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Saberes docentes em formação: a pesquisa e a prática de ensino nas licenciaturas em Ciências Biológicas e História

Building up teachers' knowledge: the research and teaching practice in pre-service Biology and History teacher education

Resumos

O artigo está estruturado em torno de três categorias - o conhecimento, as práticas docentes e as razões da escola - que orientam a exploração de relatórios de licenciandos de Ciências Biológicas e de História no contexto das Práticas de Ensino. As demandas dos licenciandos em torno da compreensão acerca das diferenças do conhecimento acadêmico, quando comparado ao conhecimento escolar, são discutidas. O artigo focaliza ainda as práticas docentes, na perspectiva dos licenciandos, evidenciando tanto suas tentativas de compreendê-las quanto sua rejeição aos motivos e aos métodos empregados pelos professores da escola. Por fim, trata das expectativas dos licenciandos sobre a escola, do esforço necessário para compreendê-la, a despeito de uma perspectiva detratora da realidade escolar.

saberes docentes; formação de professores; licenciaturas em Ciências Biológicas e História


The article is organized into three categories - knowledge, teaching practices and school reasons - which guide the analysis of the reports produced by future Biology and History teachers in the context of their pre-service education. The needs of the future teachers related to their understanding about the differences between academic knowledge and school knowledge are discussed. The article also focuses on teaching practices under the perceptions and efforts of the future teachers not only when they try to understand these practices but also when they reject teachers' motives and methods employed by them at school. At last, the article addresses future teachers' expectations related to the school and the necessary efforts to understand it, despite the negative perspective of the school context.

teachers' knowledge; pre-service Biology and History teacher education; teaching practice


DOSSIÊ "ENTRE SABERES E PRÁTICAS DOCENTES"

Saberes docentes em formação: a pesquisa e a prática de ensino nas licenciaturas em Ciências Biológicas e História

Building up teachers' knowledge: the research and teaching practice in pre-service Biology and History teacher education

Sandra Escovedo SellesI; Everardo Paiva de AndradeII

IProfessora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Campus do Gragoatá, Niterói, RJ, Brasil. escovedoselles@gmail.com

IIProfessor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Campus do Gragoatá, Niterói, RJ, Brasil. everardo_andrade@uol.com.br

RESUMO

O artigo está estruturado em torno de três categorias - o conhecimento, as práticas docentes e as razões da escola - que orientam a exploração de relatórios de licenciandos de Ciências Biológicas e de História no contexto das Práticas de Ensino. As demandas dos licenciandos em torno da compreensão acerca das diferenças do conhecimento acadêmico, quando comparado ao conhecimento escolar, são discutidas. O artigo focaliza ainda as práticas docentes, na perspectiva dos licenciandos, evidenciando tanto suas tentativas de compreendê-las quanto sua rejeição aos motivos e aos métodos empregados pelos professores da escola. Por fim, trata das expectativas dos licenciandos sobre a escola, do esforço necessário para compreendê-la, a despeito de uma perspectiva detratora da realidade escolar.

Palavras-chave: saberes docentes; formação de professores; licenciaturas em Ciências Biológicas e História.

ABSTRACT

The article is organized into three categories - knowledge, teaching practices and school reasons - which guide the analysis of the reports produced by future Biology and History teachers in the context of their pre-service education. The needs of the future teachers related to their understanding about the differences between academic knowledge and school knowledge are discussed. The article also focuses on teaching practices under the perceptions and efforts of the future teachers not only when they try to understand these practices but also when they reject teachers' motives and methods employed by them at school. At last, the article addresses future teachers' expectations related to the school and the necessary efforts to understand it, despite the negative perspective of the school context.

Key words: teachers' knowledge; pre-service Biology and History teacher education; teaching practice.

1. A construção de saberes no estágio docente

A formação docente para as disciplinas da Educação Básica vem sendo investigada sob múltiplos aspectos no âmbito da pesquisa educacional. Neste trabalho, deseja-se destacar uma tendência que se contrapõe a perspectivas mais prescritivas, a partir da convergência entre contribuições do campo do currículo e a problemática dos saberes docentes (Selles; Ferreira, 2009). Uma importante frente dessa contraposição apoia-se, sobretudo, na leitura dos registros e dos relatos de licenciandos em contextos de prática de ensino (Vilela; Selles; Andrade, 2009). Imersos nas escolas por conta de uma proposta pedagógica que argumenta em favor das atividades do estágio nessas instituições, futuros professores, protagonistas deste estudo, interrogam a si e ao contexto, procurando respostas para perguntas ainda nebulosas e obscuras. Iniciam-se, dessa forma, na produção de conhecimentos nem sempre reconhecidos como tal.

Do mesmo modo, formadores de professores desafiam-se a articular espaços - Universidade e Escola - e saberes - ensino escolar, acadêmico e pesquisa -, interrogando-se sobre as múltiplas dimensões da profissionalidade docente. A cada período letivo, acolhem um volume considerável de produções de licenciandos, cuja característica comum é a marca da escola, tensionando as experiências do currículo acadêmico. O presente trabalho traduz os embates e as preocupações de formadores que se debruçam sobre relatos de licenciandos, depois de se debruçar com eles no momento mesmo de sua produção: buscam compreender e sistematizar aquilo que suas perspectivas oferecem em benefício da formação de outrem, mas também, num certo sentido, da formação dos próprios formadores.

Retomando esses relatos e relendo-os, o texto procura desdobrar uma problematização iniciada em outro momento (Selles; Andrade; Salomão, 2010), dando sequência a um problema de pesquisa que afeta os pressupostos mesmos do estágio como instância estratégica do trabalho formativo. Remetendo a condições inerentes às práticas escolares e docentes que favorecem a contraexperiência e a desprofissionalização, a questão foi originalmente apresentada da seguinte forma:

1ª) Como perseverar no reconhecimento da importância crítica da escola e da docência, [...] se muitas vezes no campo de estágio eles são confrontados com ambientes, circunstâncias e modelos francamente desfavoráveis à profissionalização e à valorização do magistério? 2ª) Como enfrentar as contradições decorrentes do fato de que as mesmas boas fontes do saber experiencial docente às vezes constituem fatores de contra-experiência e motivo de desinvestimento na profissão? (Selles; Andrade; Salomão, 2010, p. 1).

O presente artigo aprofunda uma reflexão de formadores sobre os sentidos produzidos por formandos acerca da ambiguidade que se observa entre a importância crítica da escola e da docência e os fatores de contraexperiência, desestímulo e desinvestimento profissional. Do ponto de vista metodológico, os relatos dos licenciandos foram produzidos no interior do componente Pesquisa e Prática de Ensino do currículo formativo1 1 . Ao todo, 13 relatos de licenciandos em Ciências Biológicas e 32 em História, ou seja, 45 relatórios, produzidos no segundo semestre de 2010. O procedimento de análise consistiu na leitura sistemática desses relatos, orientada por um conjunto de três categorias: o conhecimento, as práticas docentes e as razões da escola. Para fins de codificação, atribuímos aos relatos as siglas RB1, RB2, etc. e RH1, RH2, etc., respectivamente, aos relatórios dos licenciandos de Ciências Biológicas e de História. , oferecido pela Faculdade de Educação a todas as licenciaturas da Universidade Federal Fluminense. O texto estrutura-se em torno de três categorias - o conhecimento, as práticas docentes e as razões da escola - que orientam a exploração dos relatos. Para cada categoria, a despeito de inúmeras referências encontradas nos relatos, foi selecionado um fragmento no qual o licenciando tivesse deixado fluir seu argumento, discutido no âmbito das questões teóricas de interesse para a problemática da pesquisa.

2. Conhecimento ou de como não sair jamais do impasse

O licenciando RB5 vivenciou em uma escola federal um impasse talvez não de todo incomum entre estagiários: podem, afinal, o interesse e a curiosidade dispersiva dos alunos pôr em risco a dedicação em profundidade ao tema ou assunto da aula? O que deve fazer o professor: representar e traduzir a urgência e o compromisso com o conhecimento ou interpretar pedagogicamente as demandas dos alunos?

Interessa aqui a dinâmica da relação que o estagiário vai construindo com o conhecimento escolar. Cabe perguntar se ele considera que os conteúdos de ensino representam um dado, uma construção externa expressa por intermédio do professor (na perspectiva da relação de exterioridade com os saberes, em especial o saber disciplinar, de que trata Tardif, 2002); ou se, pelo contrário, o conhecimento é construído na dinâmica interna da própria ação docente; se ele é transcendência ou imanência em relação a essa mesma ação. Em se tratando da natureza do conhecimento, cabe também perguntar se o licenciando percebe uma referência única - a disciplina científica ou acadêmica - ou referências plurais para o saber escolar. Se ele expressa a voz da ciência no ambiente da escola ou se reúne múltiplas vozes legitimadas socialmente, constituindo um objeto cultural heterogêneo, dotado de um estatuto epistemológico próprio e, portanto, sujeito a uma nova legitimação, agora escolar.

Interessa ao formador refletir sobre a especificidade do conhecimento escolar e a indissociabilidade entre conteúdo e pedagogia (Chervel, 1990), evitando a dicotomia entre conteúdos e métodos no ensino das disciplinas escolares e entre uma dimensão apenas técnica e outra, "intelectual crítica e complexa" (Contreras, 2002, p. 84), de seu trabalho de professor em formação. Desde quando, afinal, juízos e decisões profissionais, reflexão sobre a própria prática e seu contexto, além de envolvimento emocional e afetivo, deixam de configurar, no entendimento do licenciando, dimensões separadas do conhecimento escolar de sua área específica e de referir-se a aspectos contextuais externos do conhecimento em condições escolares?

Interessa, enfim, ao formador e à formação reconhecer até que ponto a afirmação de que "o professor não só instrui, ele também educa" (Gauthier et al., 2006, p. 174) pode contribuir para a reiteração de uma concepção dicotômica não apenas da relação entre conteúdo e método, como também do nexo entre o ensino e suas justificativas mais gerais. O fragmento a seguir, extraído do relatório de RB5, explicita os elementos dessas reflexões:

Decidi focalizar um assunto que ocupou meus pensamentos em vários momentos durante a experiência do estágio: a curiosidade dos alunos sobre os assuntos abordados. Ficou claro, ao cabo de poucas aulas, que os alunos das turmas assistidas são muito participativos, curiosos e interessados nos temas, disso não há dúvida. E isso é muito positivo! Porém, comecei a perceber que também gera problemas importantes, pelo menos do meu ponto de vista, pois muitas vezes essas curiosidades extrapolam o tema da aula, em sua profundidade; também, às vezes, há questionamentos que aparentemente são sobre a aula, mas percebemos que, na verdade, só usam o tema como base, tratando-se de outro assunto. [...] O problema para mim é que geralmente esses questionamentos parecem muito pertinentes de serem discutidos, em termos de conhecimento, em termos de cidadania, de ética inclusive. Tantas abordagens que me vêm à mente quando escuto as perguntas feitas à professora, e percebo que são impossíveis de responder sem perder o fio do assunto na aula. [...] Fiquei muitas vezes nesse impasse.

As perguntas são incontornáveis, em si mesmas e como referências decisivas para a curiosidade e o interesse; logo, para a aprendizagem dos alunos; não obstante, por inoportunas, atrapalham o curso do ensino dos conhecimentos. A professora ignorava ou dava respostas evasivas, prosseguindo, assim, comprometida com o ensino do conhecimento desvinculado de sua relevância social, mesmo ao risco de perder a motivada participação dos alunos; obviamente, ela também não levava suficientemente em conta o fato de que as desejáveis apropriações dos alunos não ocorrem no vazio, ou num improvável esquema compartimentado, que reserva espaço prévio para todas as possíveis novas aquisições dos sujeitos; devem, pelo contrário, negociar um lugar entre suas concepções mais gerais. O licenciando acompanha, perplexo, o desenlace dos acontecimentos: (i) no início, tende a condenar a intervenção dispersiva dos alunos; (ii) em seguida, reconhece a pertinência e a legitimidade de seus questionamentos; (iii) tenta compreender e justificar a atitude da professora, embora sinta o desconforto; até que, (iv) finalmente, sem uma resposta definitiva, admite o impasse.

Transcendência ou imanência do conhecimento em face da ação docente? Referência externa única ou plural para o conhecimento escolar? Especificidade e autonomia epistemológica ou mera aplicação de saberes adaptados aos imperativos escolares? Indissociabilidade entre conteúdo e pedagogia, ou às didáticas cabe prover os melhores métodos para cada área do saber? Dimensão apenas técnica ou também intelectual e crítica, no trabalho dos professores? Instruir e/ou educar por meio das disciplinas escolares? Tais são os questionamentos, de alguma forma, presentes no percurso do licenciando, para os quais o tornar-se professor demandará, ainda que tardiamente, soluções adequadas.

3. Práticas docentes: entre esta escola e a outra e esta professora e a outra

O conjunto das observações do licenciando RB7 em um colégio da rede pública estadual, embora apontasse na direção das práticas docentes, assumiu uma dupla focalização: ora contemplava o problema da avaliação, seus dispositivos formais, como as provas (e, para além deles, aqueles subterfúgios utilizados tanto por alunos quanto por professores para darem conta da contingência de seus respectivos papéis - a cola e os pontos extras, por exemplo); ora se interessava pelos problemas inerentes à profissão: o cansaço da professora, suas aulas expositivas e conteudistas, sua falta de domínio da turma, etc.

Percebem-se qualidades docentes ideais ou contingentes, prevalecendo nesses registros de licenciando? Pensaria ele com base em um modelo idealizado e único de docência, estabelecido a partir de perspectivas dedutivistas, de concepções e modelos teóricos abrangentes e de padrões universais e a-históricos; ou, inversamente, consideraria a docência a partir dela mesma, de métodos e padrões historicamente contingentes, implícitos nas práticas e nas atividades dos professores? Interessa, aqui, ao formador, compreender se o estagiário procura no professor da escola qualidades ideais fixas ou se demonstra o desenvolvimento, em trânsito, de sensibilidade para compreender o contingente, expresso nas demandas concretas decorrentes do trabalho educativo, nele situando o dado da observação.

No fragmento abaixo, soluções negociadas no cotidiano da sala de aula, tendo em vista a gestão da classe e dos conteúdos (cujo nó parece residir numa estratégia pactuada de avaliação, e não num desafio que emana, sem mediações, da esfera do conhecimento), tendem a ser duramente criticadas e denunciadas pelo licenciando, como uma espécie de "pacto" que interessa a ambos os lados, devidamente chancelado pela instituição escolar e, em última instância, pelo poder público:

[...] são provas realizadas somente para constar como uma avaliação, visto que não testam o que o aluno assimilou do conteúdo e sim o que ele decorou, principalmente, pois essas são provas mais simples de se corrigir. Através deste quadro pode-se começar a perceber o perfil da professora em relação ao conteúdo escolar e a relação com a escola, pois esta forma de avaliação permite que ela não se preocupe em preparar as provas [...], e o fato de haver tanto ponto extra (permite) que nenhum aluno necessite das aulas, uma vez que eles concluirão a matéria e passarão mesmo sem aprender. [...] Durante os momentos das provas todos os alunos "colam" e ela declara, dentro da própria sala, que não enxerga, ou seja, esse método é apenas para constar uma vez que a prova é quase realizada em um único grupo. Os poucos momentos que eles ficam prestando atenção na aula foram durante as correções dos exercícios onde a professora ameaçava os alunos retirando pontos daqueles que não participavam [...]. A professora retirava o ponto, mas logo em seguida dava de novo e esse ciclo só se repetia no decorrer da aula.

O segundo fragmento, a seguir, aparentemente contraditório, critica a aula expositiva e conteudista da professora, talvez pelo fato de que ela esteja obedecendo a uma lógica muito estritamente disciplinar, alheia a tradições mais utilitárias e pedagógicas inerentes ao ensino de sua disciplina. A professora não se prepara para desenvolver e estimular o interesse e a curiosidade dos alunos, embora, em alguns momentos, ela procure contextualizar o assunto trabalhado. Por outro lado, o relato aponta também para um inventário de faltas que marca a relação entre professores e alunos: falta de estímulo do professor e falta de domínio de turma, refletindo, como que no espelho da aula, a falta de interesse e de respeito dos alunos.

As aulas da professora são sempre expositivas e [...] conteudistas.[...] Ela procurou, em alguns momentos, contextualizar os assuntos trabalhados em Biologia com temáticas vividas pelos alunos [...] como, por exemplo, o aborto. O que mais chamou a atenção foi a falta de domínio de turma, pois os alunos não prestam atenção ao que ela fala e há uma enorme falta de respeito. O que pode ser observado em conversas com a própria professora é o tempo que ela dá aula em escolas, que excede 30 anos, mostrando que devido, também, ao cansaço e à falta de estímulo em mudar essa estrutura de aulas, ela está acomodada a esta maneira de "ensinar". Toda esta bagagem me proporcionou uma reflexão quanto à relação professor-aluno, uma vez que em determinados momentos a professora se mostrou realmente muito cansada com toda a carga de provas para corrigir e das aulas que deveriam ser ministradas, porém não justifica o fato de suas aulas não possuírem nenhum tipo de preparação prévia para desenvolver a curiosidade e o interesse do aluno.

Qual o limite, afinal, estabelecido pelo licenciando, entre o contingente e necessário e o eticamente crítico e inaceitável? Nem padrões totalmente fixos, nem contingência radical; nem compreensão, nem prescrição, em termos absolutos, embora prevaleça iniludivelmente um tom desfavorável e desqualificador em relação à escola, compreensível, talvez, quando o sujeito se encontra imerso no cotidiano de afazeres acadêmicos, lidando com teorizações e objetos idealmente construídos. Talvez seja este o grande desafio posto à Prática de Ensino. Diante do cansaço, do desestímulo e da falta de interesse da professora, às voltas com o excesso de aulas e o tanto de tempo de trabalho, no quadro de precarização do magistério público; em razão da desatenção e do desrespeito dos alunos, cujas aprendizagens são também desatendidas e desrespeitadas, o estagiário reflete... Parece vislumbrar outra escola, das verdadeiras e significativas aprendizagens, das aulas bem preparadas, dos assuntos adequadamente contextualizados, da cuidadosa atenção à curiosidade e ao interesse dos alunos, onde o ensino certamente será melhor.

4. Razões da escola: o insondável, o inesperado e o desconcertante

Por motivos alheios a sua vontade, o licenciando RH4 enfrentou dificuldades em seu período de estágio. Logo no início, o professor que acompanhava na escola pública se afastou, e a coordenação solicitou, a título de colaboração, que ele assumisse temporariamente a turma. Entre dizer simplesmente que o papel de estagiário não lhe permitia isso e a curiosidade de investir-se das funções docentes, aliado, talvez, a uma forte confiança nas próprias capacidades e nas qualidades proclamadas do curso que estava em vias de concluir, acabou concordando. Embora a responsabilidade pessoal de RH4 tivesse feito com que ele permanecesse por cerca de duas semanas regendo as turmas, as impressões não foram nada alvissareiras. Pouco depois, desgastado e triste, solicitou autorização ao orientador para que se transferisse de escola, convencido da impossibilidade não só de ensinar sua matéria àqueles alunos, mas também de permanecer na companhia deles.

Distanciando-se de uma concepção de escola mergulhada na inércia e na rotina, a questão que se coloca consiste em saber se os estagiários - cuja formação universitária desenvolve, de forma mais ou menos sistemática, um habitus de pesquisador, sobretudo na área específica de conhecimento - leem a linguagem e perscrutam o imaginário dessa cultura da escola, compreendendo a configuração particular dos conteúdos cognitivos e simbólicos da cultura escolar; ou, ainda, se eles incluem, nas suas próprias referências, condicionando e modelando sua capacidade de observação, elementos de uma razão da escola, que lhes permita compreender o sistema pedagógico, isto é, as relações entre o professor, o aluno e o conhecimento?

A escola ainda parece conter algo de misterioso em seu funcionamento, um quê de insondável e de inesperado: o que explica que, depois de três turmas pacíficas e produtivas, surja uma, nas mesmas condições, na mesma escola, cujo comportamento é anárquico e refratário a qualquer disciplina, diametralmente o oposto das anteriores? Pelo contrário, o que explica o aparecimento de uma turma genial e dedicada em meio a uma escola incontrolável? Não é impressionante que aquele rapaz ou moça que sempre demonstrou total apatia em sala de aula e notas baixíssimas, de repente, demonstre uma habilidade fora de série, digamos, para a música ou o desenho? As surpresas podem ser boas ou ruins, mas o novo professor precisa estar preparado para lidar com elas; pois elas aparecem, sempre dispostas a furar as teorias pedagógicas consolidadas. Leve suas teorias, elas vão ajudar: no entanto, prepare-se para reformulá-las ou, no limite, abandoná-las provisoriamente em favor de soluções particulares. [...] A experiência de ministrar aulas no colégio [...] me fez sentir

in loco

como funcionam os mecanismos de poder em sala de aula, e de como crianças aparentemente inocentes, repentinamente, passam a demonstrar malícia e sutileza no jogo do poder que nós mesmos podemos não detectar, às vezes. Consciente de que se trata de uma experiência particular, [...] eu tive muita dificuldade ao tentar abandonar práticas disciplinares que considero severas e estúpidas. Descobri que, sem elas, pode-se perder o controle de uma turma habituada a tais procedimentos. Na verdade, muitas vezes eles pediam para que os procedimentos fossem aplicados. A revelação de que o prisioneiro libertado anseia em retornar aos dias no presídio é desconcertante.

Que referências lhe parecem inaceitáveis? Na sequência do relatório, RH4 esboça uma comparação entre as duas escolas que frequentou durante o estágio. Considera que elas são basicamente semelhantes em sua estrutura física e nos recursos disponíveis, ou que os professores têm uma formação bastante próxima; distingue-as o público a que servem. O professor precisa estar preparado, registra o estagiário em seu texto, mas preparado exatamente para quê? Para as surpresas, boas ou ruins, para lidar com as surpresas que desafiam as teorias ou que, no limite, as tornam provisoriamente descartáveis, em favor de soluções particulares. O aspecto mais crucial de seu registro é, basicamente, aquele expresso com toda crueza no fragmento acima: o imperativo do poder como último e indispensável recurso para impor ou restaurar o controle do professor sobre a turma e, enfim, ensinar algo. Parece ter sido esse o limite que RH4 não pôde ultrapassar, ou melhor, que talvez tenha decidido não negociar, reiterando seus próprios critérios para o que é criticamente aceitável e eticamente justificável: decidiu abandonar esse, mas não o estágio.

5. Aprendizagens discentes: à guisa de conclusão

Para além das categorias investigadas aqui, expressas nos relatos e referenciadas na literatura, revelou-se importante, no curso das análises, a explicitação das expectativas dos licenciandos e do modo como concebem sua concretização, ou seja: (i) a relação do estagiário com o próprio estágio e as aquisições que ele considera importantes em seu percurso formativo; (ii) sua elaboração das aprendizagens, ou melhor, suas conclusões a partir das vivências do estágio, tendo em vista seu futuro profissional; e (iii) suas experiências com a docência, na medida em que costuma confrontá-las com os professores acompanhados no estágio. É possível que sensíveis diferenças entre estilos profissionais se encontrem em plena urdidura entre licenciandos; e que essas diferenças não façam senão crescer ao ritmo e ao modo particular como constroem suas respectivas identidades docentes, ainda que todos tenham a aproximá-los a mesma universidade formadora (e a distinguir e afastar as idiossincrasias inerentes às suas respectivas disciplinas escolares).

Outro licenciando, RB8, insiste na aprendizagem que se estabelece por meio da socialização e implica na construção de um habitus, acreditando no potencial formativo das interações, das práticas e dos saberes experienciais. Percebe e proclama neles uma objetividade quase palpável, de modo que as aulas que lhe possibilitam aprender, as trocas de experiências e de vivências, resultem num sentimento líquido adquirido, de companheirismo e de coletividade.

Vejo claramente a importância desse espaço e enxergo em mim mesmo, tanto em meus atos quanto meus pensamentos, o resultado da construção que se deu ao longo desse ano no meu processo de aprendizagem. Um dos fatores mais importantes a que atribuo esse valor é a utilização do espaço para trocas de experiência, para troca das vivências de cada aluno em seus estágios, seja formalmente no espaço de aula ou mesmo informalmente, na conversa com o outro.

De modo quase inverso, aprender a ser professor tem sido, para RH4, um ato de raciocínio e uma expressão de pensamento, articulando arsenais teóricos e experiências práticas de estágio, compartilhando com os colegas e também observando ativa e interessadamente, distinguindo culturas escolares plurais, ao tempo em que contempla abstratamente o conceito de escola. Dessa forte articulação teoria-prática virá, por fim, a necessidade de compreender os mecanismos de produção e reprodução da cultura escolar, uma aquisição de estagiário e também um projeto profissional, de sobrevivência docente.

Articulando o arsenal teórico da disciplina com a experiência do estágio, foi possível constatar a existência de distintas culturas escolares, mas ao mesmo tempo algo que há de comum em todas elas, partilhado por todos aqueles que já passaram por uma escola um dia, e cujo conhecimento é rapidamente introjetado. Esta cultura escolar única e partilhada por todos refere-se a uma escola ideal, um conceito abstrato de escola. A experiência de estágio, aliada às discussões teóricas, apontou para a necessidade de se estudar os mecanismos de produção e reprodução da cultura escolar, quais sejam: projeto político-pedagógico, formação do currículo, mecanismos de tomada de decisão dentro da comunidade escolar, acesso à informação etc.

As expectativas dos licenciandos e os sentidos construídos em suas experiências reais parecem desafiar constantemente suas idealizações sobre as práticas escolares, colocando-os face a face com aspectos críticos da profissionalidade docente. Se, nos registros que fazem, expõem desejos e demandas por práticas e profissionais idealizados, também não deixam de evidenciar o indesejado, o eticamente inaceitável, implícito em condicionantes das práticas docentes, o que limita suas possibilidades de entendimento sobre a profissão. Parece útil às análises aqui empreendidas o recurso ao conceito de profissionalidade (Contreras, 2002, p. 75), referindo-se não a qualidades fixas, incluídas num catálogo de "bom professor", mas a "qualidades da prática profissional dos professores em função do que requer o trabalho educativo", dependendo, pois, da concepção de ensino que se leva em conta; no caso, um jogo de "práticas aninhadas" em que tomam parte, além de fatores individuais, também outros, "históricos, culturais, sociais, institucionais e trabalhistas" (Contreras, 2002, p. 75).

Os eixos de análise propostos conferem centralidade aos imperativos formativos de uma profissionalidade docente em construção, expondo as dificuldades das experiências que contrariam expectativas dos futuros professores, mas também abrindo espaço para as mediações entre formadores e licenciandos, desconstruindo idealizações e ampliando possibilidades de construção de um ethos profissional. Isso porque as experiências vividas reiteram a natureza interativa do magistério, remetendo as relações entre professores e alunos não somente ao nível do domínio da classe, mas também às perícias dos docentes, relativas ao que ensinam, a como ensinam e a como regulam as atividades decorrentes do ensinar. Sugere-se que o conhecimento acadêmico-universitário é constantemente reavaliado no interior da sala de aula pelos futuros docentes. A impossibilidade de que esteja plenamente exposto e trabalhado no espaço escolar provoca os licenciandos a esboçar formas de mediação para o que, até há pouco, consideravam intocável. Ao travarem contato com outra modalidade de conhecimento - o conhecimento escolar -, mais uma de suas idealizações precisa ser revisitada.

Recebido em 3 de abril de 2012 e aprovado em 17 de agosto de 2012.

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    . Ao todo, 13 relatos de licenciandos em Ciências Biológicas e 32 em História, ou seja, 45 relatórios, produzidos no segundo semestre de 2010. O procedimento de análise consistiu na leitura sistemática desses relatos, orientada por um conjunto de três categorias: o conhecimento, as práticas docentes e as razões da escola. Para fins de codificação, atribuímos aos relatos as siglas RB1, RB2, etc. e RH1, RH2, etc., respectivamente, aos relatórios dos licenciandos de Ciências Biológicas e de História.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Abr 2012
    • Aceito
      17 Ago 2012
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