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Duas dinâmicas, dois resultados: a Igreja Católica na Assembleia Nacional Constituinte 1987-19881 1 Apoio: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - processo 99999.003551/2015-06; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - processo 1414702014-5; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - processo 2014/032.03-2

Two dynamics, two results: The Catholic Church in the Brazilian National Constituent Assembly 1987-1988

Resumo

Na década de 1980, recém-saído da ditadura, o Brasil estava em plena revisão de seus quadros jurídicos e políticos. A Assembleia Nacional Constituinte 1987-88 (ANC) foi um momento-chave, uma vez que originou a Constituição Federal em vigência. Este artigo repercute uma pesquisa que examinou os grupos de interesse inscritos na ANC, especialmente a Igreja Católica. À época dirigida por religiosos engajados na Teologia da Libertação, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, principal organismo da Igreja, defendia a realização da reforma agrária e a promoção dos direitos infantojuvenis. Assim, foram inspecionadas as dinâmicas dos agentes católicos em espaços com diferentes características políticas: Subcomissão da Reforma Agrária e Subcomissão do Menor. Estabeleceram redes de colaboração, mas também enfrentaram resistências de grupos tradicionalmente assentados no espaço político. Ainda que conste a laicidade republicana, os resultados mostraram que a instituição religiosa agiu, com grande peso, sobre as estruturas do Brasil contemporâneo.

Palavras-chave
assembleia nacional constituinte 1987-88; CNBB; Nova República; reforma agrária; direitos infantojuvenis

Abstract

In the 1980s, after the military dictatorship, the Brazilian legal and political framework was being reviewed. The National Constituent Assembly (ANC – Assembleia Nacional Constituinte), that happened between 1987 and 1988, was the key moment for the establishment of the current Federal Constitution. This paper analyses the role of the Catholic Church in the ANC. By that time, the Brazilian Conference of Bishops (CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) was the leading sector of the Church and was strongly related to the Liberation theology, a group which stood up for children’s rights and land reform. This survey examines the dynamics of the catholic agents in the ANC within two different political spaces: (1) the Subcommittee of Land Reform and (2) the Subcommittee of Minors. In both cases, the catholic agents established collaborative networks and resisted other interest groups that were traditionally settled in the political arena. Results have shown that despite republican secularism, the Church played an important role in the development of contemporary Brazilian political structures.

Keywords
1987-88 National Constituent Assembly; CNBB; New Brazilian Republic; land reform; children’s rights

Introdução

A distensão da ditadura trouxe para o centro dos debates políticos agentes e agências que mobilizaram as bases da Nova República brasileira. A partir de 1970, militantes, políticos, religiosos e intelectuais buscavam caminhos para recuperar a democracia, afirmar os direitos humanos, ampliar os direitos sociais, dentre outras garantias. Trata-se do momento da anistia, das greves, da reorganização partidária, dos grandes comícios, do projeto Brasil, nunca mais, da Aliança Democrática, das Diretas Já e da intensa mobilização pública contra o autoritarismo dos governos militares. A Assembleia Nacional Constituinte (ANC), realizada entre 1987 e 1988, foi momento-chave deste processo, uma vez que seu resultado, a Constituição em vigência, reorganizou política e juridicamente o País. Para tanto, contou com a participação de diferentes grupos, muitas vezes em concorrência, dentre os quais a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), organismo da Igreja Católica que reivindicava sua posição dentro do Estado Nacional, ainda que pese a laicidade republicana.

Este artigo repercute parte dos resultados obtidos em doutorado cujo objetivo foi examinar as dinâmicas dos grupos de interesse na Constituinte, especialmente a CNBB. A partir das atas de reunião publicadas nos Diários da Assembleia Nacional (DANC), foram constatadas as estratégias adotadas para imprimir suas visões de mundo na Lei Magna. Foram selecionados dois espaços com características distintas: a Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso (Sub. 8c) e a Subcomissão de Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária (Sub. 6c), em que os católicos obtiveram resultados desiguais, conforme suas tentativas. Controlaram os debates sobre assuntos com os quais estavam habituados, como a infância e a família; já nas novas bandeiras, como a realização da reforma agrária, sem consenso nem mesmo dentro da própria instituição religiosa, grupos ligados aos setores econômicos tiveram vantagem, inviabilizando a agenda política pretendida pelos dirigentes da Conferência. O primeiro tema é tradicional da Igreja, enquanto o segundo pode ser associado aos grupos que ganharam visibilidade com a luta contra a ditadura e em nome dos direitos humanos (Wohnrath, 2017Wohnrath, V. P. (2017). Constituindo a Nova República: agentes católicos nas dinâmicas da Assembleia Nacional 1987-88. Tese de Doutorado em Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).

Esse recorte temático respondeu aos estudos preocupados com as relações entre Estado Nacional e Igreja Católica ao longo da nossa história republicana. Bastante centrada na cooptação e no treinamento dos prelados, e em aspectos institucionais mais amplos, a literatura mostra como as disputas se manifestam em áreas fundamentais, como a educação, a saúde e a assistência social, considerando que a instituição religiosa está umbilicalmente ligada aos dirigentes dos Três Poderes (Miceli, 1986Miceli, S. (1986). A elite eclesiástica brasileira (1890-1930). Livre-docência em Sociologia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.; Romano, 1979Romano, R. (1979). Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós.; Seidl, 2003Seidl, E. (2003). A elite eclesiástica no Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Em outras Constituintes, especialmente com a criação da Liga Eleitoral Católica, de partidos católicos e de centros de estudos destacados, essa participação ficou bastante evidente (Arduini, 2015Arduini, G. (2015). Em busca da idade nova. Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social. São Paulo: EDUSP.; Cury, 2001Cury, C. R. J. (2001). Cidadania republicana e educação: Governo Provisório do Mal. Deodoro da Fonseca e Congresso Constituinte 1890-1891. Rio de Janeiro: DP&A.). Já durante a reabertura, as mobilizações foram no sentido de apoiar legendas recém-criadas, especialmente o Partido dos Trabalhadores e setores do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, conforme verificou Antônio Pierucci (1984)Pierucci, A. F. (1984). Democracia, Igreja e voto: envolvimento do clero católico nas eleições de 1982. Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade de São Paulo, São Paulo. em análise dos padres de paróquia de São Paulo. A predileção era por novos grupos de poder, surgidos no contexto da redemocratização, a partir de conceitos-chave como povo e mudança estrutural do País (Pierucci, 1984Pierucci, A. F. (1984). Democracia, Igreja e voto: envolvimento do clero católico nas eleições de 1982. Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Nesse sentido, há extenso debate centrado no tema da laicidade, ou na falta de comprometimento com este conceito, inclusive em constituintes anteriores. O foco está na produção de leis que regularam a educação, ponto que concentra parte das tensões entre laicos e religiosos (Cunha, 2009Cunha, L. A. (2009). Educação, Estado e democracia. São Paulo: Cortez.; Cury, 1988Cury, C. R. J. (1988). Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais (4a ed.). São Paulo: Cortez; Autores Associados., 2001Cury, C. R. J. (2001). Cidadania republicana e educação: Governo Provisório do Mal. Deodoro da Fonseca e Congresso Constituinte 1890-1891. Rio de Janeiro: DP&A.), ou em aspectos da moralidade privada, como o casamento e o divórcio. Como alternativa, este estudo buscou temáticas como a reforma agrária e os direitos infantojuvenis. Uma vez que a tese comporta objetivo mais amplo, foram explorados, aqui, fatores políticos relacionados com a dominância ou com a derrota dos agentes católicos nas dinâmicas congressuais. Considerando que a Igreja é uma instituição maleável e heterogênea, capaz de reproduzir sua história e suas próprias verdades (Lagroye, 2006Lagroye, J. (2006). La vérité dans l’Église catholique. Contestations et restauration d’un régime d’autorité. Paris: Belin.; Langlois, 1997Langlois, C. (1997). La naissance de l’intellectuel catholique. In P. Colin (Org.), Intellectuels chrétiens et esprit des années 1920 (posfácio). Actes du colloque. Institut Catholique de Paris. Paris: CERF.), sustentada pela legitimidade de interpretar a fé religiosa e, com isso, controlar a vida mundana, optou-se por uma análise centrada na sua posição no campo político, entendido como uma “arena onde se desenrolam os combates e os afrontamentos declarados” e implícitos, sustentados por capitais acumulados conforme lógicas particulares, seja no interior do próprio campo ou em outros espaços (Bourdieu, 2000Bourdieu, P. (2000). Propos sur le champ politique. Lion: PUL., pp. 38-40).

A Igreja é uma instituição mobilizada por agentes, cuja política para o País é controlada pela Conferência dos Bispos. Hierarquizada, busca naturalizar suas ações, mas se coloca diretamente em contato com outros grupos, com objetivos, por vezes, divergentes dos seus. Entender a CNBB como instituição passa pelas mudanças na sua composição, sobretudo na reorientação dos prelados que assumiram seu controle durante a reabertura democrática. Além de suas lutas internas, a adesão ao seu programa teve relação direta com a composição dos espaços políticos, considerando os jogos possíveis.

1. A CNBB na distensão

A Conferência Nacional dos Bispos foi fundada em 1952 “por iniciativa de D. Hélder Câmara, com o objetivo de coordenar e subsidiar as atividades de orientação religiosa, de beneficência, de filantropia e assistência social”, na esteira de programas como a Ação Católica (Kornis & Montalvão, 2009Kornis, M., & Montalvão, S. (2009). Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (Verbete). In A. Abreu et al (Coords.), Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC. Recuperado em 17 de janeiro de 2017, de <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/conferencia-nacional-dos-bispos-do-brasil-cnbb>.
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionari...
). Tradicionalmente acostumada a coadunar com o Estado patrimonialista e conservador, com a edição de atos institucionais pelos militares golpistas no final dos 1960 e a perseguição da ditadura militar aos seus opositores, incluindo religiosos alinhados com correntes católicas menos tradicionais, a CNBB passou por uma mudança de orientação, comandada por prelados com formações na Europa do pós-guerra e em busca de novas eclesiologias para um mundo em rápida transformação. O contexto político nacional e internacional, os novos comportamentos sociais, a influência da doutrina marxista, o aggiornamento e as acomodações entre lideranças religiosas redimensionaram a política do órgão de cúpula da Igreja no País, que passou a denunciar os crimes de Estado e a reivindicar seu papel como defensora dos direitos humanos e da democracia, palavras de ordem no discurso recém-assumido. Seus projetos, como, por exemplo, o Brasil Nunca Mais!, foram amplamente reconhecidos e garantiram a legitimidade necessária para que os setores classificados como progressistas participassem, junto com políticos contrários aos militares, muitos dos quais cassados e/ou exilados, das reivindicações democráticas.

Ainda que enfrentando resistências, principalmente dos prelados que se mantiveram aliados aos grupos que controlavam o Estado, os religiosos que incorporaram o Concílio Vaticano II, e o aplicaram nos encontros em Medellín e Puebla, eram hegemônicos. Representando as mudanças teológicas da Igreja, seu prestígio decorria, em boa parte, do engajamento na defesa dos presos políticos e no combate à tortura (Betto, 2006Betto, F. (2006). Batismo de sangue: guerrilha e morte de Carlos Mariguella. Rio de Janeiro: Rocco.). A partir de redes nacionais e internacionais, seus funcionários2 2 Funcionários, na perspectiva weberiana (Weber, 2012, p. 530). ganharam força, especialmente os projetos de bispos que construíram a Teologia da Libertação, com a opção pelos pobres (Boff, 1981Boff, L. (1981). Igreja: carisma e poder. Ensaios de eclesiologia militante. Lisboa: Inquérito.). Naquele momento, com a mobilização das Comunidades Eclesiais de Base, dos antigos quadros da Ação Popular, etc., foram criadas a Comissão Pastoral da Terra (CPT) – na região do Araguaia, por iniciativa de D. Pedro Casaldáliga, apoiado por dirigentes episcopais – e a Pastoral do Menor, nas periferias de São Paulo. É possível sugerir que o principal polo de atração era a Arquidiocese liderada por D. Paulo Evaristo Arns, uma vez que dentre seus bispos-auxiliares estavam nomes de peso: D. Mauro Morelli, D. Benedito Ulhôa, D. Angélico Bernardino e D. Luciano Mendes de Almeida. Corresponde ao núcleo progressista mais visível (Arns, 2001Arns, P. E. (2001). Da esperança à utopia. Testemunho de uma vida. Rio de Janeiro: Sextante.; Ferri & Sydow, 1999Ferri, M., & Sydow, E. (1999). Dom Paulo Arns: um homem amado e perseguido. Petrópolis: Vozes.).

À época da Constituinte, a CNBB era presidida, justamente, por D. Luciano – jesuíta herdeiro de expressivos capitais familiares, políticos, religiosos e econômicos, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Sua família transitava entre Roma e o Rio de Janeiro, com presença em altas rodas de poder desde o Império – seu bisavô, inclusive, advogou na Questão dos Bispos, recebendo pelo trabalho o título hereditário de Conde da Igreja, único no País. Os Mendes de Almeida também participaram do Centro D. Vital, núcleo da intelectualidade católica desde os anos 1930, e fundaram a Universidade Cândido Mendes (UCAM) e o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) (Mendes, 2007Mendes, C. (2007). D. Luciano, o irmão do outro (2 ed.). Rio de Janeiro: EDUCAM.).

Além de D. Luciano, o grupo ligado a Arns era composto por intelectuais reconhecidos. Reunidos em São Paulo, muitos deles professores nas faculdades de direito da USP e da PUC, como Plínio de Arruda Sampaio, Dalmo de Abreu Dallari, Hélio Bicudo, Luiz Eduardo Greenhalgh, Francisco Whitaker, Fábio Konder Comparato, José Carlos Dias, dentre outros políticos e juristas católicos, posicionaram-se publicamente a favor da democracia e da realização da Constituinte (Engelmann & Madeira, 2015Engelmann, F., & Madeira, L. M. (2015, setembro/dezembro). A causa e as políticas de direitos humanos no Brasil. Caderno CRH. 28(75), 623-637. Recuperado em 12 de janeiro de 2017, de <https://portalseer.ufba.br/index.php/crh/article/view/20069/12699>.
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). Destacaram-se durante a abertura democrática, inclusive, contra a proposta do governo Sarney de elaborar a nova Carta a partir de uma Comissão de Notáveis indicada pelo Executivo, como apontam entrevistas concedidas por Dallari e Whitaker (Rocha, 2013Rocha, A. S. (2013). Genealogia da Constituinte. Do autoritarismo à democratização. Revista Lua Nova, 88, 327-380. Recuperado em 21 de outubro de 2015, de <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452013000100004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>.
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).

Na seleção dos espaços analisados, serviu como indício a preocupação desses líderes religiosos impressa em duas Campanhas da Fraternidade, eventos promovidos anualmente pela CNBB para educar os católicos sobre os temas de interesse da Igreja. Intitulada Terra de Deus, terra de irmãos, a Campanha de 1986 convocou os fiéis “para uma ação conjunta ... sobre o gravíssimo problema da questão da terra no Brasil” [SIC], que deveria “ser solucionado evangelicamente, dentro de justiça e fraternidade” (CNBB, 1986, p. 5). Recém-derrotados nas disputas pelo Plano Nacional de Reforma Agrária, as lideranças religiosas e seus aliados se reorganizavam para pressionar os parlamentares a apoiar sua causa (Silva, 1987Silva, J. G. da. (1987). Caindo por terra: crises da reforma agrária na Nova República. São Paulo: Busca Vida.).

Por sua vez, a Campanha de 1987, nomeada Fraternidade e Menor: quem acolhe o menor, a mim acolhe, tinha como objetivo o tratamento social das crianças e dos adolescentes “empobrecidos, abandonados e marginalizados”. Para tanto, os católicos condenavam o Código de Menores de 1979, especialmente a política de internatos decorrente do Plano Nacional do Bem-Estar do Menor, que originou a Fundação Nacional do Bem-Estado do Menor e, nos estados federados, as FEBEMs. A Pastoral do Menor teve participação ativa naquele instante, uma vez que a Pastoral da Criança, projeto da família Arns em comunhão com o UNICEF, estava em vias de consolidação (CNBB, 1987Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (1987). Campanha da Fraternidade 1987: Quem acolhe o menor, a mim acolhe. Brasília: Fórmula., pp. 1-5).

As Campanhas da Fraternidade explicitavam as preocupações temáticas da CNBB em meados dos 1980, que deveriam ser traduzidas na nova Carta do País. Não à toa, a cúpula episcopal lutou para que o Congresso Constituinte fosse realizado, contrariando a proposta do Executivo de estabelecer a Constituição por meio dos trabalhos de uma Comissão de Notáveis (Nassar, 2013Nassar, P. (2013). Construção do compromisso maximizador: análise do processo constituinte e das características da Constituição de 1988. In D. Dimoulis et al, Resiliência constitucional. São Paulo: FGV. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10959/Resiliencia_constitucional.pdf?sequence>.
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, p. 26). Além da resistência de líderes católicos, importantes agências e parlamentares (como Ulysses Guimarães) também foram contra a proposta dos Notáveis. Não produzindo os efeitos esperados pela presidência, seus trabalhos foram arquivados no Ministério da Justiça. Democracia era a palavra de ordem. Nesse rearranjo, o Parlamento constituinte foi selecionado pelo escrutínio de 1986 (Nassar, 2013Nassar, P. (2013). Construção do compromisso maximizador: análise do processo constituinte e das características da Constituição de 1988. In D. Dimoulis et al, Resiliência constitucional. São Paulo: FGV. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10959/Resiliencia_constitucional.pdf?sequence>.
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/b...
; Rocha, 2013Rocha, A. S. (2013). Genealogia da Constituinte. Do autoritarismo à democratização. Revista Lua Nova, 88, 327-380. Recuperado em 21 de outubro de 2015, de <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452013000100004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>.
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). Ou seja, a ANC, iniciada em fevereiro de 1987 e “composta por 559 constituintes, foi convocada em meio ao processo de transição democrática do país, sendo parte de um compromisso assumido pelas forças políticas que chegaram ao poder em 1985” (Nogueira, 2009Nogueira, A. M. (2009). Assembleia Nacional Constituinte 1987-1988 (Verbete). In A. Abreu et al (Coords.), Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC. Recuperado em 20 de janeiro de 2017, de <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/assembleia-nacional-constituinte-de-1987-88>.
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionari...
, online).

Publicado o regimento interno da Constituinte, foram definidas as etapas de trabalho, sendo que a fase de subcomissões foi uma das primeiras. Seus resultados, transcritos em anteprojeto, foram remetidos para avaliação em comissões maiores. A característica desta fase era permitir que representantes da sociedade fossem ouvidos pelos constituintes indicados pelos partidos. É importante destacar que esses expositores externos estavam, nem sempre explicitamente, relacionados com os parlamentares ou suas legendas.

Portanto, confirmou-se a hipótese de que os diferentes desempenhos dos católicos na ANC estavam condicionados pelas preocupações da CNBB, pelos capitais apresentados por esta militância orientada, mas também pelas composições e tipos de dinâmica ocorridas nas subcomissões. Para tanto, foi preciso (1) comparar as características dos parlamentares; (2) determinar os principais grupos que atuaram como expositores externos; e (3) caracterizar as possibilidades dos católicos para inscrever suas propostas na Constituição, considerando as distintas configurações e as dinâmicas políticas desempenhadas nos espaços políticos examinados.

2. Distribuição parlamentar

A distribuição parlamentar nas subcomissões foi bastante desigual, gerando diferentes tipos de competição nos espaços examinados. Foram explorados cinco pontos para entender como a composição política condicionou os trabalhos e, de certa maneira, favoreceu ou desfavoreceu o jogo dos católicos na Constituinte e a atuação dos grupos de interesse: procura pelas subcomissões; características dos parlamentares; disputas internas; temáticas; e grupos de sustentação.

O primeiro deles é a procura pelas subcomissões, traduzida como a presença de partidos e parlamentares titulares, cobertura da imprensa, etc. No início dos trabalhos, a Subcomissão do Menor (sub. 8c) contou com 16 constituintes de 6 partidos; já a Subcomissão da Reforma Agrária (sub. 6c) contou com 25 constituintes de 9 partidos. Essa distribuição, conforme pode ser visto no Gráfico I, revela as predileções temáticas e quais preocupações mobilizavam as personalidades políticas.

Gráfico 01
Número de parlamentares por partidos e subcomissões

A Subcomissão da Reforma Agrária era expressivamente maior em número de parlamentares e de partidos. Na prática, mostra como os temas de sua alçada geraram maior mobilização. Antes de tudo, a estrutura agrária guarda íntima conexão com os grupos de poder mais estabelecidos no Estado brasileiro. Noutro sentido, é significativo que duas cadeiras de titularidade tenham ficado vagas na Subcomissão do Menor. Não houve interesse por parte das legendas, especificamente do PT e do PFL, em preenchê-las. No caso dos liberais, ¼ ficou vago; já os petistas abdicaram da sua vaga. Enquanto isso, a questão agrária foi alvo de lutas pela inserção de parlamentares além dos inicialmente previstos.

O PCB, o PCdoB e o PT deslocaram seus membros apenas para a reforma agrária. Na classificação de Leôncio Martins Rodrigues, compunham o bloco dos partidos ideológicos que, embora não fossem uniformes, defendiam algumas pautas comuns na ANC. Eram legendas com número reduzido de membros no Congresso, especialmente em comparação com os dominantes PFL e PMDB, além de “desejarem, como meta final, uma sociedade que signifique, qualquer que possa ser a concepção específica de socialismo, a extinção da economia de mercado e da propriedade privada dos meios de produção” (Rodrigues, 1987Rodrigues, L. M. (1987). Quem é quem na constituinte. Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: OESP-Maltese., p.18), “apesar de discordarem com relação ao modelo de sociedade futura que gostariam de ver instalado no país” (pp. 113-114). É indicativo do porquê concentraram seus parlamentares nos debates sobre a estrutura econômica. A organização jurídica da família, embora importante em qualquer Estado, tinha peso diferente nas suas propostas naquele momento histórico. Os partidos que não participaram da Subcomissão do Menor serviram de contraponto ao PFL e ao PMDB na Subcomissão da Reforma Agrária. Porém, cumpre ressaltar que o PMDB era heterogêneo o suficiente para não ser classificado nos moldes propostos para os PCs e o PT. Herdeiro do antigo MDB, reunia desde grandes proprietários até militantes alinhados à Pastoral da Terra.

Para além dos partidos e dos parlamentares, o peso dos interesses pelos trabalhos constituintes pode ser medido pela imprensa. Houve insistência, infrutífera, do dep. Salim Curiati para que o Jornal da Constituinte cobrisse os trabalhos da Subcomissão do Menor. Sua queixa de que os jornalistas optaram por noticiar a Subcomissão da Reforma Agrária consta da ata da 5ª audiência da Subcomissão de Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária (1987b)Diários da Assembleia Nacional Constituinte: Atas da Subcomissão de Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária. (1987b). Recuperado em 12 de julho de 2015, de <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/comissoes-e-subcomissoes/comissao6/subcomissao6c>.
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. Este órgão de imprensa presenciou os debates sobre a organização familiar apenas quando da visita de Ulysses Guimarães (antecedendo a audiência com D. Luciano Mendes de Almeida). Ou seja, sem a presença de notáveis, como os presidentes da Assembleia e da CNBB, a cobertura da mídia oficial praticamente inexistiu, indicativo de como os temas morais atraíram menor atenção.

O segundo ponto diz respeito às características apresentadas pelos parlamentares titulares, ou seja, aos políticos que procuraram ocupar os diferentes espaços da ANC. Faz-se aqui, inicialmente, uma recuperação de suas posições no Congresso: deputados e senadores (Figura 2).

Gráfico 02
Deputados e senadores por subcomissão

Ainda que pese a isonomia entre os constituintes, há evidente carga simbólica revestindo os membros do Senado. Trata-se de distinção historicamente construída entre os poderes do Estado desde o Império, transmitida à República como herança (Codato, 2014Codato, A. (2014, fevereiro). Classe política e regime autoritário: os advogados do Estado Novo em São Paulo. RBCS. 29(84), 145-209.). Ademais, os senadores geralmente apresentam larga experiência parlamentar. Dificilmente é um cargo de ingresso na vida pública.

A Subcomissão do Menor foi preterida pelos congressistas experientes, que optaram por outros espaços de poder na ANC. Embora membros da Casa Alta tenham circulado nas reuniões desta Subcomissão (em baixo número, com destaque para Ronan Tito, que teve como motivação específica a presença de D. Luciano), as titularidades foram ocupadas exclusivamente por deputados. Já a Subcomissão da Reforma Agrária contava com 21 deputados e 4 senadores, nenhum biônico. Considerando que havia 81 senadores na Constituinte3 3 A listagem pode ser encontrada no endereço: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/senadores-constituintes>. , aproximadamente 5% debateu a reforma agrária. É uma percentagem alta, considerando que poderiam ser alocados em 24 subcomissões – ou seja, caso a distribuição fosse uniforme, seriam 3 senadores por subcomissão. E isso contando apenas a titularidade; certamente os números seriam mais expressivos, se fossem considerados os suplentes.

Além disso, a comparação entre as experiências mostrou que a Subcomissão do Menor era um dos espaços de ingresso no Legislativo federal. Dos 16 membros, 7 eram estreantes, sem contar os que estavam em segundo mandato (como o presidente Nelson Aguiar e o relator Eraldo Tinoco). Quanto à geração, eram mais novos que os partícipes da Subcomissão da Reforma Agrária, que apresentavam carreiras estabilizadas ou, em alguns casos, próximas do fim, conforme indicaram os verbetes consultados no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (Gráfico 3).

Gráfico 03
Faixa etária dos parlamentares por subcomissão

Associado às experiências parlamentares e às composições dos espaços, o grau de adesão às temáticas debatidas nas subcomissões permitiu conciliações ou resultou em disputas. Se, por um lado, a organização da família atraiu os interessados pelos assuntos morais, a estrutura econômica do País estava em jogo quando debatida a propriedade privada. É possível estabelecer clivagens a partir dos interesses dos parlamentares e, principalmente, de suas experiências pregressas: evangélicos (a maioria pastores), ruralistas (ou seus apoiadores) ou favoráveis à reforma agrária (comunistas; Pastoral da Terra) constituíam grupos bastante uniformes quanto à luta política desempenhada na Assembleia, embora apresentassem defesas próprias fora do Congresso, por vezes até mesmo entrando em conflito.

Nesse ponto, suas formações escolares valeram menos. Ainda que conste o prestígio decorrente da boa formação acadêmica, foram privilegiados os capitais políticos. Por exemplo: boa parte dos proprietários era diplomada em Direito ou Medicina, mas suas atividades estavam no meio rural. Já os pastores, com cursos superiores em diferentes áreas, agiam como líderes religiosos. A concentração do capital simbólico era reforçada pela formação escolar, mas a sustentação estava na atividade efetivamente desempenhada4 4 Nesse sentido, a literatura relata a dificuldade para realizar clivagens a partir das formações/ocupações dos políticos (sobre esta questão, ver Neiva & Izumi, 2014). .

Suas atividades orientadas permitiram desempenhos e comportamentos comuns nas disputas, embora houvesse cisões internas em cada grupo (UDR × CNA; comunistas × católicos; evangélicos × católicos...). Foi possível identificar: bloco contrário à reforma agrária; bloco favorável à reforma agrária; bloco favorável à moral cristã; etc. As variáveis selecionadas permitiram agrupar os agentes a partir de suas estratégias e defesas (Quadro 1).

Quadro 01
Clivagem dos parlamentares por subcomissão

A classificação em blocos de interesse revelou a distribuição do poder nos espaços. A Subcomissão do Menor foi dominada por parlamentares conservadores, incluindo o subgrupo dos evangélicos. Já a Subcomissão da Reforma Agrária foi composta majoritariamente pelos ruralistas, ainda que constasse bom número de favoráveis à reforma agrária. A CNBB contava com dois deputados alinhados, um ex-seminarista (Vicente Bogo, PMDB/RS) e uma ex-freira (Irma Passoni, PT/SP), justamente no bloco pró-reforma.

A posição da Igreja na Subcomissão da Reforma Agrária foi diferente da manifestada na Subcomissão do Menor, onde não apareceram parlamentares próximos ao clero. Já os evangélicos estavam sustentados por capitais religiosos, mais do que por capitais políticos, acadêmicos ou econômicos. Mas, ainda que barulhentos e numerosos, eram ingressantes na política de Estado.

O conhecimento dos católicos balizou os jogos dos inexperientes deputados evangélicos. Ainda que os católicos não estivessem no rol de parlamentares, seus discursos marcaram as dinâmicas da Subcomissão do Menor. A moralidade cristã não enfrentou resistências quanto à família e aos filhos, diferentemente do que se passou na Subcomissão da Reforma Agrária. Noutros termos: a dominância numérica coube aos evangélicos (Igreja Universal; Assembleia de Deus), e alguma disputa com alas da CNBB até foi prevista inicialmente. Afinal, apresentou-se na Subcomissão do Menor um grupo alheio ao campo político, formado por deputados/pastores sem experiência pregressa em cargos públicos. Todavia, esse ingresso em nada alterou o que estava sendo esperado, por parte de agentes estabelecidos, para aquele espaço – embora pesasse alguma desconfiança inicial de setores do episcopado (Freston, 1993Freston, P. (1993). Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.; Pierucci, 1989Pierucci, A. F (1989). Representantes de Deus em Brasília: a Bancada Evangélica na Constituinte. Revista Ciências Sociais Hoje, 1, 104-132.).

Bastou que os primeiros expositores alinhados aos católicos discursassem nas audiências públicas para que a Igreja exercesse sua dominância moral, que pode ser medida desde o controle das temáticas até a reverência com que seus membros foram tratados pelos constituintes, especialmente os militantes da Pastoral do Menor e o presidente da Conferência. Esse movimento foi facilitado pela própria natureza da Subcomissão, afinal, regular a vida privada é uma pauta histórica da Igreja. A manutenção do casamento, a educação das crianças e a crítica ao aborto não constituem cisões entre os setores do episcopado em disputa pelo controle da CNBB, cuja divergência maior reside em bandeiras mais novas, criadas a partir dos anos 1960. Situação inversa foi verificada na Subcomissão da Reforma Agrária, onde capitais religiosos não foram dominantes. O tema não encontrou unidade nem mesmo dentro da Conferência, embora a hegemônica equipe dirigente defendesse o acesso à terra. Assim, a ocorrência de debates sobre a estrutura econômica favoreceu grupos acostumados a gerir o Estado e dispostos a manter seus privilégios, como os proprietários de terras (Carvalho, 2003Carvalho, J. M. de. (2003). A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial (4a ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.; Prado Júnior, 1995Prado Júnior, C. (1995). Formação do Brasil contemporâneo: Colônia (2a ed.). São Paulo: Brasiliense.). Foi justamente nesse espaço que a CNBB investiu parte de seus parlamentares aliados – com exceção de Plínio de Arruda Sampaio, líder petista e jurista reconhecido, que foi deslocado para a Subcomissão do Poder Judiciário. Ainda assim, houve dificuldade para inscrever a Pastoral da Terra no rol de expositores externos. A tradição católica na questão agrária é mais recente e controversa, quando comparada com os trabalhos de cuidado com as crianças e as famílias.

3. Características dos expositores externos

O Regimento Interno da ANC estabeleceu, em seu art. 14, que “as subcomissões destinariam reuniões para audiências de entidades representativas de segmentos da sociedade”, selecionadas pelos parlamentares. Assim, a composição dos espaços, especialmente pelos constituintes com maior experiência política e/ou assentados na mesa diretora, pode ser relacionada aos grupos ouvidos. Tanto é que, na Subcomissão da Reforma Agrária, os expositores seguiram a tendência, até mesmo certa proporção, verificada nos grupos formados pelos deputados e senadores. Já na Subcomissão do Menor houve um fato distintivo: agências católicas ou alinhadas às propostas da CNBB ocuparam grande parte das audiências. Enquanto muitas entidades civis partilharam reuniões ou foram ouvidas nos encontros externos, em que o tempo era reduzido, os católicos contaram com audiências completas para divulgar suas propostas.

A partir das redes de interesse na Assembleia, foi possível estabelecer três grandes blocos, que se referem às agências significativas, pois participações curtas ou sem posicionamentos durante as audiências foram desprezadas. Os blocos não são uniformes e foram compostos a partir das ligações dos grupos com a Igreja, o Estado ou as entidades civis. Como entidades civis, por exemplo, constam desde conselhos de feministas a associações ruralistas. Igualmente, os representantes do Estado têm natureza diversa – ministérios, secretarias, fundações e empresas públicas. Já a CNBB apresenta alguma uniformidade, com membros do laicato e religiosos. Organizou seus prepostos a partir de dois eixos: Pastoral do Menor e Pastoral da Terra, imbricadas com D. Luciano – ouvido como expositor externo. Também é relevante o número de médicos relacionados com os católicos. Certo protagonismo coube à Sociedade Pró-Vida, criada dentro da Igreja para combater o aborto e difundir o planejamento familiar a partir de “métodos científicos”. Destacou-se na luta contra as militantes feministas, que não estavam sustentadas, evidentemente, por argumentos religiosos.

Em contraposição, além da CPT, nenhuma entidade civil que participou dos debates sobre a reforma agrária respondia diretamente à Igreja, ainda que constem aliados na Campanha Nacional pela Reforma Agrária (CONTAG; ABRA – presidida por Plínio de Arruda Sampaio). Disputavam com entidades patronais ruralistas, que apresentaram mais do que o dobro de entidades no Congresso (CNA; SRB; AEA; FAEMG; OCB) (Quadro 2). A sustentação da CNBB ocorreu por meio da aliança firmada com outras entidades civis no pool da Campanha (Silva, 1987Silva, J. G. da. (1987). Caindo por terra: crises da reforma agrária na Nova República. São Paulo: Busca Vida.) e pelos deputados aliados. Ainda que em desvantagem numérica diante de seus opositores, esses parlamentares (como Irma Passoni e Vicente Bogo) tiveram algum poder de negociação. Insistiram para que a CPT fosse ouvida, sofrendo duras críticas de deputados ruralistas.

Quadro 02
Clivagem dos expositores externos por subcomissão

A divisão entre os grupos com capacidade ou intenção de controlar os debates mostra o equilíbrio entre os representantes de órgãos públicos nas duas subcomissões e a disparidade entre entidades civis e ligadas aos católicos. Em contraposição ao verificado nos debates sobre a reforma agrária, alguns expositores leigos por vezes foram identificados, durante as audiências sobre a infância, como fiéis católicos. Ou seja, a posição dos expositores foi diferente nas subcomissões. As associações ruralistas discordavam da Pastoral da Terra; por outro lado, as entidades filantrópicas reafirmavam os discursos da Igreja – inclusive, alguns depoentes se autodeclararam fiéis ou membros do laicato. Esses direcionamentos favoreceram as pretensões da CNBB, ao passo que a resistência aos seus discursos obrigou a outros tipos de mobilização.

As dinâmicas dos católicos foram balizadas por interesses específicos que culminaram na liderança moral (permitindo procedimentos conciliatórios) ou em divergências que reproduziram as lutas sobre a questão agrária que vem se arrastando no curso da história política brasileira (Martins, 2000Martins, J. de S. (2000). Reforma agrária: o impossível diálogo. São Paulo: EDUSP.; Paiva, 1985Paiva, V. (Org.). (1985). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola.). Nos temas morais, os religiosos dificilmente eram questionados. Poucos pontos comportavam visões díspares entre os grupos, como o aborto. Foi na organização da estrutura econômica do País, principalmente quanto à reforma agrária, que os dirigentes episcopais sofreram os maiores enfrentamentos e derrotas.

4. Dinâmicas dos agentes católicos

A regra do Regimento Interno afirma que as subcomissões possuíam funções parelhas e deveriam funcionar mais ou menos da mesma maneira, uma vez que, como espaços políticos, organizados pelo Estado para legitimar direitos por meio da legislação, tinham mesma gênese jurídica e política. Mas, na prática, suas composições parlamentares, a presença de expositores externos e seus ritmos de trabalho se mostraram distintos. Essas condições afetaram as dinâmicas dos agentes católicos, seus graus de adesão, as formas em que estabeleceram alianças e, especialmente, como foram recepcionados pelos senhores do voto (os deputados e os senadores titulares). A aceitação do discurso religioso dependeu dos interesses em pauta. Em comum, foi constatada a participação de alas da esquerda católica.

A princípio, foram apontadas como disputas possíveis: católicos × evangélicos e católicos × ruralistas, no mesmo sentido da literatura (Araújo, 2009Araújo, J. C. de. (2009). Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária. In J. C. de Araújo, D. B. Azevedo, & A. L. Backes, Audiências públicas na Assembleia Nacional Constituinte: a sociedade na tribuna (pp. 411-434). Brasília: Câmara dos Deputados.; Freston, 1993; Lacerda, 2009Lacerda, A. B. de C. C. (2009). Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso. In J. C. de Araújo, D. B. Azevedo, & A. L. Backes, Audiências públicas na Assembleia Nacional Constituinte: a sociedade na tribuna (pp. 615-633). Brasília: Câmara dos Deputados.; Martins, 2000Martins, J. de S. (2000). Reforma agrária: o impossível diálogo. São Paulo: EDUSP.; Pierucci, 1989Pierucci, A. F (1989). Representantes de Deus em Brasília: a Bancada Evangélica na Constituinte. Revista Ciências Sociais Hoje, 1, 104-132.). Todavia, contrariando as expectativas, a primeira não se concretizou. Houve diferença entre as mobilizações de católicos e evangélicos, que se aliaram na defesa de objetivos comuns. Enquanto os agentes da CNBB eram duros nas cobranças sobre a finalidade do Estado (políticas habitacionais, laborais, sanitárias, alimentares...), os evangélicos criticavam a sociedade e sua “falta de moralidade”.

O modo em que movimentaram as suas peças também foi diferente. Cabia aos católicos expor um plano para resolução do problema da criança: pensavam o Estado e abrangiam diferentes áreas, como acesso à terra, os direitos trabalhistas, a diminuição dos índices de violência, etc. Os deputados evangélicos reproduziam argumentos morais e religiosos, a partir das bases divulgadas pelos adidos da CNBB no Congresso. Forneciam a sustentação parlamentar para os discursos dos católicos. Afinal, pertenciam ao grupo dos constituintes titulares – com voz e voto. Suas legitimações ultrapassavam o religioso e entravam no domínio próprio do fazer a lei, ou seja, do Legislativo. Embora, à época, esse jogo não fosse tão controlado pela Frente Evangélica quanto aparenta ser atualmente.

Embora constem embates com militantes feministas, pouco numerosas e sem força naquele espaço político, a composição cristã barrou impasses na Subcomissão do Menor, especificamente quanto aos direitos dos filhos. Cada qual com sua interpretação, feministas e religiosos concordavam que a família era essencial para educação das crianças, sendo que a isonomia jurídica deveria imperar na vida doméstica5 5 As feministas buscavam garantir direitos para as mulheres. Não isolavam os direitos infantojuvenis, mas os associaram às condições de vida das famílias e da população feminina. . Mesmo que o modelo de convivência fosse divergente nas visões desses grupos, inexistiu disputa explícita. É preciso considerar, também, o aporte ofertado pelos políticos conservadores às propostas dos religiosos, principalmente na adesão ao modelo da família como alma mater da sociedade, como explicitou, logo na primeira reunião ordinária, o dep. Palmier da Veiga. Ainda assim, afirmaram a igualdade entre homens e mulheres e não debateram a questão da dissolução da sociedade conjugal – controversa às vésperas da Lei 6.515/1977 –, mas superada no momento da Constituinte. Regulamentado, o divórcio não se mostrou propriamente como um objeto em disputa. Ainda assim, as regras de direito canônico condenam a prática, o que poderia representar um direcionamento dos religiosos na ANC.

Os expositores católicos reforçaram a composição dos interesses ao se alinharem aos deputados conservadores. Para garantir o discurso que culpava a desestrutura da sociedade pelas separações dos casais e pela falta de cuidados com os filhos, atenuaram suas críticas em alguns momentos. Ignoraram as poucas pautas dos evangélicos, como o divórcio e as famílias fundadas fora do casamento. Essa associação permitiu que a união estável fosse protegida pela lei. Contando com apoio maciço de conservadores e feministas e, principalmente, com o silêncio dos católicos, o casamento e a sua dissolução foram flexibilizados na Carta. Igualmente, o conceito de tutela absoluta da criança foi expandido e intensificado, servindo como suporte para o reconhecimento jurídico de outras formas de convivência privada. Iniciou-se o desmonte da política menorista e do Código de 1979, principal pauta da Pastoral do Menor.

Porém, ainda que houvesse associações pontuais entre grupos tão distintos, em outras searas as disputas se mostraram inconciliáveis – como na questão do aborto. Nesse ponto, a liderança moral da CNBB sobre quem detinha o poder de decisão política ficou mais evidente. Além da ampla vantagem dos expositores indicados pela CNBB, foram os parlamentares evangélicos e as expositoras feministas que combateram, em campo aberto.

O termo integração define a postura dos católicos na Subcomissão do Menor. Construíram alianças com distintas instituições, acomodaram-se às diferentes temáticas ou interesses e imprimiram suas visões de mundo na legislação. Silenciaram-se quanto às causas juridicamente perdidas ou que não estavam em disputa, como a união estável ou o divórcio. Como principais comportamentos: alinharam-se aos deputados evangélicos e a outros conservadores, articulando o prestígio e a história institucional da Igreja para direcionar seus comportamentos políticos; e defenderam causas que ainda não constavam nas leis, mas que vinham sendo debatidas em círculos preocupados com a infância, como universidades ou organismos internacionais: isonomia filial, positivação de garantias essenciais à criança e direito à família6 6 No período, havia grande mobilização internacional, capitaneada pelo UNICEF, para difundir o novo direito infantojuvenil. Não à toa, 1979 foi definido como o Ano Internacional da Criança. Ademais, o Fundo se manteve próximo dos Arns – financiando a Pastoral da Criança. Em resposta, a CNBB colaborou, de certo modo, com este aliado internacional. De fato, ambos participavam da grande aliança que resultou na Convenção sobre os Direitos das Crianças em 1989 (Chaves, 1980; Del-Campo & Oliveira, 2005; Neumann, 2003; Pereira, 2000). .

Seus discursos garantiram visibilidade aos menores de 18 anos de idade, população que não atraiu grandes olhares – como comprova o interesse dos parlamentares pela Subcomissão do Menor. As principais pautas incorporadas pela Constituição resultaram de defesas católicas: da proteção integral da infância à proibição do aborto. Esses agentes estavam identificados com a esquerda cristã, o que não impediu articulações com grupos conservadores ou reacionários. A maleabilidade da Igreja permitiu conciliar diferentes lados e contornar, ao máximo, as disputas.

Por outro lado, o cumprimento das expectativas da CNBB pelos deputados evangélicos não pode ser explicado somente a partir da estrutura do espaço político. O critério religioso que os evangélicos sustentaram no Congresso é, de certa maneira, refração dos princípios morais historicamente produzidos pela Igreja Católica, ainda que pese uma matriz pentecostal americana. É fundamental entender que a moralidade cristã foi manejada pelas Igrejas que despontavam no Legislativo (Freston, 1993Freston, P. (1993). Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.; Mariano, 2014Mariano, R. (2014). Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (5a ed.). São Paulo: Loyola.; Pierucci, 1989Pierucci, A. F (1989). Representantes de Deus em Brasília: a Bancada Evangélica na Constituinte. Revista Ciências Sociais Hoje, 1, 104-132.). Reconfiguraram o seu jogo, ingressando nos espaços legítimos de produção do simbólico (Bourdieu, 2010Bourdieu, P. (2010). Razões práticas: sobre a teoria da ação (Mariza Corrêa, Trad.). Campinas: Papirus., 2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado. Cursos no Collège de France (1989-1992) (Rosa Freire d’Aguiar, Trad). São Paulo: Companhia das Letras.).

Ademais, os constituintes da Subcomissão do Menor que não pertenciam ao grupo evangélico se abstiveram de promover o Estado laico7 7 Recuperando análise aplicada em outro estudo (Bittencourt & Wohnrath, 2013). , embora suas características não permitam agrupá-los. Alguns eram novatos no Congresso, enquanto outros tinham certa experiência, porém sem grande prestígio ou temática bem definida (bandeiras pessoais, familiares ou classistas, por exemplo). A novidade naquele espaço se mostrou somente no ingresso de parlamentares novatos que jogavam amparados no capital religioso. Para Mariano (2014)Mariano, R. (2014). Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (5a ed.). São Paulo: Loyola., essa é a origem da atual Frente Parlamentar Evangélica – que ainda mantém intensa colaboração com católicos, como noticiado pela imprensa (O Globo, de 01/01/2017). Ao que parece, essas personagens ficaram mais visíveis para os pesquisadores ao longo das últimas décadas.

Conhecer as regras congressuais e saber jogá-las foram trunfos dos agentes católicos. Aproveitaram-se da moralidade cristã, cuja legitimidade reivindicaram, para obter significativo proveito simbólico – utilizando expressão bastante bourdieusiana. Mesmo com parlamentares evangélicos ocupando boa parte das cadeiras de titularidade (poder de voz e voto), o jogo permaneceu nos mesmos parâmetros desempenhados pela CNBB noutros momentos políticos. Para valer suas ideias nos assuntos morais, não precisaram mobilizar deputados ou senadores declaradamente fiéis. Apresentaram-se como chave de legitimidade, imprescindíveis aos discursos veiculados pelos políticos: permitiam o acesso aos debates sobre família, filhos, etc.

Tanto é que a força da CNBB na Subcomissão do Menor foi transcrita em expositores externos (religiosos e especialistas, sobretudo médicos). Esses experts, saídos do laicato, fizeram frente ao seu único adversário temático: o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres. As feministas articulavam capitais diferentes do religioso, mas não tinham expressividade no Legislativo. Vale lembrar que sofriam com a dominação de gênero, considerando que jogavam em espaços historicamente masculinos, como o Parlamento (Santos, 2004Santos, R. L. O. dos. (2004). A participação da mulher no Congresso Nacional Constituinte de 1987 a 1988. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.). Neste ponto, fica perceptível a expertise empregada pela Igreja: mobilizou repertório para anular, com argumentos para além do religioso (médicos, jurídicos...), seus parcos opositores – por exemplo, na questão do aborto.

Outro aspecto fundamental é que a Igreja possuía, e possui, quadros suficientes para apresentar agentes com os mais variados deslocamentos sociais, repertórios, formações, interações e todo tipo de capital (religioso, político, jurídico, médico, etc.). As múltiplas possibilidades de movimento conferiram distinção ao seu jogo. Nas dinâmicas congressuais, seus repertórios mostraram-se mais variados do que os apresentados por outros grupos. Indicativo do controle é o fato de que a CNBB não precisou assentar deputados ou senadores para valer suas propostas. Quando muito, nos casos em que a temática era de extremo interesse, foram convocados parlamentares de outras subcomissões, como a dep. Sandra Cavalcanti, cuja trajetória remete ao Centro D. Vital e à Juventude Universitária Católica (Monteiro & Sousa, 2009Monteiro, M. C., & Sousa, A. N. (2009). Sandra Cavalcanti (Verbete). In A. Abreu et al (Coords.), Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC. Recuperado em 14 de dezembro de 2016, de <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/sandra-martins-cavalcanti-de-albuquerque>.
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionari...
, online).

No mesmo sentido, a visita do presidente da Constituinte, dep. Ulysses Guimarães, às vésperas da audiência com D. Luciano Mendes de Almeida, acusou a força dos católicos. O próprio presidente da Subcomissão, dep. Nelson Aguiar, admitiu ter telefonado pessoalmente à CNBB. Contrariou o acordo entre os constituintes (era vetado convidar diretamente expositores), mas não foi repreendido. Pelo contrário, foi apoiado. A conduta da mesa diretora foi considerada normal, como se a presença do bispo naquele espaço fosse algo natural. Sua participação foi cercada de reverências. Mobilizou parlamentares importantes, que foram à Subcomissão exclusivamente para prestigiá-lo. É o caso do sen. Ronan Tito, que dois anos mais tarde apresentaria o projeto de lei convertido no Estatuto da Criança e do Adolescente. Católico, mineiro e peemedebista, foi apoiado pela Conferência, a quem já vinha cortejando.

Essa conjuntura – prestígio acumulado e possibilidades políticas – permitiu que a Igreja mobilizasse agentes, mantendo a dinâmica do jogo e controlando os debates na Subcomissão do Menor. Ainda que à primeira vista a composição geral do espaço mostrasse predomínio dos evangélicos, principalmente pelas titularidades, o movimento dos católicos foi fundamental para entender suas vantagens. Ademais, a presença de D. Luciano – figura altamente capitalizada por relações institucionais, políticas, familiares, intelectuais e religiosas – indica o alto grau de pressão sobre os concorrentes. Sua boa recepção revela que parlamentares simpatizavam com sua presença ou não reuniam condições necessárias para se oporem. Fenômeno inverso foi verificado na Subcomissão da Reforma Agrária, onde as dinâmicas desfavoreceram as pretensões da CNBB – mesmo com alguns deputados apoiando a Pastoral da Terra.

Considerando que latifundiários participaram dos debates e que as tradicionais elites brasileiras, especialmente as agrárias, têm o catolicismo como religião oficial, poderia ser sugerido algum favorecimento à Igreja. Efetivamente, o que se encontrou foi a resistência dos ruralistas aos discursos da CNBB. Quando disputada a organização fundiária, que, no fundo reflete a estrutura econômica e política do País, os religiosos progressistas foram combatidos. O fator econômico foi determinante, subjugando o “catolicismo de domingo” (Lagroye, 2006Lagroye, J. (2006). La vérité dans l’Église catholique. Contestations et restauration d’un régime d’autorité. Paris: Belin.).

A cúpula da CNBB era favorável à reforma agrária, embora essa posição não fosse unânime dentro do episcopado. O direcionamento institucional conflitava com os interesses dos proprietários de terra, que compuseram o bloco dominante na Subcomissão e, também, com bispos conservadores (Moreira, 2006Moreira, A. da S. (2006). O dom da terra: leitura teológica dos conflitos agrários no Brasil (Nélio Schneider, Trad.). Bragança Paulista: EDUSF.). Evidentemente, a estratégia da CNBB foi se alinhar aos parlamentares e aos grupos que defendiam a reforma agrária. Seguindo a linha da Campanha da Fraternidade, pregava a mudança estrutural do País, discurso que serviu para justificar o alinhamento aos comunistas. Neste ponto, é significativa a liderança da Pastoral da Terra na Campanha Nacional da Reforma Agrária (CNRA), formada por associações leigas e sindicatos. Organizou as visões comuns, servindo-se, algumas vezes, da solicitude e da necessidade de inimigos históricos da Igreja.

Acresça-se, ainda, que às vésperas da Constituinte, o Estatuto da Terra, legislação ainda em vigência, carecia de maior regulamentação. Intelectuais e militantes disputaram o Plano Nacional de Reforma Agrária durante o governo Sarney, com vantagem para os ruralistas, que aprovaram medidas que os favorecem (Silva, 1987Silva, J. G. da. (1987). Caindo por terra: crises da reforma agrária na Nova República. São Paulo: Busca Vida.). Esse é um indicativo do quadro geral verificado na ANC: setores favoráveis versus contrários à reforma agrária. Trata-se de disputa explícita traduzida numa fórmula simples: católicos progressistas + comunistas + militantes em movimentos sociais × proprietários rurais + políticos conservadores. Os alinhados à CNRA reproduziam argumentos como a regularização de títulos, o direito à terra, a função social e o combate à violência no campo. Em contraposição, os ruralistas defendiam argumentos econômicos para justificar as grandes propriedades privadas: a exportação de produtos primários como sustentação do País no sistema mundial.

Esses indicadores econômicos, elogiados pelos ruralistas, apontam para como as propriedades estão concentradas nas mãos de grupos restritos. Agora, os números não mostram o percurso histórico que permitiu a coincidência entre acúmulo de terra e poder político (Tonucci, 1983Tonucci, P. (1983). Documento Igreja e problemas da terra (2a ed.). Petrópolis: Vozes.). A relação entre latifundiários e ocupantes de postos destacados no Estado – que muitas vezes são os próprios ruralistas, seus parentes ou aliados – é chave para entender as defesas de grupos politicamente/economicamente dominantes. Seus discursos comportam, para além da manutenção do sistema econômico, a prevalência de um modo de ocupar postos no Estado e de fazer política. Ou seja, o argumento transcende os aspectos econômicos ou a posição do Brasil no mercado mundial. Tem natureza de manutenção política. A defesa classista, como escreveu Moreira (2006)Moreira, A. da S. (2006). O dom da terra: leitura teológica dos conflitos agrários no Brasil (Nélio Schneider, Trad.). Bragança Paulista: EDUSF., é um fator preponderante no jogo dos proprietários. Permitiu que os favoráveis à reforma agrária, como os comunistas ou os católicos progressistas, apontassem quem eram os seus adversários (UDR; CNA) e, principalmente, formassem um conjunto orquestrado a partir de causas comuns. Embora não representassem pautas unânimes, e em muitos momentos se tornassem concorrentes, a estratégia de aliança foi priorizada para enfrentar um bloco mais numeroso e estabelecido no Legislativo.

Em contra-ataque à CNRA, os donos da terra, embora fracionados (conforme a entidade; região; pecuaristas; cafeicultores; usineiros...), unificaram suas pautas principais. Visavam manter seus privilégios e, sobretudo, suas interpretações sobre o “modo correto” de desenvolver o País. Mais do que ser contra a distribuição de áreas, compartilhavam modos de pensar bastante próximos. Possuíam diferentes propriedades pessoais, mas quase todos herdaram sua atividade profissional e política, gerando modus operandi parecido. Assim, a Pastoral da Terra e outros defensores da reforma agrária eram os inimigos esperados (Paiva, 1985Paiva, V. (Org.). (1985). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola.).

5. Duas dinâmicas, dois resultados

O resultado principal, condensado no título deste artigo, destaca como as alianças (com deputados evangélicos) e as disputas (com o grupo dos proprietários rurais) desempenhadas pelos agentes católicos foram preponderantes para a CNBB obter resultados favoráveis nos assuntos morais (família; infância) e desfavoráveis quanto à mudança da estrutura econômica do País (reforma agrária).

Orientados pela cúpula episcopal, militantes católicos participaram, efetivamente, dos debates congressuais. Estiveram no Congresso padres, freira e bispo, não por acaso, o presidente da Conferência. Sustentaram-se nas suas expertises, postos na Igreja ou em seus cargos parlamentares, mas também em alianças provisórias costuradas a partir das disputas na Constituinte. Esse desenho foi pensado desde antes da reabertura democrática, com setores da Igreja cada vez mais ativos na luta pelos direitos humanos.

A partir das dinâmicas na última ANC, verificou-se como a composição dos espaços onde os católicos se inscreveram foi determinante para a eleição dos seus modos de luta. Nos anos 1980, foi posto à prova o repertório político acumulado desde outras constituintes, como o adquirido na Liga Eleitoral Católica (Citino, 2012Citino, A. (2012). Contribuições da doutrina social católica ao mundo do trabalho: Brasil 1937-1967. Tese de Doutorado em História Econômica, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Conferiu experiência pregressa para o trato com o Legislativo. Todavia, identificou-se que quanto mais pendente para o aspecto moral da questão debatida, maior o sucesso dos religiosos. Já nas questões econômicas, outros grupos foram mais fortes. Mobilizavam interesses diversos da opção pelos pobres, corrente em evidência na CNBB.

As expertises das pastorais serviram como suporte para os discursos dos católicos no Congresso, potencializando seus repertórios de ação política (Tilly, 2005Tilly, C. (2005). Ouvrir le “répertoire d’action”. Revue Vacarme, 31, 21-22. Recuperado em 03 de janeiro de 2016, de <http://www.vacarme.org/article1261.html>.
http://www.vacarme.org/article1261.html...
, 2010). Coube à Pastoral do Menor e à Pastoral da Terra fornecer boa parte dos militantes que participaram das audiências, e, além disso, organizar a sociedade (pressão exercida por meio da coleta de assinaturas, levantamentos dos problemas sociais, artigos na imprensa, etc.). O esforço foi transformar esee capital militante, de fundo religioso e executado com sucesso, para outro nível – o do Estado, por meio da legislação.

Contrasta, porém, a receptividade que tiveram no Congresso. Enquanto a Pastoral do Menor teve presença dominante, a Pastoral da Terra foi preterida. Explicação plausível para essas situações díspares pôde ser encontrada nas configurações dos espaços políticos. Ao que parece, quanto mais concorrida a subcomissão, maior a dificuldade da CNBB em imprimir sua agenda. Ademais, a tradição política da temática se mostrou como outro fator decisivo: o debate sobre a estrutura econômica do País foi mais querido e, em consequência, mais concorrido, do que os aspectos específicos da organização familial ou os direitos infantojuvenis. Estava naturalizado que os cristãos tenderiam a debater apenas os direitos familiais e assuntos correlatos. Questões propriamente políticas e econômicas foram reivindicadas com sucesso pelos senhores de terra, que tradicionalmente planejaram os rumos do Estado brasileiro. Em contrapartida, comunistas, intelectuais e adidos católicos jogaram como opositores desse bloco historicamente estabelecido.

Considerando que boa parte do grupo pró-reforma agrária era composta pela Igreja progressista, identificada com os setores que dirigiam a CNBB à época, foi possível entender como suas derrotas não representaram o fracasso da instituição religiosa. Os alinhados à Teologia da Libertação foram combatidos em espaços congressuais; com isso foram reforçadas as propostas de outras linhas do clero – que, mesmo sem constar do rol de legitimados para a ANC, certamente mantinham contato com parlamentares conservadores. Essa situação pôde ser sugerida, principalmente, a partir dos conceitos de maleabilidade e permeabilidade da Igreja (Lagroye, 2006Lagroye, J. (2006). La vérité dans l’Église catholique. Contestations et restauration d’un régime d’autorité. Paris: Belin.; Langlois, 1997Langlois, C. (1997). La naissance de l’intellectuel catholique. In P. Colin (Org.), Intellectuels chrétiens et esprit des années 1920 (posfácio). Actes du colloque. Institut Catholique de Paris. Paris: CERF.). A instituição religiosa consegue jogar posicionando suas peças por todo o tabuleiro, alinhando-se com diferentes agências e interesses. Assim, quase sempre, alcança resultados favoráveis, ainda que contra o equilíbrio momentâneo de forças no interior da instituição religiosa. Sua composição heterogênea é um viés explicativo importante para sua constância em cenários políticos, econômicos, culturais, etc., ao longo de diferentes momentos históricos.

Nesse cenário, duas dinâmicas foram observadas em subcomissões que apresentaram propriedades distintas. Os católicos orientados pela CNBB estavam relacionados diretamente com a composição política apresentada pelos espaços, mas, também, com as possibilidades disponíveis para valer suas pretensões diante de concorrentes ou aliados. Ficou nítido que a Conferência episcopal, em nome da Igreja, e controlada por setores que incorporaram o aggiornamento, dialogou intensamente com outros grupos de interesse em um campo diferente do religioso. Religiosos participaram da construção da política do Estado a partir da ANC, seja aprovando suas pautas e visões de mundo ou resistindo às pretensões de seus adversários. Ainda que pese a laicidade republicana, a presença dessas personalidades católicas no tabuleiro político foi naturalizada. Mesmo com críticas pontuais de setores ruralistas, estratégia para defender setores econômicos e privilégios políticos de setores ameaçados pelos agentes da CNBB, em nenhum momento o Estado laico foi defendido com afinco nas subcomissões examinadas.

  • 1
    Apoio: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - processo 99999.003551/2015-06; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - processo 1414702014-5; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - processo 2014/032.03-2
  • 2
    Funcionários, na perspectiva weberiana (Weber, 2012Weber, M. (2012). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (Regis Barbosa et al, Trad., Vol. 2). Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo., p. 530).
  • 3
    A listagem pode ser encontrada no endereço: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/senadores-constituintes>.
  • 4
    Nesse sentido, a literatura relata a dificuldade para realizar clivagens a partir das formações/ocupações dos políticos (sobre esta questão, ver Neiva & Izumi, 2014Neiva, P., & Izumi, M. (2014, fevereiro). Perfil profissional e distribuição regional dos senadores brasileiros em dois séculos de história. RBCS, 29(84), 165-210.).
  • 5
    As feministas buscavam garantir direitos para as mulheres. Não isolavam os direitos infantojuvenis, mas os associaram às condições de vida das famílias e da população feminina.
  • 6
    No período, havia grande mobilização internacional, capitaneada pelo UNICEF, para difundir o novo direito infantojuvenil. Não à toa, 1979 foi definido como o Ano Internacional da Criança. Ademais, o Fundo se manteve próximo dos Arns – financiando a Pastoral da Criança. Em resposta, a CNBB colaborou, de certo modo, com este aliado internacional. De fato, ambos participavam da grande aliança que resultou na Convenção sobre os Direitos das Crianças em 1989 (Chaves, 1980Chaves, N. (1980). UNICEF no Brasil: ontem, hoje, amanhã. Brasília: UNICEF.; Del-Campo & Oliveira, 2005Del-Campo, E., & Oliveira, T. (2005). Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Atlas.; Neumann, 2003Neumann, Z. A. (2003). Depoimento – Zilda Arns: ela criou uma rede de solidariedade que salva centenas de milhares de crianças brasileiras. Belo Horizonte: Leituras.; Pereira, 2000Pereira, T. da S. (Org.). (2000). O melhor interesse da criança. Rio de Janeiro: Renovar.).
  • 7
    Recuperando análise aplicada em outro estudo (Bittencourt & Wohnrath, 2013Bittencourt, A., & Wohnrath, V. P. (2013, maio/agosto). Secularização e laicidade do Estado brasileiro depois da Constituição de 1988. RBPAE. 29(02), 283-303.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2017
  • Revisado
    26 Jun 2017
  • Aceito
    31 Jul 2017
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