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EDITORIAL

[...] Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. 1 1 . OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio. Pero Vaz Caminha.Carta do Achamento do Brasil. São Paulo:Callis, p. 45, 2006.

"Salvar esta gente", a principal recomendação de Pero Vaz, ao finalizar sua carta ao El Rey, d. Manuel I, na ocasião do descobrimento do Brasil. Filho astuto de sua época, o escrivão sabia que o poder de uma nação também se media pelo número de almas tementes à fé católica e não perdeu tempo, ao avistar tanta gente pagã, em vislumbrar, nesta terra, um grande empreendimento de salvamento de almas por parte do reino católico português.

Desde então, muitas pedras da Igreja Católica rolaram. Ao longo de mais de cinco séculos, da colônia à Proclamação da República, com os seus ideais de laicidade, passando pelo longo período imperial, alternam-se, no Brasil, momentos de maior e de menor êxito da Igreja Católica nessa empreitada salvacionista. O percurso não é linear – nem jamais o foi; expõe, antes, embates e negociações que se travam entre grupos laicos e religiosos sobre a natureza da relação, no País, entre Igreja Católica e Estado, com seus gestos, ora de aproximação e afagos, ora de afastamento e rispidez, mas todos, invariavelmente, repletos de contradições.

Independentemente dos frutos colhidos pela semente lançada2 2 . De acordo com Pierucci, desde a década de 1960, observa-se, no Brasil, uma redução do número de católicos em relação ao aumento dos que se declaram evangélicos e filiados aos cultos afro-asiáticos. PIERUCCI, Antonio Flávio Bye-bye Brasil – o declínio das religiões tradicionais no Censo 2000. Estudos Avançados, São Paulo, n. 52, 2004. , o catolicismo avançou o terreno propriamente religioso, tornando-se um ingrediente importante da formação cultural no Brasil e, em consequência, tema de interesse relativamente recorrente por parte dos cientistas sociais nativos e estrangeiros.

Este número da Pro-Posições traz o dossiê "Catolicismo e Formação Cultural", coordenado por Ernesto Seidl,Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina. O dossiê, composto de cinco artigos, mostra a vitalidade das investigações em curso. Destaco, em primeiro, o fato de integrar uma rede de pesquisadores brasileiros e franceses, o que lhe confere uma dinâmica bastante promissora em termos de produção e circulação dos resultados de um projeto de pesquisa comum3 3 . Trata-se de um projeto temático financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). . Em segundo lugar, chamo a atenção para os novos olhares que os diferentes estudos lançam sobre um tema que, embora já instalado no panteão das Ciências Sociais, sempre impõe novas questões e, logo, novas investigações, em razão do caráter paradoxalmente perene e mutável da Igreja Católica e de suas múltiplas facetas e possibilidades de análise.

As estratégias das congregações católicas e os resultados de suas ações sobre a construção do espaço cultural são o denominador comum dos diferentes artigos. Pergunta-se, assim, pelos efeitos da expansão, no século XIX, do catolicismo pelo mundo. Atentos à dimensão histórica e aos diferentes contextos sociais sob análise, os autores tanto apontam para os eventos mais amplos associados à internacionalização do catolicismo – crise religiosa europeia e transformações culturais dela decorrentes –, como chamam a atenção para os movimentos internos que lhe acorriam, – a criação de congregações masculinas e femininas e as tensões advindas em torno do binômio saber/poder.

Os artigos que integram o dossiê, cada qual com sua singularidade temática, tratam, assim, de deslindar os fios e revelar as disputas entre os diferentes atores e os espaços institucionais – internos e externos ao catolicismo – que marcam os longos movimentos da Igreja Católica no mundo.

Nesse quadro maior, os artigos têm objetos específicos: os efeitos da estratégia de longo prazo de romanização católica na América Latina, com vistas à centralização e à unificação institucional a partir das diretivas da Cúria romana (Rodolfo de Roux); o complexo processo de instalação e a atuação de irmãs missionárias na Argélia, no Congo e no Taiti, o que leva à questão gênero e educação no âmbito da Igreja Católica (Rebeca Rogers); os bastidores da formação de uma instituição religiosa missionária no Brasil e das lutas de gênero em torno do acesso às formas mais prestigiadas de saber monopolizadas pelos padres sionenses (Angela Xavier de Brito); a chegada ao País dos padres saletinos, da França, mostrando, primeiro, na segunda metade do século XIX, a construção e a afirmação de uma devoção em solo francês e, depois, no início do século XX, a sua importação e as estratégias de adaptação aqui (Paula Leonardi e Letícia Mazochi); por fim, o exame dos efeitos da circulação internacional das congregações religiosas na produção editorial brasileira, revelando as diferentes lógicas acionadas pelas editoras católicas para se inserirem no mercado editorial, bem como as estratégias diversificadas das quais lançam mão em suas relações com os diferentes grupos da sociedade (Agueda Bernadette Bittencourt).

Com efeito, no contexto dos processos de expansão deflagrados pela Igreja Católica, em meados do século XIX, o Brasil revelou-se um destino promissor. A chegada de centenas de congregações estrangeiras a partir de meados do século XIX4 4 . Entre 1848 e 1960, o Brasil recebeu 368 congregações estrangeiras, conforme mostra Ernesto Seidl nesta publicação. coincide com a gestação de um grande ícone da pintura histórica brasileira.

Quem não tem plasticamente em mente a cena da "A primeira missa no Brasil", obra de Victor Meirelles de 1861? Um dos quadros mais populares do País, amplamente reproduzido em livros escolares, capas de caderno, selos, notas de dinheiro, etc.5 5 . Sobre o "amplo ciclo de vulgarização" dessa obra, ver: DURAND, José Carlos – Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1989; MELLO JR, Donato. Temas Históricos. In: ROSA, Ângelo de Proença et al. Victor Meirelles de Lima, 1832-1903. Rio de Janeiro: Pinakoteke, p. 55-102, 1982. , a pintura, como ensinam os especialistas6 6 . Ver COUTO, Maria de Fátima Morethy, Imagens eloquentes: a primeira missa no Brasil. Art/Cultura, Uberlândia, v. 10, n. 7, p.159-171, jul./dez. 2008. , foi uma sugestão do então diretor da Academia Imperial de Belas Artes7 7 . A Academia Imperial de Belas Artes foi criada em 1816, na ocasião da vinda da missão artística francesa ao Brasil. , Manuel Araújo Porto Alegre. Victor Meirelles, que, junto com Pedro Américo, faz parte da primeira geração de alunos formados pela Academia, se encontrava em Paris (ou talvez em Roma), usufruindo da bolsa de estudos financiada pelo Imperador Dom Pedro II. Em correspondências trocadas com Porto Alegre, no decorrer do ano de 1859, este lhe propôs o tema. Afeito à representação de temas voltados à exaltação nacional – o que estava em total sintonia com os ideais da Academia de iniciar um projeto civilizatório associado à construção do Estado e da nação –, Porto Alegre instigou Victor Meirelles a ler muitas vezes Pero Vaz de Caminha para "fazer uma coisa digna de si e do país"8 8 . "[....] leia cinco vezes o Caminha que fará coisa digna de si e do país [...]. " Lê caminha, ó artista, marcha à Glória!".E insiste: "Na minha última carta lhe recomendei muito a leitura da carta de Pero Vaz de Caminha, que veio com Cabral na ocasião da descoberta. Ela o inspirará". Citado por Couto, 2008, página 162, apud Mello Junior, 1982. . Tomando-a como esquema narrativo, o quadro "A primeira missa no Brasil" foi feito para "educar o povo", e a repercussão do tema no imaginário cultural brasileiro desde o século XIX é indiscutível (Couto, 2008; Durand, 1989).

Este número da Pro-Posições traz ainda cinco artigos de pesquisadores de diferentes universidades brasileiras sobre diversos temas: Silmara de Oliveira Gomes Papi (UEPG), com base em um estudo de caso em uma rede municipal de ensino do estado do Paraná, discute os fatores da história de vida que intervêm no desenvolvimento profissional de professoras iniciantes. Cintya Regina Ribeiro (USP) discute a centralidade do conhecer no campo do currículo e propõe um deslocamento do campo do conhecimento para o do pensamento, recorrendo a um artifício metodológico que atravessa a literatura de Julio Cortázar e o pensamento de Michel Foucault. Monica Caldas Ehrenberg (USP) discute, a partir de uma pesquisa qualitativa com professores, o ainda restrito e ultrapassado entendimento que estes têm sobre a Educação Física na Educação Infantil, e aponta para a necessidade de reapresentar, hoje, a disciplina em sua riqueza de sentidos e significados, a qual compreende a cultura corporal como sistematizadora da linguagem corporal. Cleber Gibbon Ratto (Unilassale) trata dos limites e das possibilidades educativas de enfrentamento do vazio existencial que, segundo ele, caracteriza o mundo contemporâneo na forma de uma cultura da imagem. Buscando ultrapassar esse estado, propõe recuperar, a partir de um encontro entre o filósofo alemão Martin Heidegger e o psicanalista inglês Donald Winnicott, novas práticas educativas que reafirmem o cuidado e a produção de sentido como opções éticas e políticas que contribuam para uma vida mais inventiva e de responsabilidade em relação ao coletivo.

Por fim, Luiz Antonio Cunha (UFF) trata do ensino religioso nas escolas públicas. Ainda que não faça parte do Dossiê "Catolicismo e formação cultural", o artigo o complementa, pois explicita a atuação dos diferentes grupos de pressão ao longo dos oito anos de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases de Educação de 1996, e ressalta o papel da Igreja Católica como a única instituição expressamente comprometida com a oferta do ensino religioso na escola pública. Somados aos demais artigos do dossiê, temos muitos subsídios que contribuem para compreender, hoje, a Igreja Católica no mundo, com seus sopros de renovação atribuída à popularidade do Papa Francisco, mas também as suas estratégias próprias em cada país. No Brasil, em especial, a sua obstinada resistência à legalização do aborto, ao casamento homoafetivo e o seu firme propósito de garantir a educação religiosa nas escolas públicas de Ensino Fundamental são questões que atualizam a sempre tão complexa e contraditória relação entre Estado e Igreja Católica ao longo dos tempos.

Na seção "Leituras e Resenhas", Lucélia de Almeida Silva e Fernanda Müller contemplam o livro de Daniela Oliveira Guimarães, Relações entre bebês e adultos na creche: o cuidado como ética, publicado pela Cortez em 2011. A resenha reitera o compromisso da Pro-Posições em relação aos estudos da infância e das crianças pequenas – e, em especial, dos bebês, como pode testemunhar o dossiê que integra o último número de 2013 –, compromisso esse que se verifica, sobretudo, no significativo volume de resenhas de livros com essa temática publicadas na revista nos últimos anos.

Por fim, a seção "Diverso e Prosa" traz o artigo "Observações preliminares sobre a percepção social do corpo", de Pierre Bourdieu, inédito no Brasil. O artigo é precedido por uma esclarecedora apresentação de Carolina Pulici aos leitores brasileiros. Publicado originalmente na revista Actes de la recherches em sciences sociales, Bourdieu já formula, neste artigo, conforme nos conta Pulici, algumas noções que se mostrariam essenciais e recorrentes em sua obra futura. Ela destaca questões que, introduzidas por Bourdieu, reaparecem de forma mais sistemática em outras obras, como em A Distinção, de 1979; A dominação masculina, de 1998; e O baile dos celibatários, de 2002. Essas questões referem-se à diferença entre o "corpo real" e o "corpo legítimo"; à distribuição desigual dos atributos corporais valorizados; ao "corpo percebido"; e à distinção como categoria construída a partir do grau de aproximação da cultura e de distância da natureza.

Importante salientar, seguindo Pulici, dois aspectos: nas "Observações preliminares", Bourdieu reforça a ideia de que toda linguagem do corpo físico, da identidade natural, do caráter constitui uma linguagem da identidade social que passa por uma naturalização para ser daí legitimada.

Não obstante, ele vai além da tese da Escola Sociológica Francesa, segundo a qual, conforme afirma Pulici, "a classificação das coisas segue de perto a classificação dos homens" (Durkheim; Mauss, 1981), ao considerar "que não apenas as propriedades corporais são produtos sociais, mas que as próprias categorias de percepção e de apreciação dessas propriedades dependem de sua distribuição entre as classes sociais". Nesse sentido, as técnicas do corpo devem, de acordo com Bourdieu, passar por uma dupla contextualização: associadas não só a contextos históricos específicos (Mauss, 1983), mas também aos usos diferenciados que, no interior de uma mesma sociedade, vinculam-se à trajetória social de seus integrantes.

Mais nada direi para não prejudicar o sabor da leitura desse artigo inédito de Bourdieu para os brasileiros e da instigante apresentação de Carolina Pulici, ambos os textos impecavelmente traduzidos por Ana Maria Almeida.

HELENA SAMPAIO

Errata

No v.25, n.1 (73) jan./abr. 2014, na página 15, a filiação institucional correta do Prof. Ernesto Seidl, citado no editorial, é Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina.

  • 1 OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio. Pero Vaz Caminha.Carta do Achamento do Brasil. São Paulo:Callis, p. 45, 2006.
  • 2 . De acordo com Pierucci, desde a década de 1960, observa-se, no Brasil, uma redução do número de católicos em relação ao aumento dos que se declaram evangélicos e filiados aos cultos afro-asiáticos. PIERUCCI, Antonio Flávio Bye-bye Brasil o declínio das religiões tradicionais no Censo 2000. Estudos Avançados, São Paulo, n. 52, 2004.
  • 5. Sobre o "amplo ciclo de vulgarização" dessa obra, ver: DURAND, José Carlos Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1989;
  • 6. Ver COUTO, Maria de Fátima Morethy, Imagens eloquentes: a primeira missa no Brasil. Art/Cultura, Uberlândia, v. 10, n. 7, p.159-171, jul./dez. 2008.
  • 1
    . OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio. Pero Vaz Caminha.Carta do Achamento do Brasil. São Paulo:Callis, p. 45, 2006.
  • 2
    . De acordo com Pierucci, desde a década de 1960, observa-se, no Brasil, uma redução do número de católicos em relação ao aumento dos que se declaram evangélicos e filiados aos cultos afro-asiáticos. PIERUCCI, Antonio Flávio Bye-bye Brasil – o declínio das religiões tradicionais no Censo 2000.
    Estudos Avançados, São Paulo, n. 52, 2004.
  • 3
    . Trata-se de um projeto temático financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • 4
    . Entre 1848 e 1960, o Brasil recebeu 368 congregações estrangeiras, conforme mostra Ernesto Seidl nesta publicação.
  • 5
    . Sobre o "amplo ciclo de vulgarização" dessa obra, ver: DURAND, José Carlos –
    Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1989; MELLO JR, Donato. Temas Históricos. In: ROSA, Ângelo de Proença et al.
    Victor Meirelles de Lima, 1832-1903. Rio de Janeiro: Pinakoteke, p. 55-102, 1982.
  • 6
    . Ver COUTO, Maria de Fátima Morethy, Imagens eloquentes: a primeira missa no Brasil.
    Art/Cultura, Uberlândia, v. 10, n. 7, p.159-171, jul./dez. 2008.
  • 7
    . A Academia Imperial de Belas Artes foi criada em 1816, na ocasião da vinda da missão artística francesa ao Brasil.
  • 8
    . "[....] leia cinco vezes o Caminha que fará coisa digna de si e do país [...]. " Lê caminha, ó artista, marcha à Glória!".E insiste: "Na minha última carta lhe recomendei muito a leitura da carta de Pero Vaz de Caminha, que veio com Cabral na ocasião da descoberta. Ela o inspirará". Citado por Couto, 2008, página 162, apud Mello Junior, 1982.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014
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