perspectiva crítica; Michel Foucault

Abstract

This article is part of the possibility of thinking and provoking some recurrent sayings in scientific research related to Environmental Education. For such, we analyze 121 scientific productions that turn to the epistemological, philosophical, political and educational foundations of their knowledge field, from the critical perspective. As a theoretical-methodological contribution, we use three instruments present in different works of Michel Foucault: (i) supposition that universals do not exist, (ii) problematization, and (iii) documents seen as monuments. With the execution of this study, it was possible to problematize the power that interdisciplinarity, social emancipation and social transformation have in the formation of the Environmental Education field.

Keywords
environmental education; knowledge field; critical theory; Michel Foucault

Introdução

O propósito deste estudo é problematizar, no sentido foucaultiano, a maneira como a educação ambiental vem sendo teorizada nas diferentes produções científicas que partem de uma perspectiva educacional crítica3 3 Ainda que os trabalhos mapeados assumam uma perspectiva educacional crítica, esses não estão exclusivamente vinculados à teoria crítica – numa relação mais direta com os fundamentos teóricos e metodológicos dos intelectuais da Escola de Frankfurt. Assim, assumimos aqui a noção de perspectiva crítica dos ensinamentos de Tomaz Tadeu da Silva (2015), que tem como caracterizações mais gerais a politização do campo educacional, especialmente a partir da década de 1970, desejando a emancipação e a transformação dos sujeitos pela via da autonomia e do esclarecimento das consciências. . Utilizamos, como material empírico, 47 artigos científicos, 26 teses e 48 dissertações que objetivam discutir os aspectos filosófico, epistemológico, educacional e político da educação ambiental.

Escolhemos esses materiais a partir do enfoque nos diferentes meios de divulgação da produção científica brasileira. Para a seleção dos periódicos, consideramos dois extratos: o primeiro, com escopo voltado à educação ambiental, foi composto por três revistas científicas, quais sejam: a Revista Brasileira de Educação Ambiental – criada partir de redes de educadores ambientais –, a Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental (Remea) e a Revista de Pesquisa em Educação Ambiental – ambas originadas de grupos de pesquisa vinculados a programas de pós-graduação; e, como segundo extrato de análise, selecionamos periódicos qualificados na área da educação, tendo por base a avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) durante o quadriênio 2013-2016. Por conta da intensificação da produção científica voltada à educação ambiental, optamos por ampliar a busca para trabalhos decorrentes da pós-graduação stricto sensu, uma vez que entendemos a importância de seus exemplares para a fortificação desse campo na ciência brasileira.

O montante total analisado foi de 157 trabalhos. Para este artigo, contamos com um número de 121 trabalhos, publicados no período de 2003 a 2015, selecionados por se debruçarem especialmente nos fundamentos que aderem a uma perspectiva crítica, que é a constituidora do campo de saber da educação ambiental. O recorte temporal foi escolhido por duas razões. A primeira refere-se ao período de tempo compreendido na pesquisa mais ampla que origina este estudo: trata-se de uma investigação que buscou analisar as produções científicas das reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), no interior do Grupo de Trabalho da Educação Ambiental (GT 22), desde o período da sua criação até sua penúltima reunião (2003-2015)4 4 Ver Silva (2018). Pesquisa realizada sob o escopo do Grupo de Estudos Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia (Geecaf), composto por pesquisadores dos cursos de graduação, mestrado e doutorado da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IFSul). Outras informações disponíveis na página do grupo (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/42761). . Por conta de este artigo ser um desdobramento do estudo mais amplo, julgamos pertinente analisar as produções científicas de um modo mais alargado, considerando o mesmo extrato temporal. A segunda razão refere-se à ampliação dos estudos de educação ambiental em nosso país, especialmente dos anos 2000 para cá. Trata-se de mirar a proliferação de um campo de saber e de entender como vem se constituindo aquilo que denominamos “educação ambiental”.

Utilizamos cinco portais diferentes como ferramentas de busca: Scientific Electronic Library Online (SciELO), Portal de Periódicos da Capes, Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, Banco de teses e dissertações do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande, Revista de Pesquisa em Educação Ambiental e Revista Brasileira de Educação Ambiental. Destacamos que desconsideramos as repetições no número total de trabalhos científicos mapeados.

Intentamos indicar alguns ditos recorrentes nos trabalhos encontrados, que apresentam os modos como a educação ambiental vem sendo concebida, nos seus fundamentos filosófico, político e epistemológico, por pesquisadores do campo. Após verificarmos a presença constante de uma perspectiva crítica no corpo de estudos da seara da educação ambiental, debruçamo-nos sobre essa vertente teórica para analisar os ditos recorrentes no material empírico. Resta evidente que a definição de uma ou de outra perspectiva teórica foi identificada através das ideias discutidas pelos textos, da filiação dos autores ou da própria denominação específica atribuída a essa perspectiva. O que trazemos para o debate é um recorte da produção científica do campo, e não “a” produção científica na sua totalidade, visando deduzir certa recorrência observada no material empírico – e é a esta, de modo particular, que este artigo se dedica.

Na correnteza de Michel Foucault (2013, p. 268)Foucault, M. (2013). Ditos & escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento (3a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária., valhamo-nos da pergunta: “que importa quem fala?”. Não se trata de negar a relevância da autoria na produção dos textos, mas, isso sim, de entender como se instaura um discurso de verdade. Trata-se de deslocar o olhar para além de uma figura, nome/pessoa, e problematizar os acontecimentos que tornam possíveis a circulação e a produção de seus textos. A intenção não está em analisar quem disse, mas em problematizar os discursos que são colocados em funcionamento pelo ordenamento de saberes, o que fabrica um campo específico – aqui, em particular, a educação ambiental.

A motivação para produzir este artigo está alicerçada na vontade de olhar para as formações discursivas5 5 O termo “formações discursivas” é utilizado nos estudos arqueológicos de Michel Foucault (2015a). Trata-se de um conjunto de discursos múltiplos que se debruçam sobre um mesmo objeto que, concordantes ou não entre si, produzem um campo de saber. . Estas são movidas e produzidas no interior de um regime de verdade e constituem o campo de saber da educação ambiental, que se permite escapar do ingresso no jogo de distinção dualista que a Modernidade nos ensinou: o falso e o verídico, o certo e o errado.

Utilizamos algumas ferramentas presentes na obra de Michel Foucault para realizar as análises, sendo elas: (i) os documentos concebidos como monumentos (Foucault, 2015aFoucault, M. (2015a). Arqueologia do saber (8a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária.), (ii) a problematização (Foucault, 2009Foucault, M. (2009). História da sexualidade 2: O uso dos prazeres (13a ed). Rio de Janeiro: Edições Graal.), e (iii) a suposição de que os universais não existem (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). O nascimento da biopolítica: Curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes.). A decisão de pensar a partir das linhas de um autor que se afasta da universalidade dos conceitos nos desacomoda e nos distancia de qualquer pragmatismo teórico. Afastando-nos de tal pragmatismo, buscamos mapear alguns indícios que apresentam aos caminhos pelos quais olhamos para o material empírico.

Os trabalhos científicos selecionados não são aqui concebidos como instrumentos por meio dos quais é possível objetivar ou a realidade enquanto um fato real ou “a” verdade da educação ambiental. Transgredir o material empírico de uma qualidade de documentos na direção de um monumento implica tomá-lo enquanto materialidade de saberes e de enunciados do presente e de uma época, que fabrica, em suas dispersões e regularidades, um modo de entender, conceituar e produzir a educação ambiental nas teias históricas. A intenção não é encontrar no corpus discursivo uma “realidade objetiva”, na qual repouse a verdadeira e intocada face da educação ambiental. O documento, aqui, é tomado como um objeto de estudo, “devendo como tal ser decodificado em suas camadas sedimentares” (Rago, 1993Rago, M. (1993). As marcas da pantera: Foucault para historiadores. Resgate, 4(5), 22-32. Recuperado de https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8647987/14798
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 30). Isso significa que o material empírico possibilita entender parte de uma formação discursiva, a qual coloca em funcionamento algo maior.

Isso tudo aponta o vínculo que este artigo pretende estabelecer com aquilo que Michel Foucault (2009)Foucault, M. (2009). História da sexualidade 2: O uso dos prazeres (13a ed). Rio de Janeiro: Edições Graal. traçou em suas pesquisas de problematização. Naquilo que se orienta e no que é dito nos materiais empíricos, há discursos que falam dentro de um regime de verdades que vem produzindo efeitos de sentido na educação ambiental. A problematização, assim, toma como motor o pensamento que questiona e que faz provocações sobre os jogos de práticas discursivas, as quais interditam ou outorgam alguns saberes. A partir das palavras do próprio autor, é possível compreender que a problematização busca “analisar, não os comportamentos, nem as ideias, não as sociedades, nem suas ‘ideologias’, mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam” (Foucault, 2009Foucault, M. (2009). História da sexualidade 2: O uso dos prazeres (13a ed). Rio de Janeiro: Edições Graal., p. 18). Nesse sentido, problematizar requer a compreensão de que a verdade é uma construção humana, fabricada nas linhas das relações entre poder e saber.

Problematizar os discursos circulantes nas produções científicas é um trabalho que se fundamenta no exercício crítico de pensar sobre o pensamento, um modo de reflexão e de desnaturalização daqueles ditos que nos parecem tão certos que não os colocamos na posição de serem questionados. A vontade de olhar para o que está sendo produzido e de problematizar o que há de mais recorrente nos trabalhos mapeados é movida pela suposição de “que os universais não existem” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). O nascimento da biopolítica: Curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes., p. 5). Não são os objetos que os trabalhos científicos estudam o que buscamos analisar, mas as próprias reflexões, conceituações e explicações que efetivamente produzem a educação ambiental.

A proposta de provocar o pensamento a respeito das práticas discursivas 6 6 As práticas discursivas, para Michel Foucault (2015a), mostram a produtividade, no nível social, político e cultural, com a qual os discursos operam, fabricando modos de ser, de pensar e de viver. Trata-se de um olhar que tensiona as fronteiras dos signos e evidencia a produtividade dos discursos como práticas que fabricam os objetos sobre os quais se debruçam. que constituem a educação ambiental remete à possibilidade de (re)pensar os seus próprios limites sociais, educacionais e epistemológicos. Não se trata de enfraquecer ou de fortalecer alguns ditos, mas de tencionar a recorrência de modos específicos de se entender a educação ambiental, tão potentes nas pesquisas científicas voltadas ao campo.

Na próxima seção tratamos de mostrar, inicialmente, os meios pelos quais foi possível pensar a educação ambiental enquanto um campo fortemente político, que se distancia dos ditos marcados pelas visões conservacionistas e naturalistas. Partindo dessa historicidade – que nos permite entender o presente –, passamos a mapear alguns dos ditos recorrentes entre as pesquisas científicas encontradas. As recorrências discursivas enfatizam três eixos diferentes, mas complementares, entre os materiais empíricos: transformação social, emancipação do sujeito e interdisciplinaridade. É especificamente sobre tais discussões que nos debruçaremos a seguir.

A educação ambiental tecida pelas marcas da interdisciplinaridade, da emancipação e da transformação

Especificamente no Brasil, o processo de redemocratização da sociedade na década de 1980 e a progressiva junção dos movimentos sociais aos ambientalistas deram condições para que ingressassem no campo da educação ambiental as perspectivas educacionais críticas – vistas como um meio de contraposição às medidas e às abordagens vinculadas à vertente conservacionista, até então preponderantes na área. Conforme nos mostra Gustavo Lima (2011, p. 157)Lima, G. F. C. (2011). Educação ambiental no Brasil: Formação, identidades e desafios. Campinas: Papirus.:

Foi também a partir dessa crítica à EA [educação ambiental] conservacionista que surgiu no debate a necessidade de alguns autores requalificarem a EA com novos adjetivos, redefinindo-a como: EA crítica, EA transformadora, EA popular, EA emancipatória. Todos esses esforços expressam, de alguma forma, uma insatisfação com o tratamento reducionista dado à EA por leituras biologizantes, conservacionistas, tecnicistas ou comportamentalistas e com as implicações resultantes dessas abordagens.

Para Edson Luiz Linder (2012)Linder, E. L. (2012). Refletindo sobre o ambiente. In C. P. Lisboa, & E. A. I. Kindel (Orgs.), Educação ambiental: Da teoria à prática (pp. 13-20). Porto Alegre: Mediação., a educação ambiental se articula a uma pedagogia humanista freiriana, a qual intenta esclarecer e conscientizar os sujeitos para que entendam as relações de produção e de consumo que implicam a utilização demasiada dos recursos naturais, com o objetivo de formá-los capazes de opinar e de agir na construção de uma sociedade com bases sustentáveis. Sendo assim, para o autor, “a Educação Ambiental se faz necessária para que as pessoas sejam esclarecidas e possam, de maneira consciente e cidadã, opinar sobre projetos que certamente influenciarão suas vidas e suas comunidades por muito tempo” (Linder, 2012Linder, E. L. (2012). Refletindo sobre o ambiente. In C. P. Lisboa, & E. A. I. Kindel (Orgs.), Educação ambiental: Da teoria à prática (pp. 13-20). Porto Alegre: Mediação., p. 16). Educar ambientalmente é entendido, nessa perspectiva, como uma forma de esclarecer os indivíduos, dentro da ótica da luta de classes, sobre as problemáticas ambientais existentes na sociedade, ocasionadas pelos meios de produção.

A perspectiva crítica no campo ambiental, historicamente, não conduziu as abordagens e as concepções da educação ambiental desde as primeiras conferências internacionais, ocorridas no final da década de 1960. Foi contra a posição despolitizada da educação ambiental – como formadora de habilidades e de comportamentos ecológicos – que emergiram as primeiras discussões embasadas nessa perspectiva. A conceituação da educação ambiental enquanto crítica se baseia na possibilidade de construir uma sociedade sustentável por meio de questionamentos a respeito das questões ambientais. Estas estão relacionadas ao sistema econômico de produção do capitalismo e foram ignoradas pelas leituras da vertente conservacionista.

Por meio das abordagens da perspectiva crítica na educação ambiental, a discussão a respeito da necessidade de transformação social se pautou na ideia da formação de sujeitos esclarecidos sobre os contextos social, cultural e ambiental. Em algumas das citações, extraídas do material de análise, é mostrado o que se tem entendido por educação ambiental crítica:

A pedagogia crítica na EA [educação ambiental] articula a educação como processo de formação humana omnilateral com a concepção de ambiente pautado nos aspectos sociais, históricos e políticos, compreendido como concreto pensado, como “síntese de múltiplas determinações”.

(Costa & Loureiro, 2015Costa, C. A., & Loureiro, C. F. B. (2015). Contribuições da pedagogia crítica para a pesquisa em educação ambiental: Um debate entre Saviani, Freire e Dussel. Revista Brasileira de Educação Ambiental, 10(1), 180-200. Recuperado de https://doi.org/10.34024/revbea.2015.v10.1948
https://doi.org/10.34024/revbea.2015.v10...
, p. 188)

Enfim, a Educação Ambiental crítica é um processo educativo eminentemente político, que visa o desenvolvimento nos educandos de uma consciência crítica acerca das instituições, atores e fatores sociais geradores de riscos e respectivos conflitos socioambientais. Busca uma estratégia pedagógica do enfrentamento de tais conflitos a partir de meios coletivos do exercício da cidadania, pautados na criação de demandas por políticas públicas participativas conforme requer a gestão ambiental democrática.

(Layrargues, 2003Layrargues, P. P. (2003). A natureza da ideologia e a ideologia da natureza: Elementos para uma sociologia da educação ambiental. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/279859
http://repositorio.unicamp.br/jspui/hand...
, p. 59)

A educação ambiental crítica, segundo os autores citados, considera a formação de sujeitos que consigam criticamente enfrentar os conflitos e as injustiças ambientais nos espaços públicos. Esse posicionamento pressupõe uma noção de ambiente permeado por aspectos históricos, sociais e políticos – daí a premissa de que emancipar os sujeitos e transformar a sociedade requer se atentar para os contornos socioambientais.

Alguns conceitos utilizados nos trabalhos mapeados dão sentido ao que os autores entendem por educação ambiental. Mesmo quando não utilizam, em suas escritas, a expressão “educação ambiental crítica”, é possível perceber que há uma regularidade conceitual que permite depreender, ao longo de suas pesquisas, as filiações teóricas que as embasam. Acreditamos ser necessário deixar claro que a diferenciação das perspectivas teóricas aconteceu não por meio de suposição, mas através do que os autores mostraram, tanto em suas palavras quanto no que se evidenciou em suas abordagens analíticas.

Dentre os discursos circulantes nos trabalhos científicos mapeados e selecionados como filiados à corrente crítica, percebemos muitas aproximações com o corpus discursivo que converge primeiramente com o campo da educação. Essa aproximação teórica se incorporou à educação ambiental principalmente a partir da década de 1990, na qual é possível perceber as influências filosóficas, epistemológicas e políticas dos estudos marxistas e frankfurtianos.

As influências críticas de origem marxista e/ou frankfurtianas, que chamam nossa atenção nesse momento, chegam à educação ambiental brasileira por meio da educação popular, especialmente mediante a reflexão pedagógica e política de nomes como Paulo Freire, Carlos Rodrigues Brandão, Moacir Gadotti, entre outros…. Surgida das lutas em defesa dos interesses populares, a educação popular congregou e articulou diversas tradições político-ideológicas e pedagógicas, de alguma maneira convergentes, que incluem o marxismo e as pedagogias críticas, a teologia da libertação, a teoria da dependência, os movimentos sociais, as ONGs e os partidos políticos comprometidos com as lutas de resistência e emancipação das populações desfavorecidas e oprimidas

(Lima, 2009Lima, G. F. C. (2009). Educação ambiental crítica: Do socioambientalismo às sociedades sustentáveis. Educação e Pesquisa, 35(1), 145-163. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022009000100010&lng=pt&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 148)

O posicionamento teórico evidenciado nesse trecho, ao enfatizar a emancipação por meio da conscientização, atribui à crítica dos fatores econômicos, sociais, ambientais e políticos a possibilidade de um exercício pleno da cidadania, de modo que as relações socioambientais sejam erigidas mediante uma organização na qual a ética, a epistemologia, a filosofia, a cultura e o poder seriam os meios mais adequados para a construção de uma sociedade mais justa e sustentável. Percebemos, nas produções científicas mapeadas, a relevância da busca por uma reorganização em nível societário que emerja da formação crítica do ser humano emancipado.

Para tentar compreender a existência pronunciada dessa centralidade da emancipação do sujeito – para transformar as relações socioambientais – em grande parte dos trabalhos científicos mapeados, buscamos, primeiramente, tecer breves aproximações com alguns acontecimentos históricos. Estes operaram externamente na produção desse modo de olhar paras as relações entre os seres humanos e o meio ambiente.

A educação ambiental emergiu com o objetivo de solucionar, ou pelo menos amenizar, a situação da crise ambiental, principalmente das últimas décadas do século XX, período em que esta passou a ser um fator preocupante no cenário internacional. A fabricação de um problema ambiental impulsionou, na área educacional, a indispensabilidade de educar os sujeitos para uma relação sustentável com o meio ambiente. A relevância das questões ambientais foi se evidenciando no cenário mundial principalmente a partir de desastres sociais e ambientais ocorridos no final da Segunda Guerra Mundial (1945), na qual a conflagração de muitos países acionou e alarmou sobre a possibilidade de total destruição humana e ambiental (Grün, 2012Grün, M. (2012). Ética e educação ambiental: Conexões necessárias (14a ed). Campinas: Papirus.).

Em tempos muito recentes conseguimos visualizar, por exemplo, nos vazamentos de petróleo – na Inglaterra (1967), França (1978), Golfo do México (1979), África do Sul (1983), Itália (1991) e, no Brasil, na Ilha de Trindade (ES, 1980), Balsa Nova (PR, 2000), Baía de Guanabara (RJ, 2000) e Bacia de Campos (RJ, 2001 e 2011) –, consequências da relação entre questões de cunho não apenas ambiental, mas simultaneamente social, histórico, cultural, ético e epistemológico. Ainda que essa relação socioambiental seja, atualmente, indiscutível, deve-se considerar que a educação ambiental é um modo de olhar que foi fabricado nos emaranhados da história. Cronologicamente anteriores a essa forma de pensar, as questões ambientais estiveram amparadas por uma concepção de dicotomia entre as relações ambientais e os contextos e as interações sociais, culturais, econômicas e políticas.

Especificamente no Brasil – e com maior ênfase na década de 1990 –, a contestação da dicotomia entre as questões ambientais, sociais, culturais e políticas constituiu uma forma particular de entender e caracterizar a educação ambiental, agora analisada pela conjuntura das relações socioambientais. Essa visão produziu, e ainda produz, uma prática discursiva em que esse campo de saber é entendido a partir das relações que se estabelecem entre o ambiental e o cultural. Conforme aponta o autor Gustavo Ferreira da Costa Lima (2011, p. 21):

Grande parte dos problemas e conflitos vivenciados pela EA [educação ambiental] em seu processo de constituição e desenvolvimento se deve, justamente, às dificuldades provenientes dos saberes e das práticas simplistas enraizados socialmente e de uma recorrente compreensão dicotômica da realidade que tende a separar o ecológico e o social, o individual e coletivo, a subjetividade e a objetividade, o científico e o não científico …, entre outras dicotomias possíveis, todas redutoras da complexidade do fenômeno ambiental e das pedagogias a ele dirigidas.

O que gostaríamos de evidenciar com os escritos citados é a ideia de que a educação ambiental se forma, principalmente, na tentativa de resolver as problemáticas da crise (seja ela concebida apenas enquanto ecológica ou pela integração e articulação das questões sociais com as ambientais). Ao nos depararmos com a concepção de que os modos de entender a educação ambiental estão amparados por condições de possibilidades – históricas, sociais, políticas, econômicas, epistemológicas e culturais –, pensar o seu campo de saber passa a implicar ponderar que os saberes, os conceitos e os vieses teóricos estão embasados em uma episteme moderna.

Por se ter colocado em dúvida o ímpeto contemplativo da religião e da filosofia, um sentimento de insatisfação atingiu alguns estudiosos por conta dos novos modos de explicar os acontecimentos do mundo. Os deslocamentos dos conhecimentos metafísicos para os conhecimentos científicos consolidaram a ciência como o regime de verdade da Modernidade, o que repercutiu diretamente na posição de predominância do ser humano em relação à natureza e na necessidade de exploração desta – com a justificativa de atingir progresso e elevação pelo uso da razão. Dessa forma, torna-se viável compreender que:

A autonomia da razão pode ser considerada como uma das principais causas a engendrar o antropocentrismo. Em uma postura antropocêntrica, o Homem é considerado o centro de tudo e todas as demais coisas no universo existem única e exclusivamente em função dele

(Grün, 2012Grün, M. (2012). Ética e educação ambiental: Conexões necessárias (14a ed). Campinas: Papirus., p. 46)

O antropocentrismo tornou-se, na seara ambiental, uma postura ética e epistemológica presente nas relações entre sujeito e natureza, assim como entre sociedade e ambiente. Atualmente, mesmo que haja muito esforço na tentativa de afastamento ou, em alguma medida, de negação das marcas antropocêntricas da Modernidade, tal tarefa exige a problematização dos delineamentos nos quais estão ancoradas as possíveis “soluções” para a superação do antropocentrismo.

A posição central da conscientização do sujeito na utopia da transformação socioambiental buscou evidenciar a necessidade de que os seres humanos se percebam como parte do meio natural. Mas é indispensável a capacidade crítica dos sujeitos para a viabilidade dessa transformação social. Vejamos este excerto:

Conjuntamente a uma visão crítica, a Educação Ambiental deve considerar que os sujeitos possuem autonomia e liberdade em suas relações sociais. Desta forma, a Educação Ambiental deve contemplar na formação dos sujeitos a capacidade crítica aliada à compreensão de que ele faz parte da natureza e que suas decisões conjuntamente com outros sujeitos implicam de forma direta ou indireta no meio ambiente. … A Educação Ambiental que contempla estes aspectos é caracterizada pela transformação social, pois através da coletividade organizada pode compreender a totalidade e superar as causas da problemática ambiental

(Nogueira & Andrade, 2014Nogueira, C., & Andrade, G. S. (2014). Fundamentos filosóficos sobre educação ambiental dos licenciandos em física do IFSul. Revista Thema, 11(1), 70-85. Recuperado de http://revistathema.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/179/112
http://revistathema.ifsul.edu.br/index.p...
, p. 76)

É possível perceber as diferenciações entre a produção de verdades da ciência moderna do século XVII (a do homem visto como senhor e possuidor da natureza) e as formações discursivas que produzem o campo da educação ambiental no século XXI. Discursos recorrentes nesse campo apresentam a interdisciplinaridade dos saberes como uma das possibilidades de emancipar os sujeitos para que estes, coletivamente, transformem a sociedade. Essas considerações se amparam em alguns questionamentos: a interdisciplinaridade supera a disciplinarização dos saberes? Conseguimos nos emancipar das marcas modernas? E das relações de poder? Até onde somos capazes de romper com as marcas da Modernidade? Essas são as questões que trazemos como provocações potentes para problematizar alguns discursos da educação ambiental, por entendermos que estes são formadores de opiniões, de saberes e de práticas.

Uma das recorrências discursivas com as quais nos deparamos nos trabalhos científicos encontrados trata da busca pela superação da prevalência dos saberes científicos em relação aos saberes culturais, o que, segundo tal abordagem, possibilitaria o alargamento da compreensão das questões ambientais. As abordagens da educação ambiental, principalmente a partir de uma filiação teórica crítica, evidenciam a relevância da interdisciplinaridade entre as ciências e os outros saberes com o objetivo de construir uma epistemologia “socioambiental” ou “ambiental”.

Quando se consideram não apenas as consequências dos processos ambientais sobre as sociedades humanas, mas também a necessidade de incorporar as dimensões ambientais na formulação das políticas de desenvolvimento – ajustando-se objetivos econômicos, sanitários, sociais e éticos com a preservação/conservação da natureza, a exigência da interdisciplinaridade se faz ainda mais presente, abrindo-se para um espaço mais amplo

(Floriani, 2009Floriani, D. (2009). Educação ambiental e epistemologia: Conhecimento e prática de fronteira ou uma disciplina a mais? Pesquisa em Educação Ambiental, 4(2), 191-202. Recuperado de http://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/pesquisa/article/view/6200/4548
http://www.periodicos.rc.biblioteca.unes...
, p. 197)

A concepção dos trabalhos analisados sobre a epistemologia da educação ambiental se mostra, portanto, embasada em um caráter interdisciplinar como forma de buscar superar a fragmentação dos saberes científicos.

A interdisciplinaridade no campo da educação ambiental não se produz isoladamente. Junto dela há a transdisciplinaridade, garantida pela Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999 (1999, 28 de abril). Dispõe sobre Educação Ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental. Diário Oficial da União, seção 1 (p. 1). Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, que se alinha à busca pela relação dos conhecimentos científicos com os culturais e os tradicionais – segundo o argumento de que estes garantem uma maior compreensão da complexidade das questões socioambientais. Não tratamos de nomear interdisciplinaridade como sinônimo de transdisciplinaridade; todavia, são inegáveis suas proximidades epistêmicas na formação discursiva que constitui o campo de saber da educação ambiental.

A ideia de confluência e cooperação entre as disciplinas permite a emergência de outras condições epistêmicas, como a da transdisciplinaridade e a da multidisciplinaridade. Isabel Carvalho (2012)Carvalho, I. C. M. (2012). Educação ambiental: A formação do sujeito ecológico. 6a ed. São Paulo: Cortez. traz, de maneira clara, explicitações que possibilitam compreender os objetivos específicos de cada abordagem. Apresentamos apenas as conceituações que dizem respeito aos objetos que estamos buscando analisar, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade. A autora afirma que “a ideia de transdisciplinaridade radicaliza a ideia de reacomodação e unificação dos conhecimentos disciplinares, com relativo desaparecimento de cada disciplina”, e aposta na “ideia de um saber comum, unitário, que abarque o conhecimento de toda a realidade” (Carvalho, 2012Carvalho, I. C. M. (2012). Educação ambiental: A formação do sujeito ecológico. 6a ed. São Paulo: Cortez., p. 121). Por fim, define que:

A meta [da interdisciplinaridade] não é unificar as disciplinas, mas estabelecer conexões entre elas, na construção de novos referenciais conceituais e metodológicos consensuais, promovendo a troca entre os conhecimentos disciplinares e o diálogo dos saberes especializados com os saberes não científicos

(Carvalho, 2012Carvalho, I. C. M. (2012). Educação ambiental: A formação do sujeito ecológico. 6a ed. São Paulo: Cortez., p. 121)

Partindo das conceituações trazidas pela autora, passa a ser viável pensar que, apesar de transdisciplinaridade e interdisciplinaridade não serem conceitualmente iguais, seus posicionamentos metodológicos e epistemológicos não se contrapõem; ao contrário: complementam-se, em certa medida.

A potência de tais arranjos epistêmicos na educação ambiental, como a concebemos, não está na formação de outra racionalidade e na fuga de nossas bases modernas, mas, isso sim, na possibilidade de compor uma resistência às ordens estabelecidas. Isso não significa almejar momentos que necessariamente tenham por obrigação produzir um saber, uma informação ou uma opinião, mas, ao contrário: partir da tentativa de proporcionar, para si e para os outros, oportunidades de experiência. “Experiência” entendida como aquilo “que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça” (Bondía, 2002Bondía, J. L. (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, (19), 20-29. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a0...
, p. 21). São ensejos de que seja verossímil confrontar os modos de existência modernos.

Nessa correnteza de pensamento, entendemos que, tanto na interdisciplinaridade quanto na transdisciplinaridade, o objetivo de integrar saberes – culturais, tradicionais e científicos – para compreender, discutir ou resolver as questões e problemáticas ambientais não se configura, ao nosso ver, em uma transformação da episteme moderna. Tal aliança não coloca a educação ambiental como meio de transformar as relações entre sociedade e meio ambiente, com o anseio de formar outra racionalidade que se distancie da disciplinarização dos conhecimentos. Pensamos que, na educação ambiental, essas abordagens podem ser tomadas como um processo marcante de pensar sobre si e sobre os outros (humanos ou não humanos), seja para as relações sociais, culturais, educacionais ou ambientais.

A interdisciplinaridade emerge no século XX – assim como a educação ambiental – de um anseio por solucionar, superar e organizar os parâmetros sociais, culturais, educacionais e epistemológicos que permearam o mundo durante duas guerras (Veiga-Neto, 1996aVeiga-Neto, A. J. (1996a). A ordem das disciplinas. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Recuperado de http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/131158
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). Deparamo-nos com dois discursos distintos (interdisciplinaridade e educação ambiental crítica) que, em dado momento, se juntam: a interdisciplinaridade, enquanto potência pedagógica, se une à preocupação com a emancipação de sujeitos que sejam, crítica e coletivamente, capazes de ao menos amenizar a crise e a degradação ambiental produzidas por um ordenamento de conhecimentos científicos advindos da Modernidade.

No âmbito dessas discussões, entendemos que a articulação dos diferentes saberes (científicos, locais, tradicionais, artísticos, geracionais etc.) para compreender as questões socioambientais não representa um modo de superar o conhecimento disciplinar, pois “o conhecimento disciplinar não pode ser extinto por atos de vontade e por decretos epistemológicos que alterem maneiras de pensar que estão profundamente enraizadas em nós” (Veiga-Neto, 1996bVeiga-Neto, A. J. (1996b). Currículo, disciplina e interdisciplinaridade. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 17(2), 128-137. Recuperado de http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/issue/viewIssue/74/6
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, p. 132). A interdisciplinaridade é tomada, aqui, como meio de provocação e de tensionamento dos fundamentos da Modernidade, os quais preconizam a produção de verdade como forma de resposta aos problemas ambientais – posição assumida não apenas nas ciências ditas mais “duras”, mas também na educação ambiental. Em outras palavras: o anseio de construir e consolidar uma racionalidade ambiental é atravessado, igualmente, por critérios de seleção que normalizam os saberes.

Os discursos recorrentes nas pesquisas científicas mapeadas assumem um posicionamento de que, para pensar e garantir práticas de educação ambiental, há a necessidade de distanciar-se da razão ou, ao menos, de substituir a concepção de razão iluminista de Kant. Mediante tal assertiva, valemo-nos da pergunta pronunciada por Michel Foucault (1995, p. 233)Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder: Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In H. L. Dreyfus, & P. Rabinow, Michel Foucault, uma trajetória filosófica: Para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 229-250). Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.: “Devemos julgar a razão?”. Sua resposta a esse autoquestionamento nos coloca em posição de problematizar o sentido maléfico muitas vezes atribuído à razão nas práticas discursivas do campo da educação ambiental:

Em minha opinião, nada seria mais estéril. Primeiro, porque o campo a ser trabalhado não tem nada a ver com a culpa ou a inocência. Segundo, porque não tem sentido referir-se à razão como uma entidade contrária a não-razão. Por último, porque tal julgamento nos condenaria a representar o papel arbitrário e enfadonho do racionalista ou do irracionalista.

(Foucault, 1995Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder: Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In H. L. Dreyfus, & P. Rabinow, Michel Foucault, uma trajetória filosófica: Para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 229-250). Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária., p. 233)

O que o autor propõe coaduna com as ideias que esta pesquisa segue. Embasadas em autores como Alfredo Veiga-Neto (1996aVeiga-Neto, A. J. (1996a). A ordem das disciplinas. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Recuperado de http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/131158
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, 1996b)Veiga-Neto, A. J. (1996b). Currículo, disciplina e interdisciplinaridade. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 17(2), 128-137. Recuperado de http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/issue/viewIssue/74/6
http://revista.cbce.org.br/index.php/RBC...
, não trabalhamos com a perspectiva de que a interdisciplinaridade (ou mesmo a transdisciplinaridade) possa romper com os laços de uma racionalidade científica fragmentada, característica da Modernidade. Não buscamos e nem queremos julgar ou condenar, portanto, as filiações e as abordagens teóricas que se preocupam em construir outros modos de racionalidade. Amparamo-nos na simplicidade do olhar atento para compreender e para mostrar as formações discursivas que, recorrentes ou não, circunscrevem a história do presente da educação ambiental.

Não há como negar a relevância da interdisciplinaridade no contexto discursivo em que se produz uma educação ambiental, a qual busca apropriar-se, no âmbito das questões ambientais, de aspectos socioculturais. A educação ambiental, pensada a partir do distanciamento das vertentes conservacionistas e naturalistas (que marcaram esse campo na década de 1960), exige uma postura teórico-prática que dê conta da complexidade cada vez mais percebida e disseminada em espaços, instituições e artefatos diversificados. O que problematizamos é a maneira como é deduzida da interdisciplinaridade uma forma de superação, seja da racionalidade moderna ou do ensino nas escolas. Vejamos, novamente, a recorrência dessa prática discursiva em pesquisas científicas do campo da educação ambiental.

a necessidade de superar a forma tradicional de ensino e levar a ciência ao aluno através de propostas que estimulem o processo de aprendizagem e enriqueçam seu repertório pode estar na interdisciplinaridade destes trabalhos, assim como uma pedagogia que se preocupe com a formação crítica fazendo com que o aluno possa ligar a realidade dentro da escola com o ambiente, sua cultura, sua sociedade e todos aqueles fatores que não se encontram isolados e fazem parte de seu dia a dia, e de sua história onde o conteúdo é também a compreensão do que acontece diante dele dentro ou fora do ambiente escolar

(Rodrigues, 2013Rodrigues, M. D. (2013). A educação ambiental e a interdisciplinaridade através da horta: Um estudo de caso entre duas escolas da cidade de Rio Grande. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande. Recuperado de https://sistemas.furg.br/sistemas/sab/arquivos/bdtd/0000010502.pdf
https://sistemas.furg.br/sistemas/sab/ar...
, pp. 55-56)

A interdisciplinaridade, por mais que busque dar conta da cooperação das disciplinas – às vezes imiscuída dos objetivos da transdisciplinaridade (como o esforço de relacionar os conhecimentos científicos aos saberes culturais e tradicionais) –, permanece na busca por produzir um conjunto de saberes e conhecimentos que são posicionados como valores de verdade. A alternativa proposta de reorganizar, misturar e igualar diferentes disciplinas e saberes ainda possui suas raízes na Modernidade. Continua a produzir meios de governar os saberes, mesmo que de maneira interdisciplinar.

Compreendemos que os ditos recorrentes nos artigos científicos, teses e dissertações analisados nesta pesquisa são parte da formação discursiva que produz o campo de saber da educação ambiental. Mostrou-se como uma grande potência a concepção de que algumas mudanças epistêmicas e sociais são possíveis através de uma educação ambiental que lute para emancipar os sujeitos do poder da ideologia dominante – aquela que fixa os seres humanos e a natureza em posições antagônicas para a manutenção do sistema de produção capitalista. Vale referir que essa é uma forte recorrência no material empírico observado, mas, evidentemente, a formação discursiva é composta de outros modos possíveis de enxergar e fazer educação ambiental.

Vemos, nesses ditos, uma forma específica, porém não única, de entender a educação ambiental. Isso nos permite reconhecer outras perspectivas teóricas dentro dessa mesma formação, e as perspectivas críticas são uma parte dela. Tal como nos alerta Michel Foucault (2015a)Foucault, M. (2015a). Arqueologia do saber (8a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária., em uma mesma formação discursiva encontramos concepções heterogêneas: “Nada seria mais falso do que ver na análise das formações discursivas uma tentativa de periodização totalitária” (p. 186). Em diferentes conceitos e enunciações nos deparamos com modos distintos de compreender um mesmo objeto discursivo.

Além dos discursos da interdisciplinaridade, discutidos nos parágrafos anteriores, outra ideia que inunda os textos analisados se refere à importância da emancipação dos sujeitos para que busquem a transformação dos parâmetros sociais. Já havíamos referido anteriormente o grande número de pesquisas que se amparam na perspectiva crítica para entender, conceituar e abordar a educação ambiental. O que buscaremos agora é tensionar essas verdades tão recorrentes para a área como modos de processos de subjetivação e governo das condutas. Começaremos trazendo para a análise uma citação do corpus discursivo.

A ação dos homens, mais precisamente da sociedade …, é característica da sua própria natureza (o termo natureza usado no sentido de essência, definindo o humano como um ser de relação com os outros e com o mundo). Somos os únicos capazes de objetivar e agir sobre o nosso meio de forma intencional, transformadora. Entretanto, como vimos, a ação seguida de transformação em escala mais significativa está reservada a poucos indivíduos, enquanto a grande maioria resta imersa na ação ingênua, mecânica e controlada ideológica e politicamente pelos “opressores”.

(Pitano & Noal, 2009Pitano, S. C., & Noal, R. E. (2009). Horizontes de diálogo em educação ambiental: Contribuições de Milton Santos, Jean-Jacques Rousseau e Paulo Freire. Educação em Revista, 25(3), 283-298. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/edur/v25n3/14.pdf
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, p. 293, grifos nossos)

Demarcamos duas enunciações nesse excerto que aparecem de maneira recorrente nos trabalhos científicos que assumem ou abordam a educação ambiental a partir de uma perspectiva crítica. Neles, o sujeito é concebido em uma visão ontológica, e a transformação socioambiental é associada a alguns seres humanos capazes de esclarecer a consciência de quem está imerso em uma consciência ingênua, ou seja: não efetivamente crítica.

A educação ambiental é abordada como um meio de entender a realidade, embasada pelo conceito de ideologia. Essa abordagem teórica investe na noção de que há algo obscurecido e ofuscado nas relações e nas contradições entre os sujeitos e a “coisa em si”. O poder é, assim, analisado sob uma ótica vertical: uns têm o domínio e, portanto, o poder sobre os outros. Nessa perspectiva, as relações estabelecidas e arraigadas no modelo capitalista de produção interferem nas questões de cunho social e ambiental. É com essa concepção que se faz necessário, segundo a perspectiva crítica:

uma práxis que possibilite desenvolver estratégias para que possamos efetivamente transformar a sociedade e, consequentemente, o meio ambiente de que somos parte, a fim de vivermos com qualidade de vida, contemplando as dimensões da cultura, da tecnologia, das ciências e do trabalho humano no sentido proposto por Marx. A partir destas ideias, a Educação Ambiental deve estar relacionada a uma transformação social na tendência de superação do atual modelo de produção.

(Nogueira & Andrade, 2014Nogueira, C., & Andrade, G. S. (2014). Fundamentos filosóficos sobre educação ambiental dos licenciandos em física do IFSul. Revista Thema, 11(1), 70-85. Recuperado de http://revistathema.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/179/112
http://revistathema.ifsul.edu.br/index.p...
, p. 76)

Os autores citados servem para mostrar o discurso retomado nos 121 trabalhos fundamentados na perspectiva crítica ora analisados. Há, assim, uma vasta produção científica no campo da educação ambiental que se embasa na crítica à sociedade capitalista, entendendo-a como a culpada pelas crises social e ambiental instauradas. A solução ou ao menos a forma de amenizar essa crise estaria no sujeito autônomo, criticamente emancipado para compreender a realidade em que vive. Com essa formação há a possibilidade de um agir coletivo em prol da transformação societária. Para essa educação se considera indispensável a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, de forma que estas sirvam como instrumento da emancipação.

A emancipação do sujeito é requerida como necessária para a educação ambiental crítica, uma vez que esta só é viável a partir de um processo formativo que considere alguns pressupostos básicos para a sua efetivação. Gustavo Lima (2011, p. 172)Lima, G. F. C. (2009). Educação ambiental crítica: Do socioambientalismo às sociedades sustentáveis. Educação e Pesquisa, 35(1), 145-163. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022009000100010&lng=pt&tlng=pt
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elenca nove características da tendência emancipatória da educação ambiental:

  • uma compreensão complexa e multidimensional da questão ambiental;

  • uma defesa do amplo desenvolvimento das liberdades e possibilidades humanas e não humanas;

  • uma atitude crítica ante aos desafios de uma crise civilizatória;

  • uma politização e publicização da problemática socioambiental;

  • um reconhecimento dos argumentos técnico-científicos, mas subordinados a um questionamento ético do conhecimento, de seus meios e fins;

  • um entendimento da democracia como pré-requisito fundamental para a construção de uma sustentabilidade plural;

  • uma convicção de que o exercício da participação social e a conquista da cidadania são práticas indispensáveis à democracia e à emancipação socioambiental;

  • um cuidado em promover o diálogo entre as ciências e entre os saberes;

  • uma vocação transformadora dos valores e das práticas contrárias ao bem-estar público.

Na leitura dos escritos acima é possível perceber que a educação ambiental é tomada pela “vontade de acertar”7 7 A “vontade de acertar” à qual se refere o autor se articula ao ordenamento dos saberes em determinado tempo histórico, o que determina o que pode ou não ser dito, instituindo, assim, o desejo de dizer o que está sendo entendido como a coisa certa (Oliveira, 2005). (Oliveira, 2005Oliveira, M. A. (2005). A construção dos enunciados ambientais no currículo, na perspectiva da vontade de verdade. Semina: Ciências Sociais e Humanas, 26(1), 71-86. Recuperado de http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/seminasoc/article/view/3798
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php...
, p. 74), pelo desejo de superar, frear, modificar e melhorar tanto sujeitos quanto sociedade. Quanto a isso, Maritza Maldonado (2001, p. 110)Maldonado, M. M. C. (2001). A ordem do discurso da educação ambiental. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Recuperado de http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/96091
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afirma que:

Os discursos da Educação Ambiental nos fizeram acreditar na possibilidade de transformação da realidade na medida em que trouxeram em seu bojo novos aspectos para serem contemplados no discurso educacional. Ele prega um saber que se pretende global, holístico, interdisciplinar, capaz de gerar sujeitos autônomos e livres para agirem em benefício do Meio Ambiente. Nesse sentido, esse discurso distribui seus efeitos de poder e verdade sobre os indivíduos, chegando até nós, professoras e professores, como possibilidade de “salvação”.

O meio pelo qual os sujeitos são entendidos e posicionados na relação com as questões ambientais mostra uma relação antagônica entre saber e poder. Antagônica porque a emancipação do sujeito ocorre mediante a superação do poder localizado no outro, o dominante, o opressor, o detentor dos meios de produção. O poder, nessa visão, precisa ser deslocado por meio de saberes que valorizem outras formas de conhecimento, que não são legitimadas pela ideologia dominante.

Eis que a interdisciplinaridade ingressa na formação discursiva do campo da educação ambiental como um meio epistemológico e metodológico de ir de encontro aos saberes que obscurecem, ideologicamente, a “realidade” social. Possibilita, assim, emancipar os sujeitos para que estes sejam socialmente participativos nas decisões que podem transformar os parâmetros políticos, éticos, econômicos, educacionais e epistemológicos que não coadunam com a perspectiva de uma sociedade mais justa, cidadã e ambientalmente sustentável. Assim, essa concepção evidencia um papel paradoxal atribuído ao saber. Maria Manuela Garcia (2002, p. 85)Garcia, M. M. A. (2002). Pedagogias críticas e subjetivação: Uma perspectiva foucaultiana. Petrópolis: Vozes. discorre sobre esse papel ao ressaltar que esses discursos:

defendem a importância da formação cultural e científica na conquista de formas superiores de existência individual e social. Concomitantemente, denunciam o uso do saber pelas classes dominantes como mistificação e ocultamento da realidade e da opressão – como ideologia. Ou seja, pressupõem a oposição entre um saber que é verdadeiro e outro que é falso.

Em sua análise arqueológica, Michel Foucault (2015a)Foucault, M. (2015a). Arqueologia do saber (8a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária. se distancia de uma abordagem epistemológica por investir na região dos saberes: “Aí, há um deslocamento importante feito pela arqueologia: da região da ciência/conhecimento passamos para a região do saber” (Henning, 2008Henning, P. C. (2008). Efeitos de sentido em discursos educacionais contemporâneos: Produção de saber e moral nas ciências humanas. Tese de Doutorado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo., p. 28). Com isso, podemos entender que um saber é formado através da regulação dos objetos aos quais se refere e dos enunciados que o definem, conceituam e transformam. A produção de um saber está condicionada às práticas discursivas que o regulam e o constituem sem, necessariamente, atribuir-lhe o status de conhecimento científico.

Referir-se a práticas discursivas nos conduz a mostrar que, para Michel Foucault (2014Foucault, M. (2014). A ordem do discurso: Aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 (24a ed). São Paulo: Edições Loyola., 2015a)Foucault, M. (2015a). Arqueologia do saber (8a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária., falar sobre um determinado objeto sob a condução de “regras de formações” (Foucault, 2015aFoucault, M. (2015a). Arqueologia do saber (8a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 47) constitui as práticas sociais permanentemente ligadas às relações de poder. As “regras de formações” não estão relacionadas à consciência dos indivíduos mas, ao contrário, estão imersas na própria condição de existência das formações discursivas que produzem um campo de saber.

Michel Foucault (2015b)Foucault, M. (2015b). Ditos e Escritos IV: Estratégias, poder-saber (3a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária. desloca a produção dos saberes da consciência do sujeito (na formação de um conhecimento ou saber verdadeiro) para a relação intrínseca entre a produção de saber e as relações de poder, estas que atuam posicionando ou não alguns saberes na ordem do verdadeiro. Podemos, com isso, entender que:

Há efeitos de verdade que uma sociedade como a ocidental, e hoje se pode dizer a sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se verdade. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdades têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam. São essas relações verdade/poder, saber/poder que me preocupam.

(Foucault, 2015bFoucault, M. (2015b). Ditos e Escritos IV: Estratégias, poder-saber (3a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 224)

Refletindo, agora, sobre as práticas discursivas fundamentadas numa perspectiva educacional crítica, é possível perceber que aos saberes é atribuída a possibilidade da emancipação de uma existência enganosa – por meio do processo de reconhecimento e de conscientização dessa condição de ingenuidade, produzida pela ofuscação da ideologia dominante. O ímpeto dessa abordagem teórica, mesmo que defenda a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, baseia-se na busca por uma verdade que não seja nem enganada e nem obscurecida pela ideologia da classe dominante. Com isso, ainda que o discurso científico não seja uma premissa única para essa perspectiva, o desejo pela verdade permanece regendo as relações entre os seres humanos (com o outro e com o meio natural).

A centralidade atribuída à conscientização do sujeito é enfaticamente abordada como meio de formar outro modo de ver o mundo, concebido como crítico (mais esclarecido e politizado). Essa ênfase se compromete com um processo de concretização que almeja a transformação social – transformação que tem por ponto de partida sair de um estado de obscuridade para alcançar, progressivamente, um estado melhor de igualdade, de harmonia e de diálogo. Determinado conhecimento é visto como forma de encontrar a verdade: “O conhecimento do mundo e sua transformação passa pela capacidade de ‘ver’ o mundo, ou melhor, de ‘re-ver’ o mundo, de procurar, de buscar e encontrar a verdade para além das aparências” (Garcia, 2002Garcia, M. M. A. (2002). Pedagogias críticas e subjetivação: Uma perspectiva foucaultiana. Petrópolis: Vozes., p. 94).

Uma das marcas da Modernidade que ainda nos pesa é o anseio de substituir algo considerado defasado, de transformar o que parece prejudicial por meio da constante busca pelo progresso. Se nos constituímos, ainda, acreditando na possibilidade de mudar algo para melhor, isso acontece porque condições históricas nos subjetivaram a pensar e agir socialmente em prol de uma tentativa incessante de progresso – seja ele econômico, educacional, sustentável ou mesmo acadêmico.

Considerações finais

A partir da análise dos trabalhos científicos selecionados é possível perceber a relação entre três eixos discursivos que constituem a educação ambiental sob a perspectiva crítica: interdisciplinaridade, emancipação e transformação. Esse posicionamento teórico trata de entender a educação ambiental olhando, pedagógica e epistemologicamente, para a complexidade das questões socioambientais por meio dos conhecimentos científicos e saberes culturais. Para tanto, o posicionamento político crítico frente à crise civilizatória deve incidir nas questões ambientais para subsidiar a conquista da liberdade dos sujeitos na ativa participação social, a qual invoca a transformação dos valores éticos, epistemológicos e filosóficos dos parâmetros sociais – estabelecidos pela objetividade da ciência moderna e pelo modelo de produção capitalista. De modo geral, é disso que trata a abordagem dos 121 trabalhos científicos mapeados sobre a “educação ambiental crítica, transformadora e emancipatória”.

Não há como negar a potência desses três eixos discursivos (interdisciplinaridade, emancipação e transformação) da perspectiva educacional crítica no norteamento de um modo específico de entender – em sentido teórico e prático – a educação ambiental. O modelo interdisciplinar marca não só um modelo pedagógico, mas também epistemológico para o campo, capaz de realizar a articulação da política, da ciência e dos mais diferentes saberes com o propósito de emancipar os sujeitos – para que estes possam, enfim, se desamarrar dos efeitos de uma ideologia e de um poder dominante para transformar a sociedade em um lugar justo, ambiental e socialmente.

A abertura da perspectiva crítica na seara educacional em nosso país, a partir da década de 1970, e posteriormente no campo da educação ambiental deu condições para que a politização e a problematização das questões ambientais (e sua decorrente educação) alargassem o modo como enxergamos o referido campo de saber. Com essa abertura, outras perspectivas teóricas se mostraram potentes para pensar os fundamentos epistemológicos e filosóficos dessa área. Portanto, outros modos de encarar e fabricar a educação ambiental vêm sendo tecidos, travados, alinhados e produzidos, evidentemente encharcados das relações de saber-poder imiscuídos nos tecidos sociais, políticos e científicos desse campo de saber. No entanto, o esforço feito neste artigo foi o de mostrar uma perspectiva teórica que compõe a educação ambiental. Tratamos de problematizar a abordagem que se tornou recorrente nas produções científicas desse campo de saber, especialmente a partir dos anos 2000. Nosso desejo foi o de demarcar como se vê e se fabrica a educação ambiental numa perspectiva de grande força e prestígio no meio educacional.

Resta evidente que tais divergências teóricas, filosóficas e epistemológicas são o que fabrica o campo de saber da educação ambiental. Nesse sentido é que o exercício de pensar sobre o que está dito se torna tão relevante, para que não recaiamos em discussões morais sobre qual posição ou qual verdade deve predominar. São os jogos de diferenças que potencializam e dão visibilidade para o campo da educação ambiental. Foi especialmente isso que buscamos mostrar, através de tensionamentos e de provocações.

  • 1
    Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Aline Maya (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Ainda que os trabalhos mapeados assumam uma perspectiva educacional crítica, esses não estão exclusivamente vinculados à teoria crítica – numa relação mais direta com os fundamentos teóricos e metodológicos dos intelectuais da Escola de Frankfurt. Assim, assumimos aqui a noção de perspectiva crítica dos ensinamentos de Tomaz Tadeu da Silva (2015)Silva, T. T. (2015). Documentos de identidade: Uma introdução às teorias do currículo (3a ed). Belo Horizonte: Autêntica., que tem como caracterizações mais gerais a politização do campo educacional, especialmente a partir da década de 1970, desejando a emancipação e a transformação dos sujeitos pela via da autonomia e do esclarecimento das consciências.
  • 4
    Ver Silva (2018)Silva, L. S. (2018). Educação ambiental e sua produção científica: Tensionamentos, relações de força e produção de verdades. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande.. Pesquisa realizada sob o escopo do Grupo de Estudos Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia (Geecaf), composto por pesquisadores dos cursos de graduação, mestrado e doutorado da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IFSul). Outras informações disponíveis na página do grupo (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/42761).
  • 5
    O termo “formações discursivas” é utilizado nos estudos arqueológicos de Michel Foucault (2015a)Foucault, M. (2015a). Arqueologia do saber (8a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária.. Trata-se de um conjunto de discursos múltiplos que se debruçam sobre um mesmo objeto que, concordantes ou não entre si, produzem um campo de saber.
  • 6
    As práticas discursivas, para Michel Foucault (2015a)Foucault, M. (2015a). Arqueologia do saber (8a ed). Rio de Janeiro: Forense Universitária., mostram a produtividade, no nível social, político e cultural, com a qual os discursos operam, fabricando modos de ser, de pensar e de viver. Trata-se de um olhar que tensiona as fronteiras dos signos e evidencia a produtividade dos discursos como práticas que fabricam os objetos sobre os quais se debruçam.
  • 7
    A “vontade de acertar” à qual se refere o autor se articula ao ordenamento dos saberes em determinado tempo histórico, o que determina o que pode ou não ser dito, instituindo, assim, o desejo de dizer o que está sendo entendido como a coisa certa (Oliveira, 2005Oliveira, M. A. (2005). A construção dos enunciados ambientais no currículo, na perspectiva da vontade de verdade. Semina: Ciências Sociais e Humanas, 26(1), 71-86. Recuperado de http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/seminasoc/article/view/3798
    http://www.uel.br/revistas/uel/index.php...
    ).

Referências

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    » http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf
  • Carvalho, I. C. M. (2012). Educação ambiental: A formação do sujeito ecológico 6a ed. São Paulo: Cortez.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2017
  • Revisado
    04 Ago 2018
  • Aceito
    26 Ago 2018
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