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PSICODRAMA PÚBLICO SP ON-LINE DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

PUBLIC PSYCHODRAMA SP ON-LINE DURING THE COVID-19 PANDEMIC

PSICODRAMA PÚBLICO SP ON-LINE DURANTE LA PANDEMIA DEL COVID-19

RESUMO

O objetivo deste trabalho é apresentar reflexões sobre as sessões de Psicodrama Público SP On-line ocorridas entre agosto de 2020 e dezembro de 2021. O procedimento utilizado foi a análise qualitativa de entrevistas com a unidade funcional, o anfitrião e alguns participantes, gravadas após a realização dos psicodramas. Foram criadas quatro categorias a partir dos temas protagônicos apresentados. Foram identificados dois movimentos complementares: um em direção ao desequilíbrio e outro em direção à tentativa de restaurá-lo,além de uma retroalimentação entre as categorias e entre os períodos analisados. Observou-se que se instauraram novos processos de subjetivação no contexto grupal marcados pelos múltiplos sofrimentos vivenciados no período pandêmico da COVID-19, facilitados pela liberação da espontaneidade e criatividade.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; COVID-2019; Pesquisa qualitativa; Enfoque sistêmico; Interação interpessoal

ABSTRACT

This paper aims to present reflections on the Psicodrama Público SP On-line sessions that took place between August 2020 and December 2021. The procedure used was the qualitative analysis of interviews, with the functional unit, the host and some participants, recorded after the realization of psychodramas. Four categories were created from the main themes presented. Two complementary movements were identified: one towards the imbalance and the other towards the attempt to restore it, in addition to a feedback between the categories and between the analyzed periods. It was observed that new processes of subjectivation were established in the group context marked by many sufferings in the pandemic period of COVID-19, facilitated by the release of spontaneity and creativity.

KEYWORDS
Psychodrama; COVID-2019; Qualitative Research; Systemic Approach; Interpersonal interaction

RESUMEN

El objetivo de este trabajo es presentar reflexiones sobre las sesiones de Psicodrama Público SP On-line que se desarrollaron entre agosto de 2020 y diciembre de 2021. El procedimiento utilizado fue el análisis cualitativo de entrevistas, con la unidad funcional, el conductor y algunos participantes, grabadas después de la realización de psicodramas. Se crearon cuatro categorías a partir de los principales temas presentados. Se identificaron dos movimientos complementarios: uno hacia el desequilibrio y otro hacia el intento de restaurarlo, además de una retroalimentación entre las categorías y entre los periodos analizados. Se observó que se establecieron nuevos procesos de subjetivación en el contexto grupal marcado por los muchos sufrimientos en el período de pandemia por la COVID-19, facilitados por la liberación de la espontaneidad y la creatividad.

PALABRAS CLAVE
Psicodrama; COVID-2019; Investigación cualitativa; Enfoque sistémico; Interacción interpersonal

INTRODUÇÃO

O SARS-CoV-2 não existia no mundo em 2018, quando da eleição do presidente do Brasil. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou que o surto do novo coronavírus constituiu uma emergência de saúde pública de importância internacional — o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional (OPAS/OMS, 2022[OPAS/OMS] Organização Pan Americana de Saúde/Organização Mundial de Saúde. (2022). Histórico da Pandemia de Covid-19. Recuperado de: https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19. Acesso em 28 jul. 2022.
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). No Brasil, a pandemia foi anunciada após o carnaval, em março de 2020, e se prolongou pelos anos seguintes. Em 2020 ainda não havia perspectivas de vacinas e, portanto, havia um alto índice de mortes. A disponibilização de vacinas para a população, a partir dos mais idosos e imunossuprimidos, iniciou-se no primeiro semestre de 2021. Até novembro de 2021, morreram 720 mil brasileiros (intervalo de confiança entre 634 mil e 907 mil) (COVID-19 Cumulative Infection Collaborators, 2022COVID-19 Cumulative Infection Collaborators. (2022). Estimating global, regional, and national daily and cumulative infections with SARS-CoV-2 through Nov 14, 2021: a statistical analysis. Lancet, 399(10344), 2351–2380. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(22)00484-6
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).

Se verificarmos o número de pessoas que morreram a cada 100 mil habitantes, vemos que em todo o mundo foram 194, no Brasil, 332, na Nova Zelândia 0,8. A média mundial de infecções por 100 mil habitantes foi de 44% enquanto no Brasil 66%. Desses infectados, 0,5% dos brasileiros morreram, enquanto no mundo 0,4%. O governo do Brasil nesse período desprezou o vírus e a ciência e recomendou tratamento ineficiente e ineficaz. Seu negativismo substituiu Ministros de Saúde que não concordaram com os procedimentos recomendados pelo próprio governo, ampliou a polarização política, social, afetiva e também a diferença econômica entre pobres e ricos no País. Estima-se no mínimo 50 mil mortes sob sua responsabilidade, 16% da população desempregada, 33 milhões abaixo da linha de pobreza passando fome, ou seja, o suficiente para criminalizar qualquer pessoa ou gestão por responsabilidade, homicídio ou genocídio (COVID-19 Cumulative Infection Collaborators, 2022COVID-19 Cumulative Infection Collaborators. (2022). Estimating global, regional, and national daily and cumulative infections with SARS-CoV-2 through Nov 14, 2021: a statistical analysis. Lancet, 399(10344), 2351–2380. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(22)00484-6
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).

Segundo Castro-Silva et al. (2021, p. 3)Castro-Silva, C. R. D., Ianni, A. & Forte, E. (2021). Desigualdades e subjetividade: Construção da práxis no contexto da pandemia de COVID-19 em território vulnerável. Saúde e Sociedade, 30(2), e210029. https://doi.org/10.1590/S0104-12902021210029
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“a pandemia de COVID-19 surge em uma economia global predominantemente neoliberal já desestabilizada e em intensa crise de legitimidade”.

Psicodrama Público On-line

O momento pandêmico levou muitas atividades ao formato on-line, entre elas a psicoterapia. Em 2019, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) já havia regulamentado o atendimento por meio de tecnologia da informação (TI) e, em 2020, ampliou as possibilidades de atendimento on-line, em função das restrições impostas pela COVID-19, incluindo atendimento a pacientes em situações de emergência e urgência, o que até então não era permitido (CFP, 2020[CFP] Conselho Federal de Psicologia. (2020). Resolução CFP n. 04/2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do COVID-19. Recuperado de: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-4-de-26-de-marco-de-2020-250189333. Acesso em 28 jul. 2022.
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; Ferreira, 2021Ferreira, M. B. (2021). Caminhando com o psicodrama on-line. Revista Brasileira de Psicodrama, 29(1), 53–59. https://doi.org/10.15329/2318-0498.00434
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).

O Psicodrama Público SP na modalidade On-Line foi iniciado em abril de 2020, em decorrência da COVID-19. Desdobrou-se do projeto Psicodrama Público do Centro Cultural São Paulo implementado desde 2003. A partir de agosto 2020, o grupo de coordenação passou a realizar entrevistas logo após a sessão psicodramática, com a equipe dirigente e alguns participantes da plateia, e a gravar e publicar no YouTube (Alocadas no perfil “Psicodrama Público SP”).

É importante pontuar o que vem a ser público e público on-line:

[…] o Psicodrama Público recupera a conexão entre a palavra psicológica, íntima e doméstica — oikos —, drama do eu-tu e a palavra política, pública e coletiva — polis —, lugar da nossa tragédia. Foi através da tragédia, no teatro, como lugar de onde se vê, que na antiguidade os gregos articularam a passagem do mítico ao político.

(Mascarenhas (2020, p. 7)Mascarenhas, P. (2020). Mas o que é público mesmo? In D. Merengué & A. Dedomenico (Orgs.), Por uma vida espontânea e criadora: Psicodrama e política (pp. 93–106). Ágora.

Wechsler (2014, p.86)Wechsler, M. P. F. (2014). Preço e/ou apreço: Jornal Vivo como dispositivo ou contra dispositivo? In M. P. F. Wechsler & R. F. Monteiro (Orgs.), Psicodrama em espaços públicos: Práticas e reflexões (cap. 7). Ágora. também referenda o Psicodrama Público como um dispositivo, quando nos relata e reflete sobre um jornal vivo por “Denunciar ou refletir a existência dos dispositivos para que de fato considere se a escolha é fundamental, diferente do que presenciamos no cotidiano, pois não há escolha e sim a manutenção da contradição, do poder e do controle”.

Dessa maneira, é possível afirmar que o termo público — do latim publicus, relativo ao povo, possivelmente derivado do etrusco e que, segundo Castro (2022)Castro, M. A. (2022) Dicionário de poética e pensamento. [online]. Recuperado de: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Dicionário_de_Poética_e_Pensamento. Acesso em 28 jul. 2022.
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também adquiriu significado de aberto a toda a comunidade — traz consigo a ideia de comunidade que ocupa os espaços físicos, virtuais, cidadãos, simbólicos, tecendo ações, entoando músicas e desenhando cores e sabores de múltiplos vértices (privado e coletivo ao mesmo tempo).

E o que pensamos sobre psicodrama público on-line? Alguns psicodramatistas, como Dedomenico e Fernandes (2012)Dedomenico, A. M. & Fernandes, C. (2012). Pistas contemporâneas em socionomia. In M. P. Nery & M. I. G. Conceição (Orgs.), Intervenções grupais: O psicodrama e seus métodos (pp. 195–212). Ágora., já afirmavam a possibilidade de o Psicodrama ocupar espaços diversificados:

As fronteiras do espaço físico dramático tornam-se fluidas... o palco deixa de ser delimitado fisicamente... a distinção entre palco e plateia torna-se extremamente porosa... Ao deslocar as cenas para novos espaços fora dos limites predefinidos do palco, é a própria geografia mental que sofre uma mutação e nos obriga a construir novos mapas subjetivos

(p. 209).

O Grupo Reprise, ao realizar sua primeira sessão on-line, também chama a atenção para as possibilidades presentes no Psicodrama Público On-Line especialmente em relação ao sentimento de pertencimento que surgiu entre os participantes:

Ao superar as barreiras geográficas físicas e as barreiras psíquicas do distanciamento social, as intervenções podem, como foi o caso da nossa em particular, avivar a noção de pertencimento, de identificações e de coletivo durante a pandemia. Cada um pode se sentir parecido em momentos como esse de sofrimento mundial, a ponto de não se sentir enlouquecendo em sua solidão ou no seio familiar de exclusiva convivência, as vezes tão difícil. Isso pode ser considerado saúde, o pertencer!

(Rodrigues et al., 2020Rodrigues, R., Coutinho, E. T., Barêa, J. C. & Aguiar, A. O. (2020). Teatro de reprise telepresencial em tempos de COVID-19. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(2), 142–153. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20836
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, p. 152)

Ou seja, o virtual, ou on-line, também pode ser público e algumas singularidades deste trabalho precisam ser visíveis. Entre elas, a importância de aquecimentos e conexões que engendrem tele. Aqui vale recuperar o conceito de tele como cocriação (Perazzo, 2010Perazzo, S. (2010). Psicodrama: O forro e o avesso. Ágora.) e que no modo on-line inclui essa cocriação e conexão à distância. Essa conexão é também vibratória, acontece no entre, no campo energético e atualiza ações espontâneas e criativas. Assim, o dispositivo ou contradispositivo Psicodrama Público SP On-Line traz a possibilidade dessa conexão coletiva que abarca e expande o individual, transformando o mítico, os ritos, em político. Sendo assim, o Psicodrama Público SP On-Line desenha um novo cenário público e uma nova comunidade onde “a amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política” (Agamben, 2009Agamben, G. (2009). O que é contemporâneo? E outros ensaios. Argos., p. 92).

Os conceitos acima se apoiam em uma episteme na qual a noção de singularidade é vista:

[…] como uma individualidade em processo de subjetivação, processo esse inteiramente variável conforme os indivíduos e as épocas e que se realiza segundo percursos e regras diversificadas. Pode-se considerar o homem como um experimentador de si mesmo, em busca de formas inéditas de ser e de estar no mundo. O campo conceitual da formação dos processos de subjetivação permite entender os movimentos individuais e coletivos como tentativas de escapar dos saberes constituídos e dos poderes dominantes que impedem a emergência de um estilo mais genuíno

(Melman, 2001Melman, J. (2001). Família e doença mental: Repensando a relação entre profissionais de saúde e familiares. Escrituras., p. 100-103).

Estamos falando sobre os dispositivos que atravessam a constituição do sujeito e grupos e no escopo da socionomia, atravessam a matriz de identidade/singularidades, por intermédio dos papéis e papéis complementares, a sociometria, a sociodinâmica e a sociatria (Wechsler, 2020Wechsler, M. P. F. (2020). Relações entre afetividade e cognição. De Moreno a Piaget. Do construtivismo piagetiano à sistêmica construtivista. Da clínica privada à clínica social. Appris.). Dessa maneira, nossa visada epistemológica se apoia quer nesses conceitos citados como também em um enfoque sistêmico, na medida em que ao se trabalhar com grupos, focamos o sistema intrapsíquico e interpsíquico, iluminando as possíveis retroalimentações.

Em consonância com esses conceitos e com o contexto social do momento, foi realizado este estudo com o objetivo geral de apresentar e desenhar reflexões sobre as Sessões de Psicodrama Público SP On-Line. Os objetivos específicos pretenderam compreender quais relações existiram entre os contextos grupal, dramático e social. Também se pretendeu articular a implicação da subjetividade do diretor nos processos grupais, visto que dispararam temáticas pelos flyers1 1 A divulgação do psicodrama público é realizada pela internet (grupos de WhatsApp, YouTube etc.) por meio de flyers que contém o tema do psicodrama sugerido pelo diretor, ilustração alusiva ao tema, data, unidade funcional e link de acesso. . Nesse sentido, a partir do vértice teórico do campo da socionomia, o envolvimento existencial e o distanciamento reflexivo do diretor são necessários para poder conduzir uma sessão, a serviço do desenho e do trabalho com a demanda espontânea que emerge do grupo. Considera-se que o que se produz no contexto dramático diz do contexto grupal e do social, construindo-se saberes advindos dessas articulações.

MÉTODOS

Foi realizada análise qualitativa das entrevistas, a partir de leitura e sistematização de entrevistas realizadas com a unidade funcional (diretor e equipe), anfitrião e convidados da plateia, logo após o término da sessão de Psicodrama Público On-Line, no período de agosto de 2020 a dezembro de 2021, e alocadas no perfil “Psicodrama Público SP” do YouTube. O critério para o convite de pessoas da plateia foi a leitura que a unidade funcional fazia da implicação com a sessão e, também, o desejo do próprio sujeito da plateia.

Nem todas as entrevistas foram encontradas disponíveis no canal do YouTube, de modo que somente as publicadas no perfil Psicodrama Público SP foram objeto de análise. Para tal análise, foi elaborada uma planilha com informações retiradas das entrevistas, destacando-se os seguintes itens: data, direção ou unidade funcional, temáticas disparadas pelos diretores e temas protagônicos, que são os temas significativos trabalhados pelo grupo numa sessão psicodramática. Essa sistematização abrangeu três períodos semestrais (agosto a dezembro de 2020, janeiro a julho de 2021 e agosto a dezembro de 2021) períodos que também abarcaram o auge da pandemia.

A população atendida tinha um modo de acessar o link disparado pela divulgação feita por meio do WhatsApp e entrava nas sessões por computador ou celular. Assim, pode-se dizer que o critério de inclusão foi ter acesso à internet e ao link divulgado. A maior parte dos participantes estava sediada em cidades brasileiras, pertencentes às diversas regiões do Brasil, embora a maioria tenha se concentrado no estado de São Paulo. Algumas vezes participaram pessoas de outros países como Argentina, Chile e Portugal, seja na unidade funcional, como convidadas, ou na plateia. Havia participantes que se identificavam como estudantes de Psicologia, outros, psicodramatistas em formação ou formados, além daqueles que buscavam psicoterapia ou espaço para colocar suas inquietações.

A sistematização dos temas disparados pelos diretores e dos temas protagônicos, levantados a partir das entrevistas, permitiu criar quatro categorias de análise, a partir do critério do que foi possível apreender sobre o que a maioria dos temas protagônicos tinham em comum, dentro do contexto dramático.

Compreende-se categorias como construções abstratas, delineadas a partir de critérios criados sobre a leitura de fenômenos pesquisados. Aqui tratava-se do que os fenômenos tinham em comum, ou seja, os temas protagônicos. Contribuíram, portanto, para explicar parte do real. Dessa forma, são vistas como indicadores e marcadores, mas sem abranger todas as implicações possíveis (Rey, 2003Rey, F. G. (2003). Epistemologia Cualitativa y Subjetividad. Educ.). Outro ponto que contribuiu para a criação dessas categorias aqui descritas tem a ver com as implicações entre os contextos social, grupal e dramático, existentes no desenvolvimento de uma sessão de psicodrama (aqui latu sensu) como já afirmado.

Dessa maneira, as categorias criadas foram assim denominadas: Relações Consigo Próprio (nomeada pelos conteúdos apreendidos que falavam de si mesmo, do modo de organização intrapsíquica — intrarrelacional), Relações com o Outro (nomeada pelos conteúdos apreendidos que falavam de relações interpsíquicas — interrelacionais, ou seja, na relação entre pessoas, eu-tu), Relações Sociais (nomeada como fluxos e redes advindos dos padrões interrelacionais, ou seja, os que aparecem no contexto social, eu-nós) e Relações Políticas (nomeada como a arte de criar possíveis intervenções a partir do reconhecimento dos valores que atravessam os laços sociais, engendrando as relações que falam do contexto político).

A ação psicodramática, especialmente o psicodrama público, implica nas diferentes relações (consigo próprio, com o outro, sociais e políticas) constituindo-se essencialmente numa ação de cidadania. (Mascarenhas, 2020Mascarenhas, P. (2020). Mas o que é público mesmo? In D. Merengué & A. Dedomenico (Orgs.), Por uma vida espontânea e criadora: Psicodrama e política (pp. 93–106). Ágora.)

RESULTADOS

A seguir, análise de cada um dos períodos, ancorada tanto pelos quadros sinópticos contendo data, títulos dos Psicodramas On-Line e os temas protagônicos organizados de acordo com as categorias descritas quanto pelos movimentos engendrados (equilíbrios e desequilíbrios).

Período 1: de agosto a dezembro de 2020

Nesse período, a pandemia já é um fato consolidado, com muitas mortes, sem perspectiva de vacinas (Tabela 1).

Tabela 1
Quadro sinóptico de categorias criadas a partir dos temas protagônicos, de agosto a dezembro de 2020.

As categorias e seus movimentos foram:

Categoria 1– Relações Consigo Próprio: Foi possível perceber que existiram momentos de grandes dificuldades e sofrimentos, como por exemplo: solidão, medo da morte, egoísmo, culpa, medo, controle e repressão, autoritarismo e impotência. Por outro lado, existiram momentos de aprendizagens em busca de soluções, como por exemplo: autonomia, lidar com imprevistos, identidade racial, liberdade de expressão, potência, transformações, do luto à luta, resiliência diante da morte.

Categoria 2Relações com o Outro: Também foram dois movimentos: um que apontava para fobias (medo de pegar e passar o vírus), violência entre casais, modos simbióticos e parasitários de relações, luto em grande escala, relações de autoritarismo, repressoras e controladoras. E o outro movimento que apontava para vislumbres de alternativas como lidar com mudanças, liberdade de expressão, amor e prazer idealizados, aceitação das diferenças.

Categoria 3Relações Sociais: Do mesmo modo, dois movimentos encontrados: um em direção aos valores destrutivos do laço social como corrupção, violência, racismo, regimes autoritários, assimetria social e econômica; e outro movimento apontando para aspectos construtivos do laço social como dignidade, educação escolar e aceitação das diferenças.

Categoria 4Relações Políticas: Trouxe linhas que precisam ser levadas em conta para possíveis intervenções que redirecionem o caminho da governança, tais como: o reconhecimento da corrupção, violência nas múltiplas facetas, racismo, assimetria econômica-social e regimes autoritários. A partir disso poder-se-ia redesenhar linhas que apontem para cidadania, soberania, ética, religiosidade e mudanças culturais.

Observa-se nas categorias 1 e 2 que, entre novembro e dezembro de 2020, houve maior incidência dos temas morte e luto (em função do contexto de recrudescimento da pandemia, ainda sem vacinas).

Período 2: de janeiro a julho de 2021

Neste período inicia-se a vacinação contra COVID-19 no Brasil (Tabela 2).

Tabela 2
Quadro sinóptico de categorias criadas a partir dos temas protagônicos de janeiroa julho de 2021 (início da vacinação).

As categorias e seus movimentos foram:

Categoria 1 –Relações Consigo Próprio: Foram identificados aspectos que qualificam o autocuidado, a potência, a solicitude, as memórias ancestrais, o prazer no trabalho, a justa-medida, a emoção de ser vacinado e o conforto como possibilidades de lidar com os movimentos intrapsíquicos que levam às dualidades entre razão e emoção, às questões de identidade, à omissão, à negação, ao medo de entregar-se às paixões, à solidão, ao confinamento e isolamento, às intransigências afetivas, às dores frente às diferenças, aos conflitos entre papel de mulher e de mãe, aos desgastes emocionais, ao stress, ao luto de cada um.

Categoria 2 –Relações com o Outro: Percebeu-se aspectos que buscam uma melhor qualificação nas relações familiares e sua origem; na necessidade de acolhimento e afeto por intermédio de relações cooperativas e inclusivas; dos desejos e das entregas; do pertencimento pelos vértices de estar junto, poder compartilhar e trabalhar em equipe; do reconhecimento por aquilo que sentimos, somos, fazemos e precisamos; do calor humano; da recriação de si; da possibilidade de interação a partir da ampliação da relação virtual. Pensamos que essa busca de qualificação que anunciamos existiu para dar conta dos medos pelas incertezas sobre as paixões, desilusões, maus tratos, infidelidade, conformismo, indiferenciação, não reconhecimento e vergonha; medos em relação à pandemia e a morte.

Categoria 3 –Relações Sociais: As relações descritas acima, do campo interpsíquico que nos mostram a ‘sombra relacional’ traduzem no campo social o horror da pandemia; o luto coletivo; o medo dos julgamentos e de como será o amanhã; a vulnerabilidade e invisibilidade dos moradores de rua e de outras minorias; a ditadura social, onde o trabalho é opressivo, fragmentado e está em falta; a desigualdade social e econômica, a escravidão e os desdobramentos na sociedade atual; o preconceito sobre o envelhecimento; a massificação e a banalização do cotidiano. Em contrapartida, pensamos que para se lidar com tudo isso, os movimentos dos temas protagônicos também apontaram para a necessidade de espaços afetivos e acolhedores; para a valorização da ancestralidade; para o empoderamento feminino; para o fortalecimento de laços de confiança; para a valorização do discernimento, do afeto, da educação. Enfim, para fortalecer a potência do coletivo e de vida.

Categoria 4 –Relações Políticas: Os conteúdos apreendidos para essa categoria também desenharam dois movimentos: O primeiro apontou para um desgoverno, um regime fascista sem leis e regras, destrutivo, genocídio dos povos originários, trazendo desesperança e desilusão enquanto país; medo de rupturas de pactos e combinados; uma falta de responsabilização institucional; uma guerra na pandemia. Um lixo produzido que retroalimenta a produção do próprio lixo, impondo a necessidade de um segundo movimento: reciclar a HUMANIDADE com resistência e luta, vacinas para todos, mostrando a necessidade de novos direcionamentos para políticas públicas.

Período 3: de agosto a dezembro de 2021

Nesse período houve um recrudescimento da pandemia pela chegada de novas variantes. A Tabela 3 detalha as categorias e seus movimentos.

Tabela 3
Quadro sinóptico de categorias criadas a partir dos temas protagônicos de agosto a dezembro de 2021.

As categorias e seus movimentos foram:

Categoria 1 –Relações Consigo Próprio: percebemos uma continuidade do movimento rumo à busca pelo próprio caminho, refletindo-se sobre os propósitos singulares e suas ressignificações, nos vértices profissional, sonhos, desejos, descontrolar o autocontrole e indo em direção ao aconchego como possibilidades para se lidar com os movimentos intrapsíquicos que levam à dor, ao sofrimento e à tristeza, às dificuldades de se lidar com as mudanças corporais — corpo infantil e corpo de adolescente —, às patologias como cutting.

Categoria 2 –Relações com o Outro: Apreendemos um movimento em direção às questões do papel profissional, que pede um papel complementar, dramas e tramas das relações afetivas como violência, preconceito, dor, morte e controle. E outro movimento rumando em busca de ressignificações e saúde mental relacional.

Categoria 3 –Relações Sociais: Durante esse segundo ano de pandemia, percebe-se que os movimentos protagônicos nessa categoria apontaram para a vida enquanto devir, com a necessidade de propósitos sociais (valores), de ressignificação dos laços sociais (colo confiável no âmbito social), cidadania, resgate da ancestralidade, força coletiva frente às dificuldades, quais sejam lutos coletivos, retomadas de atividades presenciais, machismo, questões de gênero e códigos de comunicação que interferem na vida (símbolos e signos).

Categoria 4 –Relações Políticas: Frente às dificuldades sociais encontradas, essa categoria mostrou um movimento em direção ao como digerir as contradições políticas? que liberdade é essa? denunciando uma inversão de valores no que diz respeito ao impacto das mortes na pandemia, sendo tratadas como relações colonizadoras e as fake news. Para se lidar com isso, desenhou-se um outro movimento em direção à vida como utopia e ao Psicodrama Público como força política na qual se pode resgatar a unidade latino-americana como redes de intervenções, a cultura brasileira como saúde e o espaço para ativismos.

Análise da relação entre as categorias

Em cada categoria dos períodos analisados foi possível observar dois movimentos: um movimento fragilizador e um outro potencializador relacionados aos temas protagônicos sistematizados, ou seja, um em direção ao desequilíbrio vivenciado, com dificuldades e sofrimentos e outro em direção à tentativa de restaurar esse equilíbrio, movimento inerente aos sistemas vivos.

No período de agosto a dezembro de 2020, observa-se que nas categorias Relações Consigo Próprio e Relações com o Outro destaca-se a procura de soluções em meio a sofrimentos diversos. Nas categorias Relações Sociais e Relações Políticas, por sua vez, percebe-se a busca de valores e governança construtiva frente à incidência de valores e governança destrutiva. Percebe-se que as quatro categorias estão imbricadas entre si, ou seja, as dificuldades e sofrimentos das questões individuais e coletivas refletem-se nas questões sociais e políticas. Do mesmo modo, Batista e Nilson (2022)Batista, M. A. & Nilson, L. H. (2022). Psychodrama and Politics. In H. J. Fleury, M. M. Marra & O. H. Hadler (Eds.), Psychodrama in Brazil: Contemporary applications in mental health, education, and communities (pp. 305–319). Springer Nature. ressaltam a relação essencial entre os aspectos subjetivos, sociais e políticos revelados pelo psicodrama.

Nas conexões entre categorias do período de janeiro a julho de 2021, destacam-se como desequilíbrio: omissão, solidão e medo (relação consigo próprio); gerando medos e incertezas nos relacionamentos (relações com o outro); e com isso, vulnerabilidades, preconceitos, violência (relações sociais); refletindo em desgoverno, genocídio, desesperança (relações políticas). Em contrapartida, aparece a direção ao equilíbrio: aspectos qualificadores (relação consigo próprio) que produzem relações cooperativas e inclusivas (relações com o outro), espaços afetivos e acolhedores (relação social) e contribui para o redesenho de novos direcionamentos (relações políticas).

Nas conexões entre categorias no período de agosto a dezembro de 2021, podemos destacar sofrimentos e dificuldade de lidar com mudanças (relações consigo próprio), violência nas relações (relações com o outro), lutos coletivos (relações sociais) e contradições políticas e inversão de valores (relações políticas). Em contrapartida, destaca-se a busca de caminhos próprios (relações consigo próprio), ressignificações em torno de aprendizagens (relações com o outro), propósitos sociais (relações sociais) e redesenho em direção à vida como utopia e cidadania (relações políticas). Esse movimento oriundo de sofrimentos e em direção à cidadania é frequentemente proporcionado pelo psicodrama, como afirma Cesarino (2001)Cesarino, A.C. (2001) Psicodrama na rua. In R. P. Costa (Org.), Um homem à frente de seu tempo: O psicodrama de Moreno no século XXI (pp. 205–259). Ágora., a respeito do psicodrama no Brasil: O psicodrama surge propondo o coletivo onde se impunha o isolamento, o grito onde o medo exigia silêncio e paralisia. Ele aceita sua vocação política embora tenha um grande espaço terapêutico.

Outros autores encontram resultados semelhantes em psicodramas on-line realizados durante a pandemia, nos quais ressaltaram que:

O Brasil vive uma situação política com implicações que englobam o dilaceramento do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana. É em momentos como este que sabemos da importância da construção do grupo, da sensação de pertinência e do compartilhamento de medos e anseios, o que é favorecido por esses espaços de trabalho público

(Batista e Nilson, 2022Batista, M. A. & Nilson, L. H. (2022). Psychodrama and Politics. In H. J. Fleury, M. M. Marra & O. H. Hadler (Eds.), Psychodrama in Brazil: Contemporary applications in mental health, education, and communities (pp. 305–319). Springer Nature., p. 307).

Análise da relação entre períodos em cada categoria

No entanto quais seriam as análises relativas à retroalimentação entre as categorias nos três períodos?

Se no 1º período da relação consigo próprio aparecia um momento de grande dificuldade e sofrimento (desequilíbrio) e que gerou necessidades de aprendizagens em busca de soluções, no 2º período isso se desdobrou para as dualidades entre razão e emoção e entre irracionalidade e racionalidade em busca de aspectos qualificadores para consigo próprio (novos equilíbrios). Já no 3º período várias ordens de sofrimento e dificuldades de lidar com mudanças corporais e mentais tiveram como continuidade momentos em busca de caminhos próprios, autocontrole e segurança.

Se no 1º período (2º semestre de 2020) da relação com o outro aconteciam momentos fóbicos, um medo de contrair e de passar o vírus, apontando vislumbres de alternativas em se lidar com mudanças e aceitar as diferenças, no 2º período isso se desdobrou em medos relacionados à pandemia e à morte, buscando-se melhor qualificação nos relacionamentos (reconhecimento e respeito). No 3º período, por sua vez, encontraram-se dramas e tramas de violência nas relações afetivas, profissionais e financeiras, propiciando ressignificações em direção às aprendizagens físicas e mentais.

Analisando os três períodos referentes à categoria relações sociais, apreendemos que os aspectos destrutivos do laço social que apareceram no 1º período foram sendo cada vez mais aguçados e aprofundados, da perspectiva da discussão e reflexão durante essa travessia nos 2º e 3º períodos: da violência aos propósitos sociais; dos regimes autoritários à força coletiva frente às dificuldades atuais; do horror à pandemia ao luto coletivo. Tudo isso concorreu para a busca da potência coletiva (laços construtivos).

Constatamos, também, um aprofundamento das reflexões na esfera das relações políticas. No 1º período havia negacionismo, reconhecimento dos desequilíbrios sociais, contradições políticas. No 2º período constatamos a existência de regimes autocráticos, destrutivos, sem leis e regras e com rompimentos de pactos sociais, assim como no 3º período apreendemos a continuidade das dificuldades sociais, das contradições políticas, das inversões de valores, do impacto das mortes, do aumento de fake news, trazendo a possibilidade de redesenho de linhas de atuação na cidadania, na ética, na soberania e em questões de religiosidade. Tudo isso gerando novas perspectivas de redirecionamentos para políticas públicas atualizadas, visando um movimento em direção à vida, à utopia e à necessidade de construção de espaços de cultura.

Com isso, pensamos que essas retroalimentações entre os períodos, tendendo aos movimentos de desequilíbrios, ou seja, dos múltiplos medos à irracionalidade e violência, assim como do aguçamento da destrutividade dos laços sociais às inversões de valores, contando, dessa maneira, das articulações entre indivíduo e sociedade, pode ser referendada por Mbembe (2018), citado por Castro-Silva et al. (2021)Castro-Silva, C. R. D., Ianni, A. & Forte, E. (2021). Desigualdades e subjetividade: Construção da práxis no contexto da pandemia de COVID-19 em território vulnerável. Saúde e Sociedade, 30(2), e210029. https://doi.org/10.1590/S0104-12902021210029
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202121...
, quando nos conta sobre:

[…] as desigualdades em suas diferentes faces implica escancarar, a nosso ver, as consequências funestas de uma sociedade pós-colonial, em que a maioria das pessoas já vivia de modo precário antes da pandemia, o que se agravou, com poucas alternativas quanto a um enfrentamento da COVID-19, especificamente quanto aos modos de prevenção

(p. 3).

A pandemia foi um divisor de águas, uma mudança radical de foco. Em quem se pode ou não confiar nesses momentos de incerteza? A desconfiança, durante a pandemia, aumentou não só em governos e políticos, mas também na família, no trabalho nos amigos e vizinhos, em nós próprios. Em sistemas políticos/econômicos em que se precisa estar o tempo todo atento para não ser enganado, roubado e sacaneado, quando prevalece a vantagem sobre os outros, como sustentar a confiança em si próprio e nas pessoas? Daí é possível entender o medo como controle social, a depressão, a desesperança e o desespero com o País, com os brasileiros, com a sociedade e com o planeta. São elementos que se retroalimentam e pedem linhas de fuga em direção a novos equilíbrios.

Os movimentos de desequilíbrios desenhados nos três semestres foram mais marcantes que os equilíbrios e trazem no seu bojo polaridades que apontam para as fragilidades. Por exemplo no 2º semestre 2020, as polaridades foram: controle e repressão versus liberdade de expressão; violência entre casais versus amor; racismo versus aceitação das diferenças; regimes autoritários versus cidadania. Isso nos faz refletir sobre a similaridade com o caldo social, institucional e político da atual governança brasileira e suas pretensões, assim como das características da contemporaneidade onde a falta de conexões com a interioridade, a negação dos medos, o individualismo revestido de altruísmo, a isenção da justa culpa, a permissividade, a autoridade revestida de autoritarismo, a onipotência, uma sociedade que tudo pode, sem regras e leis claras, vem sendo a tônica (Wechsler & Monteiro, 2016Wechsler, M. P. F. & Monteiro, R. F. (2016). Introdução. In M. P. F. Wechsler & R. F. Monteiro (Orgs.), Psicodrama público na contemporaneidade: Cenários brasileiros e mundiais. Ágora.).

Essas polaridades acabam sendo acirradas pelo isolamento e pelo estresse advindos desse momento pandêmico, embora façam parte da existência humana contemporânea. Indicam, pois, a necessidade de espaços públicos para que possam ser partilhadas, uma vez que o sofrimento psíquico advindo desses desequilíbrios polarizados não pode ser concebido como desordens somente individuais. O vértice interpsíquico (interrelacional) com os vértices das relações sociais e políticas são o caldo constituinte do equilíbrio intrapsíquico (intrarrelacional), da identidade/singularidade do sujeito (Wechsler, 2020Wechsler, M. P. F. (2020). Relações entre afetividade e cognição. De Moreno a Piaget. Do construtivismo piagetiano à sistêmica construtivista. Da clínica privada à clínica social. Appris.) e, como já afirmamos, retroalimentam-se e pedem linhas de fuga para novos equilíbrios menos sofríveis. Dessa maneira, espaços públicos virtuais e presenciais se fazem necessários para que possamos criar uma nova ordem com valores que potencializem as integrações e não as polarizações. Uma clínica pública, social e ampliada, eis o que pensamos ser esse espaço de psicodrama público, aqui on-line.

Birman (2020)Birman, J. (2020). O trauma na pandemia do coronavírus: Suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. José Olympio. nos faz refletir:

Se o vírus remete a uma problemática eminentemente orgânica, a pandemia, em contrapartida, ultrapassa em muito o campo estrito do discurso biológico. Ela traz para si, além de registros do social e do sanitário, os campos da economia, da política e da cultura, exigindo, então uma leitura interdisciplinar, para que se possa dar conta de sua especificidade e complexidade, de maneia conjugada

(p. 55).

Entretanto cabe aqui, também, ressaltar os estudos do neurocientista Antonio Damasio quando diz que:

O surgimento e a estrutura dos fenômenos sociais e dos notáveis instrumentos da cultura humana devem ser entendidos sob a perspectiva de fenômenos biológicos que os precederam e viabilizaram. Destes a longa lista inclui a regulação homeostática, a inteligência não explícita, os sentidos, a maquinaria para a produção de imagens, os sentimentos como tradutores mentais do estado vital do interior de um organismo complexo, a consciência propriamente dita e os mecanismos de cooperação social

(Damásio, 2021Damásio, A. (2021). Saber e sentir. Companhia das Letras., p. 152).

Dessa forma, poder-se-ia também afirmar que o caldo constituinte do equilíbrio intrapsíquico também é composto por fenômenos biológicos precedentes, que se configuram na placenta social que atravessa a matriz de identidade moreniana, com seus vértices interrelacionais, sociais e políticos. Esse caldo constituinte do equilíbrio intrapsíquico se faz por meio de uma retroalimentação circular entre o organismo humano e seu meio externo, dentro de uma relação espaço e tempo de vida.

Da perspectiva da validação do objetivo específico norteador desta pesquisa — pontuar as articulações entre os três contextos que ilumina nossa fundamentação metodológica — percebemos que pôde ser contemplada, visto que os temas protagônicos cocriados nos grupos no contexto dramático, nos disseram dos caldos intersubjetivos do contexto grupal, assim como dos processos de subjetivação do contexto social, apontando a mesma tendência frente aos movimentos — desequilíbrio e equilíbrios — e quiçá facilitando novos processos rumo à saúde individual psíquica, relacional e coletiva, ao mesmo tempo.

Da perspectiva da implicação da subjetividade dos diretores nos processos grupais, também objetivo específico, pensamos que as temáticas disparadas tenderam a ser sintônicas com as necessidades das pessoas imersas no caldo social desse momento pandêmico. Desdobraram-se para as temáticas protagônicas e foram colocadas nas categorias de análise criadas e apresentadas neste texto, com seus dois movimentos de desequilíbrios e tentativa de restauração de novos equilíbrios. Podemos inferir que, se assim não fosse, não teríamos as correlações encontradas entre as categorias, uma vez que o diretor está imerso no grupo e a serviço da necessidade do grupo.

Merengué (2020)Merengué, D. (2020). Descolonizando o psicodrama: Clínica e política In A. M. Dedomenico & D. Merengué (Orgs.), Por uma vida espontânea e criadora: Psicodrama e política (pp. 37–60). Ágora. traz ideias condizentes:

[…] que nenhum papel social está desarraigado de uma sociedade, não existindo neutralidade… a noção de política existe na medida em que existirem relações… como somos todos cidadãos da polis, o sujeito político aí se constitui, não sendo possível estar fora dessa imposição… temos no papel social de psicodramatista algo construído com base na polis em todas as suas infindáveis nuanças…

(p. 42-44).

E, arrematando, tal qual Perazzo (1994)Perazzo, S. (1994). Ainda e sempre psicodrama. Ágora. nos elucida em seu texto sobre a subjetividade e psicodrama — direção cênica da loucura, é impossível a subjetividade do diretor não estar no projeto dramático desenrolado a partir do protagonista, em que o diretor incluído poderá ampliar ou limitar a amplitude do protagonista. De qualquer maneira, o diretor em psicodrama se movimentará em dois projetos dramáticos concomitantes: o projeto dramático manifesto, aquele que o contrato legitima e que sociometricamente o diretor vai cocriando, e o projeto dramático latente, aquele que traz o mergulho do diretor na vivência/destino do(s) protagonista(s), trazendo à tona o coinconsciente grupal. Tudo isso acontece concomitantemente e vai engendrando os movimentos de proximidade e distância necessárias para a situação protagônicas. Com isso, concluímos que a subjetividade dos diretores ao disparar as temáticas dos flyers puderam estar a serviço da cocriação dos projetos dramáticos desdobrados e, consequentemente, dos temas protagônicos aqui analisados em seus quatro vértices categorizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das sistematização dos temas protagônicos levantados nas entrevistas das sessões psicodramáticas on-line, durante os três semestres pesquisados, e da definição das quatro categorias (relações consigo próprio, relações com o outro, relações sociais e relações políticas) foram identificados dois movimentos complementares: um em direção ao desequilíbrio vivido no espaço e tempo da pandemia e outro em direção à tentativa de restaurá-lo. Percebe-se que os vértices se retroalimentam e que é necessário um espaço para dar visibilidade para essa retroalimentação entre o intrapsíquico (intrarrelacional), seus correlatos interpsíquico (interrelacional), social e político, para encontrar uma linha de fuga que permita uma transformação efetiva. Sabemos que as transformações, embora se iniciem em nós próprios, precisam de agenciamentos coletivos para se implementarem. O psicodrama público, mesmo on-line, é uma força coletiva que pode levar a esses novos agenciamentos e transformações efetivas, tentativa de construção de novos equilíbrios, por feedback positivo, a partir do qual novas formas mais abrangentes possam ser desenhadas, equilíbrio majorante, numa espiral infinita. Possibilita-se, então, saúde mental de seus usuários e ações de cidadania.

Se recuperarmos a utopia moreniana, pensamos que o movimento infindável rumo a ela é característica dos trabalhos socionômicos que visam à transformação da humanidade. Nesse sentido, dar visibilidade às temáticas disparadas pelos diretores, aos temas protagônicos cocriados nos grupos, vai ao encontro da tessitura de novos caldos intersubjetivos. Podem instaurar novos processos de subjetivação dentro de um campo social que é marcado pelo sofrimento que o isolamento impôs e assim, também, pela tomada de consciência de uma interioridade imposta com as devidas angústias decorrentes de mortes, políticas de saúde desconexas e esgarçamento do tecido social que a pandemia deflagrou, nos seus múltiplos vértices. A espontaneidade/criatividade, como respostas novas às situações, é responsável por disparar novos processos de subjetivação.

Para finalizar, pudemos dar luz às sombras do nosso tempo, a partir dos quadros cocriados e explicitados em cada categoria. Luzes, que embora não alcancem todo o espectro, nos ajudaram a denunciar as dores e horrores que não podem ficar nas sombras, na nossa contemporaneidade, e pedem para encontrar cores de vida.

  • 1
    A divulgação do psicodrama público é realizada pela internet (grupos de WhatsApp, YouTube etc.) por meio de flyers que contém o tema do psicodrama sugerido pelo diretor, ilustração alusiva ao tema, data, unidade funcional e link de acesso.

AGRADECIMENTOS

Ao Grupo de Coordenação do Psicodrama Público SP on-line, do qual os autores deste artigo também fazem parte, especialmente a Andrea Claudia de Souza, Ariadne Senna, Cassiana Léa do Espírito Santo, Claudia Fernandes e Valéria Barcellos, pela assistência intelectual, realização e catalogação das entrevistas sem as quais não seria possível esse estudo.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no estudo atual.
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editora de seção: Oriana Holsbach. https://orcid.org/0000-0001-9736-2224

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    26 Jan 2023
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