Resumo
Esta pesquisa, de cunho etnográfico e embasada pelas premissas da Antropologia Digital, investigou as marcas da cultura que atravessam o debate sobre a situação de rua mediado pelas tecnologias digitais em uma página de Facebook. A página analisada, intitulada Rio Invisível, publica relatos de pessoas em situação de rua, usando o tom testemunhal. A etapa de observação participante contemplou a leitura de todas as publicações (posts e comentários) entre setembro de 2014 e março de 2020. Participaram do estudo o grupo realizador da página e 27 pessoas que costumavam comentar os posts. A pesquisa corrobora a noção de que o digital é permeado por ambiguidades pois observa-se, por um lado, um movimento de mudança de pensamento e atitude quanto à situação de rua e, por outro, o reforço de visões reducionistas ligadas à sensação de passar a conhecer alguém por meio de histórias publicadas na internet.
Palavras-chave:
Antropologia Digital; Pessoas em Situação de Rua; Relações Mediadas; Cultura; Empatia
Resumen
Esta investigación, de carácter etnográfico y basada en las premisas de la Antropología Digital, investigó las marcas de la cultura que permean el debate sobre la situación de calle mediado por las tecnologías digitales en una página de Facebook. La página analizada, titulada Rio Invisível, publica relatos de personas en situación de calle, en un tono testimonial. La etapa de observación participante incluyó la lectura de todas las publicaciones (posts y comentarios) entre septiembre de 2014 y marzo de 2020. El grupo que creó la página y 27 personas que comentaban periódicamente los posts participaron del estudio. La investigación corrobora la noción de que el mundo digital está permeado por ambigüedades ya que, por un lado, se observa un cambio de pensamiento y actitud hacia la situación de la calle y, por otro, el refuerzo de visiones reduccionistas vinculadas al sentimiento de conocer a alguien a través de las historias publicadas en internet.
Palabras clave:
Antropología digital; Personas en Situación de Calle; Relaciones Mediadas; Cultura; Empatía
Abstract
This research, of an ethnographic nature and based on the premises of Digital Anthropology, investigated the marks of culture that permeate the debate about homelessness mediated by digital technologies on a Facebook page. The analyzed page, named Rio Invisível, publishes reports of homeless people, using a testimonial tone. The participant observation stage included reading all publications (posts and comments) between September 2014 and March 2020. The group that created the page and 27 people who regularly commented on the posts participated in the study. The research corroborates the notion that the digital world is permeated by ambiguities since, on the one hand, there is a change in thinking and attitude towards homelessness and, on the other hand, the reinforcement of reductionist views linked to the feeling of knowing someone through stories published on the internet.
Keywords:
Digital Anthropology; Homeless People; Mediated Relationships; Culture; Empathy
Introdução
A partir do olhar embasado pelas premissas da Antropologia Digital e orientado pela “Theory of Attainment”1
1
Termo ainda sem tradução para o português. Uma tradução livre poderia ser “Teoria da Realização”.
, este trabalho investigou, através de uma pesquisa de cunho etnográfico, as marcas da cultura que atravessam o debate, mediado pelas tecnologias digitais, sobre a questão da situação de rua dentro de uma página de Facebook chamada Rio Invisível2
2
RIO INVISÍVEL. https://www.facebook.com/rio.invisivel/about
. Daniel Miller e Jolynna Sinanan (2014Miller, Daniel & Sinanan, Jolynna (2014). Webcam. John Wiley & Sons.) propõem a “theory of attainment” como um instrumento que visa a reflexão sobre os impactos das novas tecnologias nos modos de vida das pessoas. Ao entenderem os usos sociais da inter net como algo que é sempre atravessado pela experiência cultural dos sujeitos, o que faz com que diferentes grupos se apropriem de forma distinta das ferramentas, atribuindo a elas diferentes valores e sentidos. Miller e Sinanan afirmam que através do mergulho etnográfico é possível perceber como essa nova forma de mediação cria possibilidades, observando como os usos das mídias reafirmam valores culturais ou criam novas demandas. Nesse sentido, elegemos como objeto de pesquisa a página Rio Invisível, que se dedica à publicação de narrativas de vida de pessoas em situação de rua, e partimos das interações presentes no interior da página entre setembro de 2014 a março de 2020, para investigar de que maneira esse novo espaço de debates sobre a questão da situação de rua sofre restrições ou pode ampliar suas potencialidades a partir da forma como é atravessado por aspectos ligados à mediação digital. Por se tratar de um grupo heterogêneo, entende-se as pessoas em situação de rua, neste artigo, como as pessoas em extrema pobreza que utilizam o espaço público como lugar de moradia e sustento. Segundo pesquisa realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, no ano de 2020, havia 7.272 indivíduos em situação de rua no município (Prefeitura do Rio de Janeiro, 2020Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (2020). Números do censo da população em situação de rua - 2020. IPP; SMASDH; SMS. https://www.data.rio/datasets/072556c5be3344e1aaf973354b93d566
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).
A página analisada utiliza o tom de relato testemunhal, publicando histórias de indivíduos em situação de rua sempre em primeira pessoa do singular, ou seja, na voz daqueles que narram suas próprias vivências nas ruas do Rio de Janeiro. A iniciativa surgiu em 2014 e alcançou mais de 67 mil seguidores em menos de três meses (Froio, 2014Froio, Nicole (2014, 22 de dez.). Rio Invisível conta histórias dos moradores de rua do Rio de Janeiro. RioOnWatch. https://rioonwatch.org.br/?p=13132
https://rioonwatch.org.br/?p=13132...
). Segundo as informações disponíveis sobre o projeto, o objetivo da dupla que o idealizou era a ressignificação da imagem das pessoas em situação de rua através da narrativa, criando, assim, uma nova identidade para essa população e provocando um olhar mais sensível para a cidade (#JUNTOSTRANSFORMAMOS, 2018#juntostransformamos: Rio Invisível (2018 setembro 24). Histórias. https://oifuturo.org.br/historias/juntostransformamos-rio-invisivel/
https://oifuturo.org.br/historias/juntos...
). Um dos principais pontos que levou à escolha do projeto como objeto de pesquisa foi a opção pela estratégia de usar textos em tom testemunhal, na primeira pessoa do singular, daqueles em situação de rua. Na página, não há qualquer explicação mais aprofundada sobre a forma como se deram as entrevistas ali publicadas ou sobre como eram feitas as transcrições dos relatos para o formato de texto, o que acaba por escamotear ainda mais diversos aspectos da mediação presentes no projeto. Ainda que seja característico da abordagem etnográfica não partir de hipóteses fechadas, uma das premissas que orientou esta pesquisa entende que certas escolhas estratégicas feitas pela página Rio Invisível se relacionam com a linguagem que percebemos como mais apropriada ao objetivo de gerar empatia e engajamento no âmbito das mídias digitais, e que é capaz de alterar a forma como percebemos os argumentos e sentidos. Na análise, propusemos um recorte que focou exclusivamente nos debates ligados ao senso de empatia e solidariedade. Foi levada em consideração a opção do projeto Rio Invisível de publicar as entrevistas no formato de narrativas em tom testemunhal, juntamente com as fotografias dessas pessoas, o que adiciona uma “voz” e um rosto para cada história contada. Sendo o Facebook uma rede social em que o comportamento estimulado e esperado é que cada pessoa usuária fale de si mesma, procurou-se questionar a relação dessa escolha narrativa com os objetivos de ampliar o debate sobre a condição da situação de rua e gerar empatia. Paulo Vaz (2014Vaz, Paulo (2014). Na distância do preconceituoso: narrativas de bullying por celebridades e a subjetividade contemporânea. Galáxia, 28(14), 32-44.) atenta para o uso cada vez mais frequente do tom testemunhal como um código estético entendido como mais adequado para as situações caracterizadas pela existência de uma vítima (de agressões, descasos, preconceitos...), trazendo para o texto a autoridade da experiência vivida.
Este artigo se apoiou nas bases da Antropologia Digital (Horst & Miller, 2012Horst, Heather & Miller, Daniel (2012). Digital anthropology. Berg.), uma vez que entende o estudo das relações construídas on-line como uma oportunidade para a observação sobre as formas como os sujeitos negociam e reagem a estruturas sociais estabelecidas, atentando para os novos significados que são atribuídos aos objetos, revelando importantes aspectos da cultura em que estão inseridos (Balthazar & Machado, 2021Balthazar, Ana Carolina & Machado, Mônica (2021). Material Culture and Mass Consumption: the impact of Daniel Miller’s work in Brazil. Sociologia & Antropologia, 10(3), 773-803.). O interesse pelo atravessamento de fatores psicossociais na forma como as mídias digitais são apropriadas pelos sujeitos orienta esse subcampo da Antropologia que busca levantar novas perspectivas no estudo da experiência on-line no cotidiano das pessoas, para além de abordagens que generalizam o que vem a ser “a internet”, seja de forma positiva ou negativa.
Para o grupo de pesquisadores do campo da Antropologia Digital coordenado por Miller (Horst & Miller, 2012Horst, Heather & Miller, Daniel (2012). Digital anthropology. Berg.; Miller, 2018Miller, Daniel (2018). Digital anthropology. Cambridge Encyclopedia of Anthropology., Miller et al., 2016Miller, Daniel, Sinanan, Jolynna, Wang, Xinyuan, McDonald, Tom, Haynes, Nell, Costa, Elisabetta, & Nicolescu, Razvan. (2016). How the world changed social media. UCL press.; Miller & Sinanan, 2014Miller, Daniel & Sinanan, Jolynna (2014). Webcam. John Wiley & Sons.), o estudo das sociabilidades no ambiente on-line deve levar em consideração os seus contextos locais, sendo um importante instrumento para insights sobre especificidades culturais que permeiam as relações e os sentidos construídos (Machado, 2017Machado, Mônica (2017). A teoria da antropologia digital para as humanidades digitais. Revista Z Cultural, 2(1), 20-35.; Miller et al., 2016Miller, Daniel, Sinanan, Jolynna, Wang, Xinyuan, McDonald, Tom, Haynes, Nell, Costa, Elisabetta, & Nicolescu, Razvan. (2016). How the world changed social media. UCL press.). Uma das premissas da Antropologia Digital estabelece que, o tempo todo, são produzidas oportunidades de ampliação de visões de mundo a partir dos usos criativos das ferramentas digitais, mas que esses movimentos são imediatamente seguidos por forças contrárias, as quais demandam aumento das restrições e normas mais rígidas, fazendo com que a internet possa ser vista como um espaço de permanente tensão (Horst & Miller, 2012Horst, Heather & Miller, Daniel (2012). Digital anthropology. Berg.).
Considerando a internet como um ambiente em que se vive verdadeiramente (Miller, 2016Miller, Daniel, Sinanan, Jolynna, Wang, Xinyuan, McDonald, Tom, Haynes, Nell, Costa, Elisabetta, & Nicolescu, Razvan. (2016). How the world changed social media. UCL press.), faz-se necessário observar a maneira como o uso das ferramentas digitais, para a promoção de debates acerca de uma causa social, é impactado por questões inerentes ao contexto digital enquanto mediador. Para tais autores e autoras, o ambiente digital altera a socialização, mas isso não significa que seja um espaço mais mediado do que no caso das relações off-line. A diferença estaria, então, no nível de consciência dessa mediação. Quanto à forma como nossos corpos percebem os afetos e produzem respostas emocionais, Christine Hine (2016Hine, Christine (2016). Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia. In B. Campanella & C. Barros (Orgs.), Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológicos (pp. 11-27). E-papers.) afirma que não importa se essas percepções são fruto de experiências on ou off-line. Caroline Humphrey (2009Humphrey, Caroline (2009). The mask and the face: Imagination and social life in Russian chat rooms and beyond. Ethnos, 74(1), 31-50.) coaduna com essa perspectiva quando afirma que a internet pode ser vista como um espaço de vida real, na medida em que as relações que se estabelecem ali são capazes de gerar consequências emocionais que realmente afetam a vida dos indivíduos, assim como contextos pré-existentes off-line frequentemente são levados para o interior das relações digitais.
Neste artigo, procurou-se questionar as consequências ambíguas de se lançar ao escrutínio público as histórias de vida íntimas e pessoais dos indivíduos em situação de rua retratados pela página. Assim, na pesquisa desenvolvida, foi possível identificar conflitos e disputas narrativas que tencionavam o debate, trazendo à tona especificidades da conversação, mediada pelo computador (Recuero, 2009Recuero, Raquel (2009). Redes sociais na internet. Sulina., 2012Recuero, Raquel (2012). A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet. Sulina.), que interferem na forma como se desenrolam as argumentações e as ações organizadas a partir da agência da página, no que diz respeito aos discursos ligados à ideia de empatia e solidariedade.
Tipo de estudo
Inspirada nas propostas e trabalhos de Miller e outros autores e autoras (2016Miller, Daniel, Sinanan, Jolynna, Wang, Xinyuan, McDonald, Tom, Haynes, Nell, Costa, Elisabetta, & Nicolescu, Razvan. (2016). How the world changed social media. UCL press.), Hine (2015Hine, Christine (2015). Ethnography for the internet: embedded, embodied and every day. Routledge.) e Jair de Souza Ramos (2016Ramos, Jair de Souza (2016). Etnografia e digitalização. In B. Campanella & C. Barros (Eds.), Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológicos. E-papers.), esta pesquisa se caracteriza como uma etnografia “da internet”, pois há o interesse na compreensão dos sentidos atribuídos pelos sujeitos no uso das mídias digitais e nas apropriações das ferramentas, atentando-se para a forma como tal participação é capaz de gerar efeitos sensíveis no mundo off-line. Esta pesquisa também se caracteriza como uma etnografia “na internet”, uma vez que teve a página Rio Invisível como seu campo inicial de pesquisa e, a partir dela, seguiu seus interlocutores e interlocutoras no intuito de observar a maneira como as interações entre o conjunto de usuários evidenciam aspectos que dizem respeito à cultura em que os grupos estão inseridos.
Estrutura da pesquisa
A pesquisa contou com duas etapas de coleta de material: observação participante e contato com interlocutores e interlocutoras. A partir de uma primeira leitura flutuante da página Rio Invisível, foram identificados assuntos e comportamentos recorrentes, bem como os principais comentários cujo conteúdo trazia algum interesse para a pesquisa. Aproveitando-se das ferramentas de conversação oferecidas pelo próprio Facebook, entrou-se em contato, via mensagem direta, com 68 pessoas que costumavam comentar na página, das quais 27 aceitaram participar da pesquisa após o envio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido3 3 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo respectivo Comitê de Ética. . As conversas se desenrolaram através do próprio aplicativo de mensagens ou, em vários casos, migraram para outros aplicativos, como o Whatsapp, ou ligações telefônicas. Seguindo o mesmo procedimento, a pesquisa contou também com a participação da equipe administradora da página.
As conversas (via telefone ou videoconferência) com os realizadores da página Rio Invisível, a leitura cronológica das publicações e comentários da página e o contato com os leitores (via telefone, videoconferência ou aplicativos de mensagens) representam o que se entende como a etapa de observação participante desta pesquisa. Diferentemente de uma etnografia clássica, em que a entrada em campo pode ser marcada geograficamente, ou seja, o “estar lá” (Geertz, 2008Geertz, Clifford (2008). A interpretação das culturas. LTC.) como um estar físico, no campo da etnografia digital é preciso um esforço reflexivo para que se possa redefinir o que significaria essa presença.
Assim, tal etapa se debruçou sobre as interações ocorridas no interior da página Rio Invisível ao longo do tempo, a partir da leitura em profundidade e em ordem cronológica de todas as publicações e interações da página publicadas no período entre 18 de setembro de 2014Rio Invisível (2014, 18 de setembro). Sobre Rio de Janeiro [Site]: Facebook. https://www.facebook.com/rio.invisivel
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(lançamento da página) até 12 de março de 2020. Nessa leitura, deu-se especial atenção à percepção do que seria o padrão das postagens que podem ser consideradas como típicas e como se davam as dinâmicas das interações e engajamento entre administração e pessoas seguidoras da página.
Nesse sentido, deu-se destaque às publicações que suscitaram debates pautados pela ideia da empatia e solidariedade, ainda que, como será debatido neste artigo, tais conceitos se liguem a diferentes entendimentos do que seriam atitudes e posturas solidárias ou empáticas. A discussão proposta na próxima sessão se baseia no cruzamento das informações obtidas através dos métodos apresentados, em que se buscou uma visão sistêmica das relações que compõem a página, e não análises estanques da produção e da recepção.
Resultados e discussão
Ao se olhar para o projeto Rio Invisível a partir de uma perspectiva mais analítica, uma das primeiras características que chama a atenção é a ausência de maiores explicações sobre o objetivo ou sobre a maneira como é desenvolvido o projeto. Desde a primeira postagem tem-se o formato de narrativa testemunhal, em que uma pessoa em situação de rua se apresenta e conta um pouco do seu cotidiano, acompanhada de sua fotografia em alta resolução, geralmente enquadrando só o rosto ou meio corpo, com o fundo desfocado. Pouquíssimas são as ocasiões em que as publicações assumem o tom institucional, e quando isso acontece, além do número de interações costumar ser bem menor, também o conteúdo não aborda o processo de realização e transcrição das entrevistas. Assim, quem chega a Rio Invisível, seja qual for o caminho que levou à página, encontra tais narrativas que têm a situação de rua como pano de fundo, mas sem um “call to action”, como na linguagem da publicidade: sem uma orientação que esclareça a motivação do projeto e o que se espera de quem segue a página. Desse modo, tal interpretação fica a cargo de cada leitor ou leitora.
Nas conversas com a equipe realizadora do projeto, foi possível ter mais informações sobre o contato com as pessoas em situação de rua entrevistadas. O grupo conta que as abordagens eram, em geral, bastante informais, nas quais, depois de passar um tempo observando os indivíduos, aproximavam-se dos que percebiam que tinham uma relação diferente com a rua, explicavam o projeto e perguntavam se podiam conversar. As entrevistas costumavam ser gravadas (somente áudio) e transcritas posteriormente. Alguns erros de português eram corrigidos com o objetivo de evitar ambiguidades ou facilitar o entendimento das narrativas, enquanto outros eram mantidos. Alguns relatos muito longos ou com passagens muito íntimas e/ou violentas eram editados, o que significa que alguns trechos eram reorganizados e partes da narrativa consideradas como não essenciais ou não apropriadas para publicação eram subtraídas. Várias são as justificativas apontadas pela equipe do projeto Rio Invisível que motivaram tais interferências: para manter o tamanho padrão das publicações da página; para melhorar o encadeamento do texto; para preservar a intimidade do entrevistado ou da entrevistada; ou mesmo porque durante a realização do projeto a própria equipe se questionou intensamente sobre a responsabilidade de tornar públicos relatos que dizem respeito a histórias de vida pessoais, tanto no sentido de exposição da pessoa como por envolver problemas ligados a ameaças concretas, como perseguições por grupos de milicianos ou possibilidade de atração de haters que pudessem vir a atentar contra a pessoa em situação de rua, por enxergar no relato algum ponto considerado condenável.
Tais informações a respeito do processo de desenvolvimento do projeto são importantes para que se possa problematizar a questão da mediação. Além de promover o encontro com a situação de rua de forma asséptica e protegida, sem os sons, a agitação, os odores ou as tensões da rua, o projeto Rio Invisível, ao publicar os relatos na voz das pessoas entrevistadas em um ambiente como o Facebook, em que o esperado é que cada um fale de si através de seu perfil pessoal, escamoteia as diversas camadas de mediação ali existentes, promovendo uma apropriação criativa da ferramenta ao “rebelar-se contra o default” (Leitão & Gomes, 2017Leitão, Débora K. & Gomes, Laura Graziela (2017). Etnografia em ambientes digitais: perambulações, acompanhamentos e imersões. Revista Antropolítica, 42(1), 41-65., p. 63), subvertendo, assim, a lógica do falar de si (ao colocar outro que não deveria estar ali neste lugar).
A partir da observação de cada publicação feita, entre o lançamento da página e março de 2020, e das interações entre seus leitores e leitoras, foi possível sublinhar aspectos que dizem respeito às diversas formas como a situação de rua é percebida pela sociedade, mas também como o fato de o projeto estar inserido num ambiente digital interfere nas características do debate. Diante da diversidade de temas que atravessam a situação de rua e que aparecem nas discussões da página Rio Invisível, optou-se por focar naqueles em que se debate a questão da empatia e da solidariedade. No Quadro a seguir (Quadro 1) são elencadas as principais categorias que foram definidas e sistematizadas a partir do material analisado na pesquisa.
Espaço de empatia e Em vez de criticar, ajudar
Ao se analisar os comentários das publicações, percebe-se que a ausência de maiores explicações sobre o que é e quais são os objetivos do projeto se refletem em mensagens que questionam a iniciativa - há comentários que desconfiam de que se trata de uma estratégia “caça-likes” que usa o sofrimento alheio para se promover, enquanto outros acreditam estar diante de uma tentativa de cooptação para determinado sentido político-partidário a partir da romantização das histórias dos que vivem nas ruas -, assim como existem aqueles que percebem na página uma chamada para a reflexão sobre tal problema social.
No entanto, mesmo entre os que concordam sobre a intenção do projeto em promover o debate social sobre a situação de rua, muitas são as tensões presentes nas interações da página a respeito do que seria o comportamento adequado de quem, de alguma forma, se sensibiliza-se com os relatos publicados. As tentativas recorrentes do público de estabelecer qual deveria ser a postura correta por parte do projeto e de quem o segue foram nomeadas, por um dos realizadores, como “disputas narrativas”, e foram apontadas, durante as conversas realizadas para esta pesquisa, como uma das principais dificuldades no cotidiano do projeto, pois demandava uma constante atualização dos objetivos da iniciativa, tanto nas escolhas das associações a outros players ligados ao tema da situação de rua, como na necessidade de interferência da equipe realizadora nas conversas suscitadas pelas publicações. Tal interferência, conforme a leitura em profundidade revelou, acontecia, prioritariamente, nas caixas de comentários em que, em diversas ocasiões, a página postou mensagens desfazendo mal entendidos e explicando o posicionamento e os objetivos do projeto.
Ao estudar as especificidades das conversações mediadas pelo computador, Raquel Recuero (2012Recuero, Raquel (2012). A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet. Sulina.) cunhou o conceito de disputa do contexto para descrever o movimento constante de tensionamento entre usuários e usuárias, os quais, o tempo todo, tentam levar a conversa para outros debates que não necessariamente faziam parte do objetivo inicial da publicação. Por se darem no ambiente digital, as conversações são, em geral, públicas, assíncronas e, por conta dos rastros deixados nas redes, possíveis de serem resgatadas a qualquer tempo. Para a autora, existem duas dimensões interdependentes que compõem o contexto: o microcontexto, que se refere ao momento mesmo da interação e da negociação entre usuários e usuárias; e o macrocontexto, em que pesam os fatores históricos, sociais e culturais (inclusive conversas anteriores ocorridas na rede). Assim, para que cada usuário ou usuária consiga identificar qual é o comportamento esperado em determinada situação conversacional em rede, é necessário ser capaz de “negociar, construir e recuperar o contexto, que vai formar o pano de fundo sobre o qual as conversações acontecem” (Recuero, 2012Recuero, Raquel (2012). A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet. Sulina., p. 95).
A observação das interações na página Rio Invisível revela os contornos dessa disputa do contexto, para usar o já citado conceito, ou disputas narrativas, como nomeia um componente da equipe realizadora da página. Ao abrir as caixas de comentários referentes às publicações das histórias de vida dos entrevistados ou entrevistadas, nota-se o dinamismo das construções de sentido em disputa, em que novas intervenções são capazes de redirecionar a conversa, muitas vezes chegando a alterar o tema dos debates. Entre as interações observadas, uma das posições mais recorrentes entende que o macrocontexto do projeto Rio Invisível prevê uma postura de não julgamento das histórias de vida narradas ali. Assim, comentários que destacam aspectos negativos das histórias ou que questionam trechos das trajetórias dessas pessoas costumam ser repelidos sob a justificativa de que aquele espaço não é adequado para tal comportamento, conforme denotam mensagens como: “você está na página errada com esse tipo de comentário amigão” ou “Que absurdo alguém questionar a história e o sofrimento dos outros. Ô gente de coração duro, incapaz de se sensibilizar. Só me pergunto por que entram aqui.” [sic] (comentários postados em Rio Invisível). No entanto, pelo caráter público e dinâmico do ambiente, é necessário que essa contextualização seja o tempo todo construída e negociada.
Na esteira dos comentários que demandam uma atitude mais solidária por parte dos que manifestaram interesse pelo conteúdo da página, aparece, com bastante frequência, a ideia de que, mais do que criticar ou mesmo se sensibilizar, é preciso “ajudar”. No entanto, o sentido do que seria essa ajuda poucas vezes é detalhado, sendo muitas vezes deixado no ar como algo que prescindisse de explicação. Entre o grupo que participou das conversas individuais sobre o projeto Rio Invisível nesta pesquisa, se destacou o sentimento de dúvida sobre qual seria a forma adequada de “ajudar”. Essa dúvida se manifesta em algumas das mensagens de participantes desta pesquisa: “o cidadão não sabe como se comportar diante um morador de rua”; “a gente às vezes quer ajudar e a gente não sabe como ajudar”; “só me frustra não poder ajudar mto por não saber o que fazer” [sic] (Respostas de interlocutores e interlocutoras via mensagem direta, 2020).
Ainda que existam, nos comentários, diversas acepções do que seria uma forma de ajudar na causa da situação de rua - desde uma cobrança mais efetiva de políticas públicas até uma atitude singela, como passar a dar bom dia às pessoas que vivem nas ruas -, a principal construção que emerge das interações entre quem acompanha a página é a da doação material ou assistência individual. Ao falarem de seus cotidianos, sobre seus sonhos e planos, ou mesmo sobre suas formas de obterem sustento nas ruas, alguns entrevistados e entrevistadas dão pistas de suas necessidades materiais ou de seus desejos, ainda que isso não apareça de forma direta, como um pedido ou apelo. Nesses casos, são muito frequentes as mensagens de pessoas se voluntariando para levar doações ou prestar algum tipo de serviço, como levar ao consultório médico. Durante um tempo, chegou a existir um grupo paralelo chamado “Rio Invisível - Mãos à obra”, no qual seguidores e seguidoras da página se organizaram, usando as próprias ferramentas disponibilizadas pelo Facebook, para criar um grupo em que pessoas voluntárias levavam doações a indivíduos que tinham sido retratados na página Rio Invisível, acompanhavam os casos e postavam fotos das entregas dos itens. A iniciativa paralela durou pouco menos de um ano e foi encerrada pois, apesar de ter muitos participantes, poucos realmente tinham disponibilidade para ir ao encontro das pessoas assistidas.
O tema da doação ou da “ajuda” como uma atitude indiscutível de solidariedade, por diversas vezes, é discutido no desenrolar dos debates, por inúmeros fatores. Em certos casos, tem-se uma oferta de doações muito grande por determinado momento, tendo sido relatados episódios como o de uma pessoa em situação de rua que ganhou onze pares de sandália de uma vez, mas não tinha como guardá-los. Também se discute a falta de continuidade das ações, que muitas vezes dependem da disponibilidade financeira e de tempo de cada qual que se compromete a “ajudar”. Outro problema é a dificuldade em localizar a pessoa que foi entrevistada, o que frustra grande parte dos que saíram no intuito de oferecer doações a esses indivíduos. Ao observar as publicações da página, também é possível notar que, se por um lado a doação é vista como um gesto que reacende a esperança e o sentimento de pertencimento à comunidade, outras vezes é vista como insuficiente ou mesmo como ligada a um sentimento de humilhação ou julgamento.
Indiretas
Ainda que a forma como deve ser a “ajuda” seja motivo de dúvida para muitos dos que se dispuseram a contribuir com esta pesquisa, é bastante frequente a adoção, nos comentários, de um tom assertivo ditando regras de comportamento. São mensagens que praticamente definem os problemas causadores da situação de rua e acusam de quem seria a culpa, mas usualmente o fazem de forma bastante genérica. Assim, utilizam-se de expressões como “a sociedade”, “as pessoas” e “o brasileiro”, para apontar problemas que estariam ligados, principalmente, ao egoísmo, à ganância, ao preconceito e à corrupção. Dessa forma, têm-se uma construção que não acusa ninguém diretamente e acusa a todos ao mesmo tempo. Também é comum o uso dos verbos no modo imperativo, indicando o que “deve”, “tem que” ou “precisa” ser feito para solucionar o problema.
Ao estudar a cultura de “indiretas” no Facebook, Letícia Schinestsck (2015Schinestsck, Letícia Ribeiro (2015). "Se a carapuça serviu..." estudo de caso sobre a cultura das indiretas e a violência simbólica no Facebook [Dissertação de Mestrado em Letras, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas/RS].) utiliza-se do conceito de Bourdieu de violência simbólica para descrever a prática de deixar no ar mensagens acusatórias que não esclarecem exatamente a quem se direcionam. A autora sublinha que é necessário o compartilhamento de uma bagagem cultural para que seja possível decodificar o conteúdo e compreender a quem ele se destina, porém nem sempre a pessoa que participa da conversa está consciente das relações de dominação que estruturam as construções de sentido que estão sendo valorizadas, às vezes a pessoa sequer está consciente do próprio fato de estar, ela mesma, reproduzindo a violência simbólica, já que se trata de um mecanismo de “manutenção e perpetuação de valores simbólicos de uma determinada classe dita dominante a partir da assimilação e interiorização da cultura compreendida como ‘superior” (Schinestsck, 2015Schinestsck, Letícia Ribeiro (2015). "Se a carapuça serviu..." estudo de caso sobre a cultura das indiretas e a violência simbólica no Facebook [Dissertação de Mestrado em Letras, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas/RS]., p. 19).
Assim, por dependerem de um processo de identificação ou não com o conteúdo e por não nomearem ninguém especificamente, as indiretas são capazes de disseminar mais facilmente os estigmas, principalmente quando lançadas nos ambientes digitais onde se tornam públicas e permanentemente disponíveis. Ao ficarem registradas nas publicações, são sempre passíveis de serem levadas adiante ou confrontadas, o que produzirá um dado sobre a pessoa usuária que será incorporado à sua identidade na rede, tenha ou não essa pessoa “vestido a carapuça” (Schinestsck, 2015Schinestsck, Letícia Ribeiro (2015). "Se a carapuça serviu..." estudo de caso sobre a cultura das indiretas e a violência simbólica no Facebook [Dissertação de Mestrado em Letras, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas/RS].) em sua interação com o conteúdo. Assim, ao se analisar discussões polêmicas em ambientes de redes sociais digitais, é preciso estar atento ao risco de exposição que tais interações significam para cada pessoa, pois o perigo é o de esta passar a ser vista como “um certo tipo de pessoa” a quem se pode atribuir “a origem do mal” (Schinestsck, 2015Schinestsck, Letícia Ribeiro (2015). "Se a carapuça serviu..." estudo de caso sobre a cultura das indiretas e a violência simbólica no Facebook [Dissertação de Mestrado em Letras, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas/RS]., p. 18).
Dicas, conselhos e sugestões
O uso da internet como uma ferramenta de ampliação democrática, ao permitir que cada um possa apresentar a sua perspectiva em relação aos acontecimentos, encontra uma falha ao se tratar da situação de rua, uma vez que a maior parte do grupo interessado, ou seja, as pessoas em situação de rua, não tem acesso aos dispositivos ou mesmo conhecimentos necessários para que possam emitir suas próprias mensagens ou para que possam acessar e ter conhecimento das interações que suas histórias provocaram. Assim, a formação de uma rede em prol da situação de rua se difere, em muito, de outras organizações em que a troca de informações e de experiências é um componente micropolítico importante e amplamente potencializado pelas mídias digitais (Postill, 2012Postill, John (2012). Digital Politics and Political Engagemen. In H. A. Horst D. Miller (Eds.), Digital anthropology (191-215). Oxford.). No entanto, a forma de participação a partir de comentários que dão dicas, conselhos e sugestões que podem ser úteis para solucionar problemas que aparecem nos relatos é bastante prevalente entre as interações da página, e muitas vezes esses comentários são alvos de críticas que apontam a pouca ou nenhuma efetividade da “ajuda” remota.
Tais comentários costumam ser endereçados ao indivíduo entrevistado, como se se tratasse de uma página pessoal, ou sugerem que “alguém devia” ou “poderia” encaminhar a pessoa ao lugar ou serviço mencionado. Ainda que se trate de uma atitude pouco efetiva, no sentido de provocar alguma mudança na vida da pessoa, convém atentar-se para o fato de que
ao vincular-se publicamente a uma causa, o usuário pode integrar-se àquele movimento em suas mais variadas formas (curtidas, compartilhamento, confirmação de presença em eventos etc.) e, ao deixar que suas audiências saibam das suas preferências (como, por exemplo, o evento que frequenta e as causas com as quais concorda), expressa e constrói sua identidade. (Primo et al., 2018Primo, Alex F. T., Valiati, Vanessa A., Amaral, Ludmila, & Barros, Laura (2018). Interações e práticas no Facebook. Contracampo: Revista do Programa da Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense. 37(2), 152-171., p. 166)
Por um lado, ao se envolver com a história narrada e tentar contribuir da forma que é possível naquele momento, existe o desejo de se manifestar solidário à causa. Por outro lado, esse tipo de comentário corre o risco de reafirmar o caráter de culpa das próprias pessoas em situação de rua, como se as suas condições fossem fruto da falta de iniciativa delas próprias em procurar os serviços sociais disponíveis. Deixa-se, portanto, de pesar outros impeditivos, como a ausência de uma formação cidadã que conscientize esse grupo de seus direitos ou as situações de discriminação que sofrem ao procurarem os locais de atendimento, mesmo que públicos. Ao contribuir, por exemplo, alertando que em certo hotel estão “precisando de mensageiro” (trecho de comentário postado em Rio Invisível), esquece-se (ou ignora-se) a extrema complexidade dos processos de empregabilidade para pessoas em situação de rua e fatores como a aparência, a falta de referência, por não terem endereço fixo, o baixo nível de escolaridade, entre muitos outros. Apenas a aquisição de habilidades e conhecimentos não solucionam a questão da capacitação para o trabalho de pessoas que vivem em situação de rua - “requer, antes, o fortalecimento da autoestima, a ressignificação de expectativas” (Prates, Prates, & Machado, 2011Prates, Jane Cruz, Prates, Flávio Cruz, & Machado, Simone (2011). Populações em situação de rua: os processos de exclusão e inclusão precária vivenciados por esse segmento. Temporalis, 11(22), 191-216., p. 203).
Desconfiança quanto à orientação política
A página Rio Invisível foi lançada em 2014, período em que o Brasil, e especialmente a cidade do Rio de Janeiro, vivia uma efervescência política que culminou em um clima de constantes manifestações populares e intensa polarização partidária. Cada vez mais, ao longo do tempo, foi possível perceber, nos comentários, um clima de alerta ao menor sinal que pudesse indicar uma motivação político-partidária para a existência da página, o que levou a diversas discussões que extrapolam o tema da situação de rua, trazendo para a cena discussões sobre pobreza estrutural ou sobre o sistema capitalista.
Dessa forma, observa-se variados debates em que visões mais conservadoras são identificadas como desrespeito a noções de liberdade individual e direitos, já que muitas vezes generalizam o que seria uma conduta adequada para uma pessoa em situação de rua, sem considerar que esses sujeitos não contam com condições mínimas para que desenvolvam suas capacidades críticas. No entanto, a desconfiança de que algumas mensagens poderiam indicar uma adesão a comportamentos considerados “de esquerda” ou “de direita” prejudica o debate, pois muitas vezes tornam-se o centro da discussão, ocupando o lugar do problema real que estava sendo discutido.
Impacto emocional provocado pela leitura
São muito constantes e numerosas, durante todo o período analisado, as mensagens que manifestam o impacto emocional provocado pela leitura e/ou que parabenizam o trabalho da página Rio Invisível. Muitas dessas mensagens destacam o impacto da leitura das narrativas publicadas e relatam uma mudança na forma de perceber e se relacionar com as pessoas em situação de rua. Também é bastante frequente entre aqueles que comentam destacarem que tiveram a sensação de ouvir as pessoas em situação de rua contando suas histórias ou, ainda, a ideia de ter passado a conhecer alguém a partir da história publicada.
Tais afirmações corroboram a afirmação de Kátia Lerner e Paulo Vaz (2016Lerner, Kátia & Vaz, Paulo (2016). “Minha história de superação”: sofrimento, testemunho e práticas terapêuticas em narrativas de câncer.Interface-Comunicação, Saúde, Educação, 21, 153-163.) de que o tom testemunhal, na percepção contemporânea, é visto como o mais apropriado ao objetivo de gerar empatia. O recurso de manter nos depoimentos características da fala oral parece ser efetivo em proporcionar uma sensação de proximidade com a pessoa retratada. Nick Couldry (2019Couldry, Nick (2019). Why voice matters: Culture and politics after neoliberalism. Sage.) destaca que a mídia é capaz de trazer a sensação de que, realmente, passamos a ter acesso a uma outra realidade, o que escamoteia sua ação mediadora. “Quando a mídia nos apresenta esses mundos distantes, somos tentados a acreditar que, através da mídia, nós literalmente acessamos os mundos que estamos vendo” (Couldry, 2019Couldry, Nick (2019). Why voice matters: Culture and politics after neoliberalism. Sage., p. 34, tradução nossa). Nessa dinâmica, é preciso atentar para o modo como o conteúdo será interpretado, a partir das visões de mundo de quem o recebe, e para o fato de que essa interpretação pode, ou não, relacionar-se com a intenção de quem produziu a mensagem. Assim, esse “passar a conhecer” as pessoas em situação de rua, a partir dos relatos publicados na página Rio Invisível, em muito se relaciona com visões previamente concebidas sobre a questão, sendo de extrema importância a existência de espaços de debates que possam realmente movimentar estruturas de pensamento cristalizadas e ampliar as maneiras de compreender o fenômeno da situação de rua.
Retomando a Theory of Attainment (Miller & Sinanan, 2014Miller, Daniel & Sinanan, Jolynna (2014). Webcam. John Wiley & Sons.), a análise mostrou como fatores culturais, que já faziam parte da discussão sobre a situação de rua, reaparecem na sua versão digital, atravessados, ainda, por complexidades inerentes às relações mediadas pelo computador. Assim, nota-se que a apropriação do ambiente das redes sociais digitais, além de reverberar questões que já faziam parte do debate sobre a situação de rua, ainda soma complexidades próprias da conversação on-line.
Ainda que se trate de um público limitado, isto é, de pessoas que têm acesso a redes sociais como o Facebook, a pesquisa aponta a ideia da empatia, da solidariedade, como a reação esperada ao se ter contato com os relatos individuais de pessoas que, por algum motivo, passaram a viver nas ruas. Seja no sentido de combater reações vistas como preconceituosas ou limitadas sobre o tema, de incentivar ações de ajuda material, de denunciar atitudes mesquinhas genéricas que atrapalhariam o funcionamento da sociedade, de sugerir soluções pontuais, de debater visões ideológicas ou manifestar o impacto emocional causado pelo relato, em todas essas ações expõe-se e registra-se, de maneira pública e permanente (uma vez que se trata de uma rede social da internet), a sensibilidade no que diz respeito ao tema.
Ainda que se possa refletir sobre a pouca efetividade dessa empatia para aqueles que cederam suas histórias pessoais, no sentido de uma ação que terá algum impacto sobre a sua condição de pessoa em situação de rua, há de se considerar a adequação da prática ao caráter performático que orienta a construção de perfis nas redes sociais e a força normativa que as disputas de contexto exercem (Recuero, 2012Recuero, Raquel (2012). A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet. Sulina.).
Considerações finais
A partir do material coletado foi possível perceber que a iniciativa da página Rio Invisível foi capaz de estimular certo nível de debate sobre a causa da situação de rua, trazendo para a cena novos dados sobre a vivência nas ruas, os quais, muitas vezes, passam despercebidos por quem não atua diretamente junto a esses indivíduos. A opção por relatos no tom testemunhal, além de trazer para o texto perspectivas daqueles indivíduos que realmente vivem a situação de rua e dar-lhes um rosto, contribuiu para que o público se sentisse mais próximo dos entrevistados e entrevistadas, sendo frequente a afirmação de que passaram a conhecer essas pessoas.
Por um lado, tem-se um importante movimento de mudança de pensamento e atitude quanto à situação de rua, em que muitos indivíduos que seguem a página relatam terem experimentado sentimentos de tristeza e compaixão e terem, inclusive, partido para ações concretas como parar para conversar com pessoas que vivem nas ruas perto de suas casas, ou terem ingressado em grupos de trabalho voluntário. Por outro lado, passar a compreender o fenômeno da situação de rua somente a partir de histórias publicadas na internet traz o risco da formação de visões reducionistas quanto ao problema. É preciso considerar que, além de se tratar de pequenos trechos de histórias de uma vida inteira, ainda existe a dimensão da mediação por parte do projeto, que seleciona quem participa, que transcreve e que edita suas histórias.
Além disso, cabe acrescentar que se tratam de relatos a partir da memória das pessoas entrevistadas, o que, como afirma Michael Pollak (1992Pollak, Michael (1992). Memória e identidade social. Estudos Históricos, 10(5) 200-212.), é sempre uma construção voltada para o presente. Em muitas publicações são comuns os comentários que destacam inconsistências ou contradições das narrativas, suspeitando-se da veracidade das histórias ou mesmo dos objetivos do projeto. Ademais, muitos são os comentários que criticam as escolhas feitas pelas pessoas retratadas, sublinhando seus “erros” que teriam culminado na sua situação de rua. Tal comportamento denota que o lançamento de histórias íntimas em um ambiente público contribui para uma atmosfera de permissão para o escrutínio de cada relato, como se coubesse a cada pessoa que lê a página decidir quais histórias são dignas ou não de empatia. Assim, os dados levantados pela pesquisa corroboram a noção de que o digital é permeado por ambiguidades, nas quais, a todo o tempo, possibilidades de aberturas dão lugar a pressões que reivindicam novas normatividades (Horst & Miller, 2012Horst, Heather & Miller, Daniel (2012). Digital anthropology. Berg.).
Nesse sentido, um ponto de atenção levantado pela pesquisa se refere à dicotomia de utilizar-se das narrativas pessoais para chamar a atenção do caráter subjetivo de cada uma das histórias que levaram alguém a estar em situação de rua ao mesmo tempo em que o projeto procura, dessa mesma maneira, promover um espaço para a discussão da situação de rua de forma mais ampla. Ao tornar tangíveis as vivências desses indivíduos a partir de histórias reais, a iniciativa se mostra capaz de provocar reflexões sobre os diversos e complexos fatores psicossociais que fazem parte do processo de rualização4 4 Considerando a visão defendida por Prates et al., a rualização deve ser vista como um processo social, pois se trata de uma “condição que vai se conformando a partir de múltiplos condicionantes, num continuum” (Prates et al., 2011, p. 194). (Prates et al., 2011Prates, Jane Cruz, Prates, Flávio Cruz, & Machado, Simone (2011). Populações em situação de rua: os processos de exclusão e inclusão precária vivenciados por esse segmento. Temporalis, 11(22), 191-216.) desses indivíduos, fornecendo aos leitores novas perspectivas para o entendimento desse grave problema social.
No entanto, muitas vezes a tendência acaba sendo a análise individual de cada caso, na qual quem lê se coloca na posição de decidir quem deve ser merecedor da solidariedade alheia, dependendo da visão de mundo que atravessa a sua interpretação daquele relato. Dessa forma, revela-se uma ambiguidade na estratégia adotada de se apropriar do tom testemunhal que caracteriza espaços como o Facebook. Se, por um lado, tem-se um movimento de geração de interesse sobre a situação de rua, o que estimula a ampliação do horizonte sobre o assunto; por outro acaba-se por reafirmar estigmas e/ou contribui-se para a reprodução de modos de se relacionar com a situação de rua de forma pouco transformadora, como a noção de responsabilidade social ligada prioritariamente às doações materiais e ao assistencialismo.
Referências
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Notas
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1
Termo ainda sem tradução para o português. Uma tradução livre poderia ser “Teoria da Realização”.
-
2
RIO INVISÍVEL. https://www.facebook.com/rio.invisivel/about
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3
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo respectivo Comitê de Ética.
-
4
Considerando a visão defendida por Prates et al., a rualização deve ser vista como um processo social, pois se trata de uma “condição que vai se conformando a partir de múltiplos condicionantes, num continuum” (Prates et al., 2011, p. 194).
-
Financiamento
Não houve financiamento -
Aprovação, ética e consentimento
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CEP/CFCH/UFRJ), sob parecer número 4.040.388.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
07 Ago 2022 -
Revisado
24 Maio 2023 -
Aceito
02 Jun 2023