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As relações na escola e a construção da autonomia: um estudo da perspectiva da psicologia

Relationships in the school and the construction of autonomy: a study from the perspective of psychology

Resumos

Este artigo apresenta reflexões de uma pesquisa de Mestrado, que investigou a compreensão de educadores de uma escola pública sobre autonomia e em que medida ver-se ou não como autônomo influencia a atuação docente. Tomou-se como aporte teórico-metodológico os pressupostos de Vigotski e da teoria da Educação Libertadora, de Paulo Freire. Como instrumentos, foram utilizados entrevistas semiestruturadas e relatos de cenas das vivências da pesquisadora nas reuniões docentes. Como resultado, constatou-se que, embora alguns professores se mostrem autorregulados, suas práticas não se caracterizam como autônomas, assim como não se percebem como sujeitos capazes de exercer a autonomia, sobretudo em decorrência das condições materiais em que exercem suas atividades. Evidenciou-se, também, que as formas como as relações se empreendem na escola, permeadas por questões burocráticas e disputa de poder, constituem-se empecilho para o desenvolvimento da autonomia e da emancipação de seus atores.

autonomia docente; psicologia histórico-cultural; desenvolvimento humano; educação libertadora


This paper presents some reflections first presented in a Master degree research which has investigated the understanding of educators from a public school about autonomy, and whether seeing themselves as an autonomous being or not has influence in teaching performance. The theoretical basis was drawn from theoretic-methodological ideas of Vigotski and Paulo Freire's Liberative Education theory. The instruments used were semi-structured interviews and accounts of scenes from the experiences of the researcher during the faculty meetings. As a result, it was found that although some teachers demonstrate self regulation, their practices are not characterized as autonomous and do not perceive themselves as subjects capable of exercising autonomy, especially because of the material conditions in which they conduct their activities. It was clear, too, that the ways in which relationships are undertake in school, permeated by bureaucratic issues and power struggle, undermine the development of autonomy and emancipation of its main actors.

teacher autonomy; cultural-historical psychology; human development; liberative education


As relações na escola e a construção da autonomia: um estudo da perspectiva da psicologia* * Agência de Financiamento: Capes

Relationships in the school and the construction of autonomy: a study from the perspective of psychology

Ana Paula Petroni; Vera Lucia Trevisan de Souza

Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, Brasil

RESUMO

Este artigo apresenta reflexões de uma pesquisa de Mestrado, que investigou a compreensão de educadores de uma escola pública sobre autonomia e em que medida ver-se ou não como autônomo influencia a atuação docente. Tomou-se como aporte teórico-metodológico os pressupostos de Vigotski e da teoria da Educação Libertadora, de Paulo Freire. Como instrumentos, foram utilizados entrevistas semiestruturadas e relatos de cenas das vivências da pesquisadora nas reuniões docentes. Como resultado, constatou-se que, embora alguns professores se mostrem autorregulados, suas práticas não se caracterizam como autônomas, assim como não se percebem como sujeitos capazes de exercer a autonomia, sobretudo em decorrência das condições materiais em que exercem suas atividades. Evidenciou-se, também, que as formas como as relações se empreendem na escola, permeadas por questões burocráticas e disputa de poder, constituem-se empecilho para o desenvolvimento da autonomia e da emancipação de seus atores.

Palavras-chave: autonomia docente; psicologia histórico-cultural; desenvolvimento humano; educação libertadora.

ABSTRACT

This paper presents some reflections first presented in a Master degree research which has investigated the understanding of educators from a public school about autonomy, and whether seeing themselves as an autonomous being or not has influence in teaching performance. The theoretical basis was drawn from theoretic-methodological ideas of Vigotski and Paulo Freire's Liberative Education theory. The instruments used were semi-structured interviews and accounts of scenes from the experiences of the researcher during the faculty meetings. As a result, it was found that although some teachers demonstrate self regulation, their practices are not characterized as autonomous and do not perceive themselves as subjects capable of exercising autonomy, especially because of the material conditions in which they conduct their activities. It was clear, too, that the ways in which relationships are undertake in school, permeated by bureaucratic issues and power struggle, undermine the development of autonomy and emancipation of its main actors.

Keywords: teacher autonomy; cultural-historical psychology; human development; liberative education.

Introdução

Este artigo apresenta reflexões baseadas em um estudo realizado por Petroni (2008), em sua dissertação de Mestrado intitulada Autonomia de professores: um estudo da perspectiva da Psicologia, cujo objetivo foi investigar, a partir das falas de professores e de observações realizadas no contexto escolar, o que o professor compreendia por autonomia e em que medida ser ou não autônomo influenciaria sua prática. A reflexão sobre a prática do professor em relação à sua própria compreensão dos acontecimentos de seu cotidiano é um caminho possível para problematizar o momento vivenciado pela educação brasileira e o papel da psicologia escolar nesse contexto.

Temos visto os resultados alarmantes apontados pelas avaliações realizadas em todo o país, amplamente divulgados pela mídia e discutidos no meio acadêmico, com o objetivo de se encontrarem justificativas e soluções para o baixo desempenho dos alunos da educação básica. Esse movimento, muitas vezes, aponta para o professor, especificamente para a sua formação e a sua prática: ao mesmo tempo em que ele é posto no lugar de culpado, é tomado como solução, a quem caberia encontrar caminhos para mudanças que resultariam em melhoria da qualidade da educação (D. T. R. Souza, 2002; V. L. T. Souza, 2009).

Contudo, parece que encontrar justificativas para o fracasso na apropriação do conhecimento escolarizado ou soluções mágicas para o problema não tem produzido ações efetivas que transformem as condições materiais de ensino-aprendizagem que caracterizam a maioria das escolas brasileiras. Trata-se, pois, de focalizar as relações estabelecidas nesse contexto entre seus atores, visto ser a escola um espaço coletivo por princípio. Logo, seria preciso mudar o foco dos discursos que culpam o professor e atribuem a ele a responsabilidade de encontrar a solução para os problemas da escola, concebendo-o como sujeito que sofre a influência de condições materiais de trabalho por vezes perversas, frente às quais se sente impotente, sem condições de cumprir com sua tarefa. Para emancipar, educar e formar o aluno como autônomo, é imprescindível que o professor se constitua como tal, exercendo a educação de forma emancipada e crítica (V. L. T. Souza, 2009).

Foram esses alguns dos aspectos que desencadearam nossas reflexões sobre o professor e sua prática e instigaram-nos a participar das reuniões pedagógicas para observar as relações que se empreendem na escola. Essa aproximação do contexto escolar permitiu que acessássemos vários elementos que influenciam o desenvolvimento da autonomia de professores e de alunos. Observamos, por exemplo, que as relações de autoridade, a responsabilidade e a participação nas tomadas de decisões podem ser fatores que contribuem para que o sujeito se desenvolva como autônomo ou não, em suas diversas formas de manifestação no contexto escolar.

Fala-se muito de uma escola com profissionais qualificados, capazes de atender às diferenças apresentadas por seus alunos, conscientes de seu papel no desenvolvimento de crianças e jovens. Contudo, o que vimos foram professores oprimidos pelo Sistema de Ensino e pela gestão da escola, sem espaço para participação, inseridos em um contexto que não promove sua autonomia, pois são desacreditados, responsabilizados por decisões e encaminhamentos dos quais não participaram. De outro lado, também são profissionais que não compreendem a importância de seu papel, que não se implicam em suas práticas e não se responsabilizam pelos resultados da educação que oferecem.

Para sustentar nossas análises da problemática abordada, tomou-se como referente os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, sobretudo os da obra de Vigotski, e os da Educação Libertadora, de Paulo Freire. Aproximar as ideias de Vigotski e Paulo Freire tornou-se possível devido à base epistemológica adotada por esses autores, isto é, o materialismo histórico e dialético.

Os conceitos de liberdade e de emancipação de Paulo Freire e de autorregulação de Vigotski nos guiaram na inserção no campo e na análise dos dados construídos ao longo da pesquisa.

Liberdade, Emancipação e Autorregulação na Escola: Algumas Constatações

Não há como investigar a autonomia do professor sem considerar o momento histórico e social vivido por esse sujeito, sem levar em conta que é nesse contexto que ele se constitui, em um movimento dialético. É preciso analisar, portanto, as condições de trabalho às quais está submetido, as demandas que lhe são impostas, enfim, todos os fatores que influenciam a sua prática.

Trabalhos como o de Tonet (2005), Facci (2009) e V. L. T. Souza (2009) oferecem subsídios à discussão sobre a questão da Educação e da docência, apontando para o momento de crise que vem sendo enfrentado. As novas demandas apresentadas ao professor, por exemplo, a exigência de educar as atitudes das crianças, tem favorecido um movimento dos professores de colocar em segundo plano o que seria sua principal função: o ensino. Contudo, o que se constata é que os valores e os conhecimentos são apenas transmitidos, reproduzidos, de acordo com a ideologia dominante que permeia todo o Sistema de Ensino.

Como romper com essa lógica política e ideológica que oprime, exclui e obriga o professor, muitas vezes, a trabalhar em vários turnos e em condições desfavoráveis ao exercício de uma prática docente efetiva? De que forma a educação pode ser efetivamente emancipadora e autônoma?

Tonet (2005), partindo dos pressupostos de Marx, aponta que a ação educativa tem de ser uma emancipação humana, e não política. A emancipação humana seria ilimitada, possibilitando ao sujeito participar ativamente de sua construção como homem, como ser plenamente livre, o que equivaleria a ver-se como participante de uma comunidade, de um contexto social, em que a um só tempo constrói a si e ao meio, por intermédio de seu trabalho - categoria fundamental nesse processo. Já a emancipação política tem como parte de si a democracia e a cidadania, tão apregoadas pela Educação, mas que acaba sendo de certa forma limitada, pois se liga à sociabilidade que se funda no capital. Nesse sentido, a cidadania não deverá ser nunca o fim da atividade educativa, e sim a emancipação humana. Nas palavras do autor:

por mais plena que seja a cidadania, ela jamais pode desbordar o perímetro da sociabilidade regida pelo capital. Isto é muito claramente expresso pelo fato de que o indivíduo pode, perfeitamente, ser cidadão sem deixar de ser trabalhador assalariado, ou seja, sem deixar de ser explorado. (Tonet, 2005, p. 475)

Essas considerações remetem à autonomia docente que, a nosso ver, se constitui pelo exercício da liberdade, da emancipação e da autorregulação do sujeito. Como olhar para o professor e para a sua atividade, a sua docência, tendo em vista todos esses elementos? Como tem sido para ele lidar com essas questões?

Pensar na liberdade dos professores para realizarem seu trabalho remete-nos diretamente aos pressupostos de Paulo Freire (1993, 1996, 1999, 2005). Sua ideia de liberdade equivale a se libertar da opressão exercida pela maioria dominante, e da simples reprodução dos conhecimentos produzidos que massificam e alienam os sujeitos, permitindo que se tornem conscientes, críticos e autônomos, participantes ativos na construção da história da sociedade em que estão inseridos e também de sua própria história. São esses aspectos que constituem as premissas do que ele denomina Educação Libertadora.

Essa concepção de liberdade não se assemelha à ideia de sujeito livre, de alguém que não se submete a regras, que pode agir sem sofrer as consequências de suas ações, e independe da figura de autoridade. Ao contrário, a ideia de liberdade como libertação traria ao sujeito a possibilidade de se soltar de amarras que impedem o seu desenvolvimento, seja ele físico, psicológico, social, econômico ou cultural. Ser livre, então, significa ter compromisso, responsabilidade e consciência de seu papel no mundo. A educação seria o meio possível para a libertação, pela mediação do professor e dos conhecimentos socialmente produzidos, constituindo-se como uma das condições para que o sujeito se emancipasse.

Emancipar-se, nessa perspectiva, significa opor-se à opressão, tornar-se crítico da realidade na qual se insere, implicando-se com seu contexto, agindo com responsabilidade, refletindo sobre as próprias ações e buscando renovações. Nesse sentido, emancipar-se implica ser autônomo.

Para Freire (1996, 1999, 2005), há uma estreita relação entre liberdade e emancipação, sendo a primeira condição para a segunda, e ambas exercidas por sujeitos autônomos.

Em seu livro Educação como Prática da Liberdade, Freire (1999) toma como ponto central a luta contra a massificação da população, contra a educação que reproduz os conhecimentos dominantes e mantém os sujeitos na alienação, no estado de heteronomia, que não promove seu desenvolvimento e sua emancipação. Vemos aqui o importante papel a ser desempenhado pelo professor: o de ensinar os conhecimentos socialmente construídos, mas não com o fim de domesticar, de oprimir, de assujeitar seu aluno, e sim de formá-lo e transformá-lo como sujeito pertencente a um contexto, a uma história e como construtor desse conhecimento também.

Da perspectiva da Psicologia, o conceito de autorregulação de Vigotski ajuda a compreender a construção da autoria pelo sujeito. Vigotski (1995) entende a autorregulação como uma das mais importantes funções psicológicas superiores, que corresponde à capacidade do sujeito de dominar sua própria conduta. O autor aponta que, por meio da mediação do outro, feita pela linguagem, o sujeito vai configurando as experiências que vive na cultura, em um processo em que as funções psicológicas elementares assumem a natureza de social. Assim, a autorregulação da conduta sustenta e promove o desenvolvimento da consciência como função psicológica superior, que confere ao sujeito as reais possibilidades de agir de forma emancipada e autônoma.

De acordo com V. L. T. Souza (2005), o sujeito não se apropria dos significados atribuídos pelos outros a fenômenos ou eventos, mas internaliza esses significados, configurando-os com sentidos próprios, de acordo com suas experiências, construindo, assim, a autorregulação de sua conduta. Afirmamos aqui, novamente, a importância da autorregulação, pois ao alcançar o desenvolvimento dessa função superior, o sujeito regula todas as demais funções psicológicas.

A discussão trazida por Díaz, Neal e Amaya-Williams (1996) evidencia a origem social da autorregulação e a sua importância em relação às demais funções psicológicas superiores. Para os autores, a capacidade de se autorregular demonstra o ápice do desenvolvimento cognitivo, afetivo e social do sujeito, já que, por intermédio dessa função, o sujeito torna-se capaz de guiar sua conduta por si mesmo e de regular as demais funções psicológicas superiores, como, por exemplo, a atenção e a consciência.

A autorregulação aconteceria, assim, como apresentado por Díaz, Neal e Amaya-Williams (1996), por meio da atividade simbólica e do uso da linguagem, em que o sujeito acede ao nível de desenvolvimento que lhe permite se tornar capaz de agir, planejar sua ação, dominar seu comportamento, ser consciente da condição material de sua existência sem a necessidade de uma regulação externa.

Ocorre que se desenvolver como autorregulado não depende somente do sujeito, mas das condições materiais de sua existência. Suas experiências, as relações estabelecidas com os outros ao longo de sua história de vida e o contexto de que participa atuam nesse desenvolvimento, influenciando a relação que o sujeito mantém com o meio no que concerne à sua possibilidade de autorregular-se ou de ser regulado pelo meio.

Entendemos, portanto, que a emancipação e a autonomia só poderão ser exercidas por sujeitos que se constituam como autorregulados, capazes de tomar para si a regulação de sua própria conduta, condição essencial para o desenvolvimento de sua consciência.

A partir das considerações acima, é possível avançar para a postulação do conceito de autonomia, categoria central no presente estudo. Entendemos a autonomia como sendo a capacidade que o sujeito adquire para formular as próprias leis e regras durante seu processo de desenvolvimento e por meio das relações estabelecidas com os outros, no contexto em que está inserido. Ser autônomo implica agir com responsabilidade, tomar decisões de forma consciente e crítica, assumir compromissos e consequências de atos ou ações, ser consciente das influências externas que sofre e, a partir delas, exercer influência e tomar decisões sobre submeter-se ou não às imposições sociais, tendo clareza dos aspectos políticos, econômicos e ideológicos que permeiam tais imposições. Ou seja, ter consciência das condições materiais que caracterizam as práticas sociais.

O sujeito autônomo, então, seria aquele que se percebe no mundo, que se torna ator e autor de sua história, consciente de que não está sozinho, vendo-se como diferente e aprendendo com as diferenças; aquele que dispõe de recursos para expressar-se livremente e ser compreendido pelo outro, em um exercício permanente do diálogo e da reflexão, em que exerce sua liberdade.

1. Método

Sujeitos, contexto da pesquisa e procedimentos

A pesquisa foi realizada em uma escola de Ensino Fundamental da rede municipal de uma cidade do interior do Estado de São Paulo.

Os dados foram coletados de duas maneiras em diferentes momentos e espaços da escola: observação das reuniões dos professores, Trabalho Docente Coletivo (TDC), que aconteciam semanalmente; do refeitório, onde as crianças recebiam a merenda e tomavam seus lanches, além de algumas inserções na sala da direção e sala dos professores. O objetivo era observar e apreender as relações estabelecidas entre os atores da escola (direção, orientação pedagógica, professores e alunos). Em um segundo momento, realizaram-se entrevistas semiestruturadas com quatro professores e com a vice-diretora.

Os professores foram escolhidos considerando-se o tempo de exercício da docência, fazendo-se opção por aqueles que tivessem mais experiência e buscando abranger representantes de ambos os segmentos do Ensino Fundamental, I e II. Também se levou em conta a disponibilidade e o desejo dos professores em participarem da pesquisa. Outro fato norteador da escolha, e que decorreu das observações feitas do grupo, foi a qualificação feita pela gestão do que seriam os professores mais eficientes e menos eficientes. Escolhemos professores de ambos os grupos, buscando abranger a diversidade presente no contexto. A entrevista com a vice-diretora se deu pela necessidade de acessar o ponto de vista da gestão para contemplar na análise as contradições presentes nas práticas escolares.

Para a realização das entrevistas, utilizou-se um roteiro baseado na proposta de André (2005), que elege quatro dimensões interligadas a serem consideradas nas investigações sobre o cotidiano escolar: subjetiva/pessoal; institucional/organizacional; instrucional/relacional e sociopolítica.

Procedimento de Análise das Informações

Em um primeiro momento, foram realizadas várias leituras dos dados em busca de indicadores sobre a autonomia do professor e elaborou-se um quadro com trechos de falas dos professores retiradas das entrevistas e de trechos do diário de campo. A leitura subsequente do quadro permitiu identificar aspectos semelhantes nas falas dos diferentes sujeitos investigados, possibilitando a delimitação das seguintes categorias: organização e participação nas decisões; autoridade e responsabilidade; emancipação e autorregulação.

Entendemos que essas categorias se relacionam à autonomia, seja por permitirem ou impedirem sua promoção, como se pode perceber nas falas dos atores entrevistados. Ao fazer esse movimento, foram surgindo algumas contradições, fossem nas falas dos professores ou nas falas da vice-diretora.

As falas dos professores, da vice-diretora e as observações anotadas demonstraram aproximações e oposições, a depender do aspecto considerado. Assim, decidimos fazer uma análise que colocasse esses aspectos em evidência.

2. Discussão e análise dos resultados

A concepção dos professores sobre autonomia e sua presença na prática docente

Ao adentramos o contexto escolar, nos deparamos com o quão interessante se fez observar a forma como os professores concebem a autonomia e como percebem sua presença ou ausência nas práticas educativas:

Autonomia... é igualzinho à liberdade, à libertinagem. Eu tenho que ter uma liberdade, mas nem todos podem ter autonomia ... Só quando você chega na maturidade que você tem autonomia. Eu acho que o ser humano, ele ainda precisa de padrões que cerceiem, que o oriente. ... Eu não acredito em autonomia total em nenhum ser humano, porque ele é propriedade. Se você for extremamente autônomo, você não está se relacionando com a sociedade. (fala da professora Maria1 1 Os nomes utilizados são fictícios. )

Vamos trocar autonomia por liberdade? A prefeitura dá liberdade plenamente para o professor. Ele fecha a porta e faz o que quer. Eu não sei, professor autônomo, eu penso assim: consegue visualizar, consegue ver o que está fazendo de errado e o que está fazendo de certo e corre atrás, de pesquisar, estudar. Ter sua autonomia de trabalho. De buscar, de ir atrás, de conversar, questionar. Esse é o papel do professor autônomo. Professor que tem essa liberdade não quer dizer que é autônomo, por quê? Porque ele ainda fica preso, não consegue enxergar o que está fazendo, ir atrás, buscar o conhecimento, pesquisar na internet, ou ir numa livraria comprar um livro. ... Essa autonomia de estudo, sozinho, reflexivo do professor, não tem. ... A prefeitura dá liberdade, mas dizer que todos os professores são autônomos, isso eu não vejo. (fala da professora Sandra)

Interessante notar como os professores, ao serem questionados sobre o que é autonomia e se acham que são autônomos, relacionam autonomia à liberdade e buscam, na reflexão que fazem no momento da entrevista, diferenciá-las, revelando uma série de aspectos que carecem ser analisados.

Ser livre não significa ser autônomo, como concebe Paulo Freire (1996, 1999, 2005), e a professora Sandra reconhece isso, ao afirmar que o fato de a Prefeitura dar liberdade para o professor em sua prática não significa que ele seria autônomo. Sua fala resume o que, para nós, poderia ser um professor autônomo, com uma exceção: realmente acreditamos que uma prática autônoma exige que o professor enxergue seu trabalho, reflita sobre suas ações, buscando novas práticas, novos caminhos; só não concordamos que, nesse movimento, ele possa prescindir do outro, ou seja, agir sozinho. Essa concepção de liberdade revela outros elementos que constituem a representação de autonomia para os docentes: ser capaz de "se virar" sozinho e poder prescindir do coletivo.

O primeiro aspecto que chama a atenção é a forma como as professoras relacionam autonomia e liberdade, opondo-as, sem perceber sua implicação na construção de uma prática pedagógica responsável. A liberdade aparece desvinculada da responsabilidade, enquanto a autonomia, segundo as concepções expressas, implica a responsabilidade. Ocorre que as professoras acreditam que têm liberdade e não autonomia, e o fato de não perceberem a implicação entre ambas pode justificar a própria ausência da autonomia.

A professora Maria menciona a palavra libertinagem, que passa a ideia de um comportamento desregrado e desvinculado de normas ou compromisso. Essa professora apresenta contradições em sua fala, já que ao mesmo tempo em que diz que só seria possível ser autônomo quando se atinge a maturidade, ela afirma que não há autonomia possível, que ninguém poderia ser totalmente autônomo, pois sempre há normas, padrões sociais que orientam o comportamento dos sujeitos. Parece confundir autonomia com liberdade total e irrestrita, ou mesmo com libertinagem, como forma de liberdade sem responsabilidade.

Partindo dos pressupostos aqui assumidos (Freire, 1996, 1999, 2005; Vigotski, 1995, 1998), podemos dizer que, sozinho, o sujeito não consegue ser autônomo e nem livre. Isso porque considerar que é por meio das relações que o sujeito estabelece ao longo de sua vida que sua conduta se autorregula, e que a autorregulação se dá pela apropriação da cultura, em um processo de mediação que promove o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, equivale a afirmar que não há desenvolvimento possível sem a interação permanente com os outros do contexto; sobretudo da autonomia, que carece ser construída em um processo permanente de atribuição pelo contexto e apropriação pelos sujeitos. Logo, seja de acordo com Freire ou com Vigotski, não há autonomia, liberdade ou autorregulação que se desenvolva sem a participação do outro, que faz a mediação da cultura, sem o coletivo e o social, que caracterizam a natureza humana.

Sandra declara, ainda, que o professor tem liberdade, pois entende que ao fechar a porta de sua sala, passa a ser responsável pela condução de sua atividade, podendo fazer o que achar melhor. Mas permanece a questão: ter liberdade é suficiente? E as discussões sobre o que fazer com ela?

Tomando por base a concepção de Freire (1996, 1999, 2005), é possível pensar que oferecer liberdade não é suficiente, pois ela é apenas um dos aspectos necessários ao desenvolvimento do sujeito autônomo. Ou seja, a conquista da autonomia depende da liberdade, e o exercício da liberdade demanda a autonomia. Assim, liberdade e autonomia se implicam, mutuamente, em um processo de construção e reconstrução permanente. Contudo, também é necessário considerar que o desenvolvimento do sujeito autônomo implica a autorregulação da conduta, função psicológica superior que, uma vez desenvolvida, permite a apropriação de um modo de funcionar próprio e singular, em que o sujeito exerce seu papel de maneira consciente, sendo capaz de se autoavaliar e de avaliar seu entorno em relação às ações que nele desenvolve. A reflexão seria um caminho para se exercitar a autoavaliação, momento em que o sujeito se volta para si, mediado pelo o que é para o outro e configura sentidos próprios em relação à sua ação.

Como já apresentado, o sujeito autorregulado caracteriza-se como aquele que segue as normas e as regras construídas socialmente, mas atribui a elas significados e sentidos próprios, construindo, dessa forma, as suas próprias (Vigotski, 1995).

As falas a seguir permitem compreender o porquê entendemos que a autonomia, da perspectiva do sujeito, implica sua autorregulação.

autonomia é quando você é capaz de fazer alguma coisa sozinha. ... Eu sempre acho que aquilo, a forma como eu enxergo o trabalho, a forma como eu pretendo fazer, eu vejo como uma coisa muito boa. Eu não acho que o do vizinho é melhor. Às vezes, eu escuto algumas coisas... Isso não significa que eu não estou aberta a ideias. Que de repente, o colega comenta alguma coisa que fez e você: nossa, eu nunca tinha pensado nisso! E você se apropria daquilo lá e usa sem nenhum pudor, entendeu? ... Tem gente que é muito insegura. (professora Carmem)

Autonomia é autorregulação. [Pausa]. Você saber fazer sozinho as coisas, que não prejudique o outro. Essa consciência do que eu posso fazer e do que não devo fazer. Essa regulação interna da gente, mental, que a gente não nasce assim, a gente aprende a ser autônomo. (professora Sandra)

Autonomia é quando a pessoa, ela age por si própria. Ela consegue realizar as coisas sem... sem pedir ajuda. Ela pode até pedir, mas não no sentido de que ela não é capaz, ela é capaz. Então, com o tempo, ela já vai fazendo as coisas, ela já vai pensando. Quando a pessoa consegue pensar sobre suas ações, entendeu? Quando ela consegue diferenciar: isso eu posso, isso eu não posso, isso eu vou além... Acredita em si mesma, na sua capacidade. A partir do momento em que ela passa ... que ela consegue pensar sozinha, ela já está... ela conseguiu sua autonomia. Ela venceu essa etapa. (professora Lúcia)

As professoras declaram que a autonomia é a capacidade de agir por si, de se reconhecer como participante de um processo de desenvolvimento que vai ocorrendo durante a vida, provocando transformações em seu cotidiano, em sua realidade e em si próprias, pelas interações estabelecidas no contexto.

Podemos dizer, ainda, que corroboram os pressupostos de Vigotski (1995, 1998), pois as professoras falam do domínio de conduta, de que ser autônomo é resultado de um processo de constituir-se como ser pensante.

Ao se inserir em um espaço que promove o desenvolvimento de um sujeito consciente e crítico, a autorregulação torna-se possível, na medida em que a pessoa passa a participar ativamente da construção desse espaço (Vigotski, 1995).

Essa clareza das professoras em relação à autonomia, à consciência de seu papel e disposição para agir, ainda que suas ações sejam questionadas, ainda que solitariamente (dentro da sala de aula) ou enfrentando conflitos (dizendo não ter medo), é que demonstra a possibilidade de a escola se tornar um espaço de promoção da emancipação. Se esse potencial está lá, bastaria que a gestão tomasse consciência dele e, a partir de novos posicionamentos, investisse no grupo, no coletivo, pois a liberdade, a emancipação e a autorregulação são constituintes da autonomia, na medida em que implicam responsabilidade por parte dos sujeitos envolvidos no processo.

Liberdade x Abandono: relação complexa e delicada

Como observado na escola, os espaços reservados à troca entre os professores não favorecem o exercício de uma reflexão que promove o desenvolvimento da autonomia docente. A equipe gestora até oferece espaços para que os professores participem, opinem, mas a reflexão não acontece e, muitas vezes, produzem-se conflitos, como se pode constatar na fala da vice-diretora e nas observações realizadas: "Esse ano o TDC ficou um pouco complicado, porque ficou liberado para os professores escolherem o dia e o horário que quiserem participar, dentro daquilo que a escola já tinha para oferecer." (fala da vice-diretora Denise).

Março/2008 - Reunião das professoras do ciclo: Acompanhei a discussão de três professoras para fazer o planejamento durante duas semanas. Elas tinham o espaço para refletirem e decidirem qual caminho seguir, como iriam ser suas aulas, os conteúdos a serem ensinados (relacionados com um tema gerador de acordo com o ano do ciclo). Elas não sabiam como trabalhar, não entendiam por que tinham que fazer isso e diziam que era mais fácil copiar o do ano anterior; e não compreendiam por que todo ano tinha que mudar (Trecho de cena relatado em diário de campo)

O que fazer com a liberdade para agir quando não se consegue compreender a tarefa ou não se pode atribuir sentidos às ações? Isso seria liberdade ou abandono?

Aproximemos nossos olhares, primeiramente, para a fala de Denise. A escola ofereceu algumas opções de dias e horários para os professores decidirem qual seria a melhor opção para cumprirem o Trabalho Docente Coletivo; e o resultado foi que todos decidiram fazer nos mesmos dias e horários. Isso se tornou mais um problema para a organização da escola, pelo fato de os professores ficarem separados no horário da reunião. Chegamos a observar uma reunião em que as professoras do ciclo ficaram quase todo o período da reunião esperando o orientador pedagógico, que chegou quase ao seu final, e acabou não fazendo as discussões necessárias.

Vemos que nesse caso da escolha do horário do TDC foi oferecida aos professores a opção de escolherem os melhores horários para eles, e isso foi feito, mas não foi orientado aos professores como fazer, e nem a escola se preparou para atender a essa demanda. Dar o poder de escolha aos professores, deixá-los livres para decidirem, não promove o desenvolvimento da autonomia se não há compreensão, organização e responsabilidade para que exerçam a participação.

No trecho do diário de campo também ficou evidente a falta de orientação das professoras, que relatavam não saber como montar o planejamento e nem compreender a necessidade de fazê-lo. Essa liberdade dada às professoras para planejarem suas ações acaba por aprisioná-las, evidenciando uma condição material de trabalho que se revela perversa, tendo em vista o despreparo dos professores para desempenhar suas atividades. Segundo Vigotski (1998), é a mediação, exercida por um parceiro mais experiente em um processo de interação permanente, que promove o desenvolvimento dos sujeitos rumo a formas de funcionar cada vez mais complexas. Para que os professores fossem capazes de autorregular suas condutas nessa tarefa de planejar, decidir sobre o que e como ensinar, por exemplo, teriam de ter apropriadas essas ações via mediação de parceiros mais experientes, papel que o orientador pedagógico pode exercer.

Parece que a condição material de trabalho a que se submetem os professores caracteriza-se por solidão e abandono. Um abandono velado, que se esconde sob o discurso da liberdade, da autonomia, de uma ação democrática, enfim. Como os professores se sentem em relação a essa condição?

É muito solto, então cada um faz o que quer. Se cada um faz o que quer, o projeto político-pedagógico da escola nunca vai ser contemplado. É o que eu sempre falo na minha sala: a gente tem várias escolas dentro de uma mesma escola. Vários modos de pensar... Lógico, as pessoas são diferentes, mas tem que ter essa linha pedagógica, essa conduta, que eu não vejo. (professora Sandra)

Na educação a gente está numa canoa ainda, nós temos que pegar um transatlântico, para que realmente se atravesse o oceano. (professora Maria)

o grupo docente dessa escola caminha em várias direções. A imagem que eu vejo é de um barco lotado de pessoas, cada uma com um remo, sem direção nenhuma e na escuridão. (professora Sandra)

Essas falas indicam como os professores se sentem dentro da escola: abandonados, sem orientação, com dúvidas sobre sua prática e os resultados obtidos a partir dela. Conforme vimos apontando, para o sujeito constituir-se como autônomo seria necessário um grande investimento na constituição do coletivo da escola, o que exige a mediação de um líder que tivesse clareza dos objetivos a atingir. Esse líder teria a função de dar o rumo das ações e oferecer condições para que se realizassem.

Se é na interação e pela apropriação de signos e significados que fazem a mediação de novos sentidos a serem configurados que o desenvolvimento da autorregulação se processa, é possível dizer que seria o trabalho coletivo na escola que abriria caminhos para a mudança e a superação dos conflitos vividos por seus atores, visto que esse tipo de trabalho impediria que a individualidade assumisse o centro das ações e evidenciaria as diferenças, dando lugar à expressão dos sujeitos como seres singulares e capazes de agir por si próprios. Contudo, como já dito, esse movimento requer mediação e, pelo observado, falta mediação na escola.

Ao mesmo tempo em que as políticas educacionais, o Sistema de Ensino e a equipe gestora parecem defender a liberdade de ação do professor, acabam por deixá-lo desamparado. E o mais dramático é saber que o professor, em sua perdição, desperdiça potenciais de alunos, configurando uma condição de docência que não favorece o desenvolvimento e a aprendizagem.

A importância da formação do professor e do aluno

Em nossas entrevistas e observações também ficou evidente a crítica dos professores à formação oferecida pelo Sistema de Ensino: os cursos da rede nem sempre são bons, não trazem novos conhecimentos, e o espaço dos TDCs é mais utilizado para a resolução de questões administrativas do que para refletir sobre as práticas pedagógicas. Ocorre que, no projeto pedagógico da escola, consta que o espaço do TDC destina-se à formação do professor, o que pressupõe discussões sobre o cotidiano escolar, um espaço para a expressão de dúvidas e dificuldades, a garantia de ser ouvido e a possibilidade de trocar experiências, além, e principalmente, de constituir-se como um espaço de estudo, reflexão e busca de soluções aos problemas enfrentados. Contudo, pelo que observamos na escola, esse espaço se restringe, de fato, como declaram os professores, à discussão de problemas administrativos e, muitas vezes, transforma-se em espaço de queixas dos docentes sobre suas condições de trabalho.

Entendemos que o TDC poderia ser um dos caminhos para a emancipação docente, em que o professor poderia participar das decisões da escola efetivamente, ser orientado e decidir sobre o melhor caminho a seguir, devidamente respaldado por conhecimentos teóricos e práticos e, uma vez apoiado em suas decisões, assumir-se como ator e autor de seu trabalho, com consciência de seu compromisso e responsabilidade na transformação de si próprio e na de seus alunos.

Contudo, para que esses espaços se constituam como tal, necessário se faz considerar o contexto em que a atividade docente se desenvolve. Segundo Vigotski (1995, 1998), a história das relações que o sujeito empreende com a cultura atua em sua constituição, conferindo-lhe aspectos singulares. Parece ser essa uma explicação plausível para o fato de encontrarmos, em um mesmo contexto de atuação, que se revelou perverso no que concerne às condições de trabalho dos docentes, alguns educadores que revelam diferentes níveis de conscientização em relação ao objetivo último da educação:

O nosso objetivo, o nosso projeto pedagógico, tudo isso gira em torno do aluno. Não adianta! A gente não tem outro objetivo senão fazer o aluno aprender! (vice-diretora Denise)

Que as crianças aprendam ... Que saiam, no final do ano, totalmente diferentes do que entraram. Tem que sair diferente, tem que aprender. (professora Sandra)

Eu acho que ser professor é você tentar passar para os outros algo a mais ..., tentar formá-lo para a vida, para ter um caminho melhor na vida. Transformar a criança em um cidadão. (professor Luiz)

Eu queria que eles tivessem mesmo uma formação, que fossem mais equilibrados, para que a nossa sociedade ficasse melhor. (professora Carmem)

Modificar... acrescentar alguma coisa para os meus alunos. Mais isso. Só acrescentar mesmo. (professora Maria)

O que aparece como central nas falas acima é a preocupação dos professores com a formação dos alunos, em transformar suas vidas, para que tenham mais oportunidades, mais chances para se desenvolverem. De acordo com Freire (2005), o que se espera da educação não é somente a emancipação cultural, mas também a social e a econômica, permitindo que novos caminhos sejam trilhados pelo sujeito, que ele consiga uma ascensão social em todos os âmbitos, transformando a si e aos outros e, por consequência, a realidade na qual está inserido, emancipando-se. Contudo, segundo Tonet (2005), não há emancipação possível sem a transformação das condições sociais e econômicas que condicionam a vida dos sujeitos, o que demandaria uma transformação da escola, de seu sistema, de sua organização e, sobretudo, do modo de viver dos atores que habitam a escola.

O sentido atribuído pelo sujeito ao contexto, às suas ações e às relações estabelecidas põe em relevância a mediação, visto que é no processo de configurar as experiências vividas que o sujeito se desenvolve, por meio da atribuição de significados e sentidos próprios. Seria o acesso a esses significados e sentidos em relação ao que é ser professor, possível pela reflexão, que o sujeito desenvolve a consciência (Vigotski, 1995, 1998).

Os professores sabem que alguma coisa nessa grande engrenagem que se chama Educação não está funcionando bem, revelam insatisfação com esse fato, mas parecem aprisionados em um fazer alienante, em que acabam sendo culpabilizados pelos problemas da escola e por não fazerem nada para melhorar.

3. Considerações finais

Com base nas discussões apresentadas, acreditamos ser possível afirmar que o professor não tem autonomia por duas razões: primeiro, porque na maioria das vezes ele não encontra espaço para exercê-la, tendo que se submeter a imposições internas e externas, cumprir práticas que não correspondem à sua realidade, sem abertura para discuti-las ou refletir sobre elas; e, segundo, por não saber lidar com os espaços de liberdade que lhe são oferecidos, até mesmo por não os reconhecer como tal, ou resistir ou não querer responsabilizar-se por ações que possam gerar mais trabalho ou eventuais conflitos e complicações. A autonomia não seria, dessa forma, uma prática estimulada ou exercida na escola.

Ocorre que, ao mesmo tempo em que isso acontece, conseguimos encontrar caminhos que possibilitam a promoção do desenvolvimento da autonomia na escola e, consequentemente, do professor. Dizemos isso porque, no Projeto Político Pedagógico, nas observações e entrevistas realizadas, acessamos ações e ideias que se mostram como positivas com relação à autonomia, tanto na sua promoção quanto em seu exercício.

Aqui, deparamos-nos com a questão do planejado e do realizado, já que, muitas vezes, os atores escolares elaboram seus planos de trabalho seguindo as políticas educacionais, que pregam a estimulação do trabalho em grupo, da formação crítica e consciente, contra a reprodução dos conhecimentos produzidos sem que haja mediação e atribuição de sentido pelos sujeitos. Contudo, esses princípios norteadores, colocados claramente como objetivos no Projeto Político Pedagógico, são obscurecidos no dia-a-dia da escola, por suas demandas emergenciais que impossibilitam que o que foi planejado se realize.

No entanto, acreditamos que o fato de se ter algo já planejado constitui-se como indicativo da possibilidade de que esse espaço venha a se tornar um espaço para o exercício da autonomia, justificando que se invista em seu desenvolvimento, pois planejar e organizar-se são algumas das características do sujeito autônomo, ao passo que o coloca para refletir sobre sua prática, sobre sua conduta, de maneira crítica e consciente. Seria preciso encontrar vias que possibilitassem que o planejado fosse apropriado pelos sujeitos como norteador de suas ações e transformado em realizado.

Outro aspecto que se pode tomar como promissor é o fato de alguns dos professores já desenvolverem práticas diferenciadas, manifestando necessidade de trocas e discussões. Esses professores, conforme vimos na análise, reconhecem seus erros, se preocupam com a formação que oferecem aos alunos, se veem como integrantes e responsáveis pelo processo educacional da escola. Mesmo que haja professores que resistam às mudanças, que se acomodem com as situações e imposições presentes no contexto escolar, que se desresponsabilizam pelos resultados obtidos, esse outro grupo de professores, se incentivado em um trabalho coletivo devidamente mediado pela gestão, poderia contribuir para a mudança de postura dos demais professores. Isso porque, como acredita Vigotski (1995, 1998), é na interação que se dá a apropriação de novas e mais complexas formas de conduta. Poderíamos até dizer que existem dois grupos distintos na escola: o dos professores heterônomos e o dos professores que lutam permanentemente para exercer sua autonomia, sem que se possa dizer que são, efetivamente, autônomos.

Dizemos isso porque acreditamos que nem todo sujeito autorregulado se constitui como um sujeito autônomo, já que há outros fatores que influenciam suas ações, possibilitando ou não o exercício da autonomia. Entendemos a autorregulação, que segundo Vigotski (1995, 1998), é a forma mais desenvolvida das funções psicológicas superiores, como condição, no sujeito, para o exercício da autonomia. Contudo, mesmo um sujeito autorregulado que tenha consciência de suas ações, que reflita e assuma sua parcela de responsabilidade e compromisso social, não poderá ser autônomo se não encontrar condições contextuais e materiais que permitam sua autonomia.

Pensamos que o desenvolvimento de uma formação continuada no interior da escola, estruturada de modo a permitir que o sujeito se volte para si, em um processo de autoconhecimento, em que discuta e reflita sobre sua prática, podendo tornar-se autor dessa prática e entrar em contato com as teorias e metodologias que subsidiem sua ação, é o caminho a se trilhar para a superação dos problemas existentes na escola. Contudo, essa forma precisa se constituir como mediação, ou seja, como ação mediadora que promova a atribuição de sentidos pelos sujeitos, de maneira que possam adotar aquilo que consideram como importante para si e para seus alunos, em um processo de construção de autoria de uma prática autônoma.

Ainda que não seja objeto deste estudo, não é possível abordar os processos de constituição de sujeitos da perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural sem fazer menção à alienação, elemento que aparece quase que como característica da prática docente. Se partirmos do princípio de que um sujeito autônomo é aquele que sabe de si e de suas condutas, assume responsabilidades e conhece o contexto em que se insere e sabe-se participante dele, pensamos poder dizer, com base nos pressupostos adotados, que o professor, além de não ser autônomo, é também alienado.

Dizemos isso porque, nesse processo educacional, o professor não atribui sentido à sua prática, cumprindo apenas o que lhe é determinado, recebendo uma remuneração bastante questionável e contribuindo, assim, para o contexto capitalista com sua força de trabalho.

Ao distanciar-se do significado e do sentido que o trabalho tem para o sujeito, há uma ruptura em sua constituição identitária e na conscientização que esse sujeito tem da atividade que exerce, já que simplesmente troca sua força por um capital e não se desenvolve com isso, ou seja, seu trabalho torna-se algo externo a ele (Duarte, 2004).

A Psicologia, para além de seus conceitos e teorias, teria muito a contribuir nesse sentido, assumindo um papel crítico em relação às políticas públicas e às formas socioeconômicas de exploração do trabalho, na medida em que levasse, para dentro da escola, questões que ampliassem as discussões para além dos muros escolares, para além do sistema de ensino, enfim, para as condições materiais de um trabalho alienante, que cumpre sua função de nos manter submissos ao capital. Seria preciso que o professor compreendesse que a educação não é um ato isolado das questões sociais mais amplas, que não pode ser tarefa somente do professor e da escola, como o querem os governantes, que precisa aprender a ler as entrelinhas das propostas e projetos educacionais que, já há algum tempo, vêm disseminando um discurso que responsabiliza e culpabiliza o professor pelas precárias condições da educação no país. Logo, o psicólogo poderia dar sua contribuição ao desenvolvimento dos sujeitos que realizam a educação escolar, visando ao empoderamento de sua força de trabalho e da real efetivação de seu papel social, em um exercício que constrói a autonomia e a emancipação.

Notas

Recebido em: 18/12/2008

Revisão em: 24/01/2010

Aceite final em: 14/06/2010

Ana Paula Petroni é Psicóloga formada pelo Centro Universitário Hermínio Ometto - UNIARARAS. Mestre e Doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Bolsista CAPES. Endereço: Rua: Silvino Pontes, 148, São Benedito. Araras/SP, Brasil. CEP 13.600-440. Email: paulinhapetroni@yahoo.com.br

Vera Lucia Trevisan de Souza é Professora Doutora do programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade católica de Campinas. Endereço: Laboratório de Pós-graduação em Psicologia. Avenida John Boyd Dunlop, s/nº. Jardim Ipaussurama. Campinas/SP, Brasil. Caixa Postal: 317. CEP 13059-900. Email: vera.trevisan@uol.com.br

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    Agência de Financiamento: Capes
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    Os nomes utilizados são fictícios.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      18 Dez 2008
    • Revisado
      24 Jan 2010
    • Aceito
      14 Jun 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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