Acessibilidade / Reportar erro

OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO/A ADOLESCENTE SEGUNDO PROFISSIONAIS DA ÁREA INFANTO-JUVENIL DO JUDICIÁRIO

LOS DERECHOS DE LA NIÑEZ Y ADOLESCENCIA SEGÚN LOS PROFESIONALES DEL ÁREA DE NIÑOS Y ADOLESCENTES DEL PODER JUDICIAL

THE RIGHTS OF CHILDREN AND ADOLESCENTS ACCORDING TO PROFESSIONALS IN THE CHILD AND YOUTH AREA OF THE JUDICIARY

Resumo:

Este artigo apresenta uma análise das narrativas sobre os direitos da criança e do/a adolescente produzidas por profissionais do judiciário da área infantojuvenil. A abordagem teórico-metodológica é construtiva-interpretativa, sob as lentes da epistemologia qualitativa, ancorada no conceito de performance, que traduz as práticas e as atuações que constituem poder administrativo-judicial sobre crianças e adolescentes. Narrativas atravessadas por símbolos e noções relacionados a questões sociais amplas, tais como representação de famílias e papéis de gênero, moralidades relacionadas à infância e adolescência e criminalização da pobreza são acionadas como elementos nas narrativas sobre direitos da criança e do/a adolescente, atuando como componente das performances profissionais desenvolvidas na área infanto-juvenil da justiça.

Palavras-chave:
Criança; Defesa da Criança e do Adolescente; Adolescente; Sistema de Justiça; Direitos Humanos

Resumen:

Este artículo presenta un análisis de las narrativas sobre los derechos de los niños y adolescentes producidas por profesionales judiciales en el área de niñez y juventud. El abordaje teórico-metodológico es constructivo-interpretativo, bajo el lente de la epistemología cualitativa, anclado en el concepto de actuación, que traduce las prácticas y acciones que constituyen el poder administrativo-judicial sobre los niños y adolescentes. Narrativas atravesadas por símbolos y nociones relacionadas con amplias problemáticas sociales, como la representación de las familias y los roles de género, las moralidades relacionadas con la niñez y la adolescencia y la criminalización de la pobreza, son utilizadas como elementos en las narrativas sobre los derechos de la niñez y la adolescencia, actuando como componente de actuaciones profesionales desarrolladas en el área de justicia juvenil.

Palabras clave:
Niño; Defensa de la Niñez y la Adolescencia; Adolescente; Sistema de Justicia; Derechos Humanos

Abstract:

This article presents an analysis of the narratives about the rights of children and adolescents produced by judicial professionals in the children and youth area. The theoretical-methodological approach is constructive-interpretative, under the lens of qualitative epistemology, anchored in the concept of performance, which translates the practices and actions that constitute administrative-judicial power over children and adolescents. Narratives traversed by symbols and notions related to broad social issues, such as the representation of families and gender roles, moralities related to childhood and adolescence and the criminalization of poverty are used as elements in the narratives about the rights of children and adolescents, acting as component of the professional performances developed in the juvenile justice area.

Keywords:
Child; Defense of Children and Adolescents; Adolescent; Justice System; Human Rights

Introdução

Os direitos da criança e do/a adolescente e as políticas públicas de proteção desta população vêm sendo construídos paulatinamente no decorrer da história do Brasil. Até a Constituição de 1988, crianças e adolescentes não eram reconhecidos/as como sujeitos de direitos na sociedade e no ordenamento jurídico brasileiro (Faleiros, 2004Faleiros, Vicente de Paula (2004). Infância e adolescência: trabalhar, punir, educar, assistir, proteger. Revista Ágora, 1(1), 1-9. https://catedra.ucb.br/wp-content/uploads/2012/07/infancia-e-adolescencia1.pdf
https://catedra.ucb.br/wp-content/upload...
; Faleiros & Faleiros, 2008Faleiros, Vicente de Paula & Faleiros, Eva Silveira (2008). Escola que Protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes (2ª ed). Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/escqprote_eletronico.pdf
http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/...
). O processo de redemocratização do país, a pressão dos movimentos internacionais de lutas pelos Direitos Humanos e as intensas lutas dos movimentos sociais formaram o contexto favorável para uma legislação afinada com os princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (Organização das Nações Unidas [ONU], 1990Organização das Nações Unidas - ONU. (1990). Convenção sobre os Direitos da Criança. Author. https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca
https://www.unicef.org/brazil/convencao-...
). Foi criada, assim, na Constituição Brasileira (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988). Presidência da República. ), a Doutrina da Proteção Integral e a base fundamental do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei nº 8.069, 1990Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Presidência da República. ).

Com essa doutrina, os/as adolescentes e as crianças passaram a ser reconhecidos/as na legislação como prioridade absoluta, tendo em vista a peculiaridade de estarem em desenvolvimento e a necessidade de proteção integral para garantia do conjunto de direitos imprescindíveis à vida humana com dignidade (Rizzini, 2009Rizzini, Irene (2009). Crianças e menores: do pátrio poder ao pátrio dever. Um histórico da legislação para a infância no Brasil. In I. Rizzini & F. Pilotti (Orgs.), A arte de Governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil (pp. 97-149). Cortez.; Rizzini, Barker, & Cassaniga 2000Rizzini, Irene, Barker, Gary, & Cassaniga, Neide (2000). Criança não é risco, é oportunidade: fortalecendo as bases de apoio familiares e comunitárias para crianças e adolescentes. Instituto Promundo.).

Mesmo com essas transformações no campo legal, a sociedade brasileira apresenta, ainda hoje, passados mais de 30 anos dessa promulgação, diversas dificuldades na efetivação dos direitos de crianças e adolescentes e na efetivação de políticas sociais públicas que garantam as condições de vida preconizadas pelo ECA. Não obstante a não plena efetivação dos direitos previstos no ECA, o Brasil enfrenta atualmente um movimento retrógrado, que atua em favor do enfraquecimento dessas garantias, da redução da maioridade penal, dentre outros retrocessos (Vale & Neves, 2012Vale, Juliana Maria B. T. & Neves, Anamaria S. (2012). O cárcere na adolescência: as instituições e os sentidos da delinquência. O Social em Questão, 15(28), 27-56. http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/3artigo.pdf
http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/m...
).

A atuação do judiciário é indispensável na proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Maria Lugones (2012Lugones, Maria Gabriela (2012). Obrando em autos, obrando em vidas: formas y fórmulas de protección judicial em los tribunales prevencionales de menores de Córdoba, Argentina, a comienzos del siglo XXI. E-papers/LACED/Museu Nacional. ) aponta que, em virtude de métodos privilegiados de aplicação de ferramentas legais e da potencialidade de instalação de horizonte de referências sociais, a agência judiciária produz narrativas de impacto social capazes de inaugurar performances humanas. Para análise das questões expostas neste artigo, faz-se relevante a abordagem da noção de “performases”, visto que elas seriam decorrentes da agência dos ritos judiciários, que comunicam valores, reproduzem costumes e dispõem lugares de fala (Lugones, 2012Lugones, Maria Gabriela (2012). Obrando em autos, obrando em vidas: formas y fórmulas de protección judicial em los tribunales prevencionales de menores de Córdoba, Argentina, a comienzos del siglo XXI. E-papers/LACED/Museu Nacional. ). Ao repetir as etapas de forma sistemática, os ritos consolidam modos de agir tanto nos jurisdicionados quanto nos operadores do Direito.

Tal condição de autoria dos ritos judiciários pode ser pensada aqui como instrumento de efetivação da ordem jurídica e social, tendo potencial de sustentar a densidade e concretude dos direitos sociais. Nesse sentido, considera-se a agência das instituições do sistema de Justiça como elemento que corresponsabiliza o Poder Judiciário para cuidar dos interesses da sociedade de uma maneira geral, principalmente nos setores mais vulneráveis e mais necessitados de amparo, como é o caso dos direitos humanos da infância e adolescência.

Partindo dessa compreensão, este texto tem como objetivo analisar as narrativas de profissionais da área infantojuvenil do judiciário de Manaus, sobre os direitos de crianças e adolescentes, visando apreender das falas, os valores, as práticas e as atuações que constituem o cotidiano de atuação desses profissionais no âmbito da infância e juventude, no sentido de promover efetivação ou violações dos direitos.

Método

Desenvolveu-se uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa, para analisar as narrativas sobre direitos de crianças e adolescentes dos profissionais. Adotou-se como perspectiva a Epistemologia Qualitativa de Rey (2011Rey, González Fernando L. (2011). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. Thomson.) que apresenta três princípios norteadores para a pesquisa qualitativa: a defesa pelo caráter construtivo interpretativo do conhecimento, tendo em vista que esse é uma produção humana; a legitimação do singular como instância de produção do conhecimento científico; e a compreensão da pesquisa como um processo essencial de comunicação. Assim, a metodologia desta pesquisa se orienta na direção da construção de modelos compreensivos do fenômeno estudado, buscando desenvolver espaços de inteligibilidade sobre o tema.

Local da pesquisa

A pesquisa foi realizada no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM), em setores que trabalham diretamente com os direitos da criança e do/a adolescente: Coordenadoria da Infância e Juventude, 2ª Vara de Crimes Contra a Dignidade Sexual de Crianças e Adolescentes e Juizado da Infância e Juventude Cível.

Instrumento

O instrumento da pesquisa foi entrevista individual semiestruturada, seguindo um roteiro-guia, mas permitindo desdobramentos no decorrer da entrevista. A escolha por esse instrumento se deu com base na compreensão da pesquisa como um processo de comunicação, um processo dialógico. As entrevistas foram realizadas no próprio local de trabalho das/os participantes, a fim de facilitar a sua participação na pesquisa.

Participantes

Oito profissionais foram convidados. Desses, cinco aceitaram participar da pesquisa. Entretanto, devido à declaração de pandemia da Covid 19 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e o sistema de trabalho remoto desde março 2020, não foi possível continuar a realização das entrevistas. Dessa forma, a pesquisa ficou restrita a três profissionais que já haviam sido entrevistados. Visa compreender os contornos das narrativas e performances dos/as agentes judiciários/as, entendendo-os/as, conforme aponta Lugones (2012Lugones, Maria Gabriela (2012). Obrando em autos, obrando em vidas: formas y fórmulas de protección judicial em los tribunales prevencionales de menores de Córdoba, Argentina, a comienzos del siglo XXI. E-papers/LACED/Museu Nacional. ), como atores-autores, dado suas agências serem politicamente inclinadas à efetivação de interesses, perspectivas e ferramentas.

Procedimentos éticos

A pesquisa atendeu às exigências éticas e científicas fundamentais do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Amazonas sob Parecer (CAAE 19018319.0.0000.5020) com assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelos participantes, garantindo a confidencialidade e a privacidade dos dados.

Análise de dados

As informações produzidas na pesquisa a partir das entrevistas foram analisadas com base no processo de construção da informação na perspectiva da Epistemologia Qualitativa. Conforme define ReyRey, González Fernando L. (2005). Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. Thomson. (2011, p. 4Rey, González Fernando L. (2011). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. Thomson.) “a pesquisa qualitativa que assume os princípios da Epistemologia Qualitativa se caracteriza pelo seu caráter construtivo-interpretativo, dialógico e pela sua atenção ao estudo dos casos singulares”. A análise primou pela adoção de um caráter ativo e de responsabilidade intelectual pela construção da informação, seguindo o curso progressivo e aberto de um processo de construção e interpretação que acompanha todos os momentos da pesquisa (Rey, 2011Lugones, Maria Gabriela (2012). Obrando em autos, obrando em vidas: formas y fórmulas de protección judicial em los tribunales prevencionales de menores de Córdoba, Argentina, a comienzos del siglo XXI. E-papers/LACED/Museu Nacional. ).

No aspecto procedimental, a análise se deu da seguinte maneira: (a) transcrição do áudio das entrevistas; (b) leitura flutuante e organização do material da transcrição, numa espécie de pré-análise, que consistiu na sinalização e destaque dos elementos que se mostravam significativos; (c) leitura sistemática que proporcionou a identificação dos indicadores, os “elementos que adquirem significação graças à interpretação do pesquisador” (Rey, 2011, p. 112Rey, González Fernando L. (2011). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. Thomson.) e (d) a partir da identificação dos indicadores, passou-se para a construção das categorias temáticas, que são instrumentos do pensamento que expressam não só um momento do objeto estudado, mas o contexto histórico-cultural em que esse momento surge como narrativa (Rey, 2011Rey, González Fernando L. (2011). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. Thomson.).

Resultados e Discussão

Os nomes das/dos participantes da pesquisa foram inspirados nos elementos contidos no ideário da prática profissional no âmbito dos direitos de crianças e adolescentes expressos durante a entrevista, conforme apresentado a seguir:

Fênix - Pássaro da mitologia grega que, ao morrer, entrava em autocombustão e, após algum tempo, renascia das próprias cinzas. A escolha por esta identificação para representar essa participante se deu pelo caráter de renovação que permeou toda a entrevista. A participante defendeu ter um pensamento diferente do coletivo profissional a que pertence, o que ocorreu após sua transferência ao setor atual, no qual trabalha diretamente com a infância e juventude. Ela relata que mudou radicalmente seu pensamento no que se referia aos direitos da criança e do/a adolescente, como se tivesse renascido das cinzas, como a Fênix. Fênix tem formação em Direito e tem cargo efetivo no TJAM desde 1990. Trabalhou em diversos setores lidando com direito penal, execução penal e controle carcerário, ou seja, uma perspectiva punitiva da atuação jurídica. Há cerca de três anos, pediu transferência para a Coordenadoria da Infância e Juventude, onde tem redescoberto o direito da criança e do/a adolescente. Mencionou estar aprendendo muito no contato com profissionais de outras formações (Psicologia, Serviço Social e Pedagogia), além de estar construindo uma prática profissional mais direcionada ao caráter protetivo do judiciário.

Narciso - Na mitologia grega, Narciso era um rapaz muito belo, arrogante e vaidoso, o que ocasionou a sua destruição e o levou a definhar até morrer, apaixonado pela própria imagem refletida em um rio. Esse nome foi escolhido devido ao fato de o participante, durante a entrevista, sempre colocar-se como o melhor profissional em tudo que fez na sua trajetória profissional e ter afirmado sucesso total em suas atuações. Demonstrou possuir uma ideia exagerada de sua importância no âmbito profissional, como encantado por sua própria imagem refletida em suas práticas, correndo risco de cair no lago da falta de criticidade e contextualização de seu trabalho com a realidade. Narciso trabalha no TJAM há dois anos como psicólogo contratado em cargo comissionado, mas tem longo histórico de atuação na área da infância e juventude, tendo atuado como diretor de unidade socioeducativa, dentre outros.

Moira - As moiras, na mitologia grega, são consideradas as Fiandeiras do Destino. Elas tecem o futuro do homem e dos deuses em um tear especial, a Roda da Fortuna, que define o destino das pessoas, com futuro de fortuna ou de má sorte. A escolha desse codinome deveu-se à participante ter demonstrado uma visão dura referente aos jovens que cumprem medidas socioeducativas e ter dado a entender que, se estivesse em suas mãos decidir o destino dos jovens que cometeram atos infracionais, ela teceria um destino mais trágico a eles. Moira tem cargo efetivo de Assistente Social no TJAM desde 1986, com muitos anos de atuação na área da infância e juventude.

Após esta breve caracterização do perfil dos/as profissionais participantes do estudo, são apresentados os resultados em seções, organizadas segundo as categorias construídas no processo de análise.

Existência de lacuna entre a letra da lei/teoria e a realidade prática de efetivação dos direitos

As/Os participantes opinaram que os direitos de crianças e adolescentes são imprescindíveis e inquestionáveis. Que não se devia sequer discutir a necessidade de sua existência. Destacaram, entretanto, que existia grande diferença entre o que estava previsto na legislação e o que era efetivado na realidade do estado, conforme se pode perceber nas falas a seguir:

A gente tem muita lei, pra pouca execução. A gente tem muita normativa pra pouca execução. (Narciso)

É... agora a gente não consegue alcançar 100%, mas o propósito da justiça da infância e juventude ... é 100% da garantia dos direitos, só que, como a demanda é grande, nós não conseguimos alcançar todos ... Então, se nós aqui da justiça já não estamos dando conta, é porque lá na entrada, lá no Executivo, que é quem dá conta das políticas públicas, não está. (Moira)

Pois essa minha angústia é de fazer com que ele seja realmente conhecido e que ele realmente funcione, porque, hoje, a rede, do jeito que está, as precariedades que existem na linha de frente, na hora da aplicação até chegar no Judiciário, de todas aquelas ferramentas não estarem tão disponíveis quanto deveriam. (Fênix)

Essas falas coadunam-se com a realidade vivenciada em nosso país, pois o ECA trouxe avanços dos direitos em diversas áreas, como saúde, educação e no combate ao trabalho infantil, mas a situação está longe de ser a ideal em alguns aspectos, como o racismo, a violência doméstica e o abuso sexual. Entende-se que um dos maiores desafios para fazer valer esses direitos no Brasil é a desigualdade, que se apresenta no país de diversas formas, dentre as quais destaca-se o racismo. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (2019Fundo das Nações Unidas para a Infância (2019). 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: Avanços históricos, problemas que persistem e novos desafios. Autor. ) apresenta dados que corroboram essa avaliação: em 2016, 64,1% das crianças e dos/as adolescentes em trabalho infantil eram negros, assim como 82,9% das vítimas de homicídios entre 10 e 19 anos e 75% das meninas que engravidavam entre 10 e 14 anos.

Formação e autoria profissional como elementos fundantes da efetivação dos direitos de crianças e adolescentes

A formação profissional acadêmica como determinante para o modo como as/os profissionais concebem os direitos da criança e do/a adolescente e como atuam para efetivá-los na prática esteve presente nas narrativas das/os interlocutoras/es, conforme ilustrado nas seguintes falas:

A questão do direito da criança e do adolescente, pra mim, ela não era difundida de uma forma adequada. É uma matéria à parte dentro do Direito. A gente começa pela faculdade. Nas faculdades, é uma matéria optativa, pra quem quiser, na maioria. Não lembro e não sei se hoje tem, mas, na minha época, não existia, no currículo, a matéria infância e juventude. (Fênix)

Quando você começa a estudar e ter conhecimento que o adolescente, ele é um ser em fase de desenvolvimento com todas aquelas peculiaridades que são importantes e devem ser observadas, você diz assim: Não é assim. Então, tem que ser realmente universal. (Fênix)

Diante dessas manifestações, ressalta-se que a transformação das concepções das pessoas sobre os conceitos basilares do ECA acontece de forma lenta e processual, vinculadas a outras concepções ainda fortes nos valores sociais circundantes, como a menor importância de “menores”. No caso em tela, houve a transformação, pelo fato de Fênix ter ido trabalhar num setor que atua diretamente na área, e seu discurso agregou novas concepções, mas não se sabe até que ponto pode-se falar em transformações substanciais nas práticas e relações, tal como discutido por Renato Eliseu e Marcelo Boscoli (2020Eliseu, Renato & Boscoli, Marcelo (2020). 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Instituto Mundo Aflora. https://mundoaflora.org/blog_type/30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/?gclid=Cj0KCQjwvIT5BRCqARIsAAwwD-TR1zGT1U_ZekMX9K6XHvsfIof6pjY9DR9bDJOnARWfHrVujn7HQawaArepEALw_wcB
https://mundoaflora.org/blog_type/30-ano...
).

Em outro trecho, Moira fala da importância de os/as profissionais da rede de proteção serem multiplicadores do conhecimento sobre a legislação, mas comenta que isso não acontece na prática:

Agora, no ponto de vista analisando negativamente, eu acho que assim porquanto o estatuto vá completar 30 anos, eu acho que ainda mesmo atores, mesmo instituições que têm a responsabilidade de multiplicar, ainda não exerce esse papel 100% ... todos os atores que trabalham nessa área devem ser multiplicadores em potencial; nem sempre é assim.

Essas falas ilustram a dificuldade da formação profissional para atuação nas políticas públicas, demonstrando que existe uma formação acadêmica distante da realidade social de nosso país, tal como discute Maria Alberto (2012Alberto, Maria Fátima Pereira (2012). Pensamento crítico, formação de psicólogo e atuação junto à infância e juventude. Estudos de Psicologia, 17(3), 421-426. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300010
https://doi.org/10.1590/S1413-294X201200...
). Ao mesmo tempo, os/as profissionais das políticas públicas enfrentam dificuldades de formação continuada, além de contarem com estrutura precarizada para a atuação, o que pode contribuir de forma substancial para a falta de qualidade do atendimento. No momento atual, em que se lida com uma pandemia, torna-se latente a necessidade de reinvenção por parte das políticas e dos/as profissionais para lidarem com as novas demandas, buscando manter firme os princípios da proteção integral e a prioridade absoluta.

Diante dessa realidade, é importante pensar num contexto em que a prioridade absoluta para efetivação das políticas públicas na área da infância e juventude (Lei nº 8.069, 1990Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Presidência da República. ) não se cumpre eficazmente. Até o início de 2016, as políticas públicas no Brasil eram monitoradas por Observatórios de Acompanhamento. Esses começaram a tornar-se inoperantes, especialmente após a promulgação da Emenda Constitucional 95, batizada de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Morte, que impôs austeridade nas políticas sociais, interrompendo uma série de ações que estavam sendo implantadas nos mais variados segmentos, enfraquecendo e limitando os investimentos em políticas sociais. Isso fragilizou ainda mais toda a rede de proteção social brasileira, sendo, portanto, impraticável pensar numa rede amplamente protetiva (Mariano, 2017Mariano, Cynara Monteiro (2017). Emenda constitucional 95/2016 e o teto dos gastos públicos: Brasil de volta ao estado de exceção econômico e ao capitalismo do desastre. Revista de Investigações Constitucionais, 4(1). https://www.scielo.br/j/rinc/a/wJb3fZFMmZh65KfmrcWkDrp/?lang=pt#
https://www.scielo.br/j/rinc/a/wJb3fZFMm...
).

As/Os participantes alegaram que seria preciso ter perseverança nessa defesa da noção da responsabilidade e da importância do papel de cada profissional na sua área de atuação, como é possível perceber nas falas a seguir:

Agora, uma estratégia é perseverança, porque o sistema é muito maior do que eu. Eu sou apenas um grão de areia em uma praia gigantesca, porque, pra que eu obtenha um resultado positivo, ... eu tenho que ir de contra [sic] a todo um sistema. Por exemplo, pra que o depoimento especial exercesse o papel dele de eu ser ouvinte de alguém que sofreu algo, eu tive que lutar pra que eu tivesse tempo pra isso. Porque antes, não. Antes foi determinado há um tempo: você só tem 20 min pra escutar ela. Aí, com um tempo... (Narciso)

Por exemplo, como a coordenadoria, ela é um setor de articulação, ela tem um certo peso. E quando eu me apresento em qualquer local “eu sou da coordenadoria da infância” e pra ali estou com uma missão de colocar a eficácia do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], em qualquer demanda. Então, eu já acho que eu cumpri uma pequena missão. (Fênix)

O assistente social tem um papel importantíssimo e determinante pra que esse usuário tenha, além de um esclarecimento dos direitos deles, tenha o acesso a esses direitos deles. Então, eu acredito nisso 100%, desde que eu saí da universidade. E eu vou me aposentar acreditando nisso. (Moira)

Fazendo referência à noção de ator-autor, tal qual enfatizada por Lugones (2012Lugones, Maria Gabriela (2012). Obrando em autos, obrando em vidas: formas y fórmulas de protección judicial em los tribunales prevencionales de menores de Córdoba, Argentina, a comienzos del siglo XXI. E-papers/LACED/Museu Nacional. ), observa-se que as/os participantes organizavam sua agência tanto mediante o desempenho de um papel institucional, capaz de mobilizar outros agentes da rede de garantia de direitos, quanto mediante conduta autoral, representada pelo símbolo da luta da categoria profissional ou da missão pessoal de realizar algo. Tal organização parece possuir contornos específicos. Quando a prática era exitosa, eles/as permitiam-se vincular as identidades pessoal e profissional à institucional. Entretanto, quando se referiam às práticas censuráveis, aparecia, na narrativa, uma diferenciação entre agentes e instituição, traçando a contraposição entre eles. Desse modo, a natureza autoral das performances aparecia reconhecida nos discursos relacionados às práticas dissidentes das executadas pela instituição, enquanto a atuação (natureza de ator) emergia como interpretação do papel institucional.

Não existe o castrador

Uma categoria que atravessou a fala das/dos participantes, quando se tratava dos direitos, era a forma problemática, na opinião deles, de atuação desses jovens na sociedade. Isso era sinalizado como uma falha da família, que não soube educar seus filhos para o convívio em sociedade e o exercício de uma cidadania desde a infância:

Tu já entrevistou a grande maioria dos meninos do sistema socioeducativo? A grande maioria, eu não tenho essa estatística, mas na época eu tinha, a grande maioria deles, não existe o castrador, não existe essa figura. E é aí que existe essa dificuldade. Não só deles como qualquer outra criança. Se ninguém simbolicamente exercer esse papel, cara... só Deus! Por incrível que pareça. Então, o direito de família a ser família, esse é o primeiro direito, a gente vai conseguir? ... É por isso que hoje a gente tá debatendo hoje latentemente, direitos, direitos, direitos... porque a gente não teve a base do dever e a gente não percebe que o dever é muito importante, e isso começa na família, não eu aqui. (Narciso)

A fala de Narciso remete à ideia de uma falha na constituição psíquica da população adolescente, advinda de processos psicológicos primitivos da criação no seio familiar, como a falta de castração, de limites. Novamente, fica demonstrada certa contradição presente na fala das/dos participantes, ao defenderem, em alguns momentos, que as/os adolescentes do socioeducativo deviam ter seus direitos garantidos, mas posicionando-os em campo problemático, como se houvesse um desvio de caráter primitivo.

Os excertos podem ser remetidos à discussão de Lisandra Moreira e Maria Toneli (2013aMoreira, Lisandra Espíndula & Toneli, Maria Juracy Filgueiras (2013a). Paternidade responsável: problematizando a responsabilidade paterna. Psicologia & Sociedade, 25(2), 388-398. https://www.scielo.br/j/psoc/a/DFs5pcwVDqb6773TsQPTT5m/?format=pdf⟨=pt
https://www.scielo.br/j/psoc/a/DFs5pcwVD...
, 2013bMoreira, Lisandra E. & Toneli, Maria Juracy F. (2013b). Paternidade, família e criminalidade: uma arqueologia entre o Direito e a Psicologia. Psicologia & Sociedade, 26(nspe.), 36-46. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000500005
https://doi.org/10.1590/S0102-7182201400...
, 2015Moreira, Lisandra E. & Toneli, Maria Juracy F. (2015). Abandono afetivo: afeto e paternidade em instâncias jurídicas. Psicologia Ciência e Profissão, 35(4), 1257-1274. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1982-3703001442013
https://doi.org/10.1590/1982-37030014420...
) a respeito da relação entre o Judiciário e o instituto da paternidade. Para as autoras, as narrativas do Poder Judiciário evocam um tipo de paternidade relacionada à função de introjetar, em crianças e adolescentes, a autoridade e a submissão às normas e às leis. Afirmam que essa é a premissa que organiza as cobranças jurídicas endereçadas aos homens e às campanhas ou programas que envolvem as atuações paternas. Nos discursos jurídicos, os pais são cobrados pelo abandono de autoridade (papel do castrador), e as mães, pelo abandono de cuidados. Há, nessa organização de deveres parentais, uma nítida perspectiva de gênero. Assim, observa-se que os atores institucionais atuam sustentados por concepções engendradas, que reproduzem e produzem.

Noção de excesso de direitos e poucos deveres

As/os participantes traziam uma ideia de que muitos/as adolescentes eram investidos/as apenas de direitos, e não eram cobrados/as pelo cumprimento de seus deveres.

Enfrentamento direto com os jovens. Ir até os jovens ou achar uma maneira em que eles venham a buscar o conhecimento. Eu acho que o conhecimento é fundamental; é o saber: “Olha, existe uma legislação, existe todo um aparato, mas eu também preciso saber que eu tenho também deveres. Como jovem, eu tenho também uma missão a cumprir, também tenho alguns deveres, também faço parte de uma sociedade, e não é só eu ter direitos e através dele seu posso fazer o que eu quiser, sendo que não é isso”. (Fênix)

Essa fala expressa a crença de que os/as adolescentes tinham apenas direitos, como se fossem plenamente protegidos pela sociedade, o que contrasta veementemente com a realidade vivenciada por esses/as, em especial, alguns grupos, como a população jovem negra. Os dados estatísticos de violências cometidas contra crianças e adolescentes nos últimos dois anos (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021). Violência contra crianças e adolescentes (2019-2021). Sumário Executivo. Autor. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/12/violencia-contra-criancas-e-adolescentes-2019-2021.pdf
https://forumseguranca.org.br/wp-content...
) demonstram que a sociedade é que está em dívida no cumprimento dos deveres junto aos/às adolescentes, e não o contrário.

Essa categoria demonstra a necessidade de uma atualização do processo teoria-prática no campo da formação em Psicologia, que necessita romper com a visão patologizante de questões sociais e afinar-se com a criticidade, para formar um/a profissional que atue numa perspectiva do compromisso social, para um trabalho que alie a “... consciência crítica e atenção permanente e comprometida com as urgências e necessidades da população” (Bock, Ferreira, Gonçalves, & Furtado, 2007, p. 47Bock, Ana Mercês Bahia, Ferreira, Marcos Ribeiro, Gonçalves, Maria da Graça Marchina, & Furtado, Odair (2007). Sílvia Lane e o projeto do “Compromisso Social da Psicologia” . Psicologia & Sociedade, 19(nspe.2), 46-56. https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000500018
https://doi.org/10.1590/S0102-7182200700...
).

Durante esses 30 anos de Estatuto, admite-se que o país alcançou avanços importantes na proteção de crianças e adolescentes, mas os desafios ainda são gigantescos. Ao contrário do que aponta a fala de Fênix, de modo algum pode ser considerado que os/as adolescentes, especialmente os de classe social menos favorecida e os/as de população negra, possuem mais direitos que deveres. Prova disso são os dados do UNICEF, que apontam uma alta preocupante da taxa de homicídios de adolescentes nesses 30 anos. O número de adolescentes assassinados mais que dobrou no país entre 1990 e 2017, ano em que 32 brasileiros de 10 a 19 anos foram mortos por dia. Somente entre 1996 e 2017, o número de vítimas chegou a 191 mil (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2019Fundo das Nações Unidas para a Infância (2019). 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: Avanços históricos, problemas que persistem e novos desafios. Autor. ).

Em 30 anos, o Brasil viu crescer a violência armada em diversas cidades e, hoje, está diante de um quadro alarmante de homicídios. Em 2017, foram 11,8 mil mortes. Morar em um território vulnerável faz com que crianças e adolescentes estejam mais expostos à violência armada. Grande parte das mortes no Brasil concentra-se em bairros específicos, desprovidos de serviços básicos de saúde, assistência social, educação, cultura e lazer (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2019Fundo das Nações Unidas para a Infância (2019). 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: Avanços históricos, problemas que persistem e novos desafios. Autor. ).

As vítimas de homicídio são, em sua maioria, meninos negros, pobres, que vivem nas periferias e nas áreas metropolitanas das grandes cidades. Segundo análise do UNICEF com dados de 10 capitais, 2,6 milhões de crianças vivem em áreas diretamente afetadas pela violência armada. Nos últimos dez anos, os homicídios vêm caindo entre adolescentes brancos e crescendo entre não brancos - que, em 2017, representavam 82,9% das vítimas de homicídios entre 10 e 19 anos no Brasil (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2019). Reverter esse quadro é urgente.

A frágil universalidade dos direitos de crianças e adolescentes

Esta categoria gira em torno da diferenciação existente entre o modo como se concebem crianças e como se concebem adolescentes e como isso reverbera na proteção dos membros de cada um desses subgrupos, que deveriam ser sujeitos dos mesmos direitos, em linhas gerais.

Esta categoria demonstra a ideia de que a sociedade se mobiliza mais afetivamente em relação às crianças e aos adolescentes que são atendidos com medidas protetivas, acolhidos em abrigos, por exemplo, enquanto os/as adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa são alvo de sentimentos e ideias negativas, rejeição e falta de credibilidade, em virtude das características do ato infracional análogo ao crime:

Aí a gente já tá falando de outra coisa, abrigo. Porque não, não tanto porque tem a sociedade pra ajudar ... tem a minha mulher que, todo mês, dá 20 reais pro AACC [Associação de Apoio à Criança com Câncer], 20 reais pra Mamãe Margarida ... existe um empenho da sociedade como um todo, para que a instituição funcione ... “Ei, eu tenho um projeto, tá top, muito bem escrito, qualquer um que pegar e ler vai dizer, caramba! ... entendi tudo, sei de tudo” diz assim “não, pra patrocinar um futebol que vai ter lá no Dagmar Feitosa”. Ele vai falar: “O quê, rapaz?! Dagmar Feitosa não é aquele lugar que os meninos que são presos porque cometeram crime? Tá doido, vou fazer isso não”. E, aí o que tu acha disso? Começa daí. Se ninguém acredita na mudança, como que a gente vai mudar? Não tem como. (Narciso)

Essa categoria demonstra o quanto a universalidade não é vivenciada no cotidiano e o quanto as estruturas de exclusão social são tão rígidas que contribuem para uma exclusão cada vez mais profunda, dificultando, inclusive, os processos de reintegração social de adolescentes que cometem infrações, o acesso a bens de serviço e consumo, a formação profissional e a reconstrução de projetos de vida desvinculados da díade pobreza-criminalização.

Dentro da própria rede de proteção acontece, segundo as/os participantes, esse tipo de diferenciação entre a proteção de crianças e adolescentes em medidas de proteção, e de adolescentes em medida socioeducativa:

As equipes que compõem a área cível, por exemplo na área de acolhimento, elas parecem ter uma preparação diferenciada. Parece que o olhar para as crianças que estão em acolhimento institucional é diferente daqueles que estão no socioeducativo. Então, independente da equipe que está acompanhando o socioeducativo, sempre tem aquele olhar de marginalização do garoto ou da garota que tá no socioeducativo e que é um olhar diferente pra aquela que tá no acolhimento. Sempre um olhar mais próximo, mais humano, diferente do que pra aquele que tá no socioeducativo. Então, além do que até mesmo a questão de número da equipe, a preparação do próprio magistrado, a gente percebe que é diferente, não só desleixo. As pessoas não dão a devida importância de melhorar o seu atendimento, não busca essa melhora. (Fênix)

Uma normativa legal, no caso o ECA, não tem, por si, o poder de transformar anos de práticas e de concepções menoristas que estão enraizadas nos processos de subjetivação de nossa sociedade acerca do binômio causal entre crime-pobreza, e nos nossos preconceitos referentes às diversas formas de organização familiar. Soma-se a isso o fato de vivermos sob a égide do recrudescimento penal, do discurso da gestão dos riscos, da mídia atuando como vetor de criação e corporificação do “inimigo” e, consequentemente, incitando a forma de punição mais adequada. Assiste-se à criminalização da juventude negra e pobre e ao fomento de uma cultura antijovem pobre (Netta, 2020Netta, Fernanda (2020). Por que somos contrários à redução da maioridade penal? In Conselho Federal de Psicologia. Caderno de Artigos “ECA: 30 anos” (pp. 7-9). Brasília, DF: Autor. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Acesse-aqui.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
).

A voz de crianças e adolescentes

As/Os participantes foram bem contundentes no que concerne ao tema de escutar e levar em consideração as falas de crianças e adolescentes para as decisões que lhes digam respeito. Entretanto, resguardaram algumas particularidades no que seria esse exercício da escuta, como a noção de “levar em consideração” versus concordar.

Foi observado um cuidado na fala das/dos participantes, no que tange à legitimidade do que é trazido ao âmbito da justiça por crianças e adolescentes, havendo a diferenciação entre os atos de considerar e concordar.

Eu acho que todo mundo tem que ser ouvido e levado em consideração. Só que levar em consideração não quer dizer que você concorde, porque levar em consideração é ouvir a criança, não só uma vez, porque em dias diferentes, momentos diferentes, eles falam coisas diferentes, até devagam [sic] muitas vezes, mas tudo que eles falam tem que ser levado em consideração, não pra nós concordarmos, mas pra ser elemento de análise de pesquisa. Então, não importa se, na área do infracional ou na área de proteção, eles têm quer ser ouvidos e levados em consideração, mas levado em consideração não quer dizer que concorda, entendeu? (Moira)

Tal excerto traz ao cerne do debate as diferenças de concepções relacionadas à prática do protagonismo infantojuvenil nos espaços a eles destinados e nas decisões que dizem respeito a esse público. Identificou-se no trecho que o protagonismo pode ser traduzido como o direito à fala e como a inadmissibilidade de um transcurso processual sem a manifestação da perspectiva do/a adolescente.

Para Moira, a fala juvenil é um componente passível de examinação pelos saberes técnicos. Pode-se recorrer a eles para analisar as informações oriundas das falas e investigar/pesquisar o fenômeno jurídico que está em questão. Assim, ao que parece, a consideração à narrativa juvenil é uma estratégia para execução do trabalho de análise. Tal cenário evoca reflexões a respeito dos modos de construção dos processos de diálogo com crianças e adolescentes no contexto jurídico. Sobre esse aspecto, Leila Brito (2008Brito, Leila Maria Torraca (2008). Diga-me agora... O depoimento sem dano em análise. Psicologia Clínica,20(2), 113-125. https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000200009.
https://doi.org/10.1590/S0103-5665200800...
) teceu críticas à equiparação entre o direito a ser ouvido e a obrigação de testemunhar, apontando a existência de um exercício de poder no uso instrumental das narrativas infanto-juvenis como tática para acesso de informações e viabilização da resolução de casos complexos.

Escuta especializada e produção de prova

Esta categoria no processo de análise expressa a crença defendida de que fazer a criança ou o/a adolescente falar no âmbito da justiça, especialmente por intermédio do depoimento especial e com uso de protocolos especializados, é uma forma de garantir a efetivação de seus direitos e uma forma de sucesso profissional na área da infância e juventude.

outro detalhe que eu me vanglorio em falar isso sem dó nem piedade. Quando eu cheguei aqui, antes de eu vir pra cá, existia a necessidade de um profissional aqui, na vara para o depoimento especial ... Aí eu assumi, peguei todos os protocolos existentes ali, né? ... o índice de não verbalização, por parte das vítimas de violência sexual, que era feito por uma psicóloga mulher, era mais de 60% de negatividade; 60% das crianças que vinham, não falavam, ainda se negavam a falar, mesmo em um ambiente controlado, por meio de protocolo, por meio de teoria, né? E pela percepção social de que a mulher iria ter a possibilidade maior de identificação, penso, não sei que fundamentação era essa de verbalizar pra outra mulher, quando eu cheguei. Hoje o índice é 0. Não existe nem criança, nem adolescente e nem adulta ou adulto, homem também que não fale sobre a violência. Esse é um índice muito interessante a ser dito. Então, graças a Deus, hoje em dia tem essa demanda. (Narciso)

Esse tema do depoimento especial é bastante problemático, já tendo sido publicizadas manifestações contrárias a essa prática pelos Conselhos Federais de Psicologia e Serviço Social. Os conselhos argumentam que a inquirição sobrecarrega a criança e o/a adolescente e deve ser examinada na perspectiva dos direitos humanos, da proteção integral e dos conhecimentos científicos disponíveis em diferentes áreas do saber. A complexidade das situações de violência que envolvem crianças, adolescentes e suas famílias requer uma abordagem interdisciplinar, integrada, complementar e não fragmentadora. A inquirição judicial de crianças e adolescentes é complexa e não pode ser discutida apenas do ponto de vista procedimental. Ao se discutir tais procedimentos, tem-se deixado de lado os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2019Conselho Federal de Psicologia -CFP. (2019). Discussões sobre depoimento especial no sistema conselhos de Psicologia. Author. ).

Garantir a excelência técnico-científica de uma profissão requer não apenas o bom desempenho de determinada metodologia, mas, igualmente, a articulação dessa práxis com outras áreas de saber e o comprometimento com a dignidade da pessoa humana. Nomear o depoimento como “especial” não elimina o dano de tal procedimento. Deve-se evitar que crianças e adolescentes sejam usados como únicos e preponderantes meios de prova em processos penais, bem como lutar para o aperfeiçoamento da investigação processual, policial e judicial (Conselho Federal de Psicologia, 2019Conselho Federal de Psicologia -CFP. (2019). Discussões sobre depoimento especial no sistema conselhos de Psicologia. Author. ).

Considerações finais

Em que pese a correlação entre a área de atuação das/os profissionais e as narrativas singulares construídas a respeito dos direitos, observa-se que as narrativas eram atravessadas por símbolos e noções relacionados a questões sociais amplas, tais como representação de famílias e papéis de gênero, moralidades relacionadas à infância e adolescência e criminalização da pobreza. Infere-se que as narrativas produzidas por profissionais da área infanto-juvenil do Judiciário aos direitos da criança e do/a adolescente desvelam a própria agência das/dos participantes, visto que performam como atores de papéis institucionais e autores na produção e reprodução de discursos hegemônicos.

A pesquisa evidenciou como cada profissional percebia a sua prática no âmbito da efetivação dos direitos da criança e do/a adolescente, bem como que ainda existe uma grande problemática quando se refere à plena efetivação do protagonismo infantojuvenil. Aponta-se que as/os profissionais demonstraram considerar-se certos quando se referiam à defesa individual de suas práticas profissionais, afirmando que nelas existia qualidade técnica e compromisso com a garantia dos direitos da criança e do/a adolescente, ao passo que não reconheciam diferenças de concepção que pudessem incidir diretamente na fragilização do protagonismo almejado. Assim, considera-se não haver simultaneidade entre legitimar direitos e compreender protagonismos.

Decerto, os desafios na efetivação dos direitos da criança e do/a adolescente são grandes e presentes no nosso cotidiano. A presente pesquisa destacou que as narrativas das/os profissionais que atuavam diretamente com direitos da criança e do/a adolescente re/produziam discursos institucionais que podiam fortalecer ou fragilizar a plena efetivação do sistema de garantias. Trazer à tona esses fenômenos pode, portanto, contribuir para a superação dos desafios reconhecidos na realidade, pois fomentará reflexão das/os profissionais a respeito das suas práticas profissionais e institucionais e, potencialmente, levará ao aprimoramento das performances atorais e autorais.

Referências

  • Alberto, Maria Fátima Pereira (2012). Pensamento crítico, formação de psicólogo e atuação junto à infância e juventude. Estudos de Psicologia, 17(3), 421-426. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300010
    » https://doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300010
  • Bock, Ana Mercês Bahia, Ferreira, Marcos Ribeiro, Gonçalves, Maria da Graça Marchina, & Furtado, Odair (2007). Sílvia Lane e o projeto do “Compromisso Social da Psicologia” . Psicologia & Sociedade, 19(nspe.2), 46-56. https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000500018
    » https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000500018
  • Brito, Leila Maria Torraca (2008). Diga-me agora... O depoimento sem dano em análise. Psicologia Clínica,20(2), 113-125. https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000200009.
    » https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000200009
  • Conselho Federal de Psicologia -CFP. (2019). Discussões sobre depoimento especial no sistema conselhos de Psicologia Author.
  • Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988). Presidência da República.
  • Eliseu, Renato & Boscoli, Marcelo (2020). 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente Instituto Mundo Aflora. https://mundoaflora.org/blog_type/30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/?gclid=Cj0KCQjwvIT5BRCqARIsAAwwD-TR1zGT1U_ZekMX9K6XHvsfIof6pjY9DR9bDJOnARWfHrVujn7HQawaArepEALw_wcB
    » https://mundoaflora.org/blog_type/30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/?gclid=Cj0KCQjwvIT5BRCqARIsAAwwD-TR1zGT1U_ZekMX9K6XHvsfIof6pjY9DR9bDJOnARWfHrVujn7HQawaArepEALw_wcB
  • Faleiros, Vicente de Paula (2004). Infância e adolescência: trabalhar, punir, educar, assistir, proteger. Revista Ágora, 1(1), 1-9. https://catedra.ucb.br/wp-content/uploads/2012/07/infancia-e-adolescencia1.pdf
    » https://catedra.ucb.br/wp-content/uploads/2012/07/infancia-e-adolescencia1.pdf
  • Faleiros, Vicente de Paula & Faleiros, Eva Silveira (2008). Escola que Protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes (2ª ed). Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/escqprote_eletronico.pdf
    » http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/escqprote_eletronico.pdf
  • Fundo das Nações Unidas para a Infância (2019). 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: Avanços históricos, problemas que persistem e novos desafios Autor.
  • Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021). Violência contra crianças e adolescentes (2019-2021). Sumário Executivo. Autor. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/12/violencia-contra-criancas-e-adolescentes-2019-2021.pdf
    » https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/12/violencia-contra-criancas-e-adolescentes-2019-2021.pdf
  • Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Presidência da República.
  • Lugones, Maria Gabriela (2012). Obrando em autos, obrando em vidas: formas y fórmulas de protección judicial em los tribunales prevencionales de menores de Córdoba, Argentina, a comienzos del siglo XXI E-papers/LACED/Museu Nacional.
  • Mariano, Cynara Monteiro (2017). Emenda constitucional 95/2016 e o teto dos gastos públicos: Brasil de volta ao estado de exceção econômico e ao capitalismo do desastre. Revista de Investigações Constitucionais, 4(1). https://www.scielo.br/j/rinc/a/wJb3fZFMmZh65KfmrcWkDrp/?lang=pt#
    » https://www.scielo.br/j/rinc/a/wJb3fZFMmZh65KfmrcWkDrp/?lang=pt#
  • Moreira, Lisandra Espíndula & Toneli, Maria Juracy Filgueiras (2013a). Paternidade responsável: problematizando a responsabilidade paterna. Psicologia & Sociedade, 25(2), 388-398. https://www.scielo.br/j/psoc/a/DFs5pcwVDqb6773TsQPTT5m/?format=pdf⟨=pt
    » https://www.scielo.br/j/psoc/a/DFs5pcwVDqb6773TsQPTT5m/?format=pdf⟨=pt
  • Moreira, Lisandra E. & Toneli, Maria Juracy F. (2013b). Paternidade, família e criminalidade: uma arqueologia entre o Direito e a Psicologia. Psicologia & Sociedade, 26(nspe.), 36-46. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000500005
    » https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000500005
  • Moreira, Lisandra E. & Toneli, Maria Juracy F. (2015). Abandono afetivo: afeto e paternidade em instâncias jurídicas. Psicologia Ciência e Profissão, 35(4), 1257-1274. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1982-3703001442013
    » https://doi.org/10.1590/1982-3703001442013
  • Netta, Fernanda (2020). Por que somos contrários à redução da maioridade penal? In Conselho Federal de Psicologia. Caderno de Artigos “ECA: 30 anos” (pp. 7-9). Brasília, DF: Autor. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Acesse-aqui.pdf
    » https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Acesse-aqui.pdf
  • Organização das Nações Unidas - ONU. (1990). Convenção sobre os Direitos da Criança Author. https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca
    » https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca
  • Rey, González Fernando L. (2005). Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação Thomson.
  • Rey, González Fernando L. (2011). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios Thomson.
  • Rizzini, Irene (2009). Crianças e menores: do pátrio poder ao pátrio dever. Um histórico da legislação para a infância no Brasil. In I. Rizzini & F. Pilotti (Orgs.), A arte de Governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil (pp. 97-149). Cortez.
  • Rizzini, Irene, Barker, Gary, & Cassaniga, Neide (2000). Criança não é risco, é oportunidade: fortalecendo as bases de apoio familiares e comunitárias para crianças e adolescentes Instituto Promundo.
  • Vale, Juliana Maria B. T. & Neves, Anamaria S. (2012). O cárcere na adolescência: as instituições e os sentidos da delinquência. O Social em Questão, 15(28), 27-56. http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/3artigo.pdf
    » http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/3artigo.pdf
  • Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Contou com apoio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ 2 CNPq) da autora Iolete Ribeiro da Silva (Processo n. 313484/2020-1).
  • 8
    Aprovação, ética e consentimento: Apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas/UFAM (CAAE 19018319.0.0000.5020)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2022
  • Revisado
    08 Set 2022
  • Aceito
    05 Out 2022
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com