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Resenha: organização e poder

Resenha: organização e poder

Maria Elizabeth Barros de Barros

Universidade Federal do Espírito Santo

Neves, J.M. (2005). A face oculta da organização: a microfísica do poder na gestão do trabalho. Porto Alegre: Ed. UFRGS/Sulina.

A obra A face oculta da organização: a microfísica do poder na gestão do trabalho é fruto da pesquisa realizada pelo psicólogo José Mario Neves,1 tendo como base empírica a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, na qual trabalha.

Neves vive/experimenta o cotidiano desses serviços, vivências que estão em seu próprio corpo. Compartilha com o leitor os processos que o põem em contato com a polivocidade, heterogeneidade e heterogênese de um serviço público em que a vida urge e requer mobilização coletiva.

O autor nos oferece um importante e instigante livro, dando visibilidade ao jogo de forças e estratégias micro-políticas que engendram a forma como se gerencia o trabalho nas organizações. Trata-se de uma pesquisa cartográfica, que elege como campo de análise uma organização do serviço público. Entretanto, as formulações desenvolvidas se aplicam a qualquer organização gestora do trabalho, uma vez que, como indica o autor, sempre está em jogo uma microfísica do poder na construção da governabilidade nesses espaços, mudando, apenas, os fatores e a correlação de forças que se atualizam nas situações concretas.

As transformações por que passa o mundo do trabalho neste início de século, segundo o autor, exigem um esfor-ço para compreender não apenas o caráter das mudanças, mas também o seu impacto sobre as relações de trabalho e sobre as condições subjetivas e objetivas do trabalhador. Com essa finalidade, Neves traça um quadro conceitual-metodológico do qual derivam questões para a discussão sobre a dinâmica das organizações no mundo contempo-râneo. Ao instalar essa perspectiva, explicita de que lugar teórico/conceitual fala e traz referências metodológicas que sustentam sua contribuição, privilegiando em suas aná-lises os conceitos de poder relacionados à "microfísica de poder", a partir dos trabalhos do filósofo Michel Foucault.

Neves mostra-nos que trabalhar com conceitos não é um gesto neutro ou indiferente _ implica interesses, sabe-res, poderes que constituem modos de ver o mundo, de nele existir, de inventá-lo _, pois estes são operadores de realidade, ferramentas com força crítica, que produzem crise, desestabilizam e, como nos indicou Deleuze (1992), são "intercessores" quando podem produzir esse efeito de desestabilização. Assim, o referencial teórico utilizado fundamenta-se na perspectiva segundo a qual as pesquisas devem privilegiar a análise das forças que tornam as formas necessárias e consistentes, buscando ver para além das formas imediatas, cristalizadas na superfície dos signos e das relações de produção. A análise genealógica dos processos de gestão é tomada, então, como a opção que faz a condução do percurso investigativo, focalizando as estratégias desenvolvidas por todos aqueles que produzem o cotidiano das atividades de trabalho e estão enredados nas malhas desse cotidiano, atentando às relações de força que constituem e dão consistência a essa formação.

No percurso de construção das análises apresentadas na obra, os conceitos-ferramentas funcionam como instru-mentos que colocam em cena o próprio campo de forças que constitui certo modo de funcionamento do serviço público no Brasil e dão visibilidade ao modo como os dife-rentes atores gestam seu trabalho.

Os conceitos-intercessores que utiliza buscam produzir uma torção nos modos de analisar os processos de trabalho nas organizações. Com a caixa de ferramentas que privilegia, opera um exame da cultura brasileira capaz de fornecer elementos para a compreensão da singularidade da forma como se gerencia em nosso país.

Assim, Neves nos brinda com um trabalho cujo rigor metodológico não compromete a invenção, pois mostra que um método rigoroso de trabalho não inviabiliza os processos inventivos. A obra mostra-se, ao mesmo tempo, descritiva e produtora de realidade. Problematiza as dicotomias como "teoria-prática", "sujeito-objeto", uma vez que considera que estamos irremediavelmente impli-cados no campo em que operamos nossas investigações. A pesquisa efetivou-se num engajamento junto ao con-creto da experiência e num processo de "atiçamento do plano da produção".

O exame do contexto histórico-social do serviço pú-blico realizado permite colocar sob novos marcos a dis-cussão sobre a Reforma do Estado, enquanto a análise estratégica do processo de constituição do Estado brasileiro possibilita demonstrar que a ineficiência no serviço público não é uma disfunção ou uma falha em um sistema que deveria funcionar, mas uma produção, pois o Estado brasileiro está estruturado para produzir um padrão de eficiência/ineficiência.

Ao longo do livro, desenvolve suas analises a partir do exame dos instrumentos e das práticas gerenciais, evidenciando a existência de tensão e distanciamento entre normas legais e práticas gerenciais, como a observada no conflito sobre a questão do cumprimento do horário de trabalho.

A questão que o pesquisador nos convoca a formular é: como desnaturalizar os processos de trabalho em curso nas organizações e, em especial, nos serviços públicos sem cair nos corporativismos de diferentes ordens? Como cons-truir práticas que interroguem os modos tradicionalmente praticados nesse âmbito?

Ao interrogar-se sobre o que mobiliza uma determi-nada forma de trabalhar, faz notar a naturalização de algu-mas dessas práticas. Mostra, assim, que o foco das discus-sões sobre o funcionamento das organizações tem ficado quase que exclusivamente no registro da lógica macropo-lítica, constituída por linhas molares, identitárias, visíveis, territoriais. O autor busca situar a discussão em outro patamar: pela via micropolítica, que implica em acom-panhar movimentos não de sujeitos, de pessoas, mas sim o próprio âmbito da produção de subjetividade. Convoca-nos, assim, a exorcizar alguns dos inimigos que se inserem em nossos modos de estar na vida, pois "a vida não tem ensaios, mas tem novas chances e recusa o arrependimento e a duração inútil dos rancores e o que está em nossas mãos é a vida inédita pela frente". O livro é um convite à criação de outras formas de estudar e pesquisar, que se produzem numa perspectiva ética e que viabiliza a produção de novas formas-subjetividade e políticas que dignifiquem a vida.

Trata-se, então, de nos perguntarmos, junto com todos os envolvidos nos processos de trabalho nas organizações, sobre nosso "não saber": o que estamos excluindo de nosso fazer cotidiano que insiste e persiste em entrar? O que vem embrutecendo e nos fechando a tudo que escapa dos pressupostos instituídos nos quais nos amparamos? No que precisamos juntos interferir em prol da produção de processos de trabalho que afirmem sua potência inventiva e transformadora? Como construir práticas que esconjurem qualquer tentativa de aprisionamento da vida em representações e modelos do que é ser um "bom" trabalhador ou um "bom" servidor público? Esses são desafios que o trabalho de Neves nos convida a enfrentar.

Ao pesquisar o local onde trabalha, o autor nos faz lembrar Nietzsche quando diz que se deve falar somente quando não se pode calar e falar somente daquilo que se superou. É preciso o tempo da convalescença antes de tomar o que foi vivido e tirar-lhe a pele, explorá-lo e expô-lo à análise, ao invés de atravessar a vida olhando para trás de si e tendo pena... Em sua pesquisa, procura formas de vida que não sejam adaptações ao cansaço, e, ao fazer isso, traz uma contribuição da maior importância para todos aqueles que se inquietam com o que é vivido hoje nas organizações e, em especial, nas organizações do serviço público.

Indubitavelmente, o trabalho de Neves é um impor-tante dispositivo de problematização dos processos de gestão, pois interroga concepções tidas como objetiva-mente verdadeiras e coloca em cena a dimensão micropo-lítica de tais processos. Ao problematizar os modos como se engendram as relações de trabalho nas organizações, a obra nos auxilia no entendimento radical e potencialmente revolucionário de que em nossas escolhas estão sempre envolvidos aspectos éticos, na medida em que tomamos a vida na sua diversidade normativa, estéticos, que impli-cam a radicalidade da invenção de outros mundos e outros modos de subjetivação, e políticos, porque sua efetividade não se faz como proposta geral abstrata, mas efetiva-se na singularidade das situações concretas que se ex-perimentam nos movimentos coletivos, nas diferentes organizações gestoras do trabalho, não apenas do serviço público. A governabilidade desses diferentes estabelecimentos se efetiva por meio de uma microfísica do poder, alterando-se, a cada situação, os fatores e a correlação de força, mantendo-se a lógica de funcionamento.

Neves, na trilha proposta pela Coleção Cartografia, da qual seu livro faz parte, suscita acontecimentos como tentativas de resistência, no seu sentido afirmativo de cria-ção. Oferece-nos um livro-exercício de si, de experimen-tação da invenção de outros olhares. Esse é o convite que José Mário nos faz.

Nota

  1. José Mario Neves é mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS e especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pelo Conselho Federal de Psicologia.

Referências

Deluze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34.

Passos, E. & Benevides-de-Barros, R.E. (2005). Humanização na saúde: um novo modismo? Revista Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, 9(17), 404-406.

Lucinda, E. (1999). Eu te amo e suas estréias. Rio de Janeiro: Record.

Recebido: 07/04/06

1ª revisão: 28/06/2006

Aceite final: 13/07/2006

Maria Elizabeth Barros de Barros é professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço: Av. Saturnino de Brito, 915/302, Praia do Canto, Vitória, ES, 29055-180. betebarros@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
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