Open-access Psicoterapia infantil: ilustrando a importância do vínculo materno para o desenvolvimento da criança

Child psychoterapy: the importance of attachment with the mother for the development of the child

Resumos

O presente trabalho tem por objetivo promover uma reflexão a respeito da importância da figura materna nas etapas iniciais e estruturantes da vida mental da criança. Para tanto, ilustra-se com um caso clínico de atendimento individual (psicoterapia breve) de uma criança de 8 anos de idade, cujos sintomas apresentados denunciam a possibilidade de Transtorno de Déficit de Atenção por Hiperatividade. Este atendimento foi realizado no Ambulatório de Psicologia Infantil do Hospital São Lucas da PUCRS.

psicoterapia breve; função materna; criança


The objective of the presente study was to discuss the importance of the mother´s presence on the child´s mental health development. As na illustration, we present a case study of an eight-year-old child submited to individual counseling. The child had clinical symptoms that suggested the possibility of na attention deficit and hyperactive disorder.

Attention deficit; mother´s role; attachment


Psicoterapia infantil: ilustrando a importância do vínculo materno para o desenvolvimento da criança 1

Anelise Hauschild Mondardo2,3

Dóris Della Valentina4

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo promover uma reflexão a respeito da importância da figura materna nas etapas iniciais e estruturantes da vida mental da criança. Para tanto, ilustra-se com um caso clínico de atendimento individual (psicoterapia breve) de uma criança de 8 anos de idade, cujos sintomas apresentados denunciam a possibilidade de Transtorno de Déficit de Atenção por Hiperatividade. Este atendimento foi realizado no Ambulatório de Psicologia Infantil do Hospital São Lucas da PUCRS.

Palavras-chave: psicoterapia breve; função materna; criança.

Child psychoterapy: the importance of attachment with the mother for the development of the child

Abstract

The objective of the presente study was to discuss the importance of the mother´s presence on the child´s mental health development. As na illustration, we present a case study of an eight-year-old child submited to individual counseling. The child had clinical symptoms that suggested the possibility of na attention deficit and hyperactive disorder.

Key-words: Attention deficit; mother´s role; attachment

A arte de educar um filho não se constitui em tarefa fácil, pois os cuidados com a criança se mostram constantes e permanentes, tornando-se a chave principal para a saúde de toda e qualquer criança, mesmo tendo ela alcançado certo grau de desenvolvimento e independência. Para isto, é necessário conhecer as inúmeras condições sociais e psicológicas que influenciam, positiva ou negativamente, o seu desenvolvimento.

Isso acontece porque a criança não é um organismo capaz de vida independente, necessitando, portanto, de uma instituição social especial que a ajude durante o período de imaturidade. A família, assim, tem dupla função no seu papel estruturador. Primeiramente, na satisfação de necessidades básicas como alimentação, calor, abrigo e proteção; em segundo lugar, proporcionando-lhe um ambiente no qual possa desenvolver ao máximo suas capacidades físicas, mentais e sociais. Bowlby (1988) complementa dizendo que para poder lidar eficazmente quando adulto, com o seu meio físico e social, é necessária uma atmosfera de afeição e segurança.

A esta atmosfera de segurança, Bowlby (1989) denominou de comportamento de apego, definindo-o como: "...qualquer forma de comportamento que resulte em uma pessoa (criança) alcançar e manter a proximidade com algum outro indivíduo claramente identificado (mãe), considerado mais apto para lidar com o mundo" (p.39).

O sentimento e o comportamento da mãe em relação a seu bebê são também profundamente influenciados por suas experiências pessoais prévias, especialmente as que teve e talvez ainda esteja tendo, com seus próprios pais. É este padrão de relacionamento parental que dará origem à forma como ambos os pais irão vincular-se ao filho, provendo ou não suas necessidades físicas e emocionais.

É neste sentido que Bowlby (1989) reforça a importância dos pais fornecerem uma base segura a partir da qual uma criança ou um adolescente pode explorar o mundo exterior e a ele retornar, certos de que serão bem-vindos, nutridos física e emocionalmente, confortados se houver um sofrimento e encorajados se estiverem ameaçados. A conseqüência dessa relação de apego é a construção, por volta da metade do terceiro ano de idade, de um sentimento de confiança e segurança da criança em relação a si mesma e, principalmente, em relação àqueles que a rodeiam, sejam estes suas figuras parentais ou outros integrantes de seu círculo de relações sociais.

Um importante traço do comportamento de apego é a intensidade da emoção que o acompanha, o tipo de emoção que surge de acordo com a relação entre a pessoa apegada e a figura de apego. Lebovici (1987), desenvolvendo estas idéias, reforça que, se tudo está bem, há satisfação e um senso de segurança, mas, se esta relação está ameaçada, existem ciúme, ansiedade e raiva. Se ocorre uma ruptura, há dor e depressão. Nesse caso de privação materna em que a criança é afastada de sua mãe, seja este afastamento de ordem física ou emocional, muitas são as conseqüências, tanto de ordem física, quanto intelectual e social, podendo, inclusive protagonizar o aparecimento de enfermidades físicas e mentais.

" Os efeitos perniciosos da privação variam de acordo com o grau da mesma. A privação traz consigo a angústia, uma exagerada necessidade de amor, fortes sentimentos de vingança e, em conseqüência, culpa e depressão". (p.14)

Se uma pessoa teve a sorte de crescer em um bom lar comum, ao lado de pais afetivos dos quais pôde contar com apoio incondicional, conforto e proteção, consegue desenvolver estruturas psíquicas suficientemente fortes e seguras para enfrentar as dificuldades da vida cotidiana. Nestas condições, crianças seguramente apegadas aos seis anos são aquelas que tratam seus pais de uma forma relaxada e amigável, estabelecendo com eles uma intimidade de forma fácil e sutil, além de manter com eles um fluxo livre de comunicação (Bowlby, 1984).

O mesmo autor aponta as conseqüências da situação inversa, ou seja, se esta mesma pessoa vem a crescer em circunstâncias diferentes, seu núcleo de confiança estará esvaziado, ficando prejudicadas as relações com outros semelhantes, havendo, pois, prejuízos nas demais funções de seu desenvolvimento.

As contribuições de Margareth Mahler ao desenvolvimento infantil reforçam as idéias desenvolvidas por Bowlby quanto ao estabelecimento, através dos cuidados parentais, de uma base segura aos filhos. Suas contribuições referem-se à importância fornecida às relações de objeto precoces, ou seja, ao vínculo com a mãe, às angústias de separação e aos processos de luto nas etapas evolutivas.

As fases que propõe como sendo organizadoras do psiquismo, incluem uma etapa do desenvolvimento no qual o eixo psicológico é a separação-individuação da criança em relação à mãe. A evolução normal ou patológica da criança seria conseqüência da forma como se configurariam as etapas anteriores e, principalmente, esta última fase do desenvolvimento mental. Mahler (1993) destaca que os três primeiros anos de vida da criança possuem importantes tarefas estruturantes, cujo alcance e passagem são determinados por dois fatores: primeiro, a dotação genética do bebê, que o impulsiona para o vínculo com o meio ambiente, permitindo perceber e aceitar os cuidados proporcionados pela mãe; e, segundo, a maternagem, ou seja, a presença de uma mãe que verdadeiramente proporcione esses cuidados.

A origem da enfermidade mental estaria, pois, nas dificuldades encontradas pela criança para realizar a tarefa determinada por cada uma dessas fases, isto é, no autismo normal, na simbiose normal ou na separação-individuação. Essas falhas podem ter sido provocadas por: defeitos inatos, incapacidade do ego para neutralizar as pulsões agressivas no estabelecimento do vínculo com a mãe; defeitos na relação mãe-filho: seja por patologia materna ou pela ausência real do par simbiótico e/ou traumas: doenças, acidentes, hospitalizações ou outros eventos que alterem a estabilidade emocional com a mãe ou a auto-imagem do indivíduo.

A intensidade e a precocidade dessas situações podem provocar importantes falhas no desenvolvimento infantil e, embora muitos autores definam diagnósticos de personalidade somente após o período evolutivo da adolescência, Palácio-Espasa (1997) fundamenta a importância e os critérios com os quais é possível identificar, do ponto de vista estrutural, organizações psíquicas já mesmo na infância.

Os distúrbios graves de personalidade de tipo Borderline ou pré-psicótico são exemplos de diagnósticos possíveis em crianças, segundo as idéias desenvolvidas pelo autor acima referido. O elemento dinâmico central deste tipo de funcionamento mental em crianças são as manifestações depressivas contra as quais se acionam mecanismos defensivos psicóticos para lidar com angústias depressivas muito violentas, geralmente originárias das intensas privações objetais nos primeiros anos de vida.

Nesta luta contra a depressão que, na verdade, denuncia sérias dificuldades na integração dos objetos bons e maus internalizados que ora gratificam, ora frustam, a criança utiliza mecanismos defensivos cujas manifestações clínicas apontam para um polimorfismo sintomático característico da organização limítrofe.

A variedade dessas apresentações é tanta que, na maioria das vezes, diversos sintomas aparecem concomitantemente na criança: distúrbios do sono, da alimentação, da linguagem, da aprendizagem escolar e do comportamento. A instabilidade psicomotora, nesses casos, pode ser compreendida como um estado reacional a uma situação traumatizante ou ansiogênica para a criança; uma resposta a uma angústia permanente, em particular quando dominam mecanismos mentais persecutórios projetivos; ou uma defesa maníaca face às angústias depressivas.

"... quanto mais jovem for a criança, mais facilmente passa pelo corpo sua maneira de expressar uma indisposição ou uma tensão psíquica. A atuação é, no início, a modalidade mais espontânea e mais natural de resposta". (Ajuriaguerra, 1986, p.96)

Quanto às manifestações clínicas, além das acima referidas, Palácio-Espasa (1997) complementa ressaltando que quando é pequena (entre 4 e 7 anos), a criança borderline apresenta muitas vezes distúrbios do humor de origem hipomaníaca: excitação, euforia, familiaridade excessiva, hiperatividade, temas de grandeza, etc. Na idade de latência, sobretudo tardia, observam-se mais freqüentemente manifestações de linha depressiva: tristeza, desaceleração psicomotora com inibições importantes, idéias e sentimentos de autodesvalorização, temas de perda.

Um dos sintomas freqüentes em crianças borderline, é a perturbação do curso do pensamento, estreitamente vinculado à enorme intensidade da problemática depressiva. Esses distúrbios do pensamento não se caracterizam por uma incoerência persistente como nas psicoses desorganizadoras, mas por uma irrupção do processo primário em um processo de pensamento sob a égide do processo secundário. Esta perturbação específica do pensamento simbólico dessas crianças se baseia no surgimento intermitente de fantasias arcaicas agressivas, compreendida como uma tentativa de diluir a angústia depressiva face às possibilidades libidinais restritas dessas crianças (Palácio-Espasa, 1997).

Caso Clínico

Para ilustrar o artigo, será apresentado um caso conduzido através de psicoterapia breve. O caso é o de Ana5, uma menina de oito anos de idade encaminhada pela escola ao Ambulatório de Psicologia Infantil do H.S.L., em função de estar repetindo a 1ª série do 1º grau e apresentar insuficiente rendimento escolar (notas baixas, dificuldades na escrita e na leitura, por exemplo). Além destes, a mãe refere sintomas como: agitação, dificuldade para concentrar-se nas atividades escolares e na realização das tarefas de casa, impaciência, intolerância, dificuldades para conciliar o sono e hiperatividade.

Ana é a primogênita de Pedro, 28 anos e Paula, 24. Juli é o nome da segunda filha, atualmente com 1 ano e 8 meses. Pedro e Paula se casaram quando tinham, respectivamente, 16 e 20 anos, tendo Paula engravidado de Ana quando estava com 18 anos. A 1ª gravidez, planejada, foi marcada pela ameaça de aborto, aos cinco meses de gestação, obrigando Paula a se submeter a um tratamento vitamínico e a permanecer em repouso nos meses seguintes. Neste período, Pedro responsabilizou-se pelos serviços domésticos e pela manutenção da casa.

Em relação ao sexo de Ana, Paula desejava uma menina, enquanto Pedro, um menino. Apesar de Pedro, nos primeiros momentos ao nascimento, não se aproximar da filha, passou a dispender muitos cuidados a ela, chegando inclusive a impedir que outros dela se aproximassem.

No período pós-parto, Paula passou a primeira semana na casa de sua mãe, retornando para seu lar devido às constantes solicitações do marido, que passou então a cuidar de ambas. Ana, desde os primeiros meses de vida, passou por várias hospitalizações. Quando estava com 1 mês e 4 dias, ficou internada em um hospital por 4 semanas com pneumonia. Paula relata que "entrouxava tanto a menina que até tirar a última pecinha de roupa, a menina já tava resfriada" (sic). Com mais alguns meses, Ana foi internada novamente, desta vez, por desidratação, devido ao desconhecimento de Paula quanto a alguns cuidados necessários, como oferecer água para o nenê, se este não estivesse mamando no peito. Paula não amamentou Ana, pois segundo ela, o tratamento vitamínico realizado durante a gestação, teria deixado um "gosto e cheiro ruins no leite, gosto de remédio" (sic). Aos 2 anos de idade, Ana quebrou o braço em função de uma queda, quase sendo atropelada meses mais tarde nas redondezas onde morava.

O despejo do condomínio onde residiam e o desemprego de Pedro, levaram-nos a morar no mesmo terreno da família de Paula. Nessa época, além da mãe, do pai e do irmão, da mesma idade de Ana, 3 anos, moravam no mesmo terreno outro irmão e a cunhada. O relacionamento de Ana com o tio, segundo a mãe, "nunca foi bom, pois sempre brigaram muito, tendo até que trocar o horário do colégio de Ana porque, estudando na mesma turma, só brigavam" (sic).

Em relação ao desenvolvimento da linguagem, Paula refere que as primeiras palavras de Ana, aos 6 meses, foram "papá" e "óó", referindo-se à avó. Apesar de suas tentativas, Ana respondia negativamente com a cabeça quando Paula tentava explicar-lhe que era sua mãe. Por muitas vezes, Ana dirigiu-se à avó (por quem Ana, segundo Paula, sempre cultivou muito afeto), chamando-a de mãe.

Apesar da tranqüila entrada de Ana na escola, a repetência e seus sintomas clínicos intensificaram-se com o nascimento da irmã, Juli. Segundo a mãe, há muito tempo a professora já vinha reclamando de sua dificuldade de concentração, inquietude na classe e resistência em desenvolver as atividades solicitadas.

Ao todo, foram realizados vinte atendimentos: três entrevistas com a mãe (coleta de dados) e dezessete com Ana (avaliação e início do atendimento psicoterápico).6 Além destes, foram realizados exames complementares e aplicação de testes psicológicos.

As sessões, realizadas duas vezes por semana, duravam cinqüenta minutos. Durante as mesmas, foi possível verificar comportamentos impulsivos e hiperativos, representados pela rapidez com que se movimentava na sala, pela incapacidade em concluir brincadeiras, bem como pela impaciência na realização de tarefas previamente determinadas, como a aplicação de testes psicológicos. Inicialmente, Ana manifestava desconfiança e desconforto em permanecer na sala durante o período dos atendimentos, caracterizados pelos constantes rituais obsessivos e pelas brincadeiras de "esconde-esconde", numa tentativa de, controlando externamente a situação, controlar suas próprias ansiedades e medos internos.

A avaliação psicopedagógica realizada demonstrou dificuldades na alfabetização, associadas a características de ansiedade e agitação, as quais têm influenciado no seu processo de aprendizagem, bem como provocado conflitos entre os colegas. Segundo a avaliação neurológica, seu desenvolvimento neuromotor é normal e, apesar de apresentar um grau elevado de hiperatividade, não é possível estabelecer tal diagnóstico.

A área percepto-motora foi avaliada pelo Teste Bender, assim como a área sócio-afetiva, pelos Testes Projetivos H.T.P., Teste da Família e Desenho Livre. O primeiro denunciou nível maturacional abaixo da média e compatível com a idade cronológica de cinco anos de idade, enquanto os demais apontaram importantes dificuldades no estabelecimento de relacionamentos interpessoais, caracterizadas por um excessivo atrito nas relações, bem como por um afastamento afetivo da figura materna. Como conseqüência, pode-se identificar um desajustamento social, uma imaturidade em função de características de egocentrismo, primitivismo e pobreza de impulsos.

Discussão

Através da história de vida e dos sintomas apresentados por Ana, é possível identificar importantes falhas no seu processo primário de estruturação psíquica. A atuação psicomotora, a hiperatividade e a impulsividade, associados às dificuldades em relação aos processos de simbolização, elaboração e identificação, revelam comprometimentos significativos na evolução pelas fases do desenvolvimento infantil normal.

Os inúmeros acidentes sofridos por Ana desde o seu nascimento, corroboraram a significativa falha de Paula no exercício do papel materno: oferecer, através dos cuidados físicos e afetivos, base segura e continência ao desenvolvimento normal da filha, funções estas destacadas por Bowlby (1988). Os perigos a que ficou exposta, principalmente nos três primeiros anos de sua vida, considerados fundamentais para a estruturação psíquica, denotam a negligência materna no estabelecimento, através do vínculo afetivo, de vivências de relação calorosa, íntima, reconfortante e prazerosa com a mãe. Esses perigos provavelmente foram registrados psiquicamente como descuido e desapego maternos. A superproteção de Paula, nesse contexto, pode ser compreendida como uma atitude reparadora de sua inabilidade materna, apesar de ter, na verdade, provocado muitas das situações traumáticas.

De acordo com Mahler (1993), estabeleceu-se, pois, uma relação simbiótica e fusional entre mãe e filha, cujos fins evolutivos não foram atingidos, pois não ofereceu os subsídios necessários para sua superação e suas aquisições características.

O desenvolvimento do núcleo de confiança básico (Bowlby, 1989), através do qual a criança, encorajada a explorar o mundo externo, adquire confiança em si mesma e nos demais indivíduos, ficou comprometido. Ana demonstra dificuldades para estabelecer relacionamentos seguros, repercutindo no seu processo de separação-individuação. Esta falha evolutiva, interferindo na estrutura egóica, no contato com a realidade e no desenvolvimento de recursos para lidar com as ansiedades, provoca prejuízos na representação psíquica de si e, conseqüentemente, da individualidade e da própria identidade, dificuldades estas que podem ser observadas na pobreza de seus desenhos, nas dificuldades em elaboração e simbolização, na incapacidade para contar histórias e nos prejuízos do processo de alfabetização. O contato com a realidade e as percepções externas são realizadas em seu nível mais primitivo e restrito: através do aparelho sensório-motor. Da mesma forma, a via de manifestação possível das ansiedades e fantasias é através do aparato psicomotor, fato este que pode ser identificado pelas trocas constantes de atividades e pela agilidade com que toma suas atitudes, geralmente precipitando-se em relação aos outros.

As relações de objeto internalizadas por Ana, prejudicadas devido à frustração extrema advinda da ausência de cuidados maternos, bem como ao afeto parcialmente recebido, provocaram importantes falhas na capacidade integrativa do ego, que se vê induzido a utilizar mecanismos de defesa primitivos, evitando, assim, a emergência do caos total de seu mundo interno. Transferencialmente, este "turbilhão" de emoções internas é expresso pela rapidez com que realiza as tarefas propostas, as atividades escolhidas e as próprias verbalizações, geralmente incompletas. Sintomas que corroboram as idéias desenvolvidas por Ajuriaguerra (1986), isto é, de que a criança faz do corpo um importante veículo para expressar seus sentimentos.

As reações fisiopatológicas de Ana, desde os seus primeiros meses de vida, revelam angústias demasiadamente intensas frente ao sentimento aniquilador de morte. Este sentimento é provocado pelas deficiências não só autoconservativas, mas principalmente pulsionais.

A relação de objeto que se estabelece, portanto, é uma dependência anaclítica permeada constantemente pelo temor e o perigo imediato de perda. A estrutura egóica de Ana nestas condições caóticas e estressantes, desenvolve menos recursos para lidar com a realidade, utilizando mecanismos diretos na expressão de seus estados internos extremamente desorganizados.

Nos atendimentos realizados com Ana, este tipo de relação objetal tem suas manifestações caracterizadas por comportamentos de desconfiança e exitação, através dos quais se evidencia uma intensa necessidade de testar o ambiente e a reação do outro (terapeuta) em atitudes que expressam suas ansiedades e focos conflitivos.

Nesse contexto, tomando o aporte teórico de Palácio-Espasa (1997) a cerca da possibilidade de inferir diagnóstico precoce na infância, pode-se compreender a hiperatividade como um estado reacional a situações traumatizantes e ansiogênicas, assim como uma forma de defesa maníaca face às angústias depressivas que, se identificadas, tornar-se-iam letais. Diante dessa situação, Ana expressa, através do polimorfismo sintomático, suas relações objetais iniciais frustrantes e sua incapacidade para lidar com situações ansiogênicas.

O grau destas dificuldades pôde ser observado, por exemplo, na realização do Teste da Família, no qual a paciente, solicitada a desenhar as pessoas que compõem seu grupo familiar, desenhou, num primeiro momento, a fachada de sua casa, numa expressão concreta de sua realidade. A realização correta desta tarefa só foi alcançada, embora o tenha sido de forma parcial, pois representou parte de sua família, com a repetição das instruções e com a realização de vários questionamentos. Ana só não teve um comprometimento maior em função da presença materna da avó, bem como do próprio pai. Entretanto, seu nível de dificuldades têm aumentado consideravelmente, principalmente devido ao nascimento da irmã, há mais ou menos um ano e meio atrás, coincidindo com a repetência na primeira série, como também pela confusão de papéis em sua dinâmica familiar.

De acordo com as idéias desenvolvidas até aqui, observa-se precursores de um delineamento borderline, principalmente se forem levadas em consideração as falhas e as dificuldades apresentadas por Ana nas relações objetais, no processo de simbolização, na incapacidade para controlar seus impulsos, bem como no sintoma de hiperatividade. Entretanto, mesmo apesar dos poucos recursos egóicos e da prevalência de mecanismos de defesa primitivos, a fase evolutiva da paciente, 8 anos de idade, apenas permite fazer suposições a respeito de seu desenvolvimento e prognóstico. Ela ainda está em fase de estruturação e, como tal, apresenta terreno fértil para potencializar seus recursos e aumentar suas capacidades sócio-afetivas.

Em termos de prognóstico, verifica-se seu caráter reservado, levando-se em consideração o comprometimento atual de Ana, suas limitações cognitivo-sociais e seus sintomas atuais, ao passo que, considerando o ambiente no qual está inserida, este caráter modifica-se para grave, face às dificuldades estruturais do ambiente familiar, assim como às nítidas confusões de papéis existentes. Esse prognóstico é cauteloso no sentido de expressar a necessidade de intervir nesta dinâmica, face a seus antecedentes e a sua atual situação. Em hipótese alguma, caracteriza-se como um entendimento fechado e acabado, pois, se assim o fosse, o objetivo principal de toda e qualquer intervenção terapêutica estaria desrespeitando o eixo básico que rege os princípios psicológicos, isto é, de que todo ser humano pode, recebendo algum tipo de apoio interno e externo, promover mudanças de vários níveis.

Nesta busca humana e terapêutica pela mudança e pela saúde psíquica, há de se destacar, no caso de Ana, a presença importantíssima do pai e da avó materna, pessoas que puderam "substituir", pelo menos temporariamente, a ausência materna, uma vez que esta estava enfrentando dificuldades por sua própria história de vida e estruturação dinâmica. É claro que se essas presenças fossem analisadas friamente, talvez fossem consideradas negativas ou até mesmo "sufocantes", mas diante das falhas apresentadas pela figura materna, essas pessoas foram investidas do papel de acalentar, na medida do possível, ansiedades tão precocemente despertadas.

As dificuldades nos relacionamentos objetais existem e não podem ser relegadas a um segundo plano. Entretanto, é imprescindível destacar que Ana é capaz de apegar-se a pessoas que oferecerem segurança e estiverem dispostas a tornarem-se dignas de sua confiança. Muitas vezes, a intensidade com a qual estabelece esses relacionamentos denunciam a necessidade de, através da organização e do limite do outro, organizar sua confusão interna. E isto, por si só, prenuncia desejos de mudanças e capacidade para empreendê-las.

Atualmente, Ana segue em processo psicoterápico, da mesma forma que seus pais passaram a contar com sessões sistemáticas, nas quais recebem orientações quanto ao manejo com a filha.

Conclusão

Estas constatações diagnósticas e prognósticas corroboram a importância do papel materno, não só nos primeiros meses de vida, mas ao longo de todo desenvolvimento infantil, contribuindo para a estruturação sadia do aparelho psíquico da criança. Papel este que, falhando ou apresentando comprometimentos, pode ser reparado e reforçado mediante a intervenção psicológica, bem como pela participação de outros profissionais, numa abordagem interdisciplinar rumo à promoção de saúde mental.

Embora esse atendimento em particular tenha sido auxiliado pela área médica no esclarecimento dos sintomas da paciente (Neuropediatria), destaca-se a importância da interface profissional se articular de forma mais precoce. O atendimento psicológico, integrado a outros atendimentos, num trabalho efetivamente interdisciplinar, convergiria para a prevenção primária de saúde mental, potencializando a qualidade de vida das pessoas envolvidas (paciente e familiares).

Recebido em 03.09.97

Revisado em 16.02.98

Aceito em 13.08.98

Referências bibliográficas

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  • Lebovici.(1987). O bebę, a măe e o psicanalista. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Mahler, M. S. (1993). O nascimento psicológico da criança: simbiose e individuaçăo Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Palácio-Espasa, F. (1997). Diagnóstico Estrutural na Infância. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • 1
    Trabalho realizado no Hospital São Lucas da PUCRS durante estágio curricular em Psicologia Clínica (Julho/97).
    2
    Endereço para correspondência: Avenida Alegrete, 126/202 - Petrópolis - POA/RS - 90.460.100 - Fone: 3309848 - E-mail:
    3
    Estudante de graduação do Curso de Psicologia da PUCRS.
    4
    Professora no Instituto de Psicologia da PUCRS.
    5
    Todos os nomes apresentados são fictícios para preservar a identidade dos participantes.
    6
    Este atendimento psicoterápico foi realizado durante o estágio curricular em Psicologia Clínica da primeira autora. Ao término deste, a paciente foi encaminhada para outra estagiária a fim de prosseguir no atendimento.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2002
    • Data do Fascículo
      1998

    Histórico

    • Aceito
      13 Ago 1998
    • Revisado
      16 Fev 1998
    • Recebido
      03 Set 1997
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