RESUMO
Com os pés no chão das questões do presente, numa tentativa de respirar ares no/do contemporâneo, esse ensaio teórico propõe um entrelaçamento do conceito moreniano de realidade suplementar com o que Didi-Huberman aponta como força política da imaginação: fazer o real ferver com imagens, tocar o real com imagens, expandindo-o como o mais-realidade indicado por Moreno. Assim, intentamos cultivar uma experiência com o tempo, espreitando pequenos gestos de deriva subjetiva pela caminhada em direção àquilo que, no presente, não podemos viver e ser. Habitando a fronteira entre clínica e política, entre ciência e arte, aposta na imaginação como potência fabuladora de si e de mundos.
PALAVRAS-CHAVE
Imaginação; Clínica; Política; Subjetivação
ABSTRACT
With the feet on the ground of the issues of the present, in an attempt to breathe air in/of the contemporary, this theoretical essay proposes an intertwining of the Morenian concept of supplementary reality with what Didi-Huberman points out as a political force of the imagination: making the real boil with images, touching the real with images, expanding it like the more-reality indicated by Moreno. Thus, we intend to cultivate an experience with time, watching small gestures of subjective drift along the path towards what, in the present, we cannot live and be. Inhabiting the border between clinic and politics, between science and art, it bets on imagination as a fables power of itself and of worlds.
KEYWORDS
Imagination; Clinic; Politics; Subjectivation
RESUMEN
Con los pies en la tierra de las cuestiones del presente, en un intento de insuflar aire en/de lo contemporáneo, este ensayo teórico propone un entrelazamiento del concepto moreniano de realidad suplementaria con lo que Didi-Huberman señala como una fuerza política de imaginación: hacer hervir lo real con imágenes, tocar lo real con imágenes, expandirlo como la más-realidad señalada por Moreno. Así, pretendemos cultivar una experiencia con el tiempo, observando pequeños gestos de subjetividad a la deriva en el camino hacia lo que, en el presente, no podemos vivir y ser. Habitando la frontera entre la clínica y la política, entre la ciencia y el arte, apuesta por la imaginación como potencia fabuladora de sí misma y de los mundos.
PALABRAS CLAVE
Imaginación; Clínica; Política; Subjetivación
INTRODUÇÃO
Nossa posição (na vida e na vida acadêmica) tem sido a de ir cultivando — e o gerúndio aqui não é cacoete1 1 Não o é, pois se trata de acompanhar processos em curso, efeitos-subjetividade, processos de subjetivação; desenvolver aportes teórico-metodológicos como práticas no tempo e com o tempo de desnaturalização do próprio objeto da Psicologia, a subjetividade. — uma atitude político-ética que exige (ex)posição, proto-agonizando um compartilhamento, neste palco psicodramático, da existência em seus tremores (Larrosa, 2014Larrosa, J. (2014). Tremores: Escritos sobre experiência. Autêntica.), uma certa abertura para o presente; uma luta agônica, peleja de vida e morte, desejando mais vida. Nesses tempos mortíferos2 2 Este texto foi escrito em 2020, no ápice da crise político-sanitária instaurada pela pandemia do coronavírus SARS-CoV-2, a COVID-19, que afetou de maneira abrupta nossos modos de (con)viver. No Brasil, mais de 682.000 pessoas faleceram até agosto de 2022, e outras inumeráveis sofreram e ainda sofrem de maneira direta ou indireta impactos pandêmicos. , em que rapidamente o mal-estar e as dores coletivas são traduzidos em angústias individuais, é preciso tomar esse ar-posição, ser contemporâneo, no sentido de Giorgio Agamben (2009)Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Argos., tentar produzir movimentos coletivos. Sim, queremos fazer poesia na academia, aproximar vida e arte, ensaiar outros modos de con-viver, outras políticas de escrita, outras maneiras de publicizar nossos resultados e de lidar com nossas evidências. “Esperar as revoltas, as contestações, os reveses. As ciências se acalmam com pesquisadores que investiguem o sabido, que ‘fetichizem’ os conceitos, que mergulhem na doce burocracia reconfortante” (Merengué, 2013Merengué, D. (2013). Literatura da recusa: Protagonismo e resistência. Revista Brasileira de Psicodrama, 21(1), 127–140., p. 138). Sim, queremos fazer poesia por meio de nossas pesquisas científicas:
… o contemporâneo que se pode entrever na temporalidade do presente é sempre retorno que não cessa de se repetir, portanto, nunca funda uma origem e, com isso, se aproxima da noção de poesia … A poesia … é sempre retorno, mas um retorno que é adiamento… e não nostalgia…; é um caminhar, mas não é um simples marchar para frente, é um passo em suspenso … um olhar para o não-vivido no que é vivido… entrever um limiar inapreensível entre um ainda não e um não mais.
(Scramin & Honesko, 2010Scramin, S; Honesko, V. (2010). Apresentação. In G. Agamben (Ed.), O que é o contemporâneo? E outros ensaios. (pp. 7-24). Argos., p. 22).
Nossa política de escrita tem adubado afeição à poesia e à imaginação. Tem desejado tirar o mofo das palavras, inventar a si e ao mundo com elas, a cocriarmo-nos. É essa poesia que se qualifica pela eficácia para aglutinação de sentidos que o momento da cocriação pede (Contro, 2012Contro, L. (2012). Páginas que se espelham: Ensaio inicial sobre psicodrama e literatura. Revista Brasileira de Psicodrama, 20(2), 53–65.). Nossa política de escrita tem ensaiado uma língua em carne viva, a instalação de “textos mais vibrantes, mais vivos, mais mobilizadores de nós mesmos e daqueles que nos leem” (Fischer, 2005Fischer, R. M. B. (2005). Escrita acadêmica: Arte de assinar o que se lê. In M. V. Costa & M. I. E. Bujes (Eds.), Caminhos investigativos III: Riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras (pp. nn-nn). DP&A., p. 118). Mas “que relações poderiam ser pensadas entre a experiência da criação e da fruição estéticas e a produção do texto acadêmico?” (Fischer, 2005Fischer, R. M. B. (2005). Escrita acadêmica: Arte de assinar o que se lê. In M. V. Costa & M. I. E. Bujes (Eds.), Caminhos investigativos III: Riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras (pp. nn-nn). DP&A., p. 117). A proposta é pôr birutice a serviço dos dramas e da escrita acadêmica. Diria Zerka: “Moreno nos ensinou a sentirmo-nos confortáveis com as nossas birutices… as pessoas têm medo de dirigir psicodramas … ainda não se familiarizaram com a sua própria loucura… ainda não aprenderam a confiar nela… a loucura é, muitas vezes, a fonte de uma grande criatividade” (Z. Moreno et al., 2001Moreno. Z.; Blomkvist, L.; Rützel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora., p. 76-77).
Quais seriam as regras de prudência nessa direção de aproximar ciência e arte? Uma regra fundamental é a não aderência à moda. Ser contemporâneo dos textos, no sentido aqui delineado, não se trata da novidade, de espontaneísmos dos temas e metodologias em voga. Não se trata de citar necessariamente artigos mais atuais, no sentido do tempo cronológico. Ser contemporâneo dos textos: trata-se de atualizá-los, as ideias e os conceitos utilizados, fazê-los funcionar, com eles, acertar as contas com esse tempo nosso, “tomar posição em relação ao presente” (Agamben, 2009Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Argos., p. 58). “Reescrever um autor, apropriar-se dele, é vasculhar em suas formulações um ponto de encontro com nós mesmos … fazer desses autores alguém que vive em nossa escrita … ler em direção ao desconhecido”. (Fischer, 2005Fischer, R. M. B. (2005). Escrita acadêmica: Arte de assinar o que se lê. In M. V. Costa & M. I. E. Bujes (Eds.), Caminhos investigativos III: Riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras (pp. nn-nn). DP&A., p. 121). A intenção é imaginar uma escrita “que nos encoraja a uma certa audácia de pensamento sobre o presente que vivemos” (Fischer, 2005Fischer, R. M. B. (2005). Escrita acadêmica: Arte de assinar o que se lê. In M. V. Costa & M. I. E. Bujes (Eds.), Caminhos investigativos III: Riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras (pp. nn-nn). DP&A., p. 122). Com essa escrita–pensamento–arte, trazer ao palco poiético o real da escrita acadêmica, expandindo-o. Sigamos!
PARA INÍCIO DE CONVERSA, QUEM (ME) NAVEGA É O MAR3 3 Timoneiro, composição de Paulinho da Viola: “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar” (Paulinho da Viola, 1997).
Um dado mar me falou / Um dado do mar me falou / Quando eu estou feliz / Eu tenho sonhos cor de crioula / Quando eu estou feliz / Eu tenho sonhos cor de Luanda.
—Mateus Aleluia, Fogueira Doce
Esse texto é escrito na tentativa de desemaranhar os fios da navalha do presente. Fios de espanto, que cortam a respiração. Fios que procuram desesperadamente um fôlego, um ânimo para seguir fazendo-pensando o aqui-agora e, quem sabe, de seus escombros, tatear um (en)canto. Suas primeiras linhas foram gestadas em novembro de 2020 para uma fala na jornada de Psicodrama da Profint (Profissionais Integrados) em Aracaju, Sergipe, ainda sob os efeitos e ressonâncias do ciclo de conversa que, dias antes, tinha sido realizado pelo Observatório de Violências, pela vida de mulheres de povos tradicionais de Sergipe, evento embalado pela musicalidade de Mateus Aleluia, como uma tentativa de fazer durar uma intensidade que ainda pulsa aqui dando corpo a essas palavras.
Era novembro, mês de luta pela afirmação da vida das mulheres, todas, cada uma e qualquer uma. Era novembro, num país e num momento histórico-político em que se exasperam múltiplas formas de violência contra a mulher (natureza), em que vivemos o colapso da naturalização de um modo de vida demasiadamente humano, pautado na dicotomia homem-natureza e numa micropolítica mortífera de produção em série de subjetividades privatizadas. Os fios eram tecidos como um convite para imaginar o inimaginável: a humanidade da vida de mulheres que vivem na rua, da vida de mulheres que não têm casa própria (espaço privado da família nuclear, privada) e desejam criar seus filhos; a humanidade da vida de mulheres que não desejam criá-los, bifurcando a sina mulher-mãe; a humanidade da vida de mulheres das cracolândias, a humanidade da vida de mulheres das esquinas da vida; a humanidade da vida de mulheres que não têm vagina; a humanidade da vida de mulheres que, em pleno século XXI, produzem a energia que precisam no agenciamento de seus corpos com a lama viva do que ainda resta dos manguezais sergipanos poluídos, cercados, privatizados.
Era novembro, num tempo de extrema homogeneização da vida humana, de seu enclausuramento, a ponto de entender-se tão autônoma que não precisa nem de outros humanos tampouco de outros viventes, que não precisa da biosfera para sobreviver, que lhe bastam telas e plásticos. Tal homogeneização — temos aprendido com Ailton Krenak (citado por Didi-Huberman & Benevides, 2020Didi-Huberman, G. & Benevides, F. (2020). Radical radicular/revolver as imagens, por a terra em transe. N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/131
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) — traz consigo o extremo asfixiante da proliferação do novo coronavírus. Era um novembro assombroso, num mundo que parecia seguir em direção ao seu próprio fim e, ainda assim, nele se redistribuía de maneira desigual as vulnerabilidades, firmando-se, como de praxe, compromissos com “formas de violência tão futuristas quanto arcaicas” (Mbembe, 2020Mbembe. A. (2020). O direito universal à respiração. N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/53
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, para. 2). Sob riscos biológicos, caem-se as máscaras da ordem e do progresso desenvolvimentista dos nossos tempos. O isolamento social de muitos poucos debocha das técnicas de fronteirização cada vez mais amplas: arquitetura de violência e muros entre nós, muros cada vez mais altos, cercas elétricas; vida resumida a telas, vida digitalizada, cifrada; presídios e mais presídios, clamamos por criminalização da vida e da pobreza, presídios e mais presídios e cada vez menos espaço nas celas; expropriação dos animais, da flora e dos humanos viventes dos territórios tradicionais, furto de qualquer possibilidade de autonomia alimentar e energética dos que ainda insistem em viver em composição com as matas e as águas, matança de ecossistemas de pensamento, pois só a “vida capital” — título do livro de Peter Pelbart (2003)Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica. Iluminuras. — urbana, consumidora de tudo e todos parece interessar. Nesse sombrio tempo de extrema individualização, Merengué (2009)Merengué, D. (2009). Corpos tatuados, relações voláteis: sentidos contemporâneos para o conceito de conserva cultural. Revista Brasileira de Psicodrama, 17(1), 105-114. fala que atualizar o projeto moreniano é considerar a discussão do como sobrevivermos juntos. Essa vida tão abastada, mas nada abundante, acaba por constituir uma “necrópole universal”: a grande separação, o grande confinamento, a grande asfixia (Mbembe, 2020Mbembe. A. (2020). O direito universal à respiração. N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/53
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, para. 11).
O planeta Terra vive um período de intensas transformações tecnocientíficas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração… É a relação da subjetividade com sua exterioridade — seja ela social, animal, vegetal, cósmica — que se encontra assim comprometida… A alteridade tende a perder toda a aspereza (Guattari, 1989/2001Guattari, F. (2001). As três ecologias. (M. C. F. Bittencourt, Trad.) (11th ed.). Papirus. (Obra original publicada em 1989), p. 7).
Era novembro, tempos de brutalismo (Mbembe, 2020Mbembe. A. (2020). O direito universal à respiração. N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/53
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). Nele, os fios desse texto insistiam em viver, ousando imaginar, esboçar com certeza e firmeza, a chegada de um tempo da delicadeza4
4
Todo o sentimento, composição de Chico Buarque: “Depois de te perder, te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza” (Buarque, 2012).
, firmando uma posição ética-estética-clínico-político-afetiva diante do que ainda resta(va) de ar. Mbembe (2020, para. 15)Mbembe. A. (2020). O direito universal à respiração. N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/53
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assinala que precisamos “responder por nossa vida com outros (incluindo o vírus) nessa terra e por nosso nome em comum”, que estamos compondo a carniça de um momento patogênico, mas também catabólico. Nesses tempos, quem sobreviverá?
Na era da digitalização do mundo, não importa quanto tentemos nos livrar dessa topologia implacável (Foucault, 2009/2013Foucault, M. (2013). O corpo utópico, as heterotopias. (Muchail, S. T., Trad.). N-1 edições. (Obra original publicada em 2009)) tudo remete ao corpo e “um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes — um corpo é primeiramente encontro com outros corpos” (Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica. Iluminuras., p. 46). Mas parecem não importar os danos causados pelo Homem aos pulmões da Terra (mata e oceanos) e ao seu próprio organismo, seguimos tentando descartar essa zona fronteiriça que é o corpo nosso de cada dia em sua condição vivente. Para tomar fôlego, parece ser preciso dar passagem ao corpo, tomando-o como algo mais radical: um corpo que assume e se constitui “com os traços do outro e, com isso, às vezes até difere de si, desprender-se da identidade própria e construir sua deriva inusitada” (Pelbart, 2019Pelbart, P. P. (2019). Ensaios do assombro. N-1 edições., p. 174). Assumir essa topologia: humano, corpo vivente, que se constitui no encontro com outros viventes, não só humanos. Descolonizar o reconhecimento eu-tu (Vomero, 2022Vomero, L. S. Z. (2022). Decolonizando o conceito de reconhecimento (eu-tu). Revista Brasileira de Psicodrama, 30, e1422. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.576
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). Imaginar um mundo delicado, afeito aos encontros, com os olhos5
5
“Com que sangue foram feitos nossos olhos” (Haraway, 2009, p. 25) de pesquisadoras da subjetividade?
de um perspectivismo cosmológico, respirar-pensar esse mundo por meio do conceito de realidade suplementar: eis o objetivo desse texto.
CORPO-ENCONTRO
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste?Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema.Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências.
—Mia Couto, Vozes Anoitecidas
“Somos povoadas de encontros, deles somos efeitos … Nosso nome próprio não nos designa. Aponta tão somente um efeito entre o que passa entre mim e o outro que também me habita. Não somos pessoas, mas sim as cifras de nossas combinações” (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., p. 147) com o ar, o rio, o vento: “minha pele tem cheiro de mangue”, disse uma marisqueira sergipana. Nossas origens são plurais, circunstanciais, experimentais. Somos lapidadas por muitos tempos, politemporalidades coexistem em nós.
Em voz grave, um fragmento de memória invade, dá o tom dessas ideias que aqui esboçam um pensamento com o conceito de realidade suplementar. “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Pelos idos de 2002, numa tarde de curso de especialização em Psicodrama, esse lema de navegantes do século XVI e XVII, que ficou famoso pelas mãos de Fernando Pessoa, chega na voz grave de Antônio Carlos Souza, psicodramatista e psiquiatra baiano, numa sessão de Teatro Espontâneo, dando língua e corpo a afetos que pediam e ainda pedem por abrir caminho (Rolnik, 2006Rolnik, S. (2006). Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. Sulina/Editora da UFRGS.). Um resto, um rastro, um passado que se faz presença, um ingrediente que temos para poder, “com sonhos-enxada, revolver nossa própria terra e restituir-lhe o outro, como aquele que está ‘em vias de se fazer’, abrir-lhe sulcos para dar passagem à potência de germinação”. (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., p. 144). Uma memória arte, uma arte da memória. A lembrança do que fomos, do que sonhamos quando estivemos juntos, um rastro que perdura e se instaura aqui e agora, convocando a politizar “sonhos-carne, insurgidos nas dobras de nossa pequena e estreita terra” (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., p. 144). Memórias-criação, memórias-labaredas, memórias de encontros que sustentaram e sustentam um certo movimento de abertura, uma desaprendizagem: tornar habitável a fronteira onde se encontram e se transmutam um mundo dado, representável, e um mundo que ainda não se conhece, mundo em fabulação. Experimentar arte-existência no corpo que reverbera instigado pela possibilidade de passear entre realidade e fantasia, em amplitudes tanto mais amplas quanto possível (Aguiar, 1998Aguiar, M. (1998). Teatro espontâneo e psicodrama. Ágora.). Vai-se ainda mais longe: o que se quer é nutrir uma atenção, uma percepção, um sentir — as quais poderiam ser caracterizadas como político-clínicas — um pensamento de que toda a vida é realidade suplementar, que é da imaginação que nasce toda forma possível de existir.
Nesses tempos de expropriação de nossas terras e nossos corpos, da grande separação, de modulações do confinamento, tempos em que a nossa força vital é ração do capital (Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica. Iluminuras.; Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. N-1 edições.), navegar é preciso: acreditar no mundo pela ultrapassagem das cercas desta vida pequena e pessoal. “Navegar é preciso e viver é preciso, agora eu vou aonde o povo está”, disse Paulo Amado num vídeo de WhatsApp enviado para Cybele Ramalho em ocasião da jornada de Psicodrama da Profint de 2020. No ponto em que chegamos, em que a pandemia parece ser analisadora de nossos modos capitalísticos6
6
Essa noção foi proposta por Felix Guattari, partindo da de Karl Marx de que o capital sobrecodifica os valores de troca, submetendo o conjunto dos processos produtivos aos seus interesses. Guattari “estende essa ideia aos modos de subjetivação que, sob o regime capitalista, são igualmente sobrecodificados … O sufixo ‘-ístico’ acrescentado pelo autor a capitalista refere-se a essa operação micropolítica medular nesse regime, a qual incide sobre todos os domínios da existência humana” (Rolnik, 2018, p. 103), constituindo-nos imersos em modos capitais de viver, de conviver, de perceber e sentir.
de vida, desse nosso viver bem abastado que está pondo em extinção a própria vida nossa, parece ser necessário — como disse Débora Diniz, em Esperança Feminista (Anis, 2020Anis – Instituto de Bioética. (2020) Imaginar - Esperança feminista em 12 verbos [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=LklIbpPsd0g . Acessado em 03 de julho de 2022.
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): arriscar algo trágico com o conhecimento: aproximarmo-nos, pois nada substitui o encontro. Aproximarmo-nos de dores que não são possíveis de serem imaginadas. Imaginar, pelas palavras da música de Vital Farias (1982)Farias, V. (1982). Saga da Amazônia [Música]. Em Sagas Brasileiras [Álbum]. Lança.: “Só é cantador quem traz no peito o cheiro e a cor de sua terra, a marca de sangue de seus mortos e a certeza de luta de seus vivos”.
Encontrar-se sem precisão, mas com uma posição precisa, avistada por Moreno naqueles tempos de sua capa verde em encontros crianceiros nas praças de Viena, de sua articulação com as prostitutas num momento histórico em que elas eram o grande grupo de risco criminalizado por conta da epidemia de sífilis como avistado por Preciado (2020)Preciado, P. B. (2020). Aprendendo do vírus. N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/26
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em Aprendendo do Vírus. “Navegar é preciso e viver é preciso, agora eu vou aonde o povo está”. Eis nossa posição: habitarmos ali onde o outro, aquilo que faz diferir, instala-se e atravessa a subjetividade, ali onde a dimensão política do encontro face a face com a alteridade aparece: criação de possibilidades de existência.
“Navegar é preciso, viver não é preciso”. Navegar é preciso e viver é preciso. Nesses tempos de naturalização da expropriação de nossos territórios, nossas vidas, nossos corpos, nossas subjetividades, em que invasores seguem tornando-se proprietários por direito (numa terra comprimida entre Estado e mercado), tempos de grandes extermínios culturais e físicos, essas duas orações juntas montam uma imagem. Como diria George Didi-Huberman (2012)Didi-Huberman, G. (2012) Quando as imagens tocam o real (Carmello, P. & Casa Nova, V., Trad.). Revista Pós, 2(4), 204-219., uma imagem que arde em seu contato com o real, um traço visual do (nosso) tempo, mas também de outros tempos suplementares.
“NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO”. “NAVEGAR É PRECISO E VIVER É PRECISO”
“E se o homem foi uma maneira de aprisionar a vida, não será necessário que, sob uma outra forma, a vida se libere do próprio homem? [...] Subjetivação consiste essencialmente na invenção de novas possibilidades de vida” (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Conversações. 34., p. 114). Assim, cultivar uma atenção ao presente:
[...] não se justifica, em princípio, por aquilo que nosso presente possui de específico, em busca de novas estratificações, mas sim de uma certa deriva da subjetividade. [...] A atualidade traz certamente consigo o passado, certas configurações históricas caracterizadas pela regularidade. Mas é também na atualidade que tais regularidades são desestabilizadas e novidades são esboçadas. [...] O pensamento não age em abstrato, mas contra seu tempo, contra algo que tem uma existência concreta, indicando que há um combate sempre localizado entre o pensamento e a história.
(Kastrup, 2008Kastrup, V. (2010). Experiência estética para uma aprendizagem inventiva: Notas sobre o acesso de pessoas cegas a museus. Informática na Educação: Teoria & Prática, 13(2), 38-45. https://doi.org/10.22456/1982-1654.12463
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Essa é a nossa realidade, esse é nosso mundo dado: somos livres, mas para vender nossa força de trabalho; na posição de consumidores, somos livres subsumidos a cérebros hiperconectados, somos indivíduos criativos vivendo o esquadro de realidade da vida dado pela razão do Estado e do mercado, somos ração do capital, que agora alimenta-se da força vital de todo vivente, humano ou não (Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica. Iluminuras.; Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. N-1 edições.). Félix Guattari e Suely Rolnik (2000)Guattari, F.; Rolnik, S. (2000). Micropolítica: Cartografias do desejo. Vozes. afirmam que a força dos modos capitalísticos de produção não está mais na tomada dos meios e bens de produção (até porque os meios estão em extinção), mas na tomada de poder sobre nossas subjetividades (como a força vital dos viventes é o motor dessa economia de poder, como corpos matáveis e desvitalizados, estaríamos também nós humanos em extinção?). Cada maré negra — lembremos do crime de derramamento de petróleo nas costas brasileiras, atingindo principalmente a região nordeste, em setembro de 2019 —, cada planície estéril, cada mangue tornado asfalto, cada rio tornado lama de dejetos de mineração — lembremos de Brumadinho, em janeiro de 2019 —, cada floresta incendiada, cada extinção de espécies de flora e da fauna, cada árvore derrubada, cada etnocídio7 7 Em seu livro Arqueologia da Violência: Pesquisas de Antropologia Política, Pierre Clastres (2004, p. 83) apresenta o conceito de etnocídio como sendo uma “destruição sistemática dos modos de vida e pensamentos de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição”. de modos de vida tradicionais é imagem do que nos tornamos: indivíduo apartado das forças do mundo, indivíduo separado dos outros, indivíduo que se vê ameaçado pelos outros, tomando-o como inimigo, inclusive dos outros em-nós.
Mas, então, onde cabe esse excedente, esse suplementar da realidade da vida? Moreno elaborou o conceito de realidade suplementar agenciado com o conceito de mais-valia de Marx (1867/2016)Marx, K. (2016). O capital: Crítica da economia política. Livro 1, volume 1: O processo de produção do capital. Civilização Brasileira. (Obra original publicada em 1867): a parte do valor que a trabalhadora gera que é apropriada pelo capitalista. Esse valor relaciona-se com o tempo de trabalho. Mais uma vez, o tempo: o tempo excedente ao necessário para a trabalhadora pagar o próprio salário, tempo excedente que repõe o custo do processo produtivo e ainda gera lucro. A noção moreniana de mais-realidade articula afeto artístico e político: cocriação de si e do mundo dando passagem e expressão a dimensões excedentes da vida não inteiramente experimentadas (um ainda não), mas que estão à espreita esperando um tempo intensivo em que elas possam ser materializadas, tomando corpo e fôlego por um não mais, uma recusa, uma insurgência às políticas subjetivas deste tempo (Moreno, 1975/2006Moreno, J. L. (2006). Psicodrama: Terapia de ação & princípios da prática. Daimon. (Obra original publicada em 1975)).
Nossos (co)inconscientes maquinam presenças, resistem aos mandatos, conservas em palavras e imagens de uma vida capital. Assim, instalando uma política imagética num tempo em que imagens clichês operam modos de subjetivação, parece ser preciso escovar essa realidade histórica-político-subjetiva a contrapelo (Benjamin, 1996Benjamin, W. (1996). Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasiliense.). Parece ser preciso imaginar, cocriar; criar movimentos disruptivos com força para desencaminhar micropolíticas que coisificam o humano e o planeta (Almeida, 2019Almeida, C. M. C. (2019). Atos socionômicos: Sobrevivência humana e ecologias por métodos ativos. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(1), 87–96. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190009
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190...
).
IMAGINAR É PRECISO!
No início do texto, assinalamos que o objetivo é rascunhar um pensamento com o conceito de realidade suplementar. Até aqui, esperamos ter deixado evidente que o que nos interessa com esse conceito, ali onde ele se faz experiência incorporada, é que o mesmo parece possibilitar arder o pensamento com imagens, tocar o real com imagens, contagiá-lo de imaginação, experimentar as dimensões fabuladoras de mundos em germinação na realidade da vida (Moreno, 1975/2006Moreno, J. L. (2006). Psicodrama: Terapia de ação & princípios da prática. Daimon. (Obra original publicada em 1975)). Assim, tomamos as imagens menos como representação do mundo e mais como produções de mundos, afecções, intensidades, rupturas nos modos naturalizados de ver, perceber e sentir (Didi-Huberman, 2012Didi-Huberman, G. (2012) Quando as imagens tocam o real (Carmello, P. & Casa Nova, V., Trad.). Revista Pós, 2(4), 204-219.). Mais realidade, diria Moreno (1975/2006)Moreno, J. L. (2006). Psicodrama: Terapia de ação & princípios da prática. Daimon. (Obra original publicada em 1975). Aqui nos interessa o agenciamento do conceito de realidade suplementar com a ideia de imaginação. Sigamos com Georges Didi-Huberman (2012, p. 208)Didi-Huberman, G. (2012) Quando as imagens tocam o real (Carmello, P. & Casa Nova, V., Trad.). Revista Pós, 2(4), 204-219.:
…como não há forma sem formação, não há imagem sem imaginação. Então, por que dizer que as imagens poderiam “tocar o real”? …Desde Goethe e Baudelaire, entendemos o sentido constitutivo da imaginação, sua capacidade de realização…que a distingue, por exemplo, da fantasia ou da frivolidade. É o que fazia Goethe dizer: “A Arte é o meio mais seguro tanto de alienar-se do mundo como de penetrar nele”.
Fiando-nos para o fim do texto, pinçamos cinco linhas clínico-políticas:
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Imaginar é coisa de criança, esse vivente com fome de atos; em que a espontaneidade atua antes do desenvolvimento da memória e da inteligência (Bruhn, 2021Bruhn, M. M. (2021). Cartografia da alegria: Encontros entre palhaçaria e psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 29(3), 205–213. https://doi.org/10.15329/2318-0498.22254
https://doi.org/10.15329/2318-0498.22254... ). Na construção do pensamento ocidental, vinculado à invenção do humano como homem/sujeito racional, crianças, loucos, mulheres, negros, indígenas e monstros têm algo em comum: são seres fronteiriços que guardam proximidade com a natureza, com status nascendi da experiência, mergulhados na espontaneidade-criatividade. São seres de uma não razão, fato que configuraria o próprio limite da não humanidade de suas existências. Entre os séculos XVIII e XIX, incidiram um conjunto de dispositivos civilizatórios médico-pedagógicos que tinham por objetivo principal o controle desses seres e dos perigos morais que representavam (Ferreira & Hamlin, 2010Ferreira, J. & Hamlin, C. (2010). Mulheres, negros e outros monstros: Um ensaio sobre corpos não civilizados. Estudos Feministas, 18(3), 811-836. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2010000300010
https://doi.org/10.1590/S0104-026X201000... ; Weinmann, 2014Weinmann, A. O. (2014). Infância: Um dos nomes da não razão. Editora da UnB.). A imaginação, coisa de criança, é eliminada do conhecimento como irreal, sendo entendida como faculdade de inteligência inferior à razão. Tomada como irreal, a imaginação e a experiência de abertura de mundos, tendem a ser desvalorizadas, intentando-se eliminá-las das produções científicas. -
Para fazer arder o conceito de realidade suplementar, parece ser preciso abrir mão da ideia de fantasia, entendida como uma faculdade de desrealização, como o romântico mundo fora daqui, dos contos de fadas. Em vez da ideia de fantasia, maquinamos com a ideia de fantástico (Todorov, 2014Todorov, T. (2014). Introdução à literatura fantástica. Perspectiva.; Roas, 2014Roas, D. (2014). A ameaça do fantástico: Aproximações teóricas. Editora Unesp.), formulado como uma grande ameaça ao mundo real, pois o coloca em xeque por meio de efeitos dessas labaredas de pensamento imaginativo, incorporado, mais realidade.
O imaginário não é a irrealidade, mas a câmera de produção da realidade por vir. Todo imaginário está destinado a criar seu mundo. Cuidar do imaginário não é, portanto, um dever separado da [clínica e da] política, uma atividade pouco concreta. É o foco da ação contemporânea.
(Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica. Iluminuras., p. 143)Como se, como aprendemos com a literatura e o cinema fantásticos, com os seres monstruosos que invadem o que chamamos de mundo real e rompem com as leis as quais os estruturam, tendo em vista que não vivem de acordo com as mesmas; como aprendemos com o fauno que aparece no centro da realidade de Ofélia em O Labirinto do Fauno (Del Toro, 2006Del Toro, G. (Diretor). (2006). O labirinto do fauno [Filme]. Warner Bros. Pictures.), ou o Seixo que aparece no quintal de Conor em Sete Minutos Depois da Meia-Noite (Bayona, 2016Bayona, J. A. (Diretor). (2016). Sete minutos depois da meia noite [Filme]. Diamond Films.). Como se, com o olho ardendo em chamas, olhamos e somos olhados por imagens e, dessa maneira, produz-se uma experiência estética como “encontro na vida, sempre que ela deixa de ser uma banalidade” (Kastrup, 2010Kastrup, V. (2010). Experiência estética para uma aprendizagem inventiva: Notas sobre o acesso de pessoas cegas a museus. Informática na Educação: Teoria & Prática, 13(2), 38-45. https://doi.org/10.22456/1982-1654.12463
https://doi.org/10.22456/1982-1654.12463... , p. 40) e, nesses tempos de encontro face a face com a morte, treme-se o modo automático de (sobre)viver na clausura de nosso eu, família nuclear em condomínios fechados. Longe da lógica de separação sujeito-objeto, que postula um “assim é” definitivo para cada “coisa” estudada, apequenando a experiência em experimento, aproximarmo-nos do “como se” das coisas e experiências (Souza & Bassani, 2020Souza, D. M. & Bassani, M. A. (2020). Socionomia e psicologia ambiental: Algumas bases comuns. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(3), 198–211. https://doi.org/10.15329/2318-0498.19456
https://doi.org/10.15329/2318-0498.19456... ). Encontro ardente que, ao tocar o solo das coisas dadas/banais, faz deste mesmo chão propagação de labaredas, centelhas de sentidos e sensações, bem ali onde se imaginam imagens. Como se, produção estético-subjetiva, produção de realidades, dobrando a própria vida. Como se, mais realidade.Como se, um tempo intensivo que insurge entre a história e o atual, tempo em que se encontram as forças que agem contra a história e fazem a diferença na história, possibilitando bifurcações. Zerka Moreno, Leif Blomkvist e Thomas Rützel (2001, p. 45)Moreno. Z.; Blomkvist, L.; Rützel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora., contrapondo-se à ideia do efeito integrador do uso da realidade suplementar como técnica, assinalam que “a realidade suplementar constitui mais um instrumento de desintegração”. Ela funciona como dissociação de si e do mundo, situa-se entre memória e esquecimento: “buscamos a experiência não pelas semelhanças com o já vivido e sabido … Buscamos dar a ver uma espécie de despersonalização que nos leva a pensar”. (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., p. 150). Ao narrar-se, inventa-se si e mundo e “não há outro modo de inventar mundos senão reinventando-se (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., p. 148). Zerka continua: “é isso que eu acho que a realidade suplementar realmente é. Ela tem essa peculiaridade de ser fora do tempo e do espaço” (Z. Moreno et al., 2001Moreno. Z.; Blomkvist, L.; Rützel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora., p. 46), de ser vetor de existencialização pela instalação de uma espessura temporal, montagem de uma presentificação, um espaço politemporal, em que é possível encarnar a passagem do tempo, a transmutação, em que é possível experimentar uma certa deriva subjetiva.
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Por meio da realidade suplementar, pensar uma outra política temporal: “mergulhar no tempo, tempo da criação, do ilimitado ainda por vir, que, entretanto, já nos habita” (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., p. 142). Mais do que realidade, desejamos a desrealização de configurações dadas, interrogando-nos sobre nossos atos de olhar, pensar, perceber e nos afetar diante de nós e do mundo, imaginando o inimaginável, apesar de tudo (Didi-Huberman, 2017Didi-Huberman, G. (2017). Cascas. 34.). Desejamos o Encontro, nós, seres cósmicos, diria Moreno, em uma “aliança operacional com o mundo inteiro” (Moreno, 1975/2006Moreno, J. L. (2006). Psicodrama: Terapia de ação & princípios da prática. Daimon. (Obra original publicada em 1975), p. 14). Longe de ser uma fuga da realidade, é “justamente o contrário, num apelo à criatividade do homem e à criatividade do universo” (Moreno, 1971/1992Moreno, J. L. (1992). As Palavras do Pai. Psy. (Obra original publicada em 1971), p. 33).
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Ultrapassar os muros nos quais o presente nos confina exige uma atitude clínico-política limite: eu, outro, tantos mundos (im)possíveis. Algo em nós resiste, deseja retomar a relação da subjetividade com sua exterioridade — seja ela social, animal, vegetal, cósmica, deseja restituir às geografias subjetivas o que elas contêm de alteridade. Isso implica reiteradas investidas para desfazer a dicotomia Mesmo e Outro, Identidade e Alteridade, orientando-nos pela lógica da multiplicidade. Isso parece implicar mais do que olhar o outro com meus olhos, mas constituir um novo olhar produzido no meio:
Não se trata mais apenas do meu direito de ser diferente do Outro ou do direito do Outro de ser diferente de mim, preservando em todo caso entre nós uma oposição; nem mesmo se trata de uma relação de apaziguada coexistência entre nós, na qual cada um está preso à sua identidade … Trata-se de … Simpatizar não só com o outro, mas com o seu movimento, com sua deriva … inclusive com o devir-outro do outro, acompanhá-lo na sua movência.
(Pelbart, 2019Pelbart, P. P. (2019). Ensaios do assombro. N-1 edições., p. 174-175)Estamos falando de um insistente trabalho de desfazimento da sina de nossas práticas psi que constituem e naturalizam modos-indivíduo, individualizando e patologizando sofrimentos, como que querendo buscar uma origem — também capital —, culpabilizando-a: o indivíduo. Aqui é fundamental posicionarmo-nos no plano de indissociabilidade entre clínica e política, pelo entendimento do agenciamento entre desejos e instituições, estas últimas entendidas como conjunto de lógicas que constituem valores e modos de viver (família, amor romântico, empreendedorismo, coordenação de pequenos grupos8 8 Não nos esqueçamos que a ideia de pequenos grupos como conjuntos de indivíduos articulados por uma atividade e objetivos em comum é uma invenção agenciada com a invenção moderna da família nuclear. Não nos esqueçamos que a dinâmica de grupo e relações humanas, a ideia, o entendimento e o modo de viver em pequenos grupos são invenções dos Estados Unidos industriais nos idos dos anos 1930 em articulação com a necessidade empresarial de produzir indivíduos livres, mas para vender sua força de trabalho e consumir. (Fernández, 2006). , responsabilidade da mãe para com a educação de seus filhos, pátria amada Brasil).
O que em nós insiste em conservar? Por que insistimos em manter no coração de nossas práticas a tábua de uma moral civilizatória decadente que dita o que somos e o que devemos ser para não arriscar a fronteira da monstruosidade/desumanidade/natureza? Por que nossas práticas clínicas insistem em prescrever modos de vida, capitalísticos, demasiados humanos? “Recusemos as interpretações humanistas, repletas de sentido e piedade a respeito de tais homens extraviados” (Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica. Iluminuras., p. 43). Nessa direção, com Moysés Aguiar (1988)Aguiar, M. (1988). Teatro da anarquia: Um resgate do psicodrama. Papirus. propomos os seguintes desafios: considerar o humano em relação, em detrimento da forma-indivíduo; desfazer a sinonímia entre sofrimento e doença; contextualizar o desvio e o sofrimento humano, observando suas múltiplas raízes (sociais, institucionais, ético-políticas, ético/raciais, de gênero, de classe, dentre outras); ousar pensar uma sociedade sem Estado e sem mercado ou ao menos habitar suas frestas; e apostar na capacidade criativa do humano de garantir sobrevivência pela força da solidariedade à revelia dos instrumentos de coerção.
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“Aqui entra em jogo o exercício da clínica, de um ponto de vista em que suas fronteiras com a arte e a política se tornam indiscerníveis, ou seja, as potências de curar, criar e resistir toram-se indissociáveis” (Rolnik, 2004Rolnik, S. (2004). “Fale com ele” ou como tratar o corpo vibrátil em coma. In T. Fonseca & S. Engelman (Eds.), Corpo, arte e clínica. (pp. 231-238). Editora da UFRGS., p. 235). O capitalismo, em sua versão cifrada, vem fazendo da invenção sua principal aliada. Ou seja, é “da força de invenção que o capitalismo contemporâneo extrai a mais-valia” (Rolnik, 2004Rolnik, S. (2004). “Fale com ele” ou como tratar o corpo vibrátil em coma. In T. Fonseca & S. Engelman (Eds.), Corpo, arte e clínica. (pp. 231-238). Editora da UFRGS., p. 233). Dissociada do afeto político, a força de criação arrebanha-se como “um manancial de força de trabalho de invenção ‘livre’ … inteiramente disponível para ser instrumentalizada para o mercado” (Rolnik, 2004Rolnik, S. (2004). “Fale com ele” ou como tratar o corpo vibrátil em coma. In T. Fonseca & S. Engelman (Eds.), Corpo, arte e clínica. (pp. 231-238). Editora da UFRGS., p. 234). Nossas práticas clínicas precisam garantir a associação entre afeto artístico e afeto político, pois é a articulação entre essas duas potências que garante a preservação de uma vida, de sua continuidade e expansão; essa composição permite que as novidades esboçadas se expressem, ganhem corpo e língua; precipitando novas formas de subjetividade e sociedade, obra aberta, garantindo a processualidade da vida, convergindo a imaginação em mais realidade; dando consistência existencial à imaginação, escavando um tempo outro no coração desses nossos tempos.
MAIS REALIDADE, SENÃO SUFOCAREMOS9 9 “Um pouco de possível, senão eu sufoco” (Deleuze, 1992, p. 135).
Cresci sob um teto sossegado / Meu sonho era um pequenino sonho meu / Na ciência dos cuidados fui treinado / Agora entre o meu ser e o ser alheiro, / A linha da fronteira se rompeu.
—Waly Salomão, Câmara de Ecos
Junto ao conceito de realidade suplementar, nosso viver nada preciso dá passagem para a pergunta: como pode a imaginação reinventar um mundo e germinar trajetos diante da dor desses nossos tempos? Seria a imaginação, para além de uma função psíquica, uma força crianceira fabuladora de mundos outros, outros mundos? Seria lidar e brincar com suas próprias birutices? Imaginar, criar modos de existir, de resistir, de abrir-se no contato com as forças germinativas do mundo. Imaginar, inclusive por meio de nossas práticas de pesquisa e clínica, eis o chamamento, quase panfletário. Não imaginamos para fugir do mundo dado, caduco, mas para enfrentá-lo e, assim, começar novas rotas de navegação, pois, como diria Taoca, personagem do filme Deus é Brasileiro de 2003, com direção de Cacá DieguesDiegues, C. (Diretor). (2003). Deus é brasileiro [Filme]. Globo Filmes.: “a vida é um porto em que a gente acaba de chegar é nunca”. Imaginamos para produzir outras formas de existência, pois não há devir sem imaginação.
Nesse ponto final do texto, que enseja novos começos de mundo, chamamos a arte da vida — não as belas artes em seus conceitos categóricos e ideias de beleza, mas a arte da belezura de uma prática de si sempre em vias de se fazer — para se articular com essa aposta clínico-política-imaginativa, prática fabuladora de mundos, com o conceito de realidade suplementar, mundos em que não será preciso pagar até a respiração (Siba, 2007Siba. (2007). Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar [Música]. Em Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar [Álbum]. Sony.). Já que, para continuarmos vivos, vivendo e com viço de viver, parece ser preciso “viver a vida como produção de um estado de arte” (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., p. 146); parece ser preciso expandir a vida pela insurgência em nós de um outro plano, uma realidade outra, suplementar. Poderíamos estender o conceito de realidade suplementar para além dos settings terapêuticos10 10 Com isso, não estamos querendo afirmar que não há - desde Moreno nas praças de Viena às experimentações latino-americanas em curso com psicodramas públicos, etnodramas, sociopsicodramas nas políticas públicas etc. — tal expansão. Estamos, sim, afirmando que a tendência hegemônica ainda é mantermo-nos entre quatro paredes e trabalharmos com um público consumidor, que pode pagar. cada vez mais privatizados, privilégio de poucos? Poderíamos constituir palcos como corpos do mundo, capazes de escutar com o corpo inteiro, uma cor, um saber, um tato, um ruído, um fora de lugar e tempo que possibilitasse uma comunicação existencial que funcionaria como um momento prático — não representativo — da sensação?
Palco-corpo do mundo que supera o corpo organismo organizado, classificado, individualizado, para, ao contrário, compor um corpo intensivo, “estado do corpo anterior à representação orgânica, vida não orgânica, porque o organismo não é vida, é sua prisão”. (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., pp. 149-150). Compor esse corpo é “proteger as forças germinativas de uma finalidade a ser cumprida” (Fonseca, 2007Fonseca, T. (2007). Cartografias da Arteloucura: A insurgência de um outro espaço. In T. M. G. Fonseca; S. Elgelman & C. M. Perrone (Eds.), Rizomas da reforma psiquiátrica: A difícil reconciliação. Editora UFRGS., p. 141), é dramatizar dando passagem a traços e gestos extraviados dessa moral da vida ativa cheia de finalidades.
Um gesto é um meio sem finalidade, ele se basta, como na dança. Por isso, diz Agamben, ele abre a esfera da ética. Ainda mais quando ele se dá a partir de um corpo inerte ou desfeito, na conjunção impossível entre o moribundo e o embrionário.
(Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica. Iluminuras., p. 43)
No encontro entre clínica, política e arte, apostar nos gestos clínicos que ousem imaginar e criar, ensaiando mundos suplementares; balbuciar um pensamento-arte com imagens capazes de tramar “no processo de imaginar, saberes e fazeres outros, vozes sociais de variados tempos a reinventar o vivido e projetar cenários que quiçá possam vir a se concretizar” (Zanella, 2013Zanella, A. V. (2013). Perguntar, registrar, escrever: Inquietações metodológicas. Sulina/Editora da UFRGS., p. 42); isto é, fabular o (im)possível, criar novas formas de existir, ressoante com o projeto moreniano que deseja mudar uma sociedade fundamentada na valorização das conservas culturais para a direção do cultivo da espontaneidade/criatividade (Vieira, 2020Vieira, É. D. (2020). O Psicodrama e a pós-modernidade: Espontaneidade como via de resistência aos poderes vigentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(1), 59–67. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170007
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170...
). Se ainda houver dia seguinte capaz de insurgir dos escombros desses tempos, só poderá ocorrer às custas de uma ruptura gigantesca, efeito de “uma imaginação radical”. (Mbembe, 2020Mbembe. A. (2020). O direito universal à respiração. N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/53
https://www.n-1edicoes.org/textos/53...
, para. 21). “No meio da cratera, será preciso inevitavelmente reinventar literalmente tudo, começando pelo social. Assim como dificilmente haverá humanidade sem corpo, a humanidade também não poderá conhecer a liberdade sozinha, fora da sociedade ou às custas da biosfera” (Mbembe, 2000Mbembe. A. (2020). O direito universal à respiração. N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/53
https://www.n-1edicoes.org/textos/53...
, para. 22).
Status nascendi múltiplos, vidas em germinação e proliferação a forjar novas terras é o rastro dessas composições que queremos pesquisar e ativar. Entender, por meio do cultivo de uma aprendizagem incorporada o vínculo inquebrantável entre humanidade e biosfera. Afinal, a máquina de fazer drama não pode ser disposta a evitar diferenças, desalinhos, “seu corpo teórico perde potência de vibrar em diversas práticas ao enrijecer-se institucionalmente, ao fixar-se no ideal de universalidade científica” (Zamboni et al, 2014Zamboni, J.; Oliveira, S.; Canal, F.; Barros, M.; Cordeiro, P. (2014). Os “dramas” de J. L. Moreno e a filosofia da diferença. Psicologia & Sociedade, 26(2), 261-270. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000200003
https://doi.org/10.1590/S0102-7182201400...
, p. 263). “Imaginar, um gesto clínico-político necessário, pois interroga sobre aquilo que nossos olhos parecem tão acostumados a ver; para conhecer, parece ser preciso se aproximar e imaginar (Didi-Huberman, 2012Didi-Huberman, G. (2012) Quando as imagens tocam o real (Carmello, P. & Casa Nova, V., Trad.). Revista Pós, 2(4), 204-219.). Navegar é preciso, viver não é preciso! Navegar é preciso e viver é preciso! Imaginar é preciso! Que a poesia e a birutice da vida nos arrastem até o mar!11
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Inspirando-nos na música Arrastada, da cantora e compositora sergipana Patrícia Polayne.
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Não o é, pois se trata de acompanhar processos em curso, efeitos-subjetividade, processos de subjetivação; desenvolver aportes teórico-metodológicos como práticas no tempo e com o tempo de desnaturalização do próprio objeto da Psicologia, a subjetividade.
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Este texto foi escrito em 2020, no ápice da crise político-sanitária instaurada pela pandemia do coronavírus SARS-CoV-2, a COVID-19, que afetou de maneira abrupta nossos modos de (con)viver. No Brasil, mais de 682.000 pessoas faleceram até agosto de 2022, e outras inumeráveis sofreram e ainda sofrem de maneira direta ou indireta impactos pandêmicos.
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Timoneiro, composição de Paulinho da Viola: “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar” (Paulinho da Viola, 1997Paulinho da Viola. (1997). Timoneiro [Música]. Em Paulinho da Viola (Ao Vivo) [CD]. São Paulo: BMG/RCA.).
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Todo o sentimento, composição de Chico Buarque: “Depois de te perder, te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza” (Buarque, 2012Buarque, C. (2012). Todo o Sentimento. Em Na Carreira – Ao Vivo (DVD). Rio de Janeiro, RJ: Biscoito Fino.).
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“Com que sangue foram feitos nossos olhos” (Haraway, 2009Haraway, D. (2009). Saberes localizados: A questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 7-41., p. 25) de pesquisadoras da subjetividade?
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Essa noção foi proposta por Felix Guattari, partindo da de Karl Marx de que o capital sobrecodifica os valores de troca, submetendo o conjunto dos processos produtivos aos seus interesses. Guattari “estende essa ideia aos modos de subjetivação que, sob o regime capitalista, são igualmente sobrecodificados … O sufixo ‘-ístico’ acrescentado pelo autor a capitalista refere-se a essa operação micropolítica medular nesse regime, a qual incide sobre todos os domínios da existência humana” (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. N-1 edições., p. 103), constituindo-nos imersos em modos capitais de viver, de conviver, de perceber e sentir.
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Em seu livro Arqueologia da Violência: Pesquisas de Antropologia Política, Pierre Clastres (2004, p. 83)Clastres, P. (2004). Do etnocídio. In Clastres, P. (Ed.), Arqueologia da violência. (pp 81-92). Cosac & Naify. apresenta o conceito de etnocídio como sendo uma “destruição sistemática dos modos de vida e pensamentos de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição”.
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Não nos esqueçamos que a ideia de pequenos grupos como conjuntos de indivíduos articulados por uma atividade e objetivos em comum é uma invenção agenciada com a invenção moderna da família nuclear. Não nos esqueçamos que a dinâmica de grupo e relações humanas, a ideia, o entendimento e o modo de viver em pequenos grupos são invenções dos Estados Unidos industriais nos idos dos anos 1930 em articulação com a necessidade empresarial de produzir indivíduos livres, mas para vender sua força de trabalho e consumir. (Fernández, 2006Fernández, A. M. (2006). O campo grupal: Notas para uma genealogia. Martins Fontes.).
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“Um pouco de possível, senão eu sufoco” (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Conversações. 34., p. 135).
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Com isso, não estamos querendo afirmar que não há - desde Moreno nas praças de Viena às experimentações latino-americanas em curso com psicodramas públicos, etnodramas, sociopsicodramas nas políticas públicas etc. — tal expansão. Estamos, sim, afirmando que a tendência hegemônica ainda é mantermo-nos entre quatro paredes e trabalharmos com um público consumidor, que pode pagar.
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Inspirando-nos na música Arrastada, da cantora e compositora sergipana Patrícia Polayne.
AGRADECIMENTOS
Não aplicável.
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DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS
Não aplicável. -
FINANCIAMENTO
Não aplicável
REFERÊNCIAS
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Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jan 2023 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
14 Jul 2022 -
Aceito
20 Set 2022